“Estive hoje cedo na horta urbana aqui perto de casa para comprar verduras, temperos e algumas frutas. Trouxe também uma dúzia de ovos das galinhas que vivem ali. Cada ovo de uma cor diferente, coisa linda. Aproveitei para tomar um café com o pessoal lá da horta. Tenho ido lá quase toda semana, é natural que a gente vá fazendo amizade. Gosto muito dos produtos orgânicos que encontro lá. Eles não têm certificado, mas por que eu precisaria disso para confiar neles?”
“Uma amiga, que mora aqui na rua de casa, tem parentes em Minas e viaja sempre. Ela traz um queijo incrível de lá. A família conhece o produtor, que tem um sítio pertinho da cidade, ele cria as próprias vacas. Tenho sempre encomendado duas ou três peças de queijo cada vez que ela vai para lá. Eu e essa amiga temos opiniões parecidas sobre boa alimentação, procuramos sempre que possível evitar comida envenenada, cheia de hormônios e conservantes. Eu nunca estive no sítio desse produtor lá em Minas, mesmo assim tenho sempre um queijo incrível em casa e sei de onde ele vem. Por que eu precisaria que ele fosse certificado?”
“Tenho feito as compras em uma cooperativa de produtores e produtoras. Quem me apresentou esse lugar foi um amigo meu, que é um desses produtores. De tanto encontrar os outros clientes ali, vamos fazendo novas amizades. A maioria ali conhece pelo menos algum desses produtores cooperados, eventualmente já esteve no sítio de onde vêm os produtos. Vamos formando uma rede de confiança e seguimos em diálogo permanente para fortalecer essa rede. Para que precisaríamos de alguém de fora que venha aqui para nos certificar sobre as práticas desses produtores e produtoras?”

Foto: Mael Balland / Pexels
Monoculturas, produção em larga escala, transporte de longa distância, crescimento das cadeias de comercialização, dependência de grandes empresas de distribuição. Essas mudanças surgem na passagem do sistema de produção de alimentos para uma escala industrial, no qual o esquema produtivo vai sendo moldado conforme as preferências do grande capital. Isso afastou a produção do consumo, tornando totalmente inviável que as pessoas conheçam as condições em que os alimentos são produzidos e tudo que acontece com eles até chegarem à mesa. Nesse sistema, para quem busca alimentos saudáveis e livres de veneno e hormônios, a única forma de ter alguma garantia de qualidade é a certificação.
Um certificado nada mais é do que uma narrativa. “Eu, agente certificador com boa reputação perante a sociedade, declaro que este alimento é produzido em condições de acordo com aquilo que você, consumidor consciente, busca ou deveria buscar em um produto como este.” Na outra ponta está o consumidor, destinatário da mensagem. “Eu, consumidor consciente, ao ver nesta embalagem a expressão ‘produto certificado’, dou meu voto de confiança a este produto e, portanto, estou disposto a adquiri-lo, pagando por ele um valor mais elevado que por outro produto equivalente sem certificação.”
O selo de certificação substitui a relação de confiança que deixou de existir no momento em que produtor e consumidor perderam o contato. A confiança, que antes era construída dentro de uma relação humana, pode agora ser adquirida em uma transação econômica.
Há algo de muito interessante na forma que o capital tem de atuar. Primeiro ele molda os sistemas segundo seus interesses, sem qualquer consideração com as necessidades humanas. Isso naturalmente gera problemas. Então o mesmo capital passa a oferecer as soluções para esses problemas, criando novos mercados e beneficiando a si mesmo. Enquanto a sociedade aceitar viver sob a lógica do capital, ele sempre tenderá a se fortalecer.
Para que possam vender confiança junto com seus produtos, os produtores precisam adquiri-la dos fornecedores de confiança, os certificadores. Essa confiança monetizada entra na lista de custos do produto, junto das despesas com insumos, embalagens, salários, impostos. Naturalmente o preço final do produto vai aumentar.
Talvez um fenômeno mais danoso que o aumento do custo seja o fato de a cultura da certificação tornar obsoletas as relações interpessoais de confiança. Muitos leitores provavelmente sorriem diante da ideia de recolocar as relações humanas dentro do sistema produtivo, considerando que isso é coisa de um tempo passado, de relações econômicas primitivas, e que o mundo contemporâneo globalizado não pode mais depender desse tipo de coisa.
Estamos aqui propondo reflexões sobre nosso sistema alimentar e os valores de nossa sociedade que tornam esse sistema possível. Nas situações em que jamais poderia haver possibilidade de contato direto com a produção, como no caso de produtos de biomas distantes, uma narrativa de certificação é de fato melhor que nada para orientar a decisão do consumidor. Não se trata de desvalorizar as certificadoras ou os produtos certificados. Trata-se apenas de ter sempre em mente que, no cenário que sonhamos em ver, e pelo qual lutamos nos campos teórico e prático para construir, restaurando a proximidade e os vínculos entre produtor e consumidor, a certificação é simplesmente desnecessária.