Na gôndola do mercado, você encontra diversas opções de biscoitos industrializados. Um deles é um biscoito quadrado dito integral, de uma marca bem conceituada, em uma embalagem de 200 gramas, ao preço unitário de R$ 2,76. Outro é um biscoito tipo água e sal comum, de uma marca considerada mais popular, com 160 gramas, por R$ 2,39. Qual desses dois produtos, vendidos em quantidades diferentes, é o mais barato?
Muitos consumidores apostarão na segunda opção. Mesmo com a diferença de peso, seu valor unitário parece bem menor. E além de não ser integral, é de uma marca menos conceituada. Porém, uma conta simples vai surpreender. Dividindo o preço do primeiro por seu peso em quilogramas (0,2), temos o valor de R$ 13,80 o quilo. Fazemos a mesma conta para o segundo, seu preço unitário deve ser dividido por 0,16 quilos (outra forma de dizer 160 gramas), e chegaremos no valor de R$ 14,94 o quilo. Apesar das aparências, o segundo biscoito é o mais caro!
Outro bom exemplo de armadilha é o sabão em pó oferecido em embalagem de 800 gramas por R$ 5,49 e em embalagem chamada de ‘econômica’, com 2,4 quilogramas, por R$ 17,90. Se você fizer as contas (apresentadas no texto anterior deste blogue), verá que é mais barato levar três embalagens menores do que uma ‘econômica’.
A política de preços aliada à escolha do tamanho das embalagens é um instrumento à disposição de fabricantes e comerciantes para atingir seus principais (e muitas vezes únicos) objetivos: aumentar as vendas e maximizar os ganhos. Ao jogarem com preços e quantidades nas embalagens, lançam mão de um artifício que tem a finalidade de fazer o consumidor pagar mais caro enquanto pensa que está pagando mais barato.
Há duas possibilidades de defesa contra essas armadilhas. Uma delas depende da iniciativa individual do consumidor: usar a calculadora do telefone celular (que hoje a maioria das pessoas carrega sempre no bolso) e converter os preços para uma unidade em comum, como fizemos acima, para fazer a comparação.
A outra forma de defesa seria, visto que temos aqui uma questão de interesse coletivo, uma lei que obrigasse os estabelecimentos comerciais a exibir nas gôndolas os preços por unidade de medida dos produtos. Essa obrigatoriedade existe há anos em diversos países. Há no Brasil, pelo menos na cidade de São Paulo, alguns raros mercados que espontaneamente já exibem os preços por unidade nas etiquetas de gôndola. Porém, por não se tratar de uma obrigação, eles podem abandonar essa prática a qualquer momento, conforme suas decisões gerenciais. Isso deveria estar em todos os lugares.
Houve em 2015 um primeiro esforço no sentido de regulamentar e generalizar essa prática. A lei nº 13.175/2015 determina a exibição do preço por unidade de medida no comércio de varejo, porém apenas na venda de produtos fracionados em pequenas quantidades. Por ser um caso específico demais, ela não se aplica aos milhares de produtos que chegam já embalados de fábrica. Assim, não ajuda em nada.
Alguns anos mais tarde, um projeto de lei propõe estender a obrigatoriedade a todos os produtos embalados à venda no varejo. O projeto de lei nº 4.355, apresentado em agosto de 2019, determina a exibição do preço por unidade de medida com a finalidade expressa de possibilitar que o consumidor efetue a comparação de preços entre produtos iguais ou similares, oferecidos em embalagens com quantidades diferentes entre si. Porém, até o momento, este projeto de lei encontra-se ainda em tramitação e, ao que tudo indica, está parado em alguma gaveta. Por ser uma interessante amostra de como um projeto de interesse público pode ser tratado de forma a dificultar sua aprovação, segue um breve resumo de como ele tramitou desde sua proposição até agora.
Ao receber o projeto de lei, a mesa diretora da câmara dos deputados determinou que ele passasse por algumas comissões, procedimento de praxe para avaliar seus aspectos técnicos específicos. São elas: Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços (CDEICS), Defesa do Consumidor (CDC) e Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). O projeto chega à primeira delas, a CDEICS, ainda no mês de agosto. É designado um relator, que vai conduzir a análise do projeto pela comissão. Em setembro, encerra-se o prazo para emendas ao projeto, sem que nenhuma tenha sido apresentada. Em novembro o relator apresenta seu parecer, no qual considera o projeto meritório e vota por sua aprovação.
Em dezembro de 2019 o projeto vai para reunião deliberativa. A sessão foi registrada em vídeo, que se encontra disponível no portal da câmara dos deputados (a avaliação deste PL começa no ponto 1:35’07” da gravação). Após fala inicial do relator, na qual ele se declara favorável, o projeto passa a ser discutido por outros membros da comissão.
Quatro deputados manifestam-se contrários ao projeto, sendo que alguns dos argumentos apresentados são falsos ou completamente sem sentido. Três desses deputados vão na linha de dizer que “isso já acontece” ou “o Código de Defesa do Consumidor já pede esse padrão”. Além de isso não ser verdade, esses argumentos têm a evidente finalidade de criar a impressão de que o projeto é desnecessário por ser redundante. Há também argumentos relacionados aos custos gerados pela medida. Um deles classifica isso como “barreiras ao empreendedor” e alega que “ninguém é obrigado a comprar nada, ninguém põe um revolver na cabeça [do consumidor] obrigando-o a comprar”. Um intrigante desafio à inteligência humana.
O último deputado a se manifestar, após chamar o projeto de “controverso”, pede vista ao relatório. O pedido de vista é um ritual de tramitação que dá à parte interessada mais tempo para reunir informações e formar opiniões sobre o assunto, o que tem o efeito de tirar o projeto, por um período determinado de tempo, da pauta da comissão. O presidente da sessão responde afirmativamente ao pedido de vista antes mesmo do término da frase do deputado. Enquanto o presidente encaminha a continuidade da sessão para o próximo assunto em pauta, a câmera ainda mostra, por alguns segundos, esse deputado que pediu vista. É possível vê-lo lançando uma expressão facial cheia de cumplicidade, com piscadinha e tudo, a algum outro membro que não dá para identificar pelo vídeo.
No ano de 2020, primeiro da pandemia, não há tramitação. O único fato mencionado é que, em fevereiro desse ano, o relator (aquela única pessoa a se manifestar favoravelmente na discussão) deixa de ser membro da comissão. Em março de 2021 encerra-se o prazo do pedido de vista concedido a um dos deputados. Em abril do mesmo ano é designado um novo relator. Desde então, não há no portal da câmara dos deputados nenhum outro registro de tramitação desse projeto de lei. Uma vez aprovado na câmara, o projeto precisaria ainda passar pelo senado e então seguir para sanção presidencial.
Paralelamente a esse projeto de lei federal, há também algumas iniciativas isoladas em nível estadual. Este blogue teve conhecimento de duas delas. Uma é a lei nº 7.834/2016 do estado de Alagoas, originada por um projeto de lei de 2015. Esta lei está, teoricamente, em vigor no estado. Buscaremos informações complementares sobre a efetividade concreta dessa lei nos supermercados de lá. A outra iniciativa é o projeto de lei nº 3.859/2018, em tramitação na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O último registro de tramitação desse projeto disponível no portal dessa casa legislativa data do início deste mês, agosto de 2021. Na prática, o projeto ainda não está aprovado.
Se, por um lado, os estabelecimentos comerciais poderiam ter o interesse de prestar um bom serviço a seus fregueses, fornecendo informações transparentes que facilitem suas escolhas, por outro, eles têm negócios milionários com seus parceiros fornecedores. Tendem, portanto, a se alinhar com os interesses destes últimos. Ao não informar o preço por unidade de medida, podem beneficiar-se de promoções enganosas, nas quais vendem mais caro produtos que deveriam ser mais baratos. Podem também usar as diferenças de quantidade para mascarar diferenças de preço dos produtos de qualidades diferentes.
Na ponta da cadeia econômica encontra-se o consumidor, aparentemente sozinho. Enquanto não temos leis efetivas a esse respeito, parece que a única alternativa para se defender desse tipo de armadilha é perder a resistência em lidar com números e jamais ter vergonha de usar a calculadora na frente da gôndola ao escolher as compras.