nosso sonho

Durante quatro dias, a IV Feira Nacional da Reforma Agrária, organizada pelo MST, concretizou o sonho de muitos dos que lutam pela soberania alimentar no Brasil. Nesse sonho, além do acesso a uma grande abundância de alimentos produzidos sem veneno, está a possibilidade de comprá-los diretamente de seus produtores.

Na compra direta, a quantia paga pelos consumidores servirá integralmente para remunerar de forma digna esse trabalho tão essencial que é produzir alimentos, além de pagar os custos de produção e transporte. Esses valores têm ainda a função de apoiar a importante missão do movimento como um todo, que é ocupar terras improdutivas e lutar pelo direito de plantar para alimentar pessoas.

A abundância material e humana que havia ali traz sensação de acolhimento e segurança. Poder estar perto das pessoas que produzem os alimentos que consumimos é uma experiência enriquecedora, pelas trocas que possibilita. Para os produtores, suponho que o contato direto com aqueles que se beneficiam do resultado de seu trabalho gere semelhante sensação de segurança. Garantir o escoamento da produção é essencial para a sobrevivência de qualquer unidade produtiva, mais ainda quando ela é pouco capitalizada, como é o caso daquelas pequenas propriedades.

Porém, nos dias em que estive na Feira, ao mesmo tempo em que eu olhava todos aqueles alimentos sobre as bancas dos produtores, ficava me perguntando: e quando a feira acabar? Como é possível reproduzir pelo resto do ano toda essa proximidade, que garante aos agricultores o escoamento de sua produção? A resposta também emergiu em meio a toda aquela abundância. Parece se tratar simplesmente de conexões.

Foto: Dionizio Bueno

Redes de distribuição de alimentos são nada mais do que isso: conexões entre produtores, consumidores e, quando não há alternativas, intermediários. O poder das conexões é tão grande que a possibilidade de controlá-las dá a certos agentes altamente capitalizados a possibilidade de determinar o preço de compra do lado da produção e o preço de venda do lado do consumo.

Portanto, construir alternativas a esses esquemas estabelecidos, criando a possibilidade de acesso direto ou quase direto entre produtores e consumidores, é o caminho para a autonomia. Há muitos formatos para se criar essas conexões, e diversas experiências já existem, funcionando muito bem.

cooperativas de militantes | São grupos organizados que coletam a produção de diversos assentamentos regionais e os distribuem aos consumidores na cidade. Realizam a venda através de páginas na internet ou por meio de grupos de consumo e entregam os produtos em domicílio ou em pontos de retirada espalhados em pontos estratégicos, para que os consumidores possam economizar o custo do frete.

lojas do próprio movimento | Com lojas em diversas cidades do país, redes como o Armazém do Campo oferecem produtos da reforma agrária de diversas regionais, utilizando também a estrutura dos esquemas de distribuição mantidos pela própria militância.

pequenos entrepostos | Essas iniciativas, individuais ou de pequenos coletivos, vendem alimentos tanto da reforma agrária como de hortas urbanas e pequenos produtores na cidade e em volta dela. Verdadeiras zonas autônomas, tais espaços possibilitam o acesso a alimentos saudáveis em suas vizinhanças, algumas vezes em situação de fragilidade institucional, necessitando portanto do apoio comunitário em luta de resistência.

cooperativas de consumo | Com um formato bastante inovador no Brasil, uma cooperativa está sendo formada para gerir um mercado no qual os cooperados realizam grande parte das tarefas práticas e administrativas da loja, diminuindo sensivelmente seu custo operacional e, como consequência, o preço final para os consumidores.

grupos de compras coletivas | Há certamente centenas, senão milhares deles. Basta que uma pessoa colete os pedidos de várias famílias e realize o pedido diretamente à unidade produtora, recebendo a encomenda em sua casa, onde as pessoas do grupo poderão retirar suas compras.

Nos próximos meses e anos, veremos iniciativas como estas crescendo e se proliferando. Mas para consolidar o sonho do amplo acesso aos alimentos saudáveis produzidos pela reforma agrária, é preciso que iniciativas como essas entrem nas vidas de cada vez mais pessoas, e isso pode exigir algumas adaptações, nas duas pontas do sistema.

Foto: Dionizio Bueno

Do lado do consumidor, é preciso planejar o abastecimento da casa. No caso das compras coletivas, por exemplo, os pedidos são abertos somente em certas datas. Concentrando aí as quantidades para um período mais longo (o que naturalmente só é possível no caso de produtos menos perecíveis), todos ajudam a compor um pedido de maior volume, facilitando a negociação de preço com o produtor e ajudando a diluir os custos de frete.

Esse planejamento vale também para produtos mais perecíveis, de compra mais frequente. Por enquanto, as lojas que oferecem produtos orgânicos da reforma agrária existem apenas em certos locais da cidade. As compras de produtos in natura podem ser feitas semanalmente ou até quinzenalmente, evitando demandas de última hora que acabam sendo feitas em qualquer mercado mais próximo.

É muito importante também entender que um padrão de alimentação mais saudável estará sempre sujeito a sazonalidades. É natural que certos produtos não estejam disponíveis em todos os lugares durante o ano todo.

Por meio de seus regimes industriais de produção de alimentos, o sistema alimentar baseado em grandes redes de distribuição e varejo cria artificialmente a possibilidade de ter quase tudo durante todo o ano. Os alimentos são produzidos de forma intensiva em fazendas que podem estar a milhares de quilômetros da sua casa, em regiões com outro padrão climático. Crescem por meio de estimulação artificial, utilizando fertilizantes químicos, e são colhidos enquanto estão verdes, conforme seus cronogramas de linha de produção e a quantidade de pedidos recebidos pelo departamento comercial dessas indústrias agrícolas. Por fim, têm o seu amadurecimento forçado através da exposição a gás etileno obtido do petróleo.

É perfeitamente possível ter uma alimentação baseada em produtos da época, tornando desnecessários esses recursos artificiais criados para viabilizar a produção de alimentos em enormes escalas, gerando grandes lucros para uns poucos, além de mimar um consumidor que quer ter de tudo agora.

Imagem: divulgação

Do lado dos produtores, um pequeno esforço de organização pode contribuir muito para o florescimento dessas redes de distribuição. Só eles podem ter a visão de todos os pedidos que estão recebendo, com suas respectivas datas, destinos e quantidades. Uma boa organização das rotas pode fazer o custo do frete ser dividido entre vários pedidos, diminuindo para todos os custos de transporte e fazendo com que os produtos cheguem a um preço mais baixo para os consumidores, beneficiando as vendas.

E com relação às entidades e grupos que organizam essas iniciativas, cabe ter a inteligência coletiva de entender que o espalhamento e a capilarização desse novo sistema alimentar são benéficos para toda a rede. Seria totalmente fora de propósito enxergar novas iniciativas semelhantes como concorrência. Claro que é preciso cuidado para que a atuação de iniciativas mais capitalizadas ou profissionalizadas não resulte na eliminação de outras que já se encontravam em funcionamento. Por isso é essencial manter o contato e o diálogo entre essas organizações, formando uma teia de cooperação.

Se lutamos para construir esse outro mundo com o qual sempre sonhamos, mas não formos capazes de nos libertar do paradigma da competição, em que o ganho de um implica a perda de outro, me parece que não aprendemos nada.

Produtores e consumidores têm muito a ganhar juntos com essas novas conexões. Em seu conjunto elas estão formando uma rede de produção e distribuição de alimentos que passa ao largo dos conglomerados de logística e varejo geridos pelo grande capital, que atualmente dominam o mercado de alimentos no Brasil. Vivemos a era da retomada dos circuitos curtos. Por muito tempo cultivamos nossos sonhos, hoje eles finalmente começam a florescer.

consea

Espaços institucionais de articulação entre o governo e a sociedade civil são essenciais para a formulação e a implementação de políticas públicas favoráveis aos interesses coletivos da sociedade. No campo da segurança alimentar e nutricional da população brasileira, esse espaço é o Consea – Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Não por acaso, o Consea foi desativado no primeiro dia de governo da pessoa que ocupou o cargo de presidente da república entre 2019 e 2022, cujo nome não merece ser pronunciado nem escrito.

A reinstalação do Consea se efetivou em 28 de fevereiro de 2023 e foi celebrada por movimentos sociais e ativistas em todo o país. Ao conhecer a relevância e a forma de funcionamento desse conselho, compreendemos melhor a importância desse retorno.

O Consea é um órgão de assessoramento imediato à Presidência da República, com competência para apresentar proposições de políticas relacionadas à segurança alimentar e nutricional e também para exercer monitoramento e controle social na execução dessas políticas. Tem caráter consultivo e atualmente integra o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan).

De seus 60 membros, dois terços são representantes da sociedade civil e um terço são ministros de Estado. Trata-se, portanto, de um espaço importantíssimo para movimentos e organizações sociais que atuam pelo aprimoramento das políticas públicas ligadas a soberania e segurança alimentar e nutricional no Brasil, colocando-os em posição de serem ouvidos diretamente pelo presidente do país.

O Consea teve importante papel na construção de diversas políticas públicas. Alguns exemplos: exigência de que 30% das aquisições do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) venha da agricultura familiar, formulação da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, elaboração do Guia Alimentar para a População Brasileira, criação do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), inclusão do direito à alimentação saudável na Constituição Federal, criação do Sisan.

Tais políticas foram determinantes para a sensível redução do número de pessoas em situação de subalimentação, tirando o Brasil do mapa da fome da ONU em 2014. Por sua atuação, o Consea obteve importante reconhecimento fora do país e já recebeu a visita de delegações internacionais que vieram conhecer o seu trabalho.

A cada quatro anos, o Consea organiza a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CNSAN), que é a instância máxima do Sisan e indica as diretrizes e prioridades da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. O encontro é precedido de conferências municipais, regionais e estaduais, nas quais são eleitos delegados e delegadas que irão participar da conferência nacional.

Histórico das CNSANs já realizadas. Adaptado de Relatório final da 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. CLIQUE PARA AMPLIAR

A última conferência que aconteceu até o momento foi a 5ª CNSAN, em novembro de 2015, em Brasília. Apenas para lembrar, em 2015 a Dilma era presidente, o golpe contra ela já estava sendo articulado mas ainda não havia sido consumado, Lula ainda não havia sido preso, o povo brasileiro ainda não tinha escolhido um fascista para presidente da república, não existia pandemia, ainda não havia 33 milhões de pessoas passando fome no país.

Entre os vários resultados da 5ª Conferência está um trabalho coletivo de escolha de prioridades dentro de um conjunto de 331 proposições trazidas das conferências estaduais. As três proposições mais votadas foram: “Garantir, ampliar e fortalecer as ações de assistência técnica e extensão rural (Ater) na promoção da inclusão produtiva das famílias em situação de pobreza extrema no meio rural, respeitando a forma dos saberes culturais dos povos e comunidades tradicionais”; “Promover o papel da agricultura familiar, camponesa e indígena como um dos elementos estruturantes das estratégias nacionais e regionais de soberania e segurança alimentar e nutricional, por meio do estímulo à produção local de alimentos baseada em modelos diversificados e de base agroecológica, em estratégias soberanas de abastecimento alimentar e em articulação com os preceitos de uma alimentação adequada e saudável”; “Implementar planos de proteção de bacias com recursos para a revitalização e renaturalização dos corpos hídricos, considerando o caráter intermunicipal e interestadual das bacias hidrográficas no momento da tomada de decisões relacionadas às políticas de recursos hídricos, sejam elas estaduais ou federais e que as ações de revitalização atuem prioritariamente nas causas de degradação das bacias hidrográficas”.

Em síntese, na avaliação conjunta dos delegados e delegadas presentes na 5ª Conferência, os três temas mais sensíveis naquele momento eram: inclusão produtiva por meio de assistência técnica, estímulo à agricultura familiar com base na agroecologia e proteção aos recursos hídricos.

No intervalo entre as CNSAN, costuma ser organizado um encontro nacional denominado CNSAN+2, com o objetivo de realizar um balanço das proposições da conferência e do estado de implementação das medidas de segurança alimentar e nutricional no país. A 5ª CNSAN+2 aconteceu em março de 2018, também em Brasília. O relatório desse encontro já identificava retrocessos no campo da segurança alimentar e nutricional, os quais, como sabemos, se aprofundariam nos anos seguintes: “a atual conjuntura de retrocessos na democracia impôs um cenário de desconstrução de direitos, precarização das relações de trabalho, aumento do desemprego, esvaziamento de políticas públicas e iminente volta do Brasil ao Mapa da Fome”.

A conferência seguinte deveria acontecer em 2019, e sua convocatória chegou a ser aprovada em novembro de 2018. Com a desativação do Consea, o encontro naturalmente não aconteceu.

Durante o período em que esteve desativado, os integrantes do Consea mantiveram-se mobilizados, junto com os Conseas estaduais e movimentos sociais de combate à fome, monitorando os movimentos do governo em relação à segurança alimentar e nutricional.

A nutricionista, pesquisadora e professora Elisabetta Recine, que presidia o Consea no momento de sua desativação, foi agora reconduzida ao cargo, junto com seus conselheiros. O gesto mostra a expectativa, por parte do atual governo e da sociedade brasileira, de que o conselho retome os trabalhos do ponto em que foram interrompidos, no início de 2019.

feiras de produtores

Feiras são encontros de pessoas para fazerem trocas. Existem desde a antiguidade e, na baixa Idade Média, marcaram a fase histórica de reabertura do comércio. Nelas, os produtores podem vender seus produtos diretamente às pessoas que vão consumi-los. Temos aí o menor circuito de distribuição possível, apenas produtor e consumidor.

Neste contato direto o produtor recebe o valor que considera justo por seus produtos enquanto o consumidor obtém, teoricamente, o melhor preço possível, já que não há intermediários. Porém os benefícios que esse encontro direto trazem ao sistema alimentar vão muito além do fator econômico.

O contato direto promove uma interlocução entre aqueles que produzem os alimentos e aqueles que se nutrem com eles. O produtor pode aprender a partir das informações de seus fregueses, obtém um retorno em relação aos hábitos alimentares, às variedades preferidas, às mudanças de qualidade conforme as técnicas de cultivo que vai experimentando. Os consumidores têm a oportunidade de um contato mais próximo com o fazer produtivo, as sazonalidades, as influências do clima e outros fatores naturais em sua alimentação. Nada pode ser mais humano que um sistema alimentar marcado pela compreensão mútua.

Sobretudo para os consumidores, existe nisso um grande aprendizado. Nossa sociedade busca nos acostumar com a ideia de que é possível ter tudo a qualquer momento. O supermercado se passa por um lugar encantado, sempre pronto a saciar qualquer desejo. Na sociedade de consumo, o alimento sai das fábricas, e o leite é um líquido que nasce dentro de caixinhas.

O contato mais próximo com a produção ajuda a tirar os alimentos desse lugar de meras mercadorias, sujeitas aos caprichos dos consumidores e às artimanhas dos mercadólogos. Nossos alimentos são criações da natureza.

Foto: Barbara Zem / MST

Para os produtores, a venda direta dá sentido e viabilidade às pequenas escalas de produção, liberando-os da ideia de que a única via de sobrevivência é aumentar a escala para ter acesso aos mercados por meio dos sistemas de distribuição. A produção pode se manter em escala compatível com a capacidade da unidade produtiva, qualquer que seja seu tamanho.

Ao viabilizarem as trocas, que podem ser monetárias ou não, as feiras tornam possível um certo grau de especialização da produção, sem entrar no regime industrial, no qual os produtores tendem a abandonar cultivos de subsistência. Alguns sítios concentram esforços em frutas, outros em ovos, outros produzem grãos, outros legumes, hortaliças. Em uma feira de produtores diversificada, aqueles que não produzem (os consumidores) podem ter tudo ou quase tudo que necessitam para a alimentação diária. Na pequena escala, os sítios suprem a demanda de suas regiões. Em cada região, um esquema semelhante, há demanda para todos. Assim, o sistema alimentar tende naturalmente à alimentação local. Tudo tão perto que pode ser transportado até de bicicleta!

Através da ideia de que só grandes escalas são economicamente viáveis, o sistema alimentar da sociedade de consumo cria a dependência dos grandes esquemas de transporte, necessariamente motorizados, abrindo espaço e gerando demanda para mais e mais elos na cadeia de distribuição. Os intermediários passam a ditar as condições e preços tanto na ponta do consumo como na da produção. O sistema cria as mazelas e ainda gera a ilusão de que nada fora dele é possível.

Ao mesmo tempo em que são uma prática muito antiga, as feiras de produtores são revolucionárias. Venda direta, proximidade e pequena escala desfazem os pressupostos desse sistema que aprisiona produtores e consumidores. Por meio do encontro direto entre os dois agentes mais importantes do sistema produtivo, as feiras criam uma insurreição. Seus efeitos são econômicos, relacionais e estruturais.

Feiras de produtores são uma ameaça ao sistema do capital. É preciso que resistam, que floresçam e se multipliquem.

projeções do agronegócio

Para que serve a terra no Brasil? Para produzir alimentos ou para ganhar muito dinheiro?

Um documento produzido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento traz informações desanimadoras para quem acredita que a terra deveria servir para saciar a fome das pessoas. Resumindo: alimentos como arroz, feijão, batata, mandioca, banana e café estão perdendo áreas de cultivo, enquanto commodities como milho, soja, algodão, fumo e cana de açúcar estão ganhando ainda mais território.

Reeditado a cada ano, o relatório Projeções do Agronegócio traz estimativas sobre como ficará a atividade agrícola nos dez anos seguintes à sua publicação. O último relatório disponível neste momento é de 2021, e suas projeções vão até o ano safra 2030/2031.

Os dados mais assustadores se referem à perda da área plantada de alguns alimentos. O arroz deve perder 62% de seu espaço: dos 1.687 mil hectares dedicados ao seu plantio em 2020/2021, devem restar apenas 641 mil hectares em 2030/2031. O feijão, que no ano safra 2020/2021 dispõe de 2.898 mil hectares para seu cultivo, ficará com apenas 1.830 mil hectares em 2030/2031, uma perda de 36,8%.

Enquanto isso, produtos agrícolas que servem principalmente como matérias primas industriais, e não como alimentos saudáveis, estão em expansão. A área plantada de milho deve crescer de 19.841 mil hectares em 2020/2021 para 21.948 mil hectares em 2030/2031, um aumento de 10,6%. O crescimento da soja é ainda maior: de 38.502 mil hectares em 2020/2021, deve subir para 48.851 mil hectares em 2030/2031, aumento de 26,8%.

O relatório fala das possibilidades à disposição do agronegócio para aumentar a área plantada dessas culturas. Um exemplo: “A expansão de área de soja e cana-de-açúcar deverá ocorrer pela incorporação de áreas novas, áreas de pastagens naturais e também pela substituição de outras lavouras que deverão ceder área” (p. 87). Note o uso das expressões ‘incorporação de áreas novas’, que pode servir de eufemismo para ‘desmatamento’, e ‘substituição de outras lavouras que deverão ceder área’, uma referência a cultivos que estão perdendo área plantada, onde se incluem o arroz e o feijão.

Os dados que o relatório apresenta sobre anos anteriores mostram que a redução das áreas plantadas de arroz e de feijão já é um processo em curso há pelo menos dez anos. Entre os anos safra 2009/2010 e 2019/2020, esses cultivos perderam, respectivamente, 39,7% e 18,9% de seus territórios. No mesmo período, houve enorme expansão das commodities: 42,6% no caso do milho e 57,4% no caso da soja.

Área Plantada com 5 principais grãos – Brasil (mil hectares). Fonte: Projeções do Agronegócio 2020/2021 a 2030/2031. CLIQUE PARA AMPLIAR

No momento atual, a diferença entre as áreas plantadas de alimentos e de commodities é gritante. A título de exemplo, em 2020/2021 temos 4.585 mil hectares na soma das áreas de arroz e feijão, contra 58.343 mil hectares no total para milho e soja. A área dedicada a estas duas commodities é 12,7 vezes maior que a área de cultivo de dois dos principais alimentos dos brasileiros.

O estudo avalia que “algumas lavouras, como mandioca, café, arroz, laranja e feijão, devem perder área, mas a redução será compensada por ganhos de produtividade” (p. 86). As estimativas para 2030/2031 são de que, nessas condições, a produção de arroz cresça 3,4% e a produção de feijão caia 1,2%.

Ganhos de produtividade são incertos e, sobretudo para as pequenas propriedades, responsáveis pela maior parte dos cultivos de arroz e feijão, dependem de programas de fomento à produção e de assistência técnica e extensão rural. Por outro lado, os grandes estabelecimentos produtivos do agronegócio, altamente capitalizados, conseguem sem dificuldade comprar ou arrendar propriedades menores que hoje produzem alimentos. Assim, o cenário apontado no relatório é extremamente delicado. Políticas públicas específicas para a produção de alimentos são essenciais para evitar redução nas colheitas, fazendo os preços subirem ainda mais.

Se há mesmo perspectivas de aumento de produtividade nos cultivos de arroz e feijão, melhor seria se isso fosse usado para trazer um sensível crescimento de sua produção, provocando queda nos preços e facilitando o acesso da população a esses alimentos. Infelizmente, no olhar do agronegócio, o esperado ganho de produtividade de arroz e feijão é apenas mais um fator para contribuir na expansão das commodities, mesmo havendo 33,1 milhões de brasileiros passando fome.

Para argumentar que a perda de áreas de cultivo de alimentos não levará a problemas de abastecimento, o relatório apresenta ainda um prognóstico de queda no consumo de arroz e feijão. Os cálculos dizem que, até 2030/2031, o consumo de arroz no Brasil deve cair 2,2% e o de feijão deve cair 0,7%.

Se mesmo com as expectativas de que a população brasileira cresça até 2030 esses prognósticos estiverem corretos, o relatório está anunciando um futuro tenebroso. A queda no consumo desses dois itens básicos na cultura alimentar brasileira só pode significar duas coisas: ou as pessoas vão mesmo comer menos (ou seja, mais fome!) ou passarão a comer outras coisas (provavelmente menos saudáveis). Provavelmente, ambos.

De fato, o Atlas das situações alimentares no Brasil já aponta, com base em dados de 2002 a 2018, uma queda no consumo de alimentos in natura ou minimamente processados, acompanhada de um aumento no consumo dos alimentos processados e ultraprocessados. Estamos diante de um cenário de aumento da fome e queda na qualidade da alimentação.

O relatório Projeções do Agronegócio é escrito na perspectiva daqueles para quem a agricultura é uma atividade para se ganhar muito dinheiro. Ao falar da alta nos preços agrícolas em 2021, apresenta isso como uma boa notícia: “os preços de carnes, bovina e suína, e também de milho e soja sobressaem-se em relação aos demais. São produtos que têm-se beneficiado do comércio internacional favorável, e da taxa de câmbio vigente neste ano” (p. 9, grifos nossos).

Com o dólar em alta, quem exporta ganha mais dinheiro, e isso puxa os preços internos para cima. Numa perspectiva de combate à fome, que definitivamente não é a do agronegócio, boa notícia seria uma queda de preços, pois isso significaria alimentos mais baratos para a população brasileira.

Cabe aqui citar um trecho de um livro do professor José Graziano da Silva, em que ele descreve o latifúndio escravista, principal atividade econômica do Brasil colônia, mais de quatrocentos anos no passado.

“A produção de alimentos do latifúndio variava muito em função do preço do seu produto principal destinado à exportação. Por exemplo, quando o preço do açúcar (e mais tarde do café) subia no mercado mundial, todas as terras e os escravos eram utilizados para expandir a sua produção, diminuindo assim a produção de alimentos. Nesses períodos havia fome na colônia e as autoridades estimulavam os pequenos agricultores a expandirem sua produção, para abastecer não só as vilas e cidades, como às vezes os próprios latifúndios” (O que é Questão Agrária, p. 27).

Perceba como vivemos exatamente no mesmo país que ele descreve.

Apenas dois comentários sobre essa rápida viagem no tempo. A fome, que segue firme aqui na colônia, tem basicamente as mesmas causas estruturais. E quem de fato alimenta este país são e sempre foram os pequenos agricultores.

pnae

Construído ao longo de décadas através de sucessivas melhorias, como resultado de muita mobilização social, o Programa Nacional de Alimentação Escolar é considerado um dos maiores programas no mundo com essa finalidade e, segundo sua página oficial, é o único com atendimento universalizado.

Começou a ser estruturado na década de 1950, na forma de uma campanha de merenda escolar. Inicialmente dependeu de convênios com organismos internacionais, tendo ainda o enfoque do atendimento a populações carentes. A Constituição de 1988 assegurou o direito à alimentação escolar a todos os alunos do ensino fundamental. Em 1994 sua operação (planejamento de cardápios, aquisição dos gêneros, distribuição) foi descentralizada, por meio do envolvimento das secretarias estaduais de educação e de convênios com os municípios.

Em 2001 a legislação introduziu o respeito aos hábitos alimentares regionais e à vocação agrícola de cada município. Além disso, passou a exigir que 70% dos recursos sejam aplicados em produtos básicos. Dois importantes passos em direção à qualidade nutricional e ao respeito às culturas alimentares locais. Em 2009, foi estendido para toda a rede pública de educação básica e, em 2013, para os alunos de EJA (educação de jovens e adultos), AEE (atendimento educacional especializado) e escolas de tempo integral.

A legislação de 2009 é considerada um marco importante na história do PNAE por tornar obrigatório que no mínimo 30% dos recursos repassados sejam utilizados na “aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas” (Lei nº 11.947/2009, Art. 14º). Nesses casos, fica dispensado o processo licitatório, e a aquisição passa a ser encaminhada por meio de chamadas públicas.

Os efeitos desse envolvimento da agricultura familiar podem ser sentidos de diversas formas. Nos refeitórios das escolas, houve sensível melhoria no cardápio das refeições. O feijão enlatado que era servido em muitas escolas, proveniente de locais indefinidos de qualquer canto do planeta e cheio de conservantes químicos, foi substituído por feijão fresco, produzido em pequenas propriedades na própria região. As crianças passaram a receber frutas locais no lugar de biscoitos industrializados. Um simples artigo da lei pode provocar a substituição de produtos ultraprocessados por alimentos in natura na alimentação de milhões de crianças.

Foto: divulgação

Fora da escola as mudanças também são significativas. As compras municipais garantem renda para agricultores e agricultoras locais, que passam a viver em melhores condições e a consumir mais no comércio da cidade, fazendo girar a economia, gerando distribuição de riqueza e aumentando a arrecadação de impostos do município. A justiça social se propaga por toda a cadeia econômica na forma de prosperidade para todos.

A oportunidade dada aos pequenos agricultores pelo programa também estimula o associativismo, a formação de cooperativas e a organização da classe produtora sendo, portanto, um fator de fortalecimento político da agricultura familiar. Quando as escolas foram fechadas em função da pandemia, o programa manteve as compras municipais desses pequenos produtores, garantindo o escoamento da produção. As famílias dos alunos podiam retirar os alimentos nas escolas e, em alguns casos de maior vulnerabilidade, podiam recebê-los em casa.

A concretização desse potencial, no entanto, depende em grande medida das entidades municipais e estaduais que fazem a gestão dos recursos. São elas que decidem sobre quais produtos adquirir, e de quem. Talvez pela própria formulação do texto da lei, ela infelizmente não consegue “garantir”, como muito se diz em matérias sobre o assunto, o percentual mínimo de 30% em compras da agricultura familiar.

O próprio artigo 14 da referida lei já prevê as condições nas quais esse percentual pode ser flexibilizado, oferecendo possibilidades de justificativas que são difíceis de serem verificadas pelos mecanismos de controle social. A página de perguntas frequentes sobre o PNAE informa que, no caso do não cumprimento dos 30%, basta às entidades executoras justificarem posteriormente as razões para isso. De tempos em tempos circulam notícias sobre o descumprimento da exigência por parte das entidades municipais e estaduais (exemplos aqui, aqui e aqui).

Dados sobre as compras da agricultura familiar disponíveis na própria página do governo federal apontam para um quadro pouco animador no que se refere ao cumprimento dos 30% estabelecidos pela lei. As informações mais recentes disponíveis nessa página se referem a 2017 e, ainda que já um pouco antigas, dão uma ideia da situação.

Dos 640 municípios paulistas listados na base de dados disponível, apenas 226 (35,3%) empregaram 30% ou mais da verba do PNAE na compra de produtos da agricultura familiar. No caso de 280 prefeituras (43,8%), o percentual de compras da agricultura familiar fica abaixo do exigido por lei. Há 123 municípios em que o dado referente a compras da agricultura familiar está marcado com um traço, sem esclarecer se isso corresponde a um zero ou a simples ausência de informações. Portanto, o percentual de prefeituras que não atingiram os 30% é provavelmente ainda maior, podendo chegar a 63% caso esse traço seja mesmo um zero em todos os casos.

No município de São Paulo, no ano de 2017, o percentual da verba do PNAE investido em compras da agricultura familiar foi, segundo essa base de dados, de apenas 7,8%, muito distante do mínimo exigido pela legislação.

Ao comprarem produtos em varejistas ou mesmo em grandes distribuidoras, as prefeituras pagam mais caro, pois estão optando por alimentar uma cadeia de distribuição cheia de intermediários. Além disso, estão quase sempre jogando recursos para fora do município. Ao escolherem a agricultura familiar, a verba vai diretamente para os pequenos produtores, promovendo justiça econômica e social. O que está em jogo nesta decisão do gestor público é a escolha entre fortalecer trabalhadores e trabalhadoras da região ou fortalecer ainda mais o grande capital.

Um agricultor familiar que deseje vender sua produção para o PNAE deve, em primeiro lugar, emitir a sua DAP (Declaração de Aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), que é o documento que habilita a unidade produtiva para participar do programa. Precisa então ficar atento, junto à prefeitura de seu município, para as chamadas públicas para aquisição de alimentos. Deverá entregar um projeto de venda de gêneros alimentícios para alimentação escolar e demais documentos exigidos por aquela chamada. Uma vez aprovado o projeto, será elaborado um contrato de aquisição entre a prefeitura e a unidade produtiva.

Ao incluir a agricultura familiar diretamente nas compras públicas, o PNAE cria a oportunidade de reconfigurar os sistemas alimentares a partir das relações locais, com impactos imediatos na saúde da população estudante, nas condições de vida dos pequenos produtores e na economia local. Sendo a prefeitura municipal o único intermediário entre produtor e consumidor, forma-se um circuito curto que leva os alimentos da horta ao refeitório escolar sem dispersão de recursos e com grande qualidade nutricional.

Sua efetividade, porém, depende de constante vigilância e pressão por parte da sociedade civil, que pode fazer isso por meio dos Conselhos de Alimentação Escolar ou através de incidência direta junto a prefeituras, secretarias de educação e câmaras de vereadores. Milhares de municípios brasileiros respeitam a lei, investindo 30% ou mais (em alguns casos, bem mais) em compras diretas da agricultura familiar. Mas há milhares de municípios que ainda estão abaixo ou bem abaixo dessa exigência legal. Existe aqui um imenso campo de oportunidades para o fortalecimento da agricultura familiar.

municípios agroecológicos

Como uma prefeitura municipal pode incentivar a agroecologia em seu território? O levantamento Municípios agroecológicos e políticas de futuro, realizado pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), mostra diversos caminhos que as prefeituras podem seguir para fortalecer a agricultura familiar e a produção agroecológica, beneficiando-se dos efeitos positivos disso para a economia municipal e, sobretudo, a saúde e qualidade de vida de seus cidadãos.

Foi feito um mapeamento preliminar, em todas as unidades da federação, das ações, políticas, programas e leis municipais que, de alguma forma, contribuem para fortalecer a agroecologia. Em seguida, houve um aprofundamento no estudo dessas ações, o que resultou num conjunto com 721 iniciativas das quais o poder público municipal seja executor e/ou financiador, incluindo aquelas que surgiram da sociedade civil mas em que as prefeituras tenham um papel chave. As iniciativas foram categorizadas, formando uma lista com 41 campos temáticos.

A lista abaixo está resumida, incentivamos fortemente a leitura do estudo. Temos aí possibilidades interessantes e concretas de atuação, que estão acontecendo ou já aconteceram em cidades brasileiras.

  • apoio à formação de circuitos curtos de comercialização (cessão de espaço público para realização da feira, construção de pontos fixos de comercialização, compra de barracas, apoio na logística de transportes);
  • promoção das compras institucionais (acesso a políticas como PAA e PNAE, criação de restaurantes populares);
  • fomento à infraestrutura de produção (estruturação de espaços de armazenamento e/ou beneficiamento de alimentos, construção de sistemas ecológicos de saneamento, implantação de sistemas de geração de energia solar);
  • apoio a bancos de sementes comunitários e viveiros de mudas nativas (melhoramento genético participativo);
  • melhoria no acesso à água (recuperação de nascentes e matas ciliares, cisternas, reuso de água);
  • incentivo à produção agrícola em áreas urbanas e periurbanas (hortas comunitárias, hortas escolares, centros municipais e públicos de produção de alimentos);
  • uso de plantas medicinais e práticas integrativas de saúde no âmbito do SUS (intercâmbio entre saberes tradicionais e conhecimentos científicos, indicação de fitoterápicos aos pacientes, implementação de laboratórios de manipulação de plantas medicinais);
  • apoio técnico e extensão rural (convênios com organizações da sociedade civil para incentivar a agroecologia);
  • disponibilização de equipamentos e insumos (uso coletivo de máquinas da prefeitura, programas de ensilagem, distribuição de insumos);
  • fiscalização e restrição de atividades que geram impactos negativos (leis municipais que proíbem a expansão do agronegócio, instituição de zonas livres de agrotóxicos, proibição de monoculturas como eucalipto e cana-de-açúcar, proibição do uso de árvores nativas para produção de carvão vegetal em escala industrial).

Nuvem de temas do levantamento. Fonte: Municípios agroecológicos e políticas de futuro. CLIQUE PARA AMPLIAR

A região Sul do país se destaca com 282 (39%) das iniciativas catalogadas, seguida pela região Nordeste, onde estão 223 (31%) delas. Porém, é a região Nordeste que tem o maior número de municípios com iniciativas (228, ou 43%), enquanto que na região Sul há apenas 170 municípios com iniciativas (32%). Ou seja, há no Nordeste mais municípios onde existe algum apoio à causa, enquanto no Sul as iniciativas estão concentradas em menos municípios. Seria interessante se o estudo indicasse também a porcentagem de municípios com iniciativas sobre o total de municípios (por região e por estado), permitindo medir o avanço dessas iniciativas ao longo do tempo.

Apoio a feiras e circuitos curtos é o tipo de iniciativa que mais aparece em todas as regiões exceto a Sul, onde o predominam iniciativas da categoria Fomento à produção, e é também o tema de maior incidência entre todas as iniciativas catalogadas.

Neste blogue, temos defendido a proximidade entre produtor e consumidor. O apoio às feiras de produtores e à formação de circuitos curtos de comercialização permite, com um investimento relativamente baixo, contribuir para o florescimento da atividade agrícola local, com benefícios para produtores e consumidores, além de permitir o fortalecimento dos vínculos entre eles. No caso da cessão de espaços públicos para a realização de feiras de produtores, por exemplo, o custo é próximo de zero.

Em cidades pequenas, as feiras de produtores têm um papel que vai além da simples função de abastecimento, são locais de encontro entre moradores das áreas rural e urbana. Nas cidades grandes, quando localizadas em regiões periféricas, colocam em contato direto os consumidores dessas regiões com os produtores das áreas periurbanas. Apesar da proximidade geográfica entre elas, é comum que a produção orgânica dos cinturões verdes das grandes cidades seja inteiramente deslocada para regiões centrais e bairros abastados, onde serão comercializadas como produtos diferenciados, mais caros. O desenvolvimento da agroecologia é uma boa oportunidade para superar contradições de nossa organização social.

Além do relatório, está também disponível na página da ANA uma base de dados com todas as 721 experiências que entraram no estudo, trazendo a descrição das iniciativas e outros dados. É uma fonte de informações sobre experiências concretas, que podem ajudar gestores públicos a compor suas visões estratégicas e inspirar a sociedade civil na organização de suas demandas.

O incentivo à agroecologia atinge imediatamente as vidas dos pequenos produtores, que se fortalecem economicamente, e dos consumidores, que passam a ter acesso a mais alimentos saudáveis e a preços menores. Isso tudo se reflete positivamente nos indicadores de saúde das localidades.

É no plano local que se constrói a mudança concreta, e daí vem a importância das prefeituras no desenvolvimento de um sistema alimentar genuinamente voltado para atender as necessidades da população.

agricultura familiar

Desde os primórdios da agricultura, o cultivo da terra normalmente acontece em um grupo de pessoas com vínculos de parentesco, seja uma família nos moldes ocidentais, seja uma parentela extensa ou grupo local nas sociedades diferentes da nossa.

Com o surgimento do sistema de produção capitalista, a atividade no campo ganhou traços industriais. Áreas de cultivo muito maiores, produção em larga escala, trabalho regido por princípios de eficiência. Passa a ser necessário contratar trabalhadores, sejam eles permanentes, para cuidar de tarefas diárias da fazenda, ou temporários, para os picos de demanda de trabalho como as épocas de plantio e colheita.

Sobretudo a partir dos anos 1960, houve um intenso fluxo migratório em direção às áreas urbanas. A mecanização agrícola diminuiu a demanda por trabalhadores no campo, enquanto o desenvolvimento da indústria e as imagens de modernidade passaram a atrair pessoas para as cidades. O processo ficou conhecido como êxodo rural: milhares de famílias migraram para as cidades atrás das promessas de bons salários e melhores condições de vida.

Nesse movimento, muitas famílias trocaram a condição de pequenos proprietários rurais por uma situação de grande vulnerabilidade econômica e social, vivendo nas periferias de áreas urbanas. Passaram a fazer parte do grande exército de reserva de mão de obra, que o capital usa para manter os salários em níveis baixos.

Além disso, essas pessoas deixaram para trás não apenas seus pequenos sítios, que lhes garantiam a sobrevivência e a dignidade. Perderam também vínculos familiares, costumes cotidianos e a possibilidade de uma vida pouco custosa no campo.

Felizmente parece haver também uma força oposta nesse processo, com a recente valorização da agricultura familiar. Esse modelo produtivo vem conquistando reconhecimento institucional nos últimos 25 anos, resultante da criação de políticas públicas, programas governamentais, espaços de participação e naturalmente da promulgação de leis. A mais significativa delas é a Lei da Agricultura Familiar (lei federal nº 11.326/2006) que reconhece oficialmente a atividade como profissão e estabelece diretrizes de uma política nacional.

Foto: Rose dos Santos e Guilherme Martins / MST Paraná

Um produtor é considerado agricultor familiar quando utiliza predominantemente mão de obra de pessoas ligadas a ele por vínculos familiares e não por vínculos patronais.

Segundo informações do Censo Agropecuário 2017, 77% dos estabelecimentos produtores do Brasil são de agricultura familiar. Entretanto, a área ocupada por eles corresponde a apenas 23% de toda área produtiva do país. Tal diferença naturalmente se explica pelo pequeno tamanho dessas propriedades, especialmente se comparadas às enormes fazendas do agronegócio. Além disso, é na agricultura familiar que estão 67% dos trabalhadores do setor agropecuário.

Percentual de estabelecimentos caracterizados como agricultura familiar em relação ao total de estabelecimentos (2006). Fonte: IBGE, Censo Agropecuário 2006. CLIQUE PARA AMPLIAR

Os dados detalhados de produção disponíveis no Censo Agropecuário 2006 mostram mais claramente a participação da agricultura familiar na produção dos itens que compõem a alimentação básica das pessoas. É da agricultura familiar que vem 70% do feijão, 34% do arroz, 87% da mandioca e 58% do leite de vaca. Já o modelo não familiar de agricultura, tipicamente usado no agronegócio, destaca-se na produção de commodities, que são exportados ou vendidos internamente depois de processados: produz 84% da soja, 79% do trigo e 62% do café.

Podemos constatar, portanto, que a agricultura familiar é fonte de parte significativa daquilo que de fato alimenta as pessoas, enquanto que o agronegócio não esconde sua vocação de simplesmente produzir para ganhar dinheiro.

Foto: Gisele David / MST-PR

Programas e projetos que valorizam a agricultura familiar representam um estímulo para o desenvolvimento do pequeno produtor. Um modelo de produção e distribuição de alimentos orientado para a autonomia só é possível se a produção estiver espalhada pelo território, cada um produzindo um pouco em cada lugar. Isso também contribui para que o trabalho esteja espacialmente distribuído, garantindo renda e segurança alimentar para milhões de famílias em todo o território.

Quase tão importante quanto o trabalho é a possibilidade de uma vida que preserve vínculos comunitários, tradições, referências culturais. Sem esses aspectos nutridores da condição humana, as pessoas se transformam em consumidores passivos, reféns das mídias e facilmente manipuláveis, inclusive em seus hábitos alimentares.

Bicicarreto #04

Toda reflexão sobre as possibilidades de desenvolvimento do Bicicarreto é construída a partir da prática, em movimento. De fato, o pedalar na estrada é propício para arejar o pensamento ao mesmo tempo em que nos empoderamos quanto aos caminhos para transformar ideias em ações concretas.

Foto: Adriana Marmo.

Para que as ações de ativismo sejam sustentáveis como uma prática periódica, precisamos reconhecer que toda ação tem um valor expressivo, além naturalmente de seu valor instrumental. Os efeitos recompensadores de uma ação vêm não apenas dos resultados práticos que ela produz mas também de sua própria execução. Sentindo-se bem durante o processo, a pessoa vai querer fazer de novo.

Foto: Arnaldo Machado.

Nesse aspecto, o Bicicarreto tem sido sempre uma experiência incrível para todos os participantes. Envolve bicicleta, estrada, terra produtiva, amigos, jardins, histórias, hortas, mato e sol. Que mais precisa?

Foto: Dionizio Bueno.

Levar as provocações do Bicicarreto ao ambiente escolar foi o propósito que deu origem a esta ação #04. Neste ano, a Mostra Cultural da escola municipal Théo Dutra, na Brasilândia, iria contar com uma pequena feira agroecológica, articulada pela professora Fernanda Rodrigues. O Bicicarreto entrou na parceria para fazer o transporte de parte desses alimentos.

Foto: Fernanda Rodrigues.

Ver um grupo de bicicletas chegando diretamente da roça, trazendo produtos orgânicos recém colhidos, é um ponto de partida bastante inspirador para muitas reflexões. A escola precisa assumir um papel protagonista na formação de cidadãos críticos e não de consumidores passivos.

Foto: Fernanda Rodrigues.

Temas como produção e distribuição de alimentos, segurança alimentar, reforma agrária, alimentação saudável e agricultura urbana precisam ser regularmente abordados em sala de aula, pois dizem respeito à saúde e à vida de todos nós.

Foto: Ana Fediczko.

Com a prática, vamos acumulando aprendizados sobre as possibilidades das ações de ativismo do Bicicarreto. Trata-se simplesmente de pegar a estrada, chegar cedo a um sítio produtivo na área rural, encontrar pessoas queridas, conversar sobre novas articulações que reforcem nossa luta. Pedalar é (quase) sempre um ato cheio de sentidos políticos.

Bicicarreto #03

Domingo de sol e céu azul, perfeito para dar um pulinho na roça, sentir cheiro de terra e abastecer a casa. Caixas agrícolas montadas no bagageiro das bicicletas, fomos para a estrada, rumo à Comuna da Terra Irmã Alberta.

Aqui passa o trópico e passam também bicicletas que transportam alimentos. Foto: Dionizio Bueno.

Comuna cheia de visitantes, diversas atividades, cursos e ações acontecendo ao mesmo tempo por lá. Entre elas, uma vivência em que os participantes aplicam a agroecologia conforme é praticada nos assentamentos do MST.

Na casa da Nice, um cafezinho acompanhou uma rica conversa. Foto: Dionizio Bueno.

Desta vez, nossa ideia era passar o dia na Comuna, sem teto de horário para estar de volta e entregar a encomenda. Logo que chegamos, fomos conhecer o jardim e a horta da Jô, que planta de tudo. Ouvimos suas histórias passeando entre aqueles canteiros cheios de verduras.

A disposição dos canteiros evita encharcamento e perdas na época das chuvas. Foto: Dionizio Bueno.

Quantos tons de verde! Tanta saúde naquelas verduras, totalmente livres de pesticidas, herbicidas ou fertilizantes químicos.

As folhas do repolho também são comestíveis. Como desprezar tamanha abundância? Foto: Adriana Marmo.

Depois do almoço e de muita prosa, organizamos nossa lista de produtos, que até aquele momento ainda estavam na terra. Com exceção da mandioca, tudo que trouxemos foi colhido ali na hora: abacate, rúcula, agrião, alface, mostarda, espinafre, couve.

Um rápido banho nas raízes para tirar o excesso de terra. Foto: Dionizio Bueno.

Da horta diretamente para as bicicletas. Desta vez a viagem de volta foi à noite, com a temperatura bem agradável. Mesmo assim, é bom borrifar as verduras de vez em quando para que continuem viçosas.

Tudo pronto para pegar a estrada. Foto: Dionizio Bueno.

A cultura do consumo transforma alimentos em mercadorias. Nos assentamentos e nas pequenas propriedades, a agricultura familiar trabalha diariamente na resistência, garantindo a disponibilidade de alimentos saudáveis para quem quiser. Transportando um pouco por vez, seguimos na estrada mostrando que tudo isso está ao nosso alcance, sem depender de combustível e veículos caros e altamente poluidores.

veja como foi o Bicicarreto #01

Nossa primeira ação, em julho de 2018, foi documentada do começo ao fim por George Queiroz, um dos ciclistas participantes. O resultado é este vídeo, que está aqui para ser assistido e compartilhado.

Clique na imagem para ver o vídeo.

Na alegria do momento da chegada, a mensagem mais importante que queremos passar: mesmo em uma cidade enorme como esta, o transporte da produção agrícola em bicicletas é possível!