o Bicicarreto como ATIVISMO
Em julho de 2018, em um grupo de dez ciclistas, transportamos 70 quilos de alimentos desde um sítio do MST, na região periurbana de São Paulo, até um mercado de produtos orgânicos, no centro da capital. Assim, o Bicicarreto é fundado em uma ação de ativismo.
Foi uma ação concreta de apoio à agricultura familiar e à pequena propriedade, que muitas vezes enfrenta problemas de escoamento de sua produção. Como resultado, o alimento efetivamente chegou até o mercado onde seria comercializado, e aqui está o valor instrumental da ação. Há também um forte valor expressivo nela, no momento em que as pessoas presenciam a chegada das bicicletas carregadas de produtos recém colhidos. “Nossa, vocês pedalaram 30 quilômetros e trouxeram esses produtos da horta até aqui de bicicleta? Então é possível fazer isso, mesmo numa cidade como São Paulo?”. Ao fazer questionamentos como esses, as pessoas passam a enxergar soluções tidas antes como impensáveis, e isso é transformador.
Junto com aquelas bicicletas carregadas, chega uma mensagem muito impactante: “desde a horta até aqui, nenhuma gota de combustível foi consumida para transportar estes produtos”.
É justamente dessa mensagem que surge o mote central do Bicicarreto, que vai nortear todas as suas outras dimensões, como você verá neste documento.
O que o Bicicarreto faz, propõe e ajuda a fazer é pegar alimentos no local em que são produzidos e levá-los de bicicleta o mais longe possível dentro da cadeia logística. Suas ações terão sempre um caráter provocador ao demonstrar que, até mesmo no contexto de uma grande metrópole, é perfeitamente viável transportar de bicicleta alimentos em atacado, desde o produtor.
Em alguns contextos, o transporte de produtos em bicicletas a partir do produtor já acontece naturalmente. É por exemplo o caso do leite que chega de bicicleta, diretamente do curral onde foi feita a ordenha, em uma casa no interior. Ou do maço de couve que alguém colhe em uma horta urbana e leva de bicicleta até sua casa, a alguns quilômetros dali. Aliás, consideramos que quem faz isso já está fazendo Bicicarreto, ainda que não use esse nome! Queremos estender o alcance da bicicleta até onde for possível.
Há ainda algumas implicações importantes relacionadas à sua dimensão de ativismo. Ao ir até a roça buscar produtos e pegar uma estrada para entregá-los, o Bicicarreto cria uma narrativa de cicloativismo em ambiente rural, reivindicando o reconhecimento da bicicleta como um meio de transporte de produtos agrícolas. Além disso, ao se conectar e estabelecer parcerias com movimentos de luta pela terra, o Bicicarreto coloca o cicloativismo em um nível ampliado de politização. Afinal a expropriação urbana, que limita o direito à cidade e cria muitos dos problemas de mobilidade contra os quais o cicloativismo tradicionalmente luta, e a expropriação rural, que destrói a agricultura familiar para beneficiar a agroindústria, são dinâmicas produzidas pelas mesmas forças, ainda que parte considerável do cicloativismo desconsidere essas relações.
o Bicicarreto como CICLOLOGÍSTICA
Então que possibilidades surgem quando o Bicicarreto vai além do ativismo e se coloca em outras frentes de atuação? É importante neste momento repassar alguns valores fundamentais do Bicicarreto, pois eles vão orientar seu desenvolvimento. Em nossa perspectiva, uma postura politizada, em que alguns valores essenciais estão acima de critérios econômicos, é essencial para gerar transformações genuínas no sistema de produção e distribuição de alimentos.
Serviços de ciclologística estão crescendo rapidamente nas cidades. Uma das possibilidades de atuação do Bicicarreto é prestar um serviço comercial de ciclologística, fazendo o transporte de produtos orgânicos entre produtores e varejistas. É preciso pensar nas implicações disso.
Um dos valores fundamentais pode ser sintetizado no conceito de circuito curto, no qual existe idealmente zero e no máximo um intermediário entre produtor e consumidor. Nas situações em que a compra direta do produtor é pouco praticável, um mercado de produtores seria o intermediário suficiente para facilitar a distribuição da produção.
Seria incoerente se o Bicicarreto se colocasse como um intermediário a mais na cadeia logística, o que entraria em conflito com a ideia de circuito curto. O Bicicarreto pode substituir um intermediário motorizado já existente, mas a situação mais desejável é aquela em que o próprio produtor faz suas próprias entregas.
Sendo a bicicleta um meio bastante acessível e de baixo custo de manutenção, ela está ao alcance de qualquer produtor para fazer a entrega de seus produtos. Também é possível que o varejista disponha de uma pequena frota de bicicletas para coletar a produção diretamente nas roças. Arranjos assim, denominados esquemas de Bicicarreto, podem ser implementados por meio de projetos específicos, conforme apresentado adiante.
Outra possibilidade seria virar um serviço de entregas de produtos dos mercados para os consumidores finais, o que levantaria uma questão diferente. Ao fazer apenas a última perna de um sistema logístico baseado em veículos motorizados, o Bicicarreto perderia a oportunidade de levar, junto com os produtos, a sua mensagem mais singular: “do produtor até aqui, o transporte destes produtos consumiu zero combustível”. Haveria sem dúvida um ganho para a sociedade, pela redução de emissões e outras externalidades negativas. Mas aqui o Bicicarreto passaria a ser mais uma empresa de entregas de bicicleta, abrindo mão de seu mais forte elemento de identidade, que é o testemunho que só pode trazer quem pedalou com os produtos desde o local de produção.
A dimensão de ciclologística do Bicicarreto tem como foco a transformação dos sistemas de distribuição por meio do empoderamento dos pequenos produtores e da valorização do transporte em bicicleta, buscando a redução dos intermediários. A mensagem transportada pelas nossas bicicletas é tão importante quanto a carga.
o Bicicarreto como TESTEMUNHO
Boa parte dos produtos disponíveis nos mercados viajaram centenas ou milhares de quilômetros desde os produtores. O sistema de abastecimento das nossas cidades está montado para depender de veículos motorizados. A implantação de um esquema no qual produtos locais são transportados de bicicleta só pode acontecer de forma gradual.
É importante que exista um marco visível desse processo de substituição, e essa é a função do testemunho Bicicarreto. Trata-se de uma sinalização usada para identificar na gôndola os produtos que chegaram até ali de bicicleta. O testemunho Bicicarreto toma a forma de uma plaquinha ou selo colocado sobre o produto, ou um símbolo na etiqueta de preço, que carrega a seguinte mensagem: desde o produtor até aqui, este produto não consumiu uma única gota de combustível em seu transporte. Um testemunho como esse, além de evidentemente valorizar os produtos identificados, diz muito também sobre o estabelecimento comercial, na medida em que ele oferece produtos transportados por Bicicarreto e está ativamente envolvido na concretização de um projeto genuinamente transformador.
O testemunho Bicicarreto é importante por permitir flexibilidade. Alguns revendedores poderão ter em suas linhas diversos produtos transportados de bicicleta. Outros terão apenas alguns. Em algumas épocas, o transporte em bicicleta será mais difícil devido às condições climáticas. Como qualquer atividade que lida com elementos da natureza, o Bicicarreto também é sujeito às sazonalidades. O importante é que o transporte em bicicletas aconteça sempre que for possível e, quando ele acontecer, isso precisa ser mostrado e valorizado. Enquanto não for viável um mercado que trabalhe apenas com produtos transportados em bicicletas, essa informação tem que ser dada individualmente, a cada produto. Esta é a principal função do testemunho Bicicarreto.
A mensagem também acaba tendo um efeito de provocação, sempre lembrando o comprador que é perfeitamente possível um produto chegar desde a roça até ali de bicicleta. Ao se deparar com o testemunho, a pessoa provavelmente buscará saber mais sobre o projeto. Levando a mensagem de provocação para dentro do supermercado, o testemunho Bicicarreto estende o ativismo para a vida cotidiana.
o Bicicarreto como frente de ARTICULAÇÃO
A criação de mercados de produtores possibilita não apenas a eliminação de intermediários (circuitos curtos), como também a aproximação entre produção e consumo (agricultura local). Se a logística desses mercados puder ser montada por meio de esquemas de Bicicarreto, estaremos cada vez mais próximos de nossa utopia: pequenas células produtivas formadas por um mercado de produtores no centro geográfico e, em volta dele, sítios localizados a distâncias cicláveis. Os próprios produtores fazem em bicicletas o transporte dos produtos desde as roças até esse mercado. Os consumidores, por sua vez, vão até esses mercados usando o modal de transporte que mais lhe convier. Nos casos em que isso for feito a pé ou de bicicleta, teremos um circuito logístico inteiramente livre de combustíveis.
O envolvimento das pessoas mais jovens das famílias de produtores nos esquemas de Bicicarreto atua como um incentivo para que eles permaneçam nesse setor produtivo, diminuindo o êxodo que contribui para desestruturar famílias e comunidades. Há portanto um importante aspecto social na estruturação desses mercados de produtores.
Pensado como frente de articulação, o Bicicarreto trabalha na estruturação desses esquemas, por meio de projetos pontuais. Mesmo em pequena escala, projetos assim demonstram a viabilidade do transporte em bicicleta, além é claro de serem inspiradores para projetos maiores. É possível, por exemplo, articular para que um pequeno produtor urbano de hortaliças se estruture para distribuir ao menos parte de sua produção usando a bicicleta. No caso da agricultura urbana, já existe a proximidade entre o produtor e um mercado potencial. Basta um esforço para desenvolver seu mercado no próprio bairro e a distribuição em bicicleta já estará em grande parte viabilizada.
Aliás, em muitos casos, há perto do produtor um imenso mercado potencial que poderia ser mais bem aproveitado. Em muitas regiões de São Paulo, por exemplo, bairros de periferia com características de desertos alimentares estão próximos dos produtores agrícolas da região periurbana. Os alimentos orgânicos aí produzidos geralmente viajam dezenas de quilômetros, de carro pela cidade, para abastecerem mercados orgânicos de bairros abastados, sendo aí vendidos ao triplo do preço pago ao produtor. Seria mais sensato que ficassem na própria região e fossem vendidos a preço justo, não apenas suprindo uma demanda já existente, mas também contribuindo para desenvolver nessas regiões a cultura da alimentação saudável.
Em maior escala, desenvolvemos articulações comunitárias para que um produtor, um grupo de produtores ou um assentamento rural possa se organizar para escoar ao menos parte de sua produção usando a bicicleta. A formação da frota tem um custo baixíssimo, e muitas vezes pode se resolver pela recuperação de bicicletas fora de uso. É necessário em seguida fazer a adaptação das bicicletas para o transporte de carga e, se for necessário, dar treinamento aos ciclistas para que possam percorrer com segurança trechos em rodovias ou grandes avenidas levando cargas.
Tudo isso nos leva em direção da nossa utopia. A frente de articulações trabalha para concretizar os valores fundamentais do Bicicarreto, que nasce do ativismo e busca soluções viáveis de uso da bicicleta como um meio de autonomia.
o Bicicarreto como ambiente de FORMAÇÃO
Há também o aspecto de formação num sentido amplo. Por meio de encontros entre diversos atores, promovemos a troca de conhecimento a respeito dos temas relacionados ao campo de atuação do Bicicarreto. Destacamos os seguintes.
- Compreensão de aspectos estruturais da produção de alimentos, especificamente dos assentamentos e da agricultura familiar, sobretudo as dificuldades de escoamento da produção e a dependência de intermediários que façam a distribuição.
- Reflexões sobre a segurança alimentar e a importância do desenvolvimento de mercados locais e circuitos curtos como caminhos para a autonomia, para o fortalecimento das comunidades e para a própria sobrevivência econômica dos pequenos produtores.
- Ressignificação da bicicleta não apenas como meio de transporte de cargas mas também como veículo que gera empoderamento, sendo perfeitamente apto para assumir o protagonismo dentro de um esquema logístico eficiente.
Tudo isso envolve não apenas os parceiros do Bicicarreto ou os coletivos e organizações onde se desenvolvem projetos, mas também a comunidade interna, formada pelos ciclistas envolvidos nas ações e articulações.
Além de promover esses ambientes de troca de conhecimentos e experiências, há um trabalho permanente de pesquisa sobre temas ligados a produção de alimentos, segurança alimentar e ciclologística. Uma das funções deste blogue é ser um canal de divulgação dessas informações.
a dimensão VIVENCIAL do Bicicarreto
Em todas as suas frentes de atuação, a dimensão vivencial é um componente essencial do Bicicarreto. Andar de bicicleta é uma experiência transformadora por natureza. Mesmo para ciclistas acostumados a pedalar pela cidade, como são os que têm participado das ações, a experiência de pegar a estrada para ir até um sítio buscar alimentos tem sempre um efeito altamente recompensador.
Sair da cidade, pedalar por uma estrada, atravessar a fronteira entre o urbano e o rural, ter contato direto com os produtores, ver o verde e sentir o cheiro da terra, ver a própria bicicleta carregada de produtos agrícolas, sentir o peso da carga na volta, chegar festivamente ao destino, celebrar a entrega da encomenda. Nesta sequência de experiências agradáveis e marcantes, o participante vivencia com o próprio corpo todo o potencial de autonomia proporcionado pela bicicleta. Isso é muito empoderador.
Do lado do ativismo, uma vivência prazerosa renova a determinação de seguir lutando pela utopia. Mais do que nunca, a ação política precisa de leveza e ternura. Num contexto de articulação, em que trabalhamos para colocar novos ciclistas nas estradas, a dimensão vivencial gera envolvimento no projeto. Muito mais do que simples atividade de treinamento, a experiência é um elemento central do trabalho de articulação.