Se boa parte da humanidade escolheu viver em cidades, é porque elas prometem, entre outras coisas, acesso mais fácil aos produtos e serviços essenciais à vida. Abrimos mão de plantar o próprio alimento pois, vivendo em aglomerações, nós poderíamos adquiri-lo facilmente enquanto nos dedicamos a outras atividades. Acontece que em muitas localidades essa oferta é negada.
Os lugares onde não existe acesso fácil a alimentos saudáveis são chamados desertos alimentares. São bairros onde não há mercearias, quitandas ou supermercados que vendam frutas, verduras e legumes frescos. Os estabelecimentos que existem nesses lugares oferecem apenas produtos comestíveis ultraprocessados, cheios de gorduras, açúcares, saborizantes e conservantes químicos. Produtos que, segundo alguns profissionais, sequer podem ser considerados alimentos.
Bastante utilizado nos EUA em anos recentes, o conceito tem uma definição básica bem simples, dada pelo ministério da agricultura de lá: desertos alimentares são áreas onde o acesso a alimentos saudáveis e a preço acessível é limitado. Há também definições mais elaboradas, que podem restringir a áreas com população de baixa renda, especificar uma distância máxima (geralmente 1 milha) entre domicílio e estabelecimento comercial, ou ainda considerar a posse de automóvel pela família.

Dois enormes atacadistas (canto inferior esquerdo) podem quebrar comércios locais. Imagem: DigitalGlobe.
Para além das especificidades das definições, bastante ligadas à realidade social e urbana de cada país, o que mais interessa para nós é a própria ideia de deserto alimentar. Ela nos leva a refletir sobre como organização urbana, mobilidade e forças econômicas são fatores que determinam de maneira direta o acesso a uma alimentação decente.
Ao abrir uma loja em determinado bairro, uma grande rede de comércio pode provocar o fechamento de mercearias e quitandas locais. Se isso acontece, as pessoas passam a ter duas opções: ou acabam tendo sua alimentação restrita aos produtos que estiverem disponíveis nesse supermercado, pagando o preço que seus gestores quiserem, ou precisam se deslocar até outro bairro em busca de opções. Terão que gastar combustível, caso disponham de um automóvel, ou pagar condução e ter que segurar sacolas cheias e pesadas dentro do transporte coletivo e no ponto de ônibus. Pessoas com mais idade e menos condições físicas são as que mais sofrem com isso. Caso tenham problemas crônicos de saúde, a importância de uma alimentação saudável é ainda maior, e portanto a dificuldade de acesso aos alimentos torna-se ainda mais determinante em suas condições de vida.
Há bairros planejados para que praticamente qualquer movimento dependa de um automóvel. Tudo é longe, as pessoas precisam de um carro até para ir à padaria. Eventualmente, há aí supermercados que até oferecem uma linha de alimentos saudáveis, afinal são frequentados por “gente feliz”, e esse tipo de consumidor costuma ter interesse em bons produtos. Mas os preços praticados nesses lugares são bastante seletivos. Até mesmo os chamados sacolões tendem a se tornar quitandas de luxo quando estão perto de bairros ricos. Considerando que a definição fala de alimentos a preços acessíveis, podemos considerar esses bairros como desertos alimentares também.

Tente sair caminhando para procurar um mercado ou quitanda. Imagem: DigitalGlobe.
De qualquer forma, definições oficiais acabam sendo o menos importante. Você é quem tem mais legitimidade para falar sobre a situação em que vive. Como você avalia a disponibilidade de alimentos saudáveis no lugar onde você mora? Sente dificuldade para obtê-los? Isso afeta de alguma forma a qualidade da sua alimentação e da sua vida?
Tendo em vista tudo isso, você considera o seu bairro um deserto alimentar?
Ao aceitarmos que o alimento seja tratado como mercadoria, sujeita a leis de mercado, podemos esperar a proliferação desses locais em que as pessoas são privadas de boa alimentação a menos que estejam em condições econômicas muito privilegiadas. Para que não fiquemos reféns da indústria de produtos comestíveis e das redes de supermercados, é preciso incentivar os pequenos comerciantes e, especialmente, os mercados de produtores. E aqui, incentivos não dizem respeito às leis ou benefícios tributários que partem do poder público, mas às escolhas feitas por cada um no momento de adquirir seus alimentos.
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