Espaços institucionais de articulação entre o governo e a sociedade civil são essenciais para a formulação e a implementação de políticas públicas favoráveis aos interesses coletivos da sociedade. No campo da segurança alimentar e nutricional da população brasileira, esse espaço é o Consea – Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Não por acaso, o Consea foi desativado no primeiro dia de governo da pessoa que ocupou o cargo de presidente da república entre 2019 e 2022, cujo nome não merece ser pronunciado nem escrito.
A reinstalação do Consea se efetivou em 28 de fevereiro de 2023 e foi celebrada por movimentos sociais e ativistas em todo o país. Ao conhecer a relevância e a forma de funcionamento desse conselho, compreendemos melhor a importância desse retorno.
O Consea é um órgão de assessoramento imediato à Presidência da República, com competência para apresentar proposições de políticas relacionadas à segurança alimentar e nutricional e também para exercer monitoramento e controle social na execução dessas políticas. Tem caráter consultivo e atualmente integra o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan).
De seus 60 membros, dois terços são representantes da sociedade civil e um terço são ministros de Estado. Trata-se, portanto, de um espaço importantíssimo para movimentos e organizações sociais que atuam pelo aprimoramento das políticas públicas ligadas a soberania e segurança alimentar e nutricional no Brasil, colocando-os em posição de serem ouvidos diretamente pelo presidente do país.
O Consea teve importante papel na construção de diversas políticas públicas. Alguns exemplos: exigência de que 30% das aquisições do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) venha da agricultura familiar, formulação da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, elaboração do Guia Alimentar para a População Brasileira, criação do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), inclusão do direito à alimentação saudável na Constituição Federal, criação do Sisan.
Tais políticas foram determinantes para a sensível redução do número de pessoas em situação de subalimentação, tirando o Brasil do mapa da fome da ONU em 2014. Por sua atuação, o Consea obteve importante reconhecimento fora do país e já recebeu a visita de delegações internacionais que vieram conhecer o seu trabalho.
A cada quatro anos, o Consea organiza a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CNSAN), que é a instância máxima do Sisan e indica as diretrizes e prioridades da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. O encontro é precedido de conferências municipais, regionais e estaduais, nas quais são eleitos delegados e delegadas que irão participar da conferência nacional.

Histórico das CNSANs já realizadas. Adaptado de Relatório final da 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. CLIQUE PARA AMPLIAR
A última conferência que aconteceu até o momento foi a 5ª CNSAN, em novembro de 2015, em Brasília. Apenas para lembrar, em 2015 a Dilma era presidente, o golpe contra ela já estava sendo articulado mas ainda não havia sido consumado, Lula ainda não havia sido preso, o povo brasileiro ainda não tinha escolhido um fascista para presidente da república, não existia pandemia, ainda não havia 33 milhões de pessoas passando fome no país.
Entre os vários resultados da 5ª Conferência está um trabalho coletivo de escolha de prioridades dentro de um conjunto de 331 proposições trazidas das conferências estaduais. As três proposições mais votadas foram: “Garantir, ampliar e fortalecer as ações de assistência técnica e extensão rural (Ater) na promoção da inclusão produtiva das famílias em situação de pobreza extrema no meio rural, respeitando a forma dos saberes culturais dos povos e comunidades tradicionais”; “Promover o papel da agricultura familiar, camponesa e indígena como um dos elementos estruturantes das estratégias nacionais e regionais de soberania e segurança alimentar e nutricional, por meio do estímulo à produção local de alimentos baseada em modelos diversificados e de base agroecológica, em estratégias soberanas de abastecimento alimentar e em articulação com os preceitos de uma alimentação adequada e saudável”; “Implementar planos de proteção de bacias com recursos para a revitalização e renaturalização dos corpos hídricos, considerando o caráter intermunicipal e interestadual das bacias hidrográficas no momento da tomada de decisões relacionadas às políticas de recursos hídricos, sejam elas estaduais ou federais e que as ações de revitalização atuem prioritariamente nas causas de degradação das bacias hidrográficas”.
Em síntese, na avaliação conjunta dos delegados e delegadas presentes na 5ª Conferência, os três temas mais sensíveis naquele momento eram: inclusão produtiva por meio de assistência técnica, estímulo à agricultura familiar com base na agroecologia e proteção aos recursos hídricos.
No intervalo entre as CNSAN, costuma ser organizado um encontro nacional denominado CNSAN+2, com o objetivo de realizar um balanço das proposições da conferência e do estado de implementação das medidas de segurança alimentar e nutricional no país. A 5ª CNSAN+2 aconteceu em março de 2018, também em Brasília. O relatório desse encontro já identificava retrocessos no campo da segurança alimentar e nutricional, os quais, como sabemos, se aprofundariam nos anos seguintes: “a atual conjuntura de retrocessos na democracia impôs um cenário de desconstrução de direitos, precarização das relações de trabalho, aumento do desemprego, esvaziamento de políticas públicas e iminente volta do Brasil ao Mapa da Fome”.
A conferência seguinte deveria acontecer em 2019, e sua convocatória chegou a ser aprovada em novembro de 2018. Com a desativação do Consea, o encontro naturalmente não aconteceu.
Durante o período em que esteve desativado, os integrantes do Consea mantiveram-se mobilizados, junto com os Conseas estaduais e movimentos sociais de combate à fome, monitorando os movimentos do governo em relação à segurança alimentar e nutricional.
A nutricionista, pesquisadora e professora Elisabetta Recine, que presidia o Consea no momento de sua desativação, foi agora reconduzida ao cargo, junto com seus conselheiros. O gesto mostra a expectativa, por parte do atual governo e da sociedade brasileira, de que o conselho retome os trabalhos do ponto em que foram interrompidos, no início de 2019.