nosso sonho

Durante quatro dias, a IV Feira Nacional da Reforma Agrária, organizada pelo MST, concretizou o sonho de muitos dos que lutam pela soberania alimentar no Brasil. Nesse sonho, além do acesso a uma grande abundância de alimentos produzidos sem veneno, está a possibilidade de comprá-los diretamente de seus produtores.

Na compra direta, a quantia paga pelos consumidores servirá integralmente para remunerar de forma digna esse trabalho tão essencial que é produzir alimentos, além de pagar os custos de produção e transporte. Esses valores têm ainda a função de apoiar a importante missão do movimento como um todo, que é ocupar terras improdutivas e lutar pelo direito de plantar para alimentar pessoas.

A abundância material e humana que havia ali traz sensação de acolhimento e segurança. Poder estar perto das pessoas que produzem os alimentos que consumimos é uma experiência enriquecedora, pelas trocas que possibilita. Para os produtores, suponho que o contato direto com aqueles que se beneficiam do resultado de seu trabalho gere semelhante sensação de segurança. Garantir o escoamento da produção é essencial para a sobrevivência de qualquer unidade produtiva, mais ainda quando ela é pouco capitalizada, como é o caso daquelas pequenas propriedades.

Porém, nos dias em que estive na Feira, ao mesmo tempo em que eu olhava todos aqueles alimentos sobre as bancas dos produtores, ficava me perguntando: e quando a feira acabar? Como é possível reproduzir pelo resto do ano toda essa proximidade, que garante aos agricultores o escoamento de sua produção? A resposta também emergiu em meio a toda aquela abundância. Parece se tratar simplesmente de conexões.

Foto: Dionizio Bueno

Redes de distribuição de alimentos são nada mais do que isso: conexões entre produtores, consumidores e, quando não há alternativas, intermediários. O poder das conexões é tão grande que a possibilidade de controlá-las dá a certos agentes altamente capitalizados a possibilidade de determinar o preço de compra do lado da produção e o preço de venda do lado do consumo.

Portanto, construir alternativas a esses esquemas estabelecidos, criando a possibilidade de acesso direto ou quase direto entre produtores e consumidores, é o caminho para a autonomia. Há muitos formatos para se criar essas conexões, e diversas experiências já existem, funcionando muito bem.

cooperativas de militantes | São grupos organizados que coletam a produção de diversos assentamentos regionais e os distribuem aos consumidores na cidade. Realizam a venda através de páginas na internet ou por meio de grupos de consumo e entregam os produtos em domicílio ou em pontos de retirada espalhados em pontos estratégicos, para que os consumidores possam economizar o custo do frete.

lojas do próprio movimento | Com lojas em diversas cidades do país, redes como o Armazém do Campo oferecem produtos da reforma agrária de diversas regionais, utilizando também a estrutura dos esquemas de distribuição mantidos pela própria militância.

pequenos entrepostos | Essas iniciativas, individuais ou de pequenos coletivos, vendem alimentos tanto da reforma agrária como de hortas urbanas e pequenos produtores na cidade e em volta dela. Verdadeiras zonas autônomas, tais espaços possibilitam o acesso a alimentos saudáveis em suas vizinhanças, algumas vezes em situação de fragilidade institucional, necessitando portanto do apoio comunitário em luta de resistência.

cooperativas de consumo | Com um formato bastante inovador no Brasil, uma cooperativa está sendo formada para gerir um mercado no qual os cooperados realizam grande parte das tarefas práticas e administrativas da loja, diminuindo sensivelmente seu custo operacional e, como consequência, o preço final para os consumidores.

grupos de compras coletivas | Há certamente centenas, senão milhares deles. Basta que uma pessoa colete os pedidos de várias famílias e realize o pedido diretamente à unidade produtora, recebendo a encomenda em sua casa, onde as pessoas do grupo poderão retirar suas compras.

Nos próximos meses e anos, veremos iniciativas como estas crescendo e se proliferando. Mas para consolidar o sonho do amplo acesso aos alimentos saudáveis produzidos pela reforma agrária, é preciso que iniciativas como essas entrem nas vidas de cada vez mais pessoas, e isso pode exigir algumas adaptações, nas duas pontas do sistema.

Foto: Dionizio Bueno

Do lado do consumidor, é preciso planejar o abastecimento da casa. No caso das compras coletivas, por exemplo, os pedidos são abertos somente em certas datas. Concentrando aí as quantidades para um período mais longo (o que naturalmente só é possível no caso de produtos menos perecíveis), todos ajudam a compor um pedido de maior volume, facilitando a negociação de preço com o produtor e ajudando a diluir os custos de frete.

Esse planejamento vale também para produtos mais perecíveis, de compra mais frequente. Por enquanto, as lojas que oferecem produtos orgânicos da reforma agrária existem apenas em certos locais da cidade. As compras de produtos in natura podem ser feitas semanalmente ou até quinzenalmente, evitando demandas de última hora que acabam sendo feitas em qualquer mercado mais próximo.

É muito importante também entender que um padrão de alimentação mais saudável estará sempre sujeito a sazonalidades. É natural que certos produtos não estejam disponíveis em todos os lugares durante o ano todo.

Por meio de seus regimes industriais de produção de alimentos, o sistema alimentar baseado em grandes redes de distribuição e varejo cria artificialmente a possibilidade de ter quase tudo durante todo o ano. Os alimentos são produzidos de forma intensiva em fazendas que podem estar a milhares de quilômetros da sua casa, em regiões com outro padrão climático. Crescem por meio de estimulação artificial, utilizando fertilizantes químicos, e são colhidos enquanto estão verdes, conforme seus cronogramas de linha de produção e a quantidade de pedidos recebidos pelo departamento comercial dessas indústrias agrícolas. Por fim, têm o seu amadurecimento forçado através da exposição a gás etileno obtido do petróleo.

É perfeitamente possível ter uma alimentação baseada em produtos da época, tornando desnecessários esses recursos artificiais criados para viabilizar a produção de alimentos em enormes escalas, gerando grandes lucros para uns poucos, além de mimar um consumidor que quer ter de tudo agora.

Imagem: divulgação

Do lado dos produtores, um pequeno esforço de organização pode contribuir muito para o florescimento dessas redes de distribuição. Só eles podem ter a visão de todos os pedidos que estão recebendo, com suas respectivas datas, destinos e quantidades. Uma boa organização das rotas pode fazer o custo do frete ser dividido entre vários pedidos, diminuindo para todos os custos de transporte e fazendo com que os produtos cheguem a um preço mais baixo para os consumidores, beneficiando as vendas.

E com relação às entidades e grupos que organizam essas iniciativas, cabe ter a inteligência coletiva de entender que o espalhamento e a capilarização desse novo sistema alimentar são benéficos para toda a rede. Seria totalmente fora de propósito enxergar novas iniciativas semelhantes como concorrência. Claro que é preciso cuidado para que a atuação de iniciativas mais capitalizadas ou profissionalizadas não resulte na eliminação de outras que já se encontravam em funcionamento. Por isso é essencial manter o contato e o diálogo entre essas organizações, formando uma teia de cooperação.

Se lutamos para construir esse outro mundo com o qual sempre sonhamos, mas não formos capazes de nos libertar do paradigma da competição, em que o ganho de um implica a perda de outro, me parece que não aprendemos nada.

Produtores e consumidores têm muito a ganhar juntos com essas novas conexões. Em seu conjunto elas estão formando uma rede de produção e distribuição de alimentos que passa ao largo dos conglomerados de logística e varejo geridos pelo grande capital, que atualmente dominam o mercado de alimentos no Brasil. Vivemos a era da retomada dos circuitos curtos. Por muito tempo cultivamos nossos sonhos, hoje eles finalmente começam a florescer.

hortas comunitárias e hábitos alimentares

Uma pesquisa publicada em 2008 buscou aferir se existe relação entre o envolvimento das pessoas com hortas comunitárias e seus hábitos de alimentação, especificamente o consumo diário de frutas e verduras. Realizada em Flint, uma cidade estadunidense que em termos populacionais é comparável a Alfenas (MG) ou Vinhedo (SP), a pesquisa mediu o número médio de vezes ao dia que as pessoas consomem frutas e verduras e também a porcentagem de pessoas que consomem ao menos cinco porções desses alimentos in natura por dia, contemplando as recomendações das autoridades de saúde daquele país.

Entre os participantes da pesquisa, aqueles que têm ao menos um membro da família envolvido com horta comunitária consumiam frutas e verduras, em média, 4,4 vezes por dia, enquanto que quem não tem gente da família envolvida com essas iniciativas apresentou um consumo médio desses alimentos de 3,3 vezes por dia. No primeiro grupo, foi bem maior também o número de pessoas que consumiam ao menos cinco porções frutas e verduras por dia: 32,4%, comparado aos 17,8% entre as famílias sem envolvimento com hortas.

Ainda que a pesquisa assuma suas limitações metodológicas, afirmando que não é possível estabelecer relações de causalidade entre o trabalho em hortas comunitárias e os hábitos alimentares, os dados permitem reflexões interessantes sobre a relação das pessoas com os alimentos in natura.

O artigo apresenta uma discussão sobre as barreiras para o consumo de alimentos saudáveis. Há, em primeiro lugar, a questão da disponibilidade de alimentos frescos in natura, que é de fato um fator determinante. Localidades onde é difícil encontrar alimentos saudáveis, pois seus mercados oferecem apenas produtos industrializados, são consideradas desertos alimentares. De acordo com o artigo, esse é o caso da cidade de Flint. Importante lembrar que feiras livres não são comuns naquele país como são aqui no Brasil. Outros obstáculos apontados pelo artigo para o consumo de alimentos saudáveis seriam: os hábitos e a preferência pessoal, a qualidade do que está disponível, o custo de aquisição e o custo do transporte até o local de compra desses alimentos.

Nesses casos todos, uma horta comunitária local ajuda bastante, ao tornar possível obter alimentos naturais, pelo menos quando estão prontos para serem colhidos, a um custo baixo, que seria apenas o dos insumos para se manter a horta e do tempo alocado a esse trabalho.

Foto: Bárbara Zem

Podemos também acrescentar a dimensão relacional que se estabelece entre a pessoa e a planta por meio do envolvimento com o trabalho prático na horta. Essa vivência traz familiaridade e proximidade com esses alimentos, colocando-os dentro do universo cotidiano da pessoa. O trabalho com a horta proporciona um contato físico periódico com plantas alimentícias, o que não é pouca coisa se pensarmos que o contexto urbano oferece limitações tanto pelo cenário de concreto quanto pela rotina de vida que costuma impor. Para quem mora em apartamento, que é uma realidade para boa parte dos habitantes de grandes cidades, o cultivo de plantas alimentícias ou ornamentais é ainda mais difícil.

Para além de todos os aspectos sociais e ambientais associados a uma horta urbana, o envolvimento com iniciativas desse tipo torna possível que a pessoa tenha em sua vida, diariamente se quiser, importantes experiências dos sentidos: o cheiro das plantas, o toque na terra e nas folhas, a visão do campo verde produzindo vida, o som do vento passando pelas folhas e dos pássaros que habitam esses espaços naturais, o sabor da amostra de alimento beliscada do canteiro enquanto se trabalha.

É natural que toda essa relação afetiva com as plantas alimentícias na horta influencie os hábitos alimentares das pessoas. Além dos evidentes efeitos de fortalecimento comunitário, a convivência com vizinhos e colegas de horta reforça ainda mais a relação com os alimentos quando eles se transformam em assunto de conversas, objeto de curiosidade e fascínio, tema de novas pesquisas e explorações.

Segundo fontes citadas no artigo, foi demonstrado que o envolvimento com hortas escolares ajuda a formar nas crianças o gosto por alimentos in natura. Se as crianças forem envolvidas no trabalho nas hortas urbanas comunitárias, o potencial de criar hábitos alimentares saudáveis se multiplica para o futuro.

Hortas comunitárias têm um evidente papel na construção da autonomia e da segurança alimentar, ao mesmo tempo em que reforçam laços e fortalecem a solidariedade. Ao considerarmos seu potencial de influenciar hábitos alimentares, podemos expandir a ideia de cidade educadora também para o campo da saúde. Criam-se, assim, as bases para uma reconfiguração revolucionária dos sistemas alimentares e da própria paisagem urbana.

consea

Espaços institucionais de articulação entre o governo e a sociedade civil são essenciais para a formulação e a implementação de políticas públicas favoráveis aos interesses coletivos da sociedade. No campo da segurança alimentar e nutricional da população brasileira, esse espaço é o Consea – Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Não por acaso, o Consea foi desativado no primeiro dia de governo da pessoa que ocupou o cargo de presidente da república entre 2019 e 2022, cujo nome não merece ser pronunciado nem escrito.

A reinstalação do Consea se efetivou em 28 de fevereiro de 2023 e foi celebrada por movimentos sociais e ativistas em todo o país. Ao conhecer a relevância e a forma de funcionamento desse conselho, compreendemos melhor a importância desse retorno.

O Consea é um órgão de assessoramento imediato à Presidência da República, com competência para apresentar proposições de políticas relacionadas à segurança alimentar e nutricional e também para exercer monitoramento e controle social na execução dessas políticas. Tem caráter consultivo e atualmente integra o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan).

De seus 60 membros, dois terços são representantes da sociedade civil e um terço são ministros de Estado. Trata-se, portanto, de um espaço importantíssimo para movimentos e organizações sociais que atuam pelo aprimoramento das políticas públicas ligadas a soberania e segurança alimentar e nutricional no Brasil, colocando-os em posição de serem ouvidos diretamente pelo presidente do país.

O Consea teve importante papel na construção de diversas políticas públicas. Alguns exemplos: exigência de que 30% das aquisições do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) venha da agricultura familiar, formulação da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, elaboração do Guia Alimentar para a População Brasileira, criação do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), inclusão do direito à alimentação saudável na Constituição Federal, criação do Sisan.

Tais políticas foram determinantes para a sensível redução do número de pessoas em situação de subalimentação, tirando o Brasil do mapa da fome da ONU em 2014. Por sua atuação, o Consea obteve importante reconhecimento fora do país e já recebeu a visita de delegações internacionais que vieram conhecer o seu trabalho.

A cada quatro anos, o Consea organiza a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CNSAN), que é a instância máxima do Sisan e indica as diretrizes e prioridades da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. O encontro é precedido de conferências municipais, regionais e estaduais, nas quais são eleitos delegados e delegadas que irão participar da conferência nacional.

Histórico das CNSANs já realizadas. Adaptado de Relatório final da 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. CLIQUE PARA AMPLIAR

A última conferência que aconteceu até o momento foi a 5ª CNSAN, em novembro de 2015, em Brasília. Apenas para lembrar, em 2015 a Dilma era presidente, o golpe contra ela já estava sendo articulado mas ainda não havia sido consumado, Lula ainda não havia sido preso, o povo brasileiro ainda não tinha escolhido um fascista para presidente da república, não existia pandemia, ainda não havia 33 milhões de pessoas passando fome no país.

Entre os vários resultados da 5ª Conferência está um trabalho coletivo de escolha de prioridades dentro de um conjunto de 331 proposições trazidas das conferências estaduais. As três proposições mais votadas foram: “Garantir, ampliar e fortalecer as ações de assistência técnica e extensão rural (Ater) na promoção da inclusão produtiva das famílias em situação de pobreza extrema no meio rural, respeitando a forma dos saberes culturais dos povos e comunidades tradicionais”; “Promover o papel da agricultura familiar, camponesa e indígena como um dos elementos estruturantes das estratégias nacionais e regionais de soberania e segurança alimentar e nutricional, por meio do estímulo à produção local de alimentos baseada em modelos diversificados e de base agroecológica, em estratégias soberanas de abastecimento alimentar e em articulação com os preceitos de uma alimentação adequada e saudável”; “Implementar planos de proteção de bacias com recursos para a revitalização e renaturalização dos corpos hídricos, considerando o caráter intermunicipal e interestadual das bacias hidrográficas no momento da tomada de decisões relacionadas às políticas de recursos hídricos, sejam elas estaduais ou federais e que as ações de revitalização atuem prioritariamente nas causas de degradação das bacias hidrográficas”.

Em síntese, na avaliação conjunta dos delegados e delegadas presentes na 5ª Conferência, os três temas mais sensíveis naquele momento eram: inclusão produtiva por meio de assistência técnica, estímulo à agricultura familiar com base na agroecologia e proteção aos recursos hídricos.

No intervalo entre as CNSAN, costuma ser organizado um encontro nacional denominado CNSAN+2, com o objetivo de realizar um balanço das proposições da conferência e do estado de implementação das medidas de segurança alimentar e nutricional no país. A 5ª CNSAN+2 aconteceu em março de 2018, também em Brasília. O relatório desse encontro já identificava retrocessos no campo da segurança alimentar e nutricional, os quais, como sabemos, se aprofundariam nos anos seguintes: “a atual conjuntura de retrocessos na democracia impôs um cenário de desconstrução de direitos, precarização das relações de trabalho, aumento do desemprego, esvaziamento de políticas públicas e iminente volta do Brasil ao Mapa da Fome”.

A conferência seguinte deveria acontecer em 2019, e sua convocatória chegou a ser aprovada em novembro de 2018. Com a desativação do Consea, o encontro naturalmente não aconteceu.

Durante o período em que esteve desativado, os integrantes do Consea mantiveram-se mobilizados, junto com os Conseas estaduais e movimentos sociais de combate à fome, monitorando os movimentos do governo em relação à segurança alimentar e nutricional.

A nutricionista, pesquisadora e professora Elisabetta Recine, que presidia o Consea no momento de sua desativação, foi agora reconduzida ao cargo, junto com seus conselheiros. O gesto mostra a expectativa, por parte do atual governo e da sociedade brasileira, de que o conselho retome os trabalhos do ponto em que foram interrompidos, no início de 2019.

comensalidade

Na língua latina, o verbo ‘comer’ se expressava pela forma edere (uma palavra proparoxítona, com o acento na antepenúltima sílaba). Esse verbo era usualmente acompanhado da preposição cum, que deu origem à nossa preposição ‘com’ e traz sentidos como estar junto, simultaneidade, acompanhamento, inclusão, concomitância, suporte, vínculo, estar entre, fazer parte.

Para se referir ao ato de comer, dizia-se cum edere: ‘comer com’, ‘comer acompanhado de’, ‘estar com [alguém] enquanto se come’, já que as pessoas geralmente faziam suas refeições acompanhadas de outras. A preposição era tão frequente no uso do verbo que, ao longo dos séculos, esse uso foi se cristalizando e a preposição passou a ser percebida como parte dessa forma linguística.

Primeiramente, a forma perde a sílaba pós-tônica, passando de cume(de)re a cumere. Ocorre então a perda da vogal final, e cumer(e) vira cumer. A primeira vogal se modifica e isso leva à forma portuguesa atual ‘comer’.

Foto: Kaboompics / Pexels

Portanto, na origem latina, o nosso verbo ‘comer’ traz, de maneira implícita porém inseparável, a ideia de uma ação que se dá em coletividade. O ato de comer é um momento propício ao compartilhamento. É naturalmente uma celebração do fato de estarmos vivos, juntos e termos uma boa colheita que nos permite reproduzir a vida. Aqueles com quem dividimos a mesa são nossos comensais, são pessoas que ocupam um lugar importante em nosso dia a dia.

A ideia latina de ‘comer com’ faz parte de nossa herança linguística, muitas vezes sem que nos demos conta disso. Conhecer esse pequeno detalhe talvez nos ajude a lembrar de como o momento da refeição é tão essencial para a saúde de nossas relações como é para a saúde de nosso corpo. Em nossa língua, comer é, por definição, um ato de celebração da vida coletiva.

cresan butantã

Em volta dos canteiros suspensos da horta, as crianças observam e tocam folhas que nunca haviam visto antes. Uma tarde que tinha tudo para ser trivial na rotina da escola de educação infantil transforma-se em uma vivência memorável, que pode mudar a relação da criança com os alimentos.

Estamos em um Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional (Cresan) da Prefeitura de São Paulo, localizado no Butantã, zona oeste da cidade. Aqui acontecem ações de educação alimentar e nutricional voltadas para diversos públicos.

Esta unidade dispõe de uma horta pedagógica, com diversas espécies de plantas comestíveis. Aqui, crianças e adultos podem conhecer um pouco sobre alimentação saudável, agroecologia, compostagem, consumo consciente e outros temas ligados à segurança alimentar e nutricional. O Cresan Butantã também está equipado com uma cozinha escola, onde acontecem treinamentos para manipulação de alimentos, cursos de culinária saudável, gastronomia e receitas tradicionais, entre outros, sempre acompanhados por nutricionistas da prefeitura ou das entidades parceiras.

Na horta suspensa do Cresan Butantã, crianças sentem a textura das folhas de peixinho, uma planta alimentícia ainda pouco conhecida. Foto: Dionizio Bueno.

As ações desenvolvidas no Cresan tem como referência os Guias Alimentares publicados pelo Ministério da Saúde com a finalidade de promover alimentação adequada e saudável entre a população brasileira.

Por meio de parcerias com escolas, CEUs, unidades de saúde e organizações sociais, o Cresan Butantã recebeu, entre abril e outubro de 2022, mais de 1200 pessoas em atividades educativas e formativas.

Durante as visitas de escolas, as crianças são conduzidas em uma vivência que busca trazer não só informações, mas também experiências sensoriais. Elas podem conhecer o cheiro de ervas aromáticas e até de provar verduras e temperos apanhados diretamente da terra. Podem também tocar folhas com texturas diferentes do usual, como boldo ou peixinho. Depois de passar pela horta, as crianças vão para a sala degustar um lanchinho preparado com vegetais que acabaram de ser colhidos, além de cantar e participar de brincadeiras. Ao final, recebem mudinhas de plantas, que vão levar para casa com a proposta de aprenderem a cuidar.

A gestora do Cresan Butantã, Sheyla Sicília, fala do potencial educativo e transformador dessa vivência: “As crianças saem felizes dessa experiência, é algo realmente contagiante. Além disso, a atividade está alinhada aos componentes curriculares que estão sendo trabalhados na escola.”

Se buscamos construir um sistema alimentar no qual as pessoas possam ser protagonistas na escolha de seus alimentos – um sistema em que a soberania alimentar seja genuinamente construída de baixo para cima –, é essencial que as pessoas sejam educadas para a alimentação saudável. Isso se constrói, em primeiro lugar, por meio do conhecimento. A importância do Cresan Butantã é ser um equipamento público que trabalha para a educação alimentar e nutricional com um enfoque comunitário, sendo ainda um laboratório para a construção de políticas públicas que promovam segurança alimentar em grande escala.

Atualmente, existem dois Cresans em São Paulo: este no Butantã e um na Vila Maria, onde funciona o banco de alimentos da cidade.

banco de alimentos

Todos os dias, centenas de quilos de produtos alimentícios saem do Banco de Alimentos da Prefeitura de São Paulo, tendo como destino diversas entidades assistenciais, espalhadas por toda a cidade. Essas entidades vão repassá-los a famílias em situação de insegurança alimentar. Nos últimos seis meses (de abril a setembro de 2022), o Banco de Alimentos distribuiu, em média, 30,8 toneladas de alimentos por mês.

Os gêneros que chegam ao Banco de Alimentos vêm de três origens: doados por empresas parceiras (distribuidores, redes de varejo, indústrias), adquiridos da agricultura familiar e arrecadados pelo Programa Municipal de Combate ao Desperdício e à Perda de Alimentos, que coleta, nas feiras livres e mercados municipais da cidade, alimentos já fora dos padrões de comercialização mas que se encontram em perfeitas condições de consumo. No caso das doações de empresas parceiras, trata-se de produtos com pequenas avarias nas embalagens ou próximos à data do vencimento.

“Existem manuais que orientam sobre quando se pode destinar alimentos com danos na embalagem. Nós treinamos nossos funcionários para fazerem essa triagem”, diz Luíza Araújo, nutricionista responsável pelo programa. “Quando recebemos produtos muito próximos ao vencimento, nós acionamos entidades que produzem um grande número de refeições e as entregam prontas às famílias, de forma a garantir que esses alimentos serão consumidos ainda dentro do vencimento. No caso das entidades que distribuem sacolas de produtos fechados para as famílias, encaminhamos produtos que estão menos perto do vencimento”. Após uma avaliação inicial e triagem, são feitas correções nas embalagens ou, caso estejam muito danificadas, os produtos são transferidos de embalagem. Estas recebem uma nova etiqueta, com as informações necessárias sobre o produto.

O Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional (Cresan) da Vila Maria, onde funciona o Banco de Alimentos da Prefeitura de São Paulo. Foto: Dionizio Bueno.

Atualmente, há 410 entidades cadastradas para receber os produtos. Existe um esquema rotativo que garante a cada entidade que, quando for sua vez de receber alimentos, haverá quantidade suficiente para atender todos os seus beneficiários. É importante também que haja um bom aproveitamento do transporte que a entidade envia ao Banco, localizado na Vila Maria, zona norte, para receber os produtos. De um modo geral, cada carga tem 300 quilos de alimentos ou mais.

De acordo com os balanços mensais do programa, que são publicados no Diário Oficial e ficam disponíveis no portal da Prefeitura, ultimamente o Banco tem atendido cerca de 70 entidades a cada mês, o que dá uma média de 440 quilos de alimentos por entidade. O Banco dispõe de câmara fria, sala de manipulação, diversas salas de estocagem e uma cozinha industrial, onde acontecem oficinas de capacitação para as entidades, formações para geração de renda com alimentação saudável e atividades de educação nutricional para escolas, unidades de saúde e população do entorno.

Servidora apresenta uma das salas de estocagem do Banco de Alimentos a profissionais das entidades beneficiadas, dando dicas sobre armazenamento e conservação dos produtos. Foto: Dionizio Bueno.

Os dados disponíveis sobre o Banco de Alimentos mostram que em 2020, primeiro ano da pandemia, houve um sensível aumento na quantidade de alimentos recebidos e distribuídos pelo Banco. Isso demonstra como é fundamental que um sistema de segurança alimentar esteja sempre em funcionamento, pronto para ampliar sua atividade em períodos de agravamento da fome, por meio de ações emergenciais.

Podemos também atribuir a um equipamento público como este uma importância que vai muito além da perspectiva de mitigação dos efeitos de um sistema alimentar excludente. Ele pode ser usado para a própria construção e consolidação de um sistema alimentar mais justo e acessível. A estrutura do Banco de Alimentos pode, por exemplo, ser utilizada com enfoque de fortalecimento da economia local, por meio de aquisições governamentais permanentes de produtos da agricultura familiar existente na região em que está instalado. Seria uma contribuição sistêmica para a erradicação da fome, profundamente alinhada aos princípios da segurança alimentar, um modelo que poderia ser replicado em outras regiões da cidade.

As dinâmicas do mercado e do capital tendem a excluir da cadeia produtiva o pequeno produtor. Para contrabalançar essa tendência, cabe ao poder público adotar um papel ativo no sentido de garantir a viabilidade econômica desses estabelecimentos. A quantidade de sítios produtores e hortas urbanas existentes no município demonstra como isso é possível inclusive dentro de uma metrópole como São Paulo. Além dos evidentes benefícios sociais, um sistema localizado de produção de alimentos afeta o preço final, ao diminuir os custos de transporte, e também a qualidade do alimento, que viajará menos e chegará mais fresco à mesa das pessoas.

Criado em 2002, o Banco de Alimentos da Prefeitura de São Paulo é um programa da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Trabalho (SMDET), por meio da Coordenadoria de Segurança Alimentar e Nutricional (Cosan).

efeméride

Já ouvi histórias de casais que guardam a data exata em que fizeram a criança. Pelo menos em segredo entre eles, essa criança terá dois aniversários: além do nascimento oficial, data em que saiu da barriga, poderá ter a data em que foi concebida como motivo de celebração.

No dia 30 de setembro de 2017, uma Feira de Trocas de Sementes Crioulas me levou à Comuna da Terra Irmã Alberta, e ali surgiu a ideia do Bicicarreto.

Imagens de bicicleta na estrada são sempre muito inspiradoras. Esta é a foto que marca a data.

Beira da via Anhanguera, pouco antes da entrada para a Comuna da Terra Irmã Alberta. Foto: Dionizio Bueno.

A ideia precisou de alguns meses de amadurecimento, pesquisa e articulação. A primeira ação concreta na rua aconteceu em 7 de julho de 2018, exatamente 280 dias depois. Quarenta semanas.

feiras de produtores

Feiras são encontros de pessoas para fazerem trocas. Existem desde a antiguidade e, na baixa Idade Média, marcaram a fase histórica de reabertura do comércio. Nelas, os produtores podem vender seus produtos diretamente às pessoas que vão consumi-los. Temos aí o menor circuito de distribuição possível, apenas produtor e consumidor.

Neste contato direto o produtor recebe o valor que considera justo por seus produtos enquanto o consumidor obtém, teoricamente, o melhor preço possível, já que não há intermediários. Porém os benefícios que esse encontro direto trazem ao sistema alimentar vão muito além do fator econômico.

O contato direto promove uma interlocução entre aqueles que produzem os alimentos e aqueles que se nutrem com eles. O produtor pode aprender a partir das informações de seus fregueses, obtém um retorno em relação aos hábitos alimentares, às variedades preferidas, às mudanças de qualidade conforme as técnicas de cultivo que vai experimentando. Os consumidores têm a oportunidade de um contato mais próximo com o fazer produtivo, as sazonalidades, as influências do clima e outros fatores naturais em sua alimentação. Nada pode ser mais humano que um sistema alimentar marcado pela compreensão mútua.

Sobretudo para os consumidores, existe nisso um grande aprendizado. Nossa sociedade busca nos acostumar com a ideia de que é possível ter tudo a qualquer momento. O supermercado se passa por um lugar encantado, sempre pronto a saciar qualquer desejo. Na sociedade de consumo, o alimento sai das fábricas, e o leite é um líquido que nasce dentro de caixinhas.

O contato mais próximo com a produção ajuda a tirar os alimentos desse lugar de meras mercadorias, sujeitas aos caprichos dos consumidores e às artimanhas dos mercadólogos. Nossos alimentos são criações da natureza.

Foto: Barbara Zem / MST

Para os produtores, a venda direta dá sentido e viabilidade às pequenas escalas de produção, liberando-os da ideia de que a única via de sobrevivência é aumentar a escala para ter acesso aos mercados por meio dos sistemas de distribuição. A produção pode se manter em escala compatível com a capacidade da unidade produtiva, qualquer que seja seu tamanho.

Ao viabilizarem as trocas, que podem ser monetárias ou não, as feiras tornam possível um certo grau de especialização da produção, sem entrar no regime industrial, no qual os produtores tendem a abandonar cultivos de subsistência. Alguns sítios concentram esforços em frutas, outros em ovos, outros produzem grãos, outros legumes, hortaliças. Em uma feira de produtores diversificada, aqueles que não produzem (os consumidores) podem ter tudo ou quase tudo que necessitam para a alimentação diária. Na pequena escala, os sítios suprem a demanda de suas regiões. Em cada região, um esquema semelhante, há demanda para todos. Assim, o sistema alimentar tende naturalmente à alimentação local. Tudo tão perto que pode ser transportado até de bicicleta!

Através da ideia de que só grandes escalas são economicamente viáveis, o sistema alimentar da sociedade de consumo cria a dependência dos grandes esquemas de transporte, necessariamente motorizados, abrindo espaço e gerando demanda para mais e mais elos na cadeia de distribuição. Os intermediários passam a ditar as condições e preços tanto na ponta do consumo como na da produção. O sistema cria as mazelas e ainda gera a ilusão de que nada fora dele é possível.

Ao mesmo tempo em que são uma prática muito antiga, as feiras de produtores são revolucionárias. Venda direta, proximidade e pequena escala desfazem os pressupostos desse sistema que aprisiona produtores e consumidores. Por meio do encontro direto entre os dois agentes mais importantes do sistema produtivo, as feiras criam uma insurreição. Seus efeitos são econômicos, relacionais e estruturais.

Feiras de produtores são uma ameaça ao sistema do capital. É preciso que resistam, que floresçam e se multipliquem.

projeções do agronegócio

Para que serve a terra no Brasil? Para produzir alimentos ou para ganhar muito dinheiro?

Um documento produzido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento traz informações desanimadoras para quem acredita que a terra deveria servir para saciar a fome das pessoas. Resumindo: alimentos como arroz, feijão, batata, mandioca, banana e café estão perdendo áreas de cultivo, enquanto commodities como milho, soja, algodão, fumo e cana de açúcar estão ganhando ainda mais território.

Reeditado a cada ano, o relatório Projeções do Agronegócio traz estimativas sobre como ficará a atividade agrícola nos dez anos seguintes à sua publicação. O último relatório disponível neste momento é de 2021, e suas projeções vão até o ano safra 2030/2031.

Os dados mais assustadores se referem à perda da área plantada de alguns alimentos. O arroz deve perder 62% de seu espaço: dos 1.687 mil hectares dedicados ao seu plantio em 2020/2021, devem restar apenas 641 mil hectares em 2030/2031. O feijão, que no ano safra 2020/2021 dispõe de 2.898 mil hectares para seu cultivo, ficará com apenas 1.830 mil hectares em 2030/2031, uma perda de 36,8%.

Enquanto isso, produtos agrícolas que servem principalmente como matérias primas industriais, e não como alimentos saudáveis, estão em expansão. A área plantada de milho deve crescer de 19.841 mil hectares em 2020/2021 para 21.948 mil hectares em 2030/2031, um aumento de 10,6%. O crescimento da soja é ainda maior: de 38.502 mil hectares em 2020/2021, deve subir para 48.851 mil hectares em 2030/2031, aumento de 26,8%.

O relatório fala das possibilidades à disposição do agronegócio para aumentar a área plantada dessas culturas. Um exemplo: “A expansão de área de soja e cana-de-açúcar deverá ocorrer pela incorporação de áreas novas, áreas de pastagens naturais e também pela substituição de outras lavouras que deverão ceder área” (p. 87). Note o uso das expressões ‘incorporação de áreas novas’, que pode servir de eufemismo para ‘desmatamento’, e ‘substituição de outras lavouras que deverão ceder área’, uma referência a cultivos que estão perdendo área plantada, onde se incluem o arroz e o feijão.

Os dados que o relatório apresenta sobre anos anteriores mostram que a redução das áreas plantadas de arroz e de feijão já é um processo em curso há pelo menos dez anos. Entre os anos safra 2009/2010 e 2019/2020, esses cultivos perderam, respectivamente, 39,7% e 18,9% de seus territórios. No mesmo período, houve enorme expansão das commodities: 42,6% no caso do milho e 57,4% no caso da soja.

Área Plantada com 5 principais grãos – Brasil (mil hectares). Fonte: Projeções do Agronegócio 2020/2021 a 2030/2031. CLIQUE PARA AMPLIAR

No momento atual, a diferença entre as áreas plantadas de alimentos e de commodities é gritante. A título de exemplo, em 2020/2021 temos 4.585 mil hectares na soma das áreas de arroz e feijão, contra 58.343 mil hectares no total para milho e soja. A área dedicada a estas duas commodities é 12,7 vezes maior que a área de cultivo de dois dos principais alimentos dos brasileiros.

O estudo avalia que “algumas lavouras, como mandioca, café, arroz, laranja e feijão, devem perder área, mas a redução será compensada por ganhos de produtividade” (p. 86). As estimativas para 2030/2031 são de que, nessas condições, a produção de arroz cresça 3,4% e a produção de feijão caia 1,2%.

Ganhos de produtividade são incertos e, sobretudo para as pequenas propriedades, responsáveis pela maior parte dos cultivos de arroz e feijão, dependem de programas de fomento à produção e de assistência técnica e extensão rural. Por outro lado, os grandes estabelecimentos produtivos do agronegócio, altamente capitalizados, conseguem sem dificuldade comprar ou arrendar propriedades menores que hoje produzem alimentos. Assim, o cenário apontado no relatório é extremamente delicado. Políticas públicas específicas para a produção de alimentos são essenciais para evitar redução nas colheitas, fazendo os preços subirem ainda mais.

Se há mesmo perspectivas de aumento de produtividade nos cultivos de arroz e feijão, melhor seria se isso fosse usado para trazer um sensível crescimento de sua produção, provocando queda nos preços e facilitando o acesso da população a esses alimentos. Infelizmente, no olhar do agronegócio, o esperado ganho de produtividade de arroz e feijão é apenas mais um fator para contribuir na expansão das commodities, mesmo havendo 33,1 milhões de brasileiros passando fome.

Para argumentar que a perda de áreas de cultivo de alimentos não levará a problemas de abastecimento, o relatório apresenta ainda um prognóstico de queda no consumo de arroz e feijão. Os cálculos dizem que, até 2030/2031, o consumo de arroz no Brasil deve cair 2,2% e o de feijão deve cair 0,7%.

Se mesmo com as expectativas de que a população brasileira cresça até 2030 esses prognósticos estiverem corretos, o relatório está anunciando um futuro tenebroso. A queda no consumo desses dois itens básicos na cultura alimentar brasileira só pode significar duas coisas: ou as pessoas vão mesmo comer menos (ou seja, mais fome!) ou passarão a comer outras coisas (provavelmente menos saudáveis). Provavelmente, ambos.

De fato, o Atlas das situações alimentares no Brasil já aponta, com base em dados de 2002 a 2018, uma queda no consumo de alimentos in natura ou minimamente processados, acompanhada de um aumento no consumo dos alimentos processados e ultraprocessados. Estamos diante de um cenário de aumento da fome e queda na qualidade da alimentação.

O relatório Projeções do Agronegócio é escrito na perspectiva daqueles para quem a agricultura é uma atividade para se ganhar muito dinheiro. Ao falar da alta nos preços agrícolas em 2021, apresenta isso como uma boa notícia: “os preços de carnes, bovina e suína, e também de milho e soja sobressaem-se em relação aos demais. São produtos que têm-se beneficiado do comércio internacional favorável, e da taxa de câmbio vigente neste ano” (p. 9, grifos nossos).

Com o dólar em alta, quem exporta ganha mais dinheiro, e isso puxa os preços internos para cima. Numa perspectiva de combate à fome, que definitivamente não é a do agronegócio, boa notícia seria uma queda de preços, pois isso significaria alimentos mais baratos para a população brasileira.

Cabe aqui citar um trecho de um livro do professor José Graziano da Silva, em que ele descreve o latifúndio escravista, principal atividade econômica do Brasil colônia, mais de quatrocentos anos no passado.

“A produção de alimentos do latifúndio variava muito em função do preço do seu produto principal destinado à exportação. Por exemplo, quando o preço do açúcar (e mais tarde do café) subia no mercado mundial, todas as terras e os escravos eram utilizados para expandir a sua produção, diminuindo assim a produção de alimentos. Nesses períodos havia fome na colônia e as autoridades estimulavam os pequenos agricultores a expandirem sua produção, para abastecer não só as vilas e cidades, como às vezes os próprios latifúndios” (O que é Questão Agrária, p. 27).

Perceba como vivemos exatamente no mesmo país que ele descreve.

Apenas dois comentários sobre essa rápida viagem no tempo. A fome, que segue firme aqui na colônia, tem basicamente as mesmas causas estruturais. E quem de fato alimenta este país são e sempre foram os pequenos agricultores.

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Construído ao longo de décadas através de sucessivas melhorias, como resultado de muita mobilização social, o Programa Nacional de Alimentação Escolar é considerado um dos maiores programas no mundo com essa finalidade e, segundo sua página oficial, é o único com atendimento universalizado.

Começou a ser estruturado na década de 1950, na forma de uma campanha de merenda escolar. Inicialmente dependeu de convênios com organismos internacionais, tendo ainda o enfoque do atendimento a populações carentes. A Constituição de 1988 assegurou o direito à alimentação escolar a todos os alunos do ensino fundamental. Em 1994 sua operação (planejamento de cardápios, aquisição dos gêneros, distribuição) foi descentralizada, por meio do envolvimento das secretarias estaduais de educação e de convênios com os municípios.

Em 2001 a legislação introduziu o respeito aos hábitos alimentares regionais e à vocação agrícola de cada município. Além disso, passou a exigir que 70% dos recursos sejam aplicados em produtos básicos. Dois importantes passos em direção à qualidade nutricional e ao respeito às culturas alimentares locais. Em 2009, foi estendido para toda a rede pública de educação básica e, em 2013, para os alunos de EJA (educação de jovens e adultos), AEE (atendimento educacional especializado) e escolas de tempo integral.

A legislação de 2009 é considerada um marco importante na história do PNAE por tornar obrigatório que no mínimo 30% dos recursos repassados sejam utilizados na “aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas” (Lei nº 11.947/2009, Art. 14º). Nesses casos, fica dispensado o processo licitatório, e a aquisição passa a ser encaminhada por meio de chamadas públicas.

Os efeitos desse envolvimento da agricultura familiar podem ser sentidos de diversas formas. Nos refeitórios das escolas, houve sensível melhoria no cardápio das refeições. O feijão enlatado que era servido em muitas escolas, proveniente de locais indefinidos de qualquer canto do planeta e cheio de conservantes químicos, foi substituído por feijão fresco, produzido em pequenas propriedades na própria região. As crianças passaram a receber frutas locais no lugar de biscoitos industrializados. Um simples artigo da lei pode provocar a substituição de produtos ultraprocessados por alimentos in natura na alimentação de milhões de crianças.

Foto: divulgação

Fora da escola as mudanças também são significativas. As compras municipais garantem renda para agricultores e agricultoras locais, que passam a viver em melhores condições e a consumir mais no comércio da cidade, fazendo girar a economia, gerando distribuição de riqueza e aumentando a arrecadação de impostos do município. A justiça social se propaga por toda a cadeia econômica na forma de prosperidade para todos.

A oportunidade dada aos pequenos agricultores pelo programa também estimula o associativismo, a formação de cooperativas e a organização da classe produtora sendo, portanto, um fator de fortalecimento político da agricultura familiar. Quando as escolas foram fechadas em função da pandemia, o programa manteve as compras municipais desses pequenos produtores, garantindo o escoamento da produção. As famílias dos alunos podiam retirar os alimentos nas escolas e, em alguns casos de maior vulnerabilidade, podiam recebê-los em casa.

A concretização desse potencial, no entanto, depende em grande medida das entidades municipais e estaduais que fazem a gestão dos recursos. São elas que decidem sobre quais produtos adquirir, e de quem. Talvez pela própria formulação do texto da lei, ela infelizmente não consegue “garantir”, como muito se diz em matérias sobre o assunto, o percentual mínimo de 30% em compras da agricultura familiar.

O próprio artigo 14 da referida lei já prevê as condições nas quais esse percentual pode ser flexibilizado, oferecendo possibilidades de justificativas que são difíceis de serem verificadas pelos mecanismos de controle social. A página de perguntas frequentes sobre o PNAE informa que, no caso do não cumprimento dos 30%, basta às entidades executoras justificarem posteriormente as razões para isso. De tempos em tempos circulam notícias sobre o descumprimento da exigência por parte das entidades municipais e estaduais (exemplos aqui, aqui e aqui).

Dados sobre as compras da agricultura familiar disponíveis na própria página do governo federal apontam para um quadro pouco animador no que se refere ao cumprimento dos 30% estabelecidos pela lei. As informações mais recentes disponíveis nessa página se referem a 2017 e, ainda que já um pouco antigas, dão uma ideia da situação.

Dos 640 municípios paulistas listados na base de dados disponível, apenas 226 (35,3%) empregaram 30% ou mais da verba do PNAE na compra de produtos da agricultura familiar. No caso de 280 prefeituras (43,8%), o percentual de compras da agricultura familiar fica abaixo do exigido por lei. Há 123 municípios em que o dado referente a compras da agricultura familiar está marcado com um traço, sem esclarecer se isso corresponde a um zero ou a simples ausência de informações. Portanto, o percentual de prefeituras que não atingiram os 30% é provavelmente ainda maior, podendo chegar a 63% caso esse traço seja mesmo um zero em todos os casos.

No município de São Paulo, no ano de 2017, o percentual da verba do PNAE investido em compras da agricultura familiar foi, segundo essa base de dados, de apenas 7,8%, muito distante do mínimo exigido pela legislação.

Ao comprarem produtos em varejistas ou mesmo em grandes distribuidoras, as prefeituras pagam mais caro, pois estão optando por alimentar uma cadeia de distribuição cheia de intermediários. Além disso, estão quase sempre jogando recursos para fora do município. Ao escolherem a agricultura familiar, a verba vai diretamente para os pequenos produtores, promovendo justiça econômica e social. O que está em jogo nesta decisão do gestor público é a escolha entre fortalecer trabalhadores e trabalhadoras da região ou fortalecer ainda mais o grande capital.

Um agricultor familiar que deseje vender sua produção para o PNAE deve, em primeiro lugar, emitir a sua DAP (Declaração de Aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), que é o documento que habilita a unidade produtiva para participar do programa. Precisa então ficar atento, junto à prefeitura de seu município, para as chamadas públicas para aquisição de alimentos. Deverá entregar um projeto de venda de gêneros alimentícios para alimentação escolar e demais documentos exigidos por aquela chamada. Uma vez aprovado o projeto, será elaborado um contrato de aquisição entre a prefeitura e a unidade produtiva.

Ao incluir a agricultura familiar diretamente nas compras públicas, o PNAE cria a oportunidade de reconfigurar os sistemas alimentares a partir das relações locais, com impactos imediatos na saúde da população estudante, nas condições de vida dos pequenos produtores e na economia local. Sendo a prefeitura municipal o único intermediário entre produtor e consumidor, forma-se um circuito curto que leva os alimentos da horta ao refeitório escolar sem dispersão de recursos e com grande qualidade nutricional.

Sua efetividade, porém, depende de constante vigilância e pressão por parte da sociedade civil, que pode fazer isso por meio dos Conselhos de Alimentação Escolar ou através de incidência direta junto a prefeituras, secretarias de educação e câmaras de vereadores. Milhares de municípios brasileiros respeitam a lei, investindo 30% ou mais (em alguns casos, bem mais) em compras diretas da agricultura familiar. Mas há milhares de municípios que ainda estão abaixo ou bem abaixo dessa exigência legal. Existe aqui um imenso campo de oportunidades para o fortalecimento da agricultura familiar.