Em 2014, o Brasil foi um dos destaques do Relatório de Insegurança Alimentar no Mundo, elaborado anualmente pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). A publicação, que traz dados gerais sobre a insegurança alimentar, dedicou ao país uma seção especial de três páginas e meia, onde sintetizou as lições que a comunidade internacional poderia aprender a partir das políticas públicas do então governo brasileiro. Foi um importante reconhecimento, por um órgão internacional, de um amplo e continuado conjunto de medidas que tirou milhões de brasileiros da fome e da miséria.
A publicação dessa edição do relatório tornou-se referência por marcar o momento em que o Brasil sai do mapa da fome da ONU. Esse mapa tem como base o indicador PoU – Prevalência de Subalimentação (Prevalence of Undernourishment, no original em inglês), usado na época para monitorar o progresso dos países no cumprimento dos então vigentes Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Sair do mapa da fome, naquele contexto, significava passar a apresentar um valor abaixo de 5% no indicador PoU.
Esse indicador mede a probabilidade de uma pessoa escolhida aleatoriamente apresentar um consumo de calorias abaixo dos requisitos mínimos para uma vida ativa e saudável. O índice é calculado com base em informações de grande escala dos países, por exemplo, dados macro sobre oferta de alimentos nos territórios. Trata-se, portanto, de uma estratégia bastante indireta e abstrata de se medir a chamada insegurança alimentar. Além disso, ao definir a fome com base em quantidade de calorias, o indicador opta por uma caracterização da fome de um ponto de vista clínico, deixando de lado os aspectos sociais e subjetivos dessa questão tão delicada.
A fome é uma experiência individual, uma condição sentida e vivenciada por seres conscientes. Uma abordagem mais próxima dos sujeitos parece mais adequada para investigá-la. Em vez de medir (ou, pior ainda, estimar) a quantidade de calorias ingeridas, acreditamos que a forma mais razoável e cientificamente honesta de saber se uma pessoa está com fome é perguntar a ela.
A Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) é um estudo aplicado pelo IBGE em suas pesquisas junto aos domicílios brasileiros. Os participantes respondem perguntas relacionadas a experiências concretas de suas famílias: sentir preocupação com a falta de condições para obter alimentos, ficar impossibilitado de comer certos tipos de alimentos, ter que comer menos do que sentia ser necessário, ter que deixar de fazer certas refeições, passar um dia inteiro sem comer. Pesquisas baseadas nessa escala são capazes de captar experiências de fome nas diferentes formas e intensidades que isso pode tomar nas vidas das pessoas.
Lançado no mês passado, o Atlas das situações alimentares no Brasil: a disponibilidade domiciliar de alimentos e a fome no Brasil contemporâneo se baseia em dados sobre a fome levantados pela EBIA. O trabalho traz um breve histórico dos indicadores de fome, propondo uma importante reflexão sobre a terminologia usada para se tratar desse tema. Mostra inclusive o contexto no qual o termo fome, a pedido do Departamento de Agricultura dos EUA, foi suprimido do indicador adotado na época naquele país, permanecendo apenas ‘insegurança alimentar’. De forma a eliminar eufemismos, o Atlas adota explicitamente o termo fome para situações usualmente tratadas como ‘insegurança alimentar moderada ou grave’ e risco de fome para os casos chamados de ‘insegurança alimentar leve’.
O Atlas traz dados dos anos de 2004, 2009, 2013 (nos quais ela foi aplicada dentro da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e de 2017/2018 (em que a EBIA foi aplicada com a Pesquisa de Orçamentos Familiares).
É possível observar uma clara diminuição da fome e do risco de fome entre 2004 e 2013. Nesse ano temos as menores proporções de domicílios com fome (7,8%) e com risco de fome (14,8%) no país. Há então uma reversão nessa tendência. A fome e o risco de fome voltam a aumentar e, na pesquisa de 2017/2018 atingem, respectivamente, 12,7% e 24% dos domicílios.

Evolução da fome e do risco de fome (2004-2018). Dados: IBGE. Adaptado de Atlas das situações alimentares no Brasil. CLIQUE PARA AMPLIAR
Os dados segmentados por situação do domicílio revelam um quadro duplamente intrigante. Em termos absolutos, o numero de domicílios com fome ou risco de fome nas áreas urbanas é muito maior. São 6,9 milhões de domicílios em condição de fome e 14 milhões de domicílios em risco de fome, segundo os dados de 2017/2018. Trata-se de um triste retrato do cenário de miséria a que são submetidas as pessoas que escolhem a vida urbana em busca das oportunidades que ela lhes promete. O dado aponta para a questão do acesso à alimentação, um dos componentes desse fenômeno multifatorial que é a segurança alimentar. Além da situação de pobreza ou miséria que atinge muitas pessoas, há ainda, em muitas áreas, a dificuldade ou impossibilidade de se conseguir alimentos saudáveis a preços acessíveis, os chamados desertos alimentares.
Ao mesmo tempo, em termos proporcionais, as áreas rurais são mais afetadas. Nos dados de 2017/2018, a fome aparece em 19,3% dos domicílios rurais (contra 11,6% dos domicílios urbanos) e o risco de fome em 27,1% deles (contra 23,5% dos urbanos). É assustador perceber que os territórios que teoricamente deveriam servir para produzir alimentos estão negando essa possibilidade às pessoas, pois estão dominados pelo sistema do agronegócio, que destrói a produção de subsistência. Nele, a terra serve para ganhar dinheiro e não para saciar a fome das pessoas.
Entre 2004 e 2009, a redução da fome e do risco de fome foi maior no campo do que na cidade. Já entre 2009 e 2013 a melhora mais expressiva se deu nas áreas urbanas.
Os dados por unidades da federação mostram que São Paulo, Bahia e Minas Gerais concentram os maiores números absolutos de domicílios em situação de fome; quanto ao risco de fome, os maiores números estão em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Em termos relativos, os maiores percentuais de fome estão nos estados de Amazonas, Maranhão e Amapá; as maiores proporções de risco de fome estão em Maranhão, Alagoas e Pará.
O fato concreto é que os dados mais recentes apresentados pelo Atlas mostram um quadro em que há fome em 8,7 milhões de domicílios brasileiros e risco de fome em outros 16,5 milhões de domicílios. Em um cálculo aproximado, assumindo uma média de 3 pessoas por domicílio, podemos estimar que havia 26,1 milhões de pessoas com fome e 49,5 pessoas em risco de fome no Brasil em 2018. Tudo isso ainda antes da pandemia e do desmonte, aprofundado nestes últimos anos, das políticas de combate à fome e à miséria que fizeram o Brasil ser destaque no relatório da FAO de 2014.
Papel mundialmente infame para um país que se destaca como grande exportador de commodities agrícolas. Fica claro como manter mais de um terço da população em situação de fome ou risco de fome é resultado de uma escolha política.
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