projeções do agronegócio

Para que serve a terra no Brasil? Para produzir alimentos ou para ganhar muito dinheiro?

Um documento produzido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento traz informações desanimadoras para quem acredita que a terra deveria servir para saciar a fome das pessoas. Resumindo: alimentos como arroz, feijão, batata, mandioca, banana e café estão perdendo áreas de cultivo, enquanto commodities como milho, soja, algodão, fumo e cana de açúcar estão ganhando ainda mais território.

Reeditado a cada ano, o relatório Projeções do Agronegócio traz estimativas sobre como ficará a atividade agrícola nos dez anos seguintes à sua publicação. O último relatório disponível neste momento é de 2021, e suas projeções vão até o ano safra 2030/2031.

Os dados mais assustadores se referem à perda da área plantada de alguns alimentos. O arroz deve perder 62% de seu espaço: dos 1.687 mil hectares dedicados ao seu plantio em 2020/2021, devem restar apenas 641 mil hectares em 2030/2031. O feijão, que no ano safra 2020/2021 dispõe de 2.898 mil hectares para seu cultivo, ficará com apenas 1.830 mil hectares em 2030/2031, uma perda de 36,8%.

Enquanto isso, produtos agrícolas que servem principalmente como matérias primas industriais, e não como alimentos saudáveis, estão em expansão. A área plantada de milho deve crescer de 19.841 mil hectares em 2020/2021 para 21.948 mil hectares em 2030/2031, um aumento de 10,6%. O crescimento da soja é ainda maior: de 38.502 mil hectares em 2020/2021, deve subir para 48.851 mil hectares em 2030/2031, aumento de 26,8%.

O relatório fala das possibilidades à disposição do agronegócio para aumentar a área plantada dessas culturas. Um exemplo: “A expansão de área de soja e cana-de-açúcar deverá ocorrer pela incorporação de áreas novas, áreas de pastagens naturais e também pela substituição de outras lavouras que deverão ceder área” (p. 87). Note o uso das expressões ‘incorporação de áreas novas’, que pode servir de eufemismo para ‘desmatamento’, e ‘substituição de outras lavouras que deverão ceder área’, uma referência a cultivos que estão perdendo área plantada, onde se incluem o arroz e o feijão.

Os dados que o relatório apresenta sobre anos anteriores mostram que a redução das áreas plantadas de arroz e de feijão já é um processo em curso há pelo menos dez anos. Entre os anos safra 2009/2010 e 2019/2020, esses cultivos perderam, respectivamente, 39,7% e 18,9% de seus territórios. No mesmo período, houve enorme expansão das commodities: 42,6% no caso do milho e 57,4% no caso da soja.

Área Plantada com 5 principais grãos – Brasil (mil hectares). Fonte: Projeções do Agronegócio 2020/2021 a 2030/2031. CLIQUE PARA AMPLIAR

No momento atual, a diferença entre as áreas plantadas de alimentos e de commodities é gritante. A título de exemplo, em 2020/2021 temos 4.585 mil hectares na soma das áreas de arroz e feijão, contra 58.343 mil hectares no total para milho e soja. A área dedicada a estas duas commodities é 12,7 vezes maior que a área de cultivo de dois dos principais alimentos dos brasileiros.

O estudo avalia que “algumas lavouras, como mandioca, café, arroz, laranja e feijão, devem perder área, mas a redução será compensada por ganhos de produtividade” (p. 86). As estimativas para 2030/2031 são de que, nessas condições, a produção de arroz cresça 3,4% e a produção de feijão caia 1,2%.

Ganhos de produtividade são incertos e, sobretudo para as pequenas propriedades, responsáveis pela maior parte dos cultivos de arroz e feijão, dependem de programas de fomento à produção e de assistência técnica e extensão rural. Por outro lado, os grandes estabelecimentos produtivos do agronegócio, altamente capitalizados, conseguem sem dificuldade comprar ou arrendar propriedades menores que hoje produzem alimentos. Assim, o cenário apontado no relatório é extremamente delicado. Políticas públicas específicas para a produção de alimentos são essenciais para evitar redução nas colheitas, fazendo os preços subirem ainda mais.

Se há mesmo perspectivas de aumento de produtividade nos cultivos de arroz e feijão, melhor seria se isso fosse usado para trazer um sensível crescimento de sua produção, provocando queda nos preços e facilitando o acesso da população a esses alimentos. Infelizmente, no olhar do agronegócio, o esperado ganho de produtividade de arroz e feijão é apenas mais um fator para contribuir na expansão das commodities, mesmo havendo 33,1 milhões de brasileiros passando fome.

Para argumentar que a perda de áreas de cultivo de alimentos não levará a problemas de abastecimento, o relatório apresenta ainda um prognóstico de queda no consumo de arroz e feijão. Os cálculos dizem que, até 2030/2031, o consumo de arroz no Brasil deve cair 2,2% e o de feijão deve cair 0,7%.

Se mesmo com as expectativas de que a população brasileira cresça até 2030 esses prognósticos estiverem corretos, o relatório está anunciando um futuro tenebroso. A queda no consumo desses dois itens básicos na cultura alimentar brasileira só pode significar duas coisas: ou as pessoas vão mesmo comer menos (ou seja, mais fome!) ou passarão a comer outras coisas (provavelmente menos saudáveis). Provavelmente, ambos.

De fato, o Atlas das situações alimentares no Brasil já aponta, com base em dados de 2002 a 2018, uma queda no consumo de alimentos in natura ou minimamente processados, acompanhada de um aumento no consumo dos alimentos processados e ultraprocessados. Estamos diante de um cenário de aumento da fome e queda na qualidade da alimentação.

O relatório Projeções do Agronegócio é escrito na perspectiva daqueles para quem a agricultura é uma atividade para se ganhar muito dinheiro. Ao falar da alta nos preços agrícolas em 2021, apresenta isso como uma boa notícia: “os preços de carnes, bovina e suína, e também de milho e soja sobressaem-se em relação aos demais. São produtos que têm-se beneficiado do comércio internacional favorável, e da taxa de câmbio vigente neste ano” (p. 9, grifos nossos).

Com o dólar em alta, quem exporta ganha mais dinheiro, e isso puxa os preços internos para cima. Numa perspectiva de combate à fome, que definitivamente não é a do agronegócio, boa notícia seria uma queda de preços, pois isso significaria alimentos mais baratos para a população brasileira.

Cabe aqui citar um trecho de um livro do professor José Graziano da Silva, em que ele descreve o latifúndio escravista, principal atividade econômica do Brasil colônia, mais de quatrocentos anos no passado.

“A produção de alimentos do latifúndio variava muito em função do preço do seu produto principal destinado à exportação. Por exemplo, quando o preço do açúcar (e mais tarde do café) subia no mercado mundial, todas as terras e os escravos eram utilizados para expandir a sua produção, diminuindo assim a produção de alimentos. Nesses períodos havia fome na colônia e as autoridades estimulavam os pequenos agricultores a expandirem sua produção, para abastecer não só as vilas e cidades, como às vezes os próprios latifúndios” (O que é Questão Agrária, p. 27).

Perceba como vivemos exatamente no mesmo país que ele descreve.

Apenas dois comentários sobre essa rápida viagem no tempo. A fome, que segue firme aqui na colônia, tem basicamente as mesmas causas estruturais. E quem de fato alimenta este país são e sempre foram os pequenos agricultores.

Um comentário sobre “projeções do agronegócio

  1. Pingback: mapa da fome | Bicicarreto

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