Como pode uma comunidade de pessoas fazer suas próprias escolhas sobre as formas de se alimentar se o controle da produção e distribuição de alimentos está nas mãos de corporações, sejam elas nacionais ou transnacionais? Esta é a questão fundamental para se pensar a noção de soberania aplicada a este aspecto essencial da vida que é a alimentação.
Soberania diz respeito à condição, de uma pessoa ou de um povo, de ser independente e livre para tomar decisões referentes aos seus próprios assuntos, estando imune aos interesses alheios e externos.
Portanto, quando falamos de soberania alimentar, estamos nos referindo à possibilidade de uma comunidade ou uma nação de fazer suas próprias escolhas quanto ao seu sistema alimentar: o que cultivar, com que técnicas, onde comercializar os alimentos, como transportá-los, como gerir os recursos da natureza essenciais à sua produção.
Um sistema alimentar pode ser pensado para gerar renda para um grande número de pequenos produtores, proporcionando-lhes uma vida digna, fortalecendo comunidades e produzindo alimentos saudáveis, ou pode ser estruturado de forma a produzir ganhos milionários para umas poucas empresas agropecuárias altamente capitalizadas, em enormes fazendas que empregam pouca mão de obra e esvaziam o campo, utilizando grande quantidade de veneno para minimizar prejuízos.
A produção de alimentos em escala industrial utiliza monoculturas e processos uniformizados, que levam à perda da diversidade. Fazendas de menor porte, quando convertidas a esses processos produtivos, também acabam presas, através dos contratos, às decisões corporativas, fazendo com que agricultores deixem de produzir as variedades que sempre cultivaram. Os produtos do agronegócio acabam dominando os sistemas de distribuição e comercio. Assim, da produção até o varejo, o sistema impõe produtos alimentícios a comunidades que antes cultivavam e consumiam variedades tradicionais e/ou locais, que acabam desaparecendo. Neste tipo de arranjo, a produtividade do capital é mais importante que a liberdade de escolha do consumidor.
Assim, a soberania alimentar diz respeito também à possibilidade de as pessoas obterem aquilo que comem de forma independente do enorme complexo de distribuição de alimentos, composto por transportadoras de longa distância, atacadistas, grandes entrepostos e redes de varejo, que têm o poder de decidir aquilo que o consumidor vai comer e aquilo que ele jamais encontrará nas prateleiras.
Naturalmente, o acesso dos pequenos produtores à terra é crucial quando se pensa em soberania alimentar. E terra não basta, é preciso que seja uma terra onde exista água, sem a qual o cultivo não é possível. Água potável ou com condições mínimas para uso em irrigação das plantações, livre de contaminação por agrotóxicos, esgotos, detritos industriais e substâncias tóxicas resultantes de mineração, garimpo e outras atividades legais ou ilegais.

Foto: Dionizio Bueno
Existe ainda um outro fator essencial que é o acesso a sementes. É importante que sejam sementes livres, como sempre foram na história da humanidade, e não sementes proprietárias, pertencentes a alguma corporação, e que prendem o agricultor em uma teia de obrigações e armadilhas contratuais. Sementes que têm um dono e não se reproduzem representam talvez a condição mais oposta à soberania alimentar. São dependência e submissão em um de seus mais altos graus.
A questão dos recursos naturais é essencial para se pensar em soberania alimentar. Terra, água e sementes são condições para a vida, deveriam ser bens públicos por definição, jamais serem privatizados. O sistema produtivo do agronegócio vem há décadas deteriorando o solo, contaminando rios e lençóis freáticos com veneno, destruindo ecossistemas. Assim, a discussão sobre soberania alimentar está naturalmente articulada a outras agendas mais amplas, de interesse de toda a sociedade.
A Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, criada pela UNESCO em 2001, afirma, em seu primeiro artigo: “Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza.” As culturas alimentares fazem parte do patrimônio de um povo. O respeito à diversidade está ligado à continuidade dessas formas de se alimentar, de cultivar o solo, de se relacionar com o lugar onde se habita. Novas tecnologias podem existir como opções para os agricultores, mas a decisão entre adotá-las ou manter as tradições agrícolas locais deve ser exclusivamente dessas comunidades, e não imposta a partir de fora por organizações alienígenas, seja com armas contratuais, seja pela sedução do dinheiro.
Falamos aqui de direito à alimentação, a um meio ambiente saudável e livre de veneno, à diversidade de formas de viver, plantar e se alimentar. Soberania alimentar é, portanto, uma questão de direitos humanos. Quando os direitos humanos são de fato prioritários sobre os direitos econômicos, o sistema agrícola é organizado para produzir alimentos, e não commodities. Alimentos servem para saciar a fome de seres que têm direito à vida; commodities servem para corporações ganharem dinheiro.
O termo soberania alimentar foi cunhado pela Via Campesina durante a Cúpula Mundial da Alimentação, um evento realizado em Roma pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), em 1996.
É preciso notar a diferença entre esse conceito e a ideia de segurança alimentar. Esta surgiu na década de 1970, num contexto em que as tecnologias produtivas como transgenia, monoculturas e alta mecanização estavam trazendo um aumento significativo da quantidade de alimentos produzida. Segurança alimentar diz respeito muito mais à disponibilidade de alimentos do que à sua qualidade ou às características do sistema alimentar e suas implicações econômicas, sociais e ambientais.
Ainda que o monitoramento das condições de segurança alimentar de uma população gere indicadores de extrema importância, discutir o problema da fome simplesmente nos termos da segurança alimentar pode estimular um regime alimentar corporativo, com produção em larga escala e todas as consequências apontadas aqui. A ideia de segurança alimentar deixa de contemplar diversas questões presentes no conceito de soberania alimentar e, em certos aspectos, até se opõe a ele. A proposta de simplesmente colocar alimentos na mesa, não importando quais sejam eles ou como são produzidos, pode levar a soluções que a indústria da alimentação, por sua capacidade de trabalhar em grande escala, tem mais condições de oferecer. No contexto em que vivemos, defesa da soberania alimentar traz de volta à discussão aspectos como a qualidade nutricional dos alimentos e todas as consequências do sistema que os produz.
O Dia Internacional de Luta pela Soberania Alimentar é celebrado todos os anos em 16 de outubro. Neste ano, a Conferência contra Fome aconteceu de forma remota e reuniu representantes de mais de 20 movimentos e organizações populares, rurais e urbanas. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) divulgou o documento Alimentação é Direito de Todo Ser Humano, no qual se posiciona diante do problema da fome no Brasil.
Discutir amplamente a soberania alimentar é um convite para que a sociedade deixe de pensar nos alimentos como mercadorias e volte a considerá-los um direito humano, essencial à reprodução da vida.
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