pnae

Construído ao longo de décadas através de sucessivas melhorias, como resultado de muita mobilização social, o Programa Nacional de Alimentação Escolar é considerado um dos maiores programas no mundo com essa finalidade e, segundo sua página oficial, é o único com atendimento universalizado.

Começou a ser estruturado na década de 1950, na forma de uma campanha de merenda escolar. Inicialmente dependeu de convênios com organismos internacionais, tendo ainda o enfoque do atendimento a populações carentes. A Constituição de 1988 assegurou o direito à alimentação escolar a todos os alunos do ensino fundamental. Em 1994 sua operação (planejamento de cardápios, aquisição dos gêneros, distribuição) foi descentralizada, por meio do envolvimento das secretarias estaduais de educação e de convênios com os municípios.

Em 2001 a legislação introduziu o respeito aos hábitos alimentares regionais e à vocação agrícola de cada município. Além disso, passou a exigir que 70% dos recursos sejam aplicados em produtos básicos. Dois importantes passos em direção à qualidade nutricional e ao respeito às culturas alimentares locais. Em 2009, foi estendido para toda a rede pública de educação básica e, em 2013, para os alunos de EJA (educação de jovens e adultos), AEE (atendimento educacional especializado) e escolas de tempo integral.

A legislação de 2009 é considerada um marco importante na história do PNAE por tornar obrigatório que no mínimo 30% dos recursos repassados sejam utilizados na “aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas” (Lei nº 11.947/2009, Art. 14º). Nesses casos, fica dispensado o processo licitatório, e a aquisição passa a ser encaminhada por meio de chamadas públicas.

Os efeitos desse envolvimento da agricultura familiar podem ser sentidos de diversas formas. Nos refeitórios das escolas, houve sensível melhoria no cardápio das refeições. O feijão enlatado que era servido em muitas escolas, proveniente de locais indefinidos de qualquer canto do planeta e cheio de conservantes químicos, foi substituído por feijão fresco, produzido em pequenas propriedades na própria região. As crianças passaram a receber frutas locais no lugar de biscoitos industrializados. Um simples artigo da lei pode provocar a substituição de produtos ultraprocessados por alimentos in natura na alimentação de milhões de crianças.

Foto: divulgação

Fora da escola as mudanças também são significativas. As compras municipais garantem renda para agricultores e agricultoras locais, que passam a viver em melhores condições e a consumir mais no comércio da cidade, fazendo girar a economia, gerando distribuição de riqueza e aumentando a arrecadação de impostos do município. A justiça social se propaga por toda a cadeia econômica na forma de prosperidade para todos.

A oportunidade dada aos pequenos agricultores pelo programa também estimula o associativismo, a formação de cooperativas e a organização da classe produtora sendo, portanto, um fator de fortalecimento político da agricultura familiar. Quando as escolas foram fechadas em função da pandemia, o programa manteve as compras municipais desses pequenos produtores, garantindo o escoamento da produção. As famílias dos alunos podiam retirar os alimentos nas escolas e, em alguns casos de maior vulnerabilidade, podiam recebê-los em casa.

A concretização desse potencial, no entanto, depende em grande medida das entidades municipais e estaduais que fazem a gestão dos recursos. São elas que decidem sobre quais produtos adquirir, e de quem. Talvez pela própria formulação do texto da lei, ela infelizmente não consegue “garantir”, como muito se diz em matérias sobre o assunto, o percentual mínimo de 30% em compras da agricultura familiar.

O próprio artigo 14 da referida lei já prevê as condições nas quais esse percentual pode ser flexibilizado, oferecendo possibilidades de justificativas que são difíceis de serem verificadas pelos mecanismos de controle social. A página de perguntas frequentes sobre o PNAE informa que, no caso do não cumprimento dos 30%, basta às entidades executoras justificarem posteriormente as razões para isso. De tempos em tempos circulam notícias sobre o descumprimento da exigência por parte das entidades municipais e estaduais (exemplos aqui, aqui e aqui).

Dados sobre as compras da agricultura familiar disponíveis na própria página do governo federal apontam para um quadro pouco animador no que se refere ao cumprimento dos 30% estabelecidos pela lei. As informações mais recentes disponíveis nessa página se referem a 2017 e, ainda que já um pouco antigas, dão uma ideia da situação.

Dos 640 municípios paulistas listados na base de dados disponível, apenas 226 (35,3%) empregaram 30% ou mais da verba do PNAE na compra de produtos da agricultura familiar. No caso de 280 prefeituras (43,8%), o percentual de compras da agricultura familiar fica abaixo do exigido por lei. Há 123 municípios em que o dado referente a compras da agricultura familiar está marcado com um traço, sem esclarecer se isso corresponde a um zero ou a simples ausência de informações. Portanto, o percentual de prefeituras que não atingiram os 30% é provavelmente ainda maior, podendo chegar a 63% caso esse traço seja mesmo um zero em todos os casos.

No município de São Paulo, no ano de 2017, o percentual da verba do PNAE investido em compras da agricultura familiar foi, segundo essa base de dados, de apenas 7,8%, muito distante do mínimo exigido pela legislação.

Ao comprarem produtos em varejistas ou mesmo em grandes distribuidoras, as prefeituras pagam mais caro, pois estão optando por alimentar uma cadeia de distribuição cheia de intermediários. Além disso, estão quase sempre jogando recursos para fora do município. Ao escolherem a agricultura familiar, a verba vai diretamente para os pequenos produtores, promovendo justiça econômica e social. O que está em jogo nesta decisão do gestor público é a escolha entre fortalecer trabalhadores e trabalhadoras da região ou fortalecer ainda mais o grande capital.

Um agricultor familiar que deseje vender sua produção para o PNAE deve, em primeiro lugar, emitir a sua DAP (Declaração de Aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), que é o documento que habilita a unidade produtiva para participar do programa. Precisa então ficar atento, junto à prefeitura de seu município, para as chamadas públicas para aquisição de alimentos. Deverá entregar um projeto de venda de gêneros alimentícios para alimentação escolar e demais documentos exigidos por aquela chamada. Uma vez aprovado o projeto, será elaborado um contrato de aquisição entre a prefeitura e a unidade produtiva.

Ao incluir a agricultura familiar diretamente nas compras públicas, o PNAE cria a oportunidade de reconfigurar os sistemas alimentares a partir das relações locais, com impactos imediatos na saúde da população estudante, nas condições de vida dos pequenos produtores e na economia local. Sendo a prefeitura municipal o único intermediário entre produtor e consumidor, forma-se um circuito curto que leva os alimentos da horta ao refeitório escolar sem dispersão de recursos e com grande qualidade nutricional.

Sua efetividade, porém, depende de constante vigilância e pressão por parte da sociedade civil, que pode fazer isso por meio dos Conselhos de Alimentação Escolar ou através de incidência direta junto a prefeituras, secretarias de educação e câmaras de vereadores. Milhares de municípios brasileiros respeitam a lei, investindo 30% ou mais (em alguns casos, bem mais) em compras diretas da agricultura familiar. Mas há milhares de municípios que ainda estão abaixo ou bem abaixo dessa exigência legal. Existe aqui um imenso campo de oportunidades para o fortalecimento da agricultura familiar.

2 comentários sobre “pnae

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