nosso sonho

Durante quatro dias, a IV Feira Nacional da Reforma Agrária, organizada pelo MST, concretizou o sonho de muitos dos que lutam pela soberania alimentar no Brasil. Nesse sonho, além do acesso a uma grande abundância de alimentos produzidos sem veneno, está a possibilidade de comprá-los diretamente de seus produtores.

Na compra direta, a quantia paga pelos consumidores servirá integralmente para remunerar de forma digna esse trabalho tão essencial que é produzir alimentos, além de pagar os custos de produção e transporte. Esses valores têm ainda a função de apoiar a importante missão do movimento como um todo, que é ocupar terras improdutivas e lutar pelo direito de plantar para alimentar pessoas.

A abundância material e humana que havia ali traz sensação de acolhimento e segurança. Poder estar perto das pessoas que produzem os alimentos que consumimos é uma experiência enriquecedora, pelas trocas que possibilita. Para os produtores, suponho que o contato direto com aqueles que se beneficiam do resultado de seu trabalho gere semelhante sensação de segurança. Garantir o escoamento da produção é essencial para a sobrevivência de qualquer unidade produtiva, mais ainda quando ela é pouco capitalizada, como é o caso daquelas pequenas propriedades.

Porém, nos dias em que estive na Feira, ao mesmo tempo em que eu olhava todos aqueles alimentos sobre as bancas dos produtores, ficava me perguntando: e quando a feira acabar? Como é possível reproduzir pelo resto do ano toda essa proximidade, que garante aos agricultores o escoamento de sua produção? A resposta também emergiu em meio a toda aquela abundância. Parece se tratar simplesmente de conexões.

Foto: Dionizio Bueno

Redes de distribuição de alimentos são nada mais do que isso: conexões entre produtores, consumidores e, quando não há alternativas, intermediários. O poder das conexões é tão grande que a possibilidade de controlá-las dá a certos agentes altamente capitalizados a possibilidade de determinar o preço de compra do lado da produção e o preço de venda do lado do consumo.

Portanto, construir alternativas a esses esquemas estabelecidos, criando a possibilidade de acesso direto ou quase direto entre produtores e consumidores, é o caminho para a autonomia. Há muitos formatos para se criar essas conexões, e diversas experiências já existem, funcionando muito bem.

cooperativas de militantes | São grupos organizados que coletam a produção de diversos assentamentos regionais e os distribuem aos consumidores na cidade. Realizam a venda através de páginas na internet ou por meio de grupos de consumo e entregam os produtos em domicílio ou em pontos de retirada espalhados em pontos estratégicos, para que os consumidores possam economizar o custo do frete.

lojas do próprio movimento | Com lojas em diversas cidades do país, redes como o Armazém do Campo oferecem produtos da reforma agrária de diversas regionais, utilizando também a estrutura dos esquemas de distribuição mantidos pela própria militância.

pequenos entrepostos | Essas iniciativas, individuais ou de pequenos coletivos, vendem alimentos tanto da reforma agrária como de hortas urbanas e pequenos produtores na cidade e em volta dela. Verdadeiras zonas autônomas, tais espaços possibilitam o acesso a alimentos saudáveis em suas vizinhanças, algumas vezes em situação de fragilidade institucional, necessitando portanto do apoio comunitário em luta de resistência.

cooperativas de consumo | Com um formato bastante inovador no Brasil, uma cooperativa está sendo formada para gerir um mercado no qual os cooperados realizam grande parte das tarefas práticas e administrativas da loja, diminuindo sensivelmente seu custo operacional e, como consequência, o preço final para os consumidores.

grupos de compras coletivas | Há certamente centenas, senão milhares deles. Basta que uma pessoa colete os pedidos de várias famílias e realize o pedido diretamente à unidade produtora, recebendo a encomenda em sua casa, onde as pessoas do grupo poderão retirar suas compras.

Nos próximos meses e anos, veremos iniciativas como estas crescendo e se proliferando. Mas para consolidar o sonho do amplo acesso aos alimentos saudáveis produzidos pela reforma agrária, é preciso que iniciativas como essas entrem nas vidas de cada vez mais pessoas, e isso pode exigir algumas adaptações, nas duas pontas do sistema.

Foto: Dionizio Bueno

Do lado do consumidor, é preciso planejar o abastecimento da casa. No caso das compras coletivas, por exemplo, os pedidos são abertos somente em certas datas. Concentrando aí as quantidades para um período mais longo (o que naturalmente só é possível no caso de produtos menos perecíveis), todos ajudam a compor um pedido de maior volume, facilitando a negociação de preço com o produtor e ajudando a diluir os custos de frete.

Esse planejamento vale também para produtos mais perecíveis, de compra mais frequente. Por enquanto, as lojas que oferecem produtos orgânicos da reforma agrária existem apenas em certos locais da cidade. As compras de produtos in natura podem ser feitas semanalmente ou até quinzenalmente, evitando demandas de última hora que acabam sendo feitas em qualquer mercado mais próximo.

É muito importante também entender que um padrão de alimentação mais saudável estará sempre sujeito a sazonalidades. É natural que certos produtos não estejam disponíveis em todos os lugares durante o ano todo.

Por meio de seus regimes industriais de produção de alimentos, o sistema alimentar baseado em grandes redes de distribuição e varejo cria artificialmente a possibilidade de ter quase tudo durante todo o ano. Os alimentos são produzidos de forma intensiva em fazendas que podem estar a milhares de quilômetros da sua casa, em regiões com outro padrão climático. Crescem por meio de estimulação artificial, utilizando fertilizantes químicos, e são colhidos enquanto estão verdes, conforme seus cronogramas de linha de produção e a quantidade de pedidos recebidos pelo departamento comercial dessas indústrias agrícolas. Por fim, têm o seu amadurecimento forçado através da exposição a gás etileno obtido do petróleo.

É perfeitamente possível ter uma alimentação baseada em produtos da época, tornando desnecessários esses recursos artificiais criados para viabilizar a produção de alimentos em enormes escalas, gerando grandes lucros para uns poucos, além de mimar um consumidor que quer ter de tudo agora.

Imagem: divulgação

Do lado dos produtores, um pequeno esforço de organização pode contribuir muito para o florescimento dessas redes de distribuição. Só eles podem ter a visão de todos os pedidos que estão recebendo, com suas respectivas datas, destinos e quantidades. Uma boa organização das rotas pode fazer o custo do frete ser dividido entre vários pedidos, diminuindo para todos os custos de transporte e fazendo com que os produtos cheguem a um preço mais baixo para os consumidores, beneficiando as vendas.

E com relação às entidades e grupos que organizam essas iniciativas, cabe ter a inteligência coletiva de entender que o espalhamento e a capilarização desse novo sistema alimentar são benéficos para toda a rede. Seria totalmente fora de propósito enxergar novas iniciativas semelhantes como concorrência. Claro que é preciso cuidado para que a atuação de iniciativas mais capitalizadas ou profissionalizadas não resulte na eliminação de outras que já se encontravam em funcionamento. Por isso é essencial manter o contato e o diálogo entre essas organizações, formando uma teia de cooperação.

Se lutamos para construir esse outro mundo com o qual sempre sonhamos, mas não formos capazes de nos libertar do paradigma da competição, em que o ganho de um implica a perda de outro, me parece que não aprendemos nada.

Produtores e consumidores têm muito a ganhar juntos com essas novas conexões. Em seu conjunto elas estão formando uma rede de produção e distribuição de alimentos que passa ao largo dos conglomerados de logística e varejo geridos pelo grande capital, que atualmente dominam o mercado de alimentos no Brasil. Vivemos a era da retomada dos circuitos curtos. Por muito tempo cultivamos nossos sonhos, hoje eles finalmente começam a florescer.

entrevista: Ademar Suptitz

Na primeira ação do Bicicarreto, em 2018, contamos com a parceria e, principalmente, a confiança de Ademar Suptitz, coordenador da loja do Armazém do Campo de São Paulo. Recentemente, estivemos no Armazém para tomar um café e conversar sobre produção e distribuição de alimentos.

Ademar – ou Schusk, como costuma ser chamado pelos companheiros de militância – nasceu no Rio Grande do Sul, em uma família de camponeses. “A gente tinha lá um poço, e ao redor do poço tinha as árvores, mais em baixo tinha um açude com peixes, tinha um campinho pras vaquinhas, uma horta ao redor da casa e um pomar mais pra cima. Tinha a área de plantio e no canto tinha uma mata preservadinha, para se ter a lenha, a madeira. A gente guardava as sementes de um ano pro outro.”

Nesta entrevista, Schusk fala sobre associativismo e cooperativismo, sobre a distribuição dos produtos da reforma agrária e sobre algumas estratégias de atuação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Mostra como o agronegócio vai tomando o lugar da produção de alimentos e conta experiências bem-sucedidas na produção de alimentos orgânicos no Brasil. Esta é a primeira de uma série de entrevistas na qual mostraremos os diversos componentes de um sistema alimentar soberano, pelo olhar das pessoas envolvidas nessa luta.

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Fala-se muito das dificuldades que os pequenos produtores têm para escoar sua produção. Quais são os maiores desafios?

Esse é um dos grandes gargalos. Ao falar de comércio, tem que pensar também na logística. Se as famílias não se organizam, vem o atravessador e acaba comprando. Esse debate passa pela discussão da organicidade, em torno do associativismo. Para uma família de camponeses, individual, é muito difícil o trabalho. O cara acorda às seis da manhã, tira o leite, cuida dos animais, faz café manda os filhos pra escola. É o tempo todo na lida, plantio, colheita. E ainda tem que se preocupar com o mercado? A partir do momento que se associa com alguém, vai profissionalizando determinadas tarefas.

Quem faz feira, geralmente não é uma família sozinha, eles se juntam em três ou quatro. Porque como vai organizar tudo para levar para a feira? Planta a semana toda, na sexta tem que colher, amarrar o maço da cenoura, da rúcula, botar nas caixas. Muitos funcionam assim, a família se vira. E muitos usam bicicleta, principalmente quem está perto, até cinco ou dez quilômetros é bicicleta! Nos assentamentos do Brasil inteiro. De 2004 até 2012, qualquer família assentada conseguia financiamento para comprar uma caminhonete. Isso facilitou, mas por que não investir em tecnologia, uma bicicleta cargueira, um esquema híbrido movida a sol e pedalada para evitar o fóssil. Não tem isso no Brasil.

E costuma ter para quem vender a produção?

De um modo geral, tem para quem vender. O problema é a superexploração, o atravessador paga um preço muito baixo e não agrega valor.

Esse atravessador é regra geral nos assentamentos que você conhece?

Olha, pelo menos a metade é. De nossa base, pelo menos 80% não é coletivada. No acampamento sim, mas no assentamento o cara acaba optando pelo [caminho] individual. Onde tem liderança, onde a formação é boa, funciona, mas de um modo geral, não. O [acampamento] Irmã Alberta é extraordinário desse ponto de vista, porque ainda é acampamento. Nossas cooperativas, de um modo geral, acabam apadrinhando muitas famílias também: aqui está a estrutura, então bora. No caso do arroz, mesmo o cara individual está tranquilo, porque a cooperativa compra todo o arroz dele e paga um preço justo, paga a mesma coisa que pagou para o associado da cooperativa. A gente elimina a desigualdade, tem muita força nesse sentido. Mas não é regra geral.

No caso do arroz orgânico tem a indústria. A cooperativa é dona da indústria. Mesmo o individual, ele é sócio. A indústria paga um valor mais alto que o mercado convencional. Na pandemia o mercado pagava 80 reais o saco para o produtor, a cooperativa sempre pagou 130.

E como funciona?

Tem aqui um assentamento, digamos o assentamento Capela. Numa parte dele é cem por cento cooperado, ninguém sabe onde está seu lote, é tudo posto de trabalho. Eu trabalho na fábrica de arroz, você trabalha no abatedouro, outro no administrativo, outro no refeitório. No final do mês se distribui a hora trabalhada. Nesse assentamento tem um grupo de cinco irmãos, eles se organizam para ter a máquina associada. Aí tem um grupo de três, outro de dois, e tem muitos que é só ele e a família.

Tem assentamentos em que é cem por cento individual, tem onde é cem por cento coletivo e tem misto. É o lance de você formar lideranças. Quando tem liderança forte, ela acaba conseguindo manter a organização. Quando não tem, é meio que cada um por si. Claro que tem também a organicidade do MST, essa organicidade mais da política, digamos. A cada dez famílias é um núcleo, tem um coordenador e uma coordenadora no assentamento todo. Aí o cara não representa só a cooperativa, representa o assentamento todo. Ao longo desses quase 40 anos a gente foi experimentando de tudo um pouco, mas o grande desafio é ir formando consciência nessa galera pra eles irem se associando.

Ademar Suptitz (Schusk), no Armazém do Campo da Barra Funda, em São Paulo. Foto: Dionizio Bueno.

Parece que o arroz, pela necessidade de equipamentos para colheita mecanizada, beneficiamento, etc., fomentou o surgimento da cooperativa, e isso resultou numa proteção contra o atravessador. Mas isso não aconteceu na produção de outros gêneros que são vendidos mais in natura como hortifruti, leite…

Aí cooperação é menor. Deveria ser ao contrário, né? Antes da produção agroecológica do arroz, o brejo era arrendado para o grande latifúndio do arroz, porque é difícil produzir o arroz. Está no meio da água, é só máquina bruta que faz esse trabalho. Mas aí os caras se organizaram, três famílias começaram a produzir orgânico num projeto do estado. Se formaram em cooperativa, foram vender ensacado.

Isso há quanto tempo?

Começou em 2002. O arroz tem contribuído para esse diálogo das outras cadeias. Agora o setor de produção tem feito um diálogo em torno de aptidões regionais. Tem que plantar arroz em outros lugares do Brasil, mas em alguns não tem aptidão. Por exemplo, o sul da Bahia tem aptidão pra plantar arroz, então vamos lá organizar.

Mas tudo depende do que a família consegue produzir. Geralmente tem uma ou duas linhas de produção que é para o mercado convencional, pro tal do atravessador. A gauchada, por exemplo, é soja transgênica. A produção já está vendida para uma cooperativa. Os agricultores já receberam faz dois anos, digamos, as safras até 2025. Tem isso também. Duzentos reais o saco de soja! O cara não vai plantar outra coisa. Vai vender a produção e vai ter uma máquina. Mas para produzir soja orgânica, aí é difícil. O problema da soja é que em qualquer lugar o cara te financia. Pega qualquer fazendeirinho lá, se ele tem um silo que guarda a soja, tem um capital de giro, eles financiam.

Então é mais fácil conseguir financiamento só pelo fato de ser soja?

Sim, e aí já está tudo lá: o trator, a plantadeira, já tem tudo. Se for criar uma cadeia nova, não tem nada. Não tem o agrônomo, não tem o pacote tecnológico, não tem o insumo, tem que fazer tudo, tem que começar do zero. Esse pessoal do agronegócio tem trezentos bilhões [em financiamentos], nós não temos nada!

E quanto às feiras de produtores, como tem sido essa articulação?

Isso depende da relação do assentamento com a prefeitura, com a Emater ou com a igreja, depende muito da articulação. Mas de um modo geral, no interior, tem muitos lugares em que não tem uma feira na cidade. Porque aquele carinha da soja, só porque vendeu a soja e está usando máquina, ele não quer saber de plantar alimentos. Ele acaba comprando até o alface dele no mercado. A gente sempre discute isso com as famílias. “Olha, você pode ter uma ou duas linhas de produção para o mercado, e é bom ter mais de uma, porque se uma oscilar você não vai se prejudicar totalmente, mas tenha um mínimo para subsistência, uma horta, um pomar.” Mas essa galera da soja, nem horta tem, só quer plantar soja.

Você já foi pro Sul né? Na beira do asfalto não tem mato, tem soja. Porque dá muito dinheiro. Imagina, 50 dólares o saco. Por isso é que a desregulação do mercado brasileiro é tão perversa. O cara que plantava tomate diz: “O que, eu?” Ter que pagar mão de obra, veneno. Imagine, uma latinha de 500 gramas de semente de tomate é cinco mil reais. Isso na época em que eu estava em Minas, agora deve ser dez mil. Aí qualquer chuva de pedra acaba com o tomate. E a soja não. Então o que manda é sempre o produto mais fácil de produzir, que é a soja, o milho.

Você deve ter visto aquele trabalho que saiu recentemente, Agroecologia nos Municípios, que fala das iniciativas municipais que de alguma forma fomentam a agroecologia e a produção familiar. O campeão de iniciativas está lá na região Sul. O que você acha que acontece lá que de alguma forma ajuda essas iniciativas a surgirem?

É possível que seja uma questão cultural do Brasil. Tem estudos sobre isso, mas não dá para ter certeza. Ali tem a imigração europeia, que pelas necessidades era mais associativista. No nordeste, o cara saiu da escravidão do sistema escravista e acabou caindo na escravidão do grande latifúndio. Aí o associativismo acabou ficando de lado. Apesar que as ligas camponesas tiveram um trabalho muito legal lá. E hoje nós temos muitas cooperativas no Nordeste, Centro-Oeste, Amazônia. A gente tem conseguido discutir um pouco. Ainda não o cooperativismo, a gente discutiu o associativismo. O cooperativismo já é um pouquinho mais complexo.

O associativismo pode ser ali um grupo de mulheres que resolveram fazer pão. Isso já é associativismo. Ou alguns agricultores que resolvem fazer um roçado pra festa de Natal. É associativismo. No final dos anos 1970, no Brasil, era muito espontâneo o associativismo. Tinha até clube de mães discutindo contra a ditadura militar. Não precisa voltar nesse passado, mas teria que pensar um pouco nisso. Então acho que o sul do Brasil, de um modo geral, tem um pouco disso. Pega ali a Serra Gaúcha. A Serra Gaúcha casou a pequena agricultura com a indústria. Caxias, por exemplo, é uma região super industrializada, mas ali ao redor é só pequena propriedade, não tem grande latifúndio.

Indústrias do setor de alimentos?

Indústria de um modo geral. Tem a Scania, a Marcopolo, a Tramontina. Porque o capital vai ali onde tem matéria prima para a indústria, mas tem também a mão de obra do camponês. A reforma agrária clássica nos países europeus foi nesse sentido. O Brasil nunca fez essa reforma agrária clássica.

Como seria isso?

É a distribuição da terra casada com desenvolvimento da indústria. A reforma agrária produz matéria prima para a indústria e também produz a mão de obra, que é o filho, que está ali perto. Pega ali Bagé, não tem indústria nenhuma, ali é o grande latifúndio ainda. Atrasado, retrógrado. Regiões de fronteira, de um modo geral. Mato grosso é um descampadão, não tem indústria. Aí pega o Espírito Santo, tem bastante indústria e bastante agricultura familiar. Santa Catarina é quase só agricultura familiar. E tem bastante indústria: Sadia, Aurora. Até mesmo o capitalismo deu sinais do que era melhor e do que não era.

E que formas você vê de semear isso mais para cá, de fomentar o associativismo?

Nós temos cooperativas e associações em todo lugar do Brasil, desde 30 anos atrás. Eu acho que é preciso ter lideranças. E acho que a igreja contribuiu um pouco também, com a Teologia da Libertação. O MST também vem disso. Eu lembro que os padres faziam assim: mostra um gravetinho, “Assim você quebra bem fácil”; se forem vários gravetos, “Aqui já é bem mais difícil”. Discutir o campesinato é discutir toda essa relação entre homem e natureza. Nós somos produtores da natureza.

Eu suspeito que teria que ir pelo caminho dessas experiências de trabalho de base que já existem: mapear, mapear, mapear possíveis lideranças. Nós, no Armazém do Campo, fazemos muito isso. Conseguimos abrir várias lojas. A gente mapeia lá no estado alguém quem tem potencial de reproduzir o conhecimento. O cara vem pra cá, a gente treina ele durante quinze dias, ele volta lá e assume.

Produtos orgânicos da reforma agrária, no Armazém do Campo da Barra Funda, em São Paulo. Foto: Dionizio Bueno.

Agora um pouco sobre o Armazém do Campo. Considerando apenas produtos in natura, esta loja compra de quantos produtores, atualmente?

Na segunda-feira vem de uma área nossa em Jarinu, tem grupo de sete ou oito pessoas lá, bem pouco. Na segunda nós também pegamos dos quilombolas do Vale do Ribeira, os bananeiros. Vem a banana, tem bastante cebola, tomate, palmito.

Na terça nós pegamos com o pessoal da Terra Viva, lá da região de Sorocaba. Eles pegam de vários pequenos agricultores e de uns assentamentos nossos que tem ali. Depende do período, mas tem período que eles têm tudo: banana, laranja, manga, cebola, batata, tomate, as hortaliças e tal. Na terça vem também [de assentamentos e acampamentos] da Grande São Paulo, aí é aquele esquema que vocês fizeram.

Aí na quarta é a Cooperapas, que é daqui da zona sul. São pequenos agricultores dali que organizaram essa cooperativa. Eles têm bastante horti-fruti, folhas, e muito bonitas. Toda quarta e todo sábado. Na quinta vem de novo da região de Sorocaba, dos nossos assentamentos ali. Para você ter uma ideia, eles têm a chave daqui, chega de madrugada.

Então aqui na quinta-feira tem produtos que acabaram de ser colhidos?

Sim, na terça e na quinta. Na verdade, todos os dias. Produtos colhidos praticamente na noite anterior. Aí na sexta repete o dos quilombolas e no sábado é a Cooperapas de novo, zona sul. O número exato de produtores eu não sei, mas acho que dá mais de cem. Porque em cada um desses esquemas, eles pegam de vários produtores diferentes.

Esse pessoal do Vale do Ribeira, eles são uma cooperativa?

Isso, a Coopafasb. São famílias quilombolas, ali ao redor do rio. O forte deles é banana, eles abastecem mais de cinco mil escolas aqui em São Paulo, São Bernardo, Santo André, São Caetano.

Por meio do PNAE?

Isso, do PNAE. Banana é com eles. É essa que você está vendo ali. Tem todo um processo, é climatizada, vem padronizadinha. A banana de amanhã e de sábado é mais barata que a do sacolão. No sacolão deve estar oito, a nossa tá seis e cinquenta. Eles têm folhas também, mas folha a gente não costuma pegar deles. Porque é bem mais de duzentos quilômetros. Quando os outros não têm, a gente acaba pegando. Mas normalmente, não. Pra que uma alface tem que viajar tudo isso, se tem por aqui? Então a gente evita.

Para finalizar, o Armazém do Campo tem quantas lojas atualmente?

Nós estamos com quinze lojas físicas abertas. Temos em Porto Alegre, Londrina, Cascavel, Ortigueira, Maringá, São Paulo, Guarulhos, Belo Horizonte, Almenara, Teófilo Otoni, Uberlândia, Montes Claros… E tem outras que estão para abrir. As lojas pertencem ou à direção estadual ou à regional. A única [vinculada à direção] nacional é esta aqui. Eu sou vinculado à secretaria nacional. As outras, são todas vinculadas às direções estaduais ou regionais. Essa é mais ou menos a nossa estrutura.

Nós, os coordenadores, não somos donos. A gente recebe uma ajuda de custo, como qualquer um dos outros meninos que estão em outras funções. A minha política de ajuda [de custo] também é igual à dos outros dirigentes que estão em outros setores, que são dirigentes que nem eu. E a nossa política é de um para quatro: o que ganha menos ganha um, o que ganha mais ganha quatro. A sociedade mais igualitária do mundo que já existiu foi a vietnamita, que era socialista. Atualmente é a cubana, que é um para dez.

No Vietnam era quanto?

Era um para sete. Foi a mais igualitária que teve.

Um para dez já é fantástico, né?

Em Brasília é um para cento e oitenta!

Isso declarado…

Isso declarado, óbvio que tem muito mais. Mas em Cuba, o faxineiro é um e o médico é dez no máximo. No MST é um para quatro. Nós somos mais socialistas que Cuba!

feiras de produtores

Feiras são encontros de pessoas para fazerem trocas. Existem desde a antiguidade e, na baixa Idade Média, marcaram a fase histórica de reabertura do comércio. Nelas, os produtores podem vender seus produtos diretamente às pessoas que vão consumi-los. Temos aí o menor circuito de distribuição possível, apenas produtor e consumidor.

Neste contato direto o produtor recebe o valor que considera justo por seus produtos enquanto o consumidor obtém, teoricamente, o melhor preço possível, já que não há intermediários. Porém os benefícios que esse encontro direto trazem ao sistema alimentar vão muito além do fator econômico.

O contato direto promove uma interlocução entre aqueles que produzem os alimentos e aqueles que se nutrem com eles. O produtor pode aprender a partir das informações de seus fregueses, obtém um retorno em relação aos hábitos alimentares, às variedades preferidas, às mudanças de qualidade conforme as técnicas de cultivo que vai experimentando. Os consumidores têm a oportunidade de um contato mais próximo com o fazer produtivo, as sazonalidades, as influências do clima e outros fatores naturais em sua alimentação. Nada pode ser mais humano que um sistema alimentar marcado pela compreensão mútua.

Sobretudo para os consumidores, existe nisso um grande aprendizado. Nossa sociedade busca nos acostumar com a ideia de que é possível ter tudo a qualquer momento. O supermercado se passa por um lugar encantado, sempre pronto a saciar qualquer desejo. Na sociedade de consumo, o alimento sai das fábricas, e o leite é um líquido que nasce dentro de caixinhas.

O contato mais próximo com a produção ajuda a tirar os alimentos desse lugar de meras mercadorias, sujeitas aos caprichos dos consumidores e às artimanhas dos mercadólogos. Nossos alimentos são criações da natureza.

Foto: Barbara Zem / MST

Para os produtores, a venda direta dá sentido e viabilidade às pequenas escalas de produção, liberando-os da ideia de que a única via de sobrevivência é aumentar a escala para ter acesso aos mercados por meio dos sistemas de distribuição. A produção pode se manter em escala compatível com a capacidade da unidade produtiva, qualquer que seja seu tamanho.

Ao viabilizarem as trocas, que podem ser monetárias ou não, as feiras tornam possível um certo grau de especialização da produção, sem entrar no regime industrial, no qual os produtores tendem a abandonar cultivos de subsistência. Alguns sítios concentram esforços em frutas, outros em ovos, outros produzem grãos, outros legumes, hortaliças. Em uma feira de produtores diversificada, aqueles que não produzem (os consumidores) podem ter tudo ou quase tudo que necessitam para a alimentação diária. Na pequena escala, os sítios suprem a demanda de suas regiões. Em cada região, um esquema semelhante, há demanda para todos. Assim, o sistema alimentar tende naturalmente à alimentação local. Tudo tão perto que pode ser transportado até de bicicleta!

Através da ideia de que só grandes escalas são economicamente viáveis, o sistema alimentar da sociedade de consumo cria a dependência dos grandes esquemas de transporte, necessariamente motorizados, abrindo espaço e gerando demanda para mais e mais elos na cadeia de distribuição. Os intermediários passam a ditar as condições e preços tanto na ponta do consumo como na da produção. O sistema cria as mazelas e ainda gera a ilusão de que nada fora dele é possível.

Ao mesmo tempo em que são uma prática muito antiga, as feiras de produtores são revolucionárias. Venda direta, proximidade e pequena escala desfazem os pressupostos desse sistema que aprisiona produtores e consumidores. Por meio do encontro direto entre os dois agentes mais importantes do sistema produtivo, as feiras criam uma insurreição. Seus efeitos são econômicos, relacionais e estruturais.

Feiras de produtores são uma ameaça ao sistema do capital. É preciso que resistam, que floresçam e se multipliquem.

reaprendizagem

A torneira está pingando. Chama o encanador e manda trocar por uma torneira nova? Acordou enjoado ou com dores abdominais. Vai até a farmácia e se enche de comprimidos? Pneu da bicicleta furou. Leva na bicicletaria e manda trocar a câmera? A calça está arrastando no chão. Precisa do serviço de costura do shopping center para ajustar uma barra?

Alguns conhecimentos que eram amplamente difundidos há apenas uma ou duas gerações, hoje são bem mais raros entre as pessoas. Consertar ou até produzir roupas, usar ferramentas manuais para fazer reparos na casa, produzir conservas, fazer pão, aliviar pequenos males com chás ou remédios caseiros, utilizar áreas verdes para produzir alimentos, estas e outras habilidades eram triviais na geração dos nossos pais (ou dos avós dos mais jovens).

Em apenas algumas décadas, a cultura do consumo conseguiu varrer esses conhecimentos de boa parte da população, ao nos acostumar com soluções pensadas para gerar faturamento para grandes empresas e produzir em nós a dependência dos produtos e serviços oferecidos pelo mercado. No caso dos bens de consumo, a mensagem é “vá até o mercado e compre pronto”. Quanto aos chamados bens duráveis, “jogue esse fora e compre um novo”.

Um projeto voltado para a autonomia precisa se contrapor a esse tipo de mensagem, valorizando as soluções que estão ao alcance das pessoas. Por que eu preciso de um novo se eu posso fazer um pequeno reparo ou trocar uma peça daquele que eu já tenho? Além disso, é preciso criar um processo de reaprendizagem, no qual podemos compartilhar e difundir habilidades que permitem resolver pequenos problemas, sem ter que recorrer a serviços profissionais ou à compra de um novo bem.

Dentro do conceito de Cidades em Transição, que propõe um conjunto de ações que cidades ou grupos menores podem adotar para criar um modelo de desenvolvimento mais razoável e autossuficiente, isso recebe o nome de reskilling. O conceito surge no contexto da adaptação às mudanças climáticas e à escassez das fontes energéticas usadas atualmente, sobretudo o petróleo.

De fato, o fim da energia abundante e barata obriga a sociedade a repensar muitos aspectos da vida e da economia, como por exemplo os sistemas de distribuição baseados em redes de transporte de longa distância. A agricultura local ocupa um lugar de destaque como alternativa a esse modelo sem sentido. Se a estupidez da ideia de comer alimentos produzidos a milhares de quilômetros quando é possível produzir bem mais perto não foi suficiente para nos fazer repensar esse arranjo econômico, a escassez de energia finalmente virá para convencer a sociedade a priorizar a produção regional ou local.

Mas não precisamos pensar na reaprendizagem como uma tarefa que precisaremos encarar em vista de um cenário ameaçador de mudança climática e crise energética. Reaprender é interessante simplesmente porque é bom saber as coisas! O conhecimento é libertador e traz autonomia. Além de útil e importante, recuperar habilidades que nos foram tiradas pela cultura de consumo tem um forte sentido político.

O processo de reaprendizagem é uma oportunidade para que possamos compartilhar nossas habilidades, valorizando saberes e criando vínculos fortes e saudáveis entre as pessoas. É possível pensar, por exemplo, em pequenos encontros ou oficinas onde as pessoas troquem esses conhecimentos que permitem resolver pequenos problemas do dia a dia: técnicas de cultivo, costura, marcenaria, mecânica básica, uso de ervas medicinais, técnicas corporais voltadas para a saúde, tarefas simples domésticas como trocar um courinho de torneira ou um interruptor elétrico. Se isso puder acontecer de maneira comunitária, sem monetização dos saberes, será ainda mais incrível.

Essas oficinas têm ainda o efeito de valorizar o conhecimento dos mais velhos, neste mundo que, a bem do consumo, fica nos dizendo que tudo que é velho tem que ser jogado fora e substituído. A reaprendizagem deixa nas pessoas o sentimento de “eu consigo resolver, não dependo dos outros”. A construção da autonomia, inclusive nas pequenas tarefas da vida, é um prazer em si mesma, e fortalece pessoas e comunidades.

confiança à venda

“Estive hoje cedo na horta urbana aqui perto de casa para comprar verduras, temperos e algumas frutas. Trouxe também uma dúzia de ovos das galinhas que vivem ali. Cada ovo de uma cor diferente, coisa linda. Aproveitei para tomar um café com o pessoal lá da horta. Tenho ido lá quase toda semana, é natural que a gente vá fazendo amizade. Gosto muito dos produtos orgânicos que encontro lá. Eles não têm certificado, mas por que eu precisaria disso para confiar neles?”

“Uma amiga, que mora aqui na rua de casa, tem parentes em Minas e viaja sempre. Ela traz um queijo incrível de lá. A família conhece o produtor, que tem um sítio pertinho da cidade, ele cria as próprias vacas. Tenho sempre encomendado duas ou três peças de queijo cada vez que ela vai para lá. Eu e essa amiga temos opiniões parecidas sobre boa alimentação, procuramos sempre que possível evitar comida envenenada, cheia de hormônios e conservantes. Eu nunca estive no sítio desse produtor lá em Minas, mesmo assim tenho sempre um queijo incrível em casa e sei de onde ele vem. Por que eu precisaria que ele fosse certificado?”

“Tenho feito as compras em uma cooperativa de produtores e produtoras. Quem me apresentou esse lugar foi um amigo meu, que é um desses produtores. De tanto encontrar os outros clientes ali, vamos fazendo novas amizades. A maioria ali conhece pelo menos algum desses produtores cooperados, eventualmente já esteve no sítio de onde vêm os produtos. Vamos formando uma rede de confiança e seguimos em diálogo permanente para fortalecer essa rede. Para que precisaríamos de alguém de fora que venha aqui para nos certificar sobre as práticas desses produtores e produtoras?”

Foto: Mael Balland / Pexels

Monoculturas, produção em larga escala, transporte de longa distância, crescimento das cadeias de comercialização, dependência de grandes empresas de distribuição. Essas mudanças surgem na passagem do sistema de produção de alimentos para uma escala industrial, no qual o esquema produtivo vai sendo moldado conforme as preferências do grande capital. Isso afastou a produção do consumo, tornando totalmente inviável que as pessoas conheçam as condições em que os alimentos são produzidos e tudo que acontece com eles até chegarem à mesa. Nesse sistema, para quem busca alimentos saudáveis e livres de veneno e hormônios, a única forma de ter alguma garantia de qualidade é a certificação.

Um certificado nada mais é do que uma narrativa. “Eu, agente certificador com boa reputação perante a sociedade, declaro que este alimento é produzido em condições de acordo com aquilo que você, consumidor consciente, busca ou deveria buscar em um produto como este.” Na outra ponta está o consumidor, destinatário da mensagem. “Eu, consumidor consciente, ao ver nesta embalagem a expressão ‘produto certificado’, dou meu voto de confiança a este produto e, portanto, estou disposto a adquiri-lo, pagando por ele um valor mais elevado que por outro produto equivalente sem certificação.”

O selo de certificação substitui a relação de confiança que deixou de existir no momento em que produtor e consumidor perderam o contato. A confiança, que antes era construída dentro de uma relação humana, pode agora ser adquirida em uma transação econômica.

Há algo de muito interessante na forma que o capital tem de atuar. Primeiro ele molda os sistemas segundo seus interesses, sem qualquer consideração com as necessidades humanas. Isso naturalmente gera problemas. Então o mesmo capital passa a oferecer as soluções para esses problemas, criando novos mercados e beneficiando a si mesmo. Enquanto a sociedade aceitar viver sob a lógica do capital, ele sempre tenderá a se fortalecer.

Para que possam vender confiança junto com seus produtos, os produtores precisam adquiri-la dos fornecedores de confiança, os certificadores. Essa confiança monetizada entra na lista de custos do produto, junto das despesas com insumos, embalagens, salários, impostos. Naturalmente o preço final do produto vai aumentar.

Talvez um fenômeno mais danoso que o aumento do custo seja o fato de a cultura da certificação tornar obsoletas as relações interpessoais de confiança. Muitos leitores provavelmente sorriem diante da ideia de recolocar as relações humanas dentro do sistema produtivo, considerando que isso é coisa de um tempo passado, de relações econômicas primitivas, e que o mundo contemporâneo globalizado não pode mais depender desse tipo de coisa.

Estamos aqui propondo reflexões sobre nosso sistema alimentar e os valores de nossa sociedade que tornam esse sistema possível. Nas situações em que jamais poderia haver possibilidade de contato direto com a produção, como no caso de produtos de biomas distantes, uma narrativa de certificação é de fato melhor que nada para orientar a decisão do consumidor. Não se trata de desvalorizar as certificadoras ou os produtos certificados. Trata-se apenas de ter sempre em mente que, no cenário que sonhamos em ver, e pelo qual lutamos nos campos teórico e prático para construir, restaurando a proximidade e os vínculos entre produtor e consumidor, a certificação é simplesmente desnecessária.

transição para o sonho

A transição de um sistema produtivo dependente do transporte motorizado para um mundo dos sonhos, em que bicicletas transportem alimentos para todos, só pode ser feita de maneira gradativa. Conforme os vários elos dessa rede são substituídos, a rede inteira vai sendo repensada para se compor de distâncias pedaláveis. Em algum momento, passa a ser possível transportar a maioria dos alimentos desde o produtor até o consumidor final sem usar combustíveis fósseis.

Uma mudança como essa vem acontecendo por meio da parceria entre o Bicicarreto e a Ecoz. Parte de sua rede local de produtores na cidade de Osasco é formada pelos Quintais Solidários: amigos e parceiros que têm algum alimento crescendo de sobra em seus quintais e doam à Ecoz para que sejam oferecidos de presente nas cestas.

Maços de ora pro nobis ou ramos de louro, mesmo em quantidade suficiente para mais de sessenta cestas, podem ser transportados em apenas uma viagem, feita por uma única bicicleta.

Mais de sessenta famílias receberam maços de louro daquele pé. Foto: Zeck

A ideia do Quintal Solidário é tão inspiradora que faz até pensar numa rede de vizinhos em que cada um tenha uma fruta ou verdura crescendo em abundância no quintal e, por meio de trocas não monetizadas, distribuam esses produtos entre si, ou seja, todos tenham de tudo! Tão pertinho que talvez nem precise de bicicletas.

A cultura da sociedade de consumo, com toda sua pressa, distâncias desnecessárias e narrativas para produzir desconfiança entre as pessoas, insiste em nos fazer acreditar que isso é apenas sonho.

Sim, é esse o nosso sonho, e sem o apenas. Criando conexões pedaláveis e implementando aos poucos o conceito de Bicicarreto seguimos, em pequenos passos, na direção dessa utopia.

agricultura urbana em Osasco

Há alimentos crescendo até nos menores cantinhos de terra, em quintais e terrenos da cidade. Há pessoas precisando comer, algumas vivendo precariamente. Falta alguém para unir as duas pontas. Em Osasco, faltava.

Um grupo de moradoras está ali montando cestas com alimentos produzidos sem veneno nas hortas urbanas da cidade. Uma parte delas é vendida, e isso viabiliza a doação da outra parte das cestas para mães solo em situação de vulnerabilidade.

Foto: Beatriz Ataidio

Foi com essa ideia simples e genial que a Ecoz começou a atuar em maio de 2020, ainda nos primeiros meses da pandemia. O esquema funciona em semanas alternadas: numa semana ocorre a venda das cestas; na semana seguinte, é a vez das doações, que atualmente beneficiam 40 famílias.

A Ecoz trabalha com o princípio da alimentação local, mantendo uma rede de produtores e consumidores que estão distribuídos em uma área geográfica restrita. Fora algumas poucas exceções, as hortas fornecedoras estão localizadas no próprio município de Osasco, a distâncias que podem ser facilmente cobertas por bicicletas!

Imagem: Google Maps

A maioria das hortas fazem parte do programa de Economia Solidária da Secretaria de Emprego, Trabalho e Renda, da Prefeitura de Osasco. É uma política pública de incentivo às hortas urbanas, que transforma terrenos vazios e áreas de passagem da rede elétrica em espaços para a produção de alimentos.

Para a parte logística, a Ecoz conta atualmente com o quintal de uma casa parceira, localizada em um bairro com nome bastante sugestivo e inspirador: Vila Campesina. Todos os produtores entregam ali os alimentos. Aos sábados, um grupo de voluntários se reúne para fazer a montagem das cestas. E dali elas partem, conforme a semana, para as casas dos clientes ou das famílias que recebem as doações.

Foto: Dionizio Bueno

Através de sua rede de parceiros e clientes, a Ecoz vem também incentivando as pessoas a plantarem alimentos em qualquer pequeno espaço de terra que tenham em suas casas ou apartamentos. E sabemos quanta coisa é possível produzir até mesmo em vasos.

Alimentos saudáveis e sem veneno, cultivados logo ali, colhidos há poucos dias e que viajaram menos de 20km da horta até a mesa. A agricultura urbana torna isso possível e pode nos levar a refletir sobre os usos e as funções da terra, mesmo dentro de uma metrópole enorme como esta.

hipermobilidade e dependência

A rapidez com que o vírus se espalhou pelo mundo, gerando uma pandemia, só é possível graças à mobilidade dos humanos, que atuaram como vetores da doença. Mobilidade é definida como um atributo do indivíduo que expressa sua capacidade de se deslocar pelo território. Essa capacidade naturalmente varia em função de sua condição social, já que todo meio de transporte tem um custo proporcional a seu alcance e sua velocidade. Dá até para pensar numa hipermobilidade, como a condição que alguns têm de se locomover praticamente sem limites entre localidades de todo o planeta. No Brasil, e provavelmente em outros países, o vírus penetrou e se difundiu a partir de meios sociais abastados, justamente onde existe hipermobilidade.

Graças ao desenvolvimento dos sistemas de transportes, é possível conceber arranjos produtivos distribuídos por localidades muito distantes umas das outras. Isso se dá em escala global, com componentes e produtos acabados cruzando o mundo em busca de seus mercados, e também em escala nacional, com mercadorias viajando mais de mil quilômetros entre o local de produção e a residência em que serão utilizadas ou consumidas.

A razão que leva a esses arranjos produtivos é, como quase sempre, econômica. Na escala global, uma mercadoria produzida em um país distante pode ser mais barata que outra produzida localmente graças à grande escala de produção e transporte, muitas vezes aliada a altos níveis de precarização do trabalho, que reduz muito o valor da mão de obra. Com os empresários sempre passando por cima de tudo em busca do maior lucro possível, e os consumidores geralmente escolhendo o menor preço que encontram, tais arranjos produtivos acabam se estabelecendo e eliminando as alternativas.

Dentro do país, especialmente quando se trata de um território imenso como o brasileiro, consumimos uma fruta ou legume que viajou dias de caminhão quando poderíamos ter na mesa a mesma fruta ou legume produzido dentro de um raio de cem quilômetros em torno da localidade onde estamos. As grandes redes de distribuição e comercialização de alimentos têm um papel determinante nisso quando optam por oferecer apenas produtos que vêm de longe, que elas compram a um custo muito baixo. São produzidos por meio de agricultura intensiva, altamente mecanizada e com grande uso de produtos químicos, e chegam até nós por meio de sistemas de distribuição bastante poluentes.

A disponibilidade do transporte é de fato uma condição para que tudo isso seja possível. Mas existe uma série de escolhas que resultam nesses esquemas. Uma vez que eles são implementados, nos tornamos dependentes deles. Uma sociedade que avalia tudo pelo critério econômico não é capaz de enxergar o quanto de absurdo há nisso. Nesse sistema de valores, tudo bem fechar uma fábrica em nosso país só porque alguém produz a mesma coisa do outro lado do mundo e entrega aqui pela metade do preço; tudo bem comer uma fruta que passou dias chacoalhando dentro de um caminhão sendo que tem gente produzindo a mesma fruta a uma distância que pode ser coberta de bicicleta.

Eis que um vírus, com sua altíssima capacidade de deslocar-se pelo espaço graças à hipermobilidade disponível para alguns, provoca uma situação de emergência mundial, tornando necessário restringir a mobilidade dos humanos, enclausurando-os em suas casas.

Nesse prolongado período de prisão domiciliar, neste momento ainda sem previsão de término, talvez as pessoas tenham tempo para pensar no quanto se encontram dependentes de sistemas econômicos absurdos, e percebam que existe terra fértil e produção exuberante bem mais perto do que imaginam.

circuitos curtos

Quando um produtor vende seus produtos diretamente a quem vai fazer uso deles, temos um caso de venda direta ao consumidor. Essa é a menor cadeia de distribuição possível, com apenas dois agentes: o produtor e o consumidor. Em algumas situações, existe um terceiro agente, como por exemplo um comerciante que compra diretamente do produtor e revende para os consumidores.

Nesses dois esquemas, temos aquilo que se denomina circuito curto. Nesse termo da economia, a palavra ‘curto’ diz respeito à quantidade de agentes econômicos. Assim, o circuito curto é definido como um circuito de distribuição no qual existe, no máximo, um intermediário entre produtor e consumidor.

Um conceito relacionado, porém claramente distinto, é o de alimentação local, que faz referência às curtas distâncias percorridas por um produto desde sua origem até o consumidor. Nos circuitos curtos, os produtos tendem a percorrer distâncias menores, mas não é isso que os define.

O circuito curto é a forma mais básica e tradicional de escoamento da produção. Feiras existem desde a antiguidade, e eram eventos na vida comunitária, podendo estar associadas a festividades religiosas. As feiras medievais são consideradas um marco do ressurgimento do comércio na Europa, após o isolamento que marcou o período do feudalismo. Nas feiras, mercadores ou os próprios produtores compareciam com produtos que poderiam vir de longe. Os consumidores, por sua vez, se organizavam para ir até esses eventos, que representavam a possibilidade de adquirir produtos que só poderiam ser encontrados ali. A ida de alguém a uma feira distante é um acontecimento, o qual é retratado nos versos destas músicas, duas brasileiras e uma inglesa: Feira de Santana (Tom Zé), O Pedido (Elomar) e Scarborough Fair (Simon & Garfunkel).

No que se refere à produção de alimentos, há várias possibilidades de circuitos curtos. Entre os casos de venda direta, podemos mencionar: sítios de portas abertas, que vendem sua produção no próprio local a quem quiser comprar; produtores que organizam e entregam (eles mesmos) suas cestas de produtos, seja sob demanda, seja com regularidade pré-estabelecida; feiras de produtores, nas quais os próprios agricultores comparecem com sua produção para vendê-la aos consumidores.

Foto: Zen Chung / Pexels

E há os esquemas com um único intermediário entre produtores e consumidores: um comerciante que compra de diversos produtores e vende esses alimentos em sua loja; um restaurante que adquire produtos in natura diretamente dos sítios e os serve preparados a seus clientes; um serviço de entrega que leva os alimentos do local de produção até os consumidores.

Um esquema convencional de distribuição pode ter muito mais agentes: um transportador de longa distância e cargas grandes, um distribuidor ou atacadista, um segundo transportador que leva os produtos até os pontos comerciais na cidade, o comércio varejista, um serviço de entregas domiciliares. No caso de comércio exterior, existe ainda o importador, que eventualmente desempenha a função de distribuidor, e também o transportador internacional.

O aumento do número de intermediários, sobretudo no século XX, se deve a diversos fatores. As cidades cresceram e os produtores foram se afastando dos centros consumidores. Ao mesmo tempo, o agronegócio produz em escala cada vez maior, em fazendas distantes das grandes áreas urbanas. O transporte em grandes quantidades passa a ser uma forma de diluir o custo decorrente das grandes distâncias, além de existir o interesse dos produtores intensivos em venderem em lotes cada vez maiores. Torna-se necessário um agente bastante capitalizado para receber essas cargas imensas e retalhá-las em quantidades menores, que estejam dentro da capacidade do pequeno e médio comércio varejista. Há também o surgimento das grandes corporações de varejo, que compram em grandes quantidades para abastecer suas redes de lojas padronizadas, espalhadas em muitas cidades. As feiras livres de hoje infelizmente não são exemplos de circuitos curtos, pois os feirantes geralmente se abastecem, com produtos que vêm de longe, nos enormes entrepostos de produtos agrícolas existentes em algumas cidades.

Se, por um lado, produção e transporte em larga escala contribuem para diminuir custos (lembrando que o capitalista pode simplesmente se apropriar dessa diminuição de custos, sem repassá-la ao consumidor), por outro, o aumento do número de intermediários eleva o preço final dos produtos. Além disso, esquemas convencionais de distribuição geram dependência e têm efeitos econômica e socialmente nocivos.

Em um sistema que funciona em larga escala, torna-se inviável a um pequeno comerciante comprar em quantidades menores, seja pelo custo do frete, seja porque grandes produtores simplesmente não vendem em pequenas quantidades. O comércio se torna dependente da intermediação de distribuidores e atacadistas, bem como das transportadoras que operam com cargas enormes. A proliferação das grandes redes varejistas acaba provocando o fechamento de estabelecimentos menores e locais. Esses pequenos comércios têm muitas vezes também um papel comunitário, para além de sua função econômica. São lugares em que as pessoas se conhecem, chegam a pé e podem conversar sobre assuntos do bairro e também sobre os produtos que estão comprando. O que fica no lugar são estabelecimentos enormes e impessoais, onde os clientes chegam de longe e de carro, entram e saem sem reconhecer ninguém.

Os circuitos curtos representam um resgate de arranjos mais simples e tradicionais, trazendo diversas vantagens para produtor e consumidor, os dois agentes essenciais de um sistema produtivo. Tendo no máximo um intermediário, os circuitos curtos tornam possível que os produtos cheguem aos consumidores a preços mais acessíveis, ao mesmo tempo em que os produtores podem receber um valor melhor por aquilo que produzem e em pagamentos imediatos, evitando a cadeia de faturas e prazos existente nos esquemas econômicos convencionais.

E as vantagens vão muito além da redução de custos. Possibilitando uma relação mais próxima entre produtor e consumidor, os circuitos curtos contribuem para formar e fortalecer vínculos sociais entre aqueles que cultivam os alimentos e aqueles que se nutrem com eles. Alimentação é um componente essencial da vida, é importante que a aquisição dos alimentos possa ser pautada por relações de confiança. Ainda que exista um intermediário, o circuito curto permite maior transparência quanto à procedência do alimento, tornando dispensável o uso de certificações e de embalagens bonitinhas feitas por designers profissionais para conquistar a confiança do consumidor.

Vínculos significativos também representam um aumento da segurança para os produtores. Estando mais próximos de seus clientes finais, produtores ficam mais resguardados contra flutuações inesperadas de demanda, muitas vezes causadas por decisões comerciais dos intermediários, resultantes de fatores macroeconômicos. Pessoas físicas sempre precisarão comer.

Esquemas convencionais de distribuição necessitam de mais embalagens, tanto para a proteção dos produtos no transporte e manuseio por diversos intermediários quanto para a criação de identidade mercadológica. Sendo assim, os circuitos curtos também representam menor produção de resíduos sólidos e menos agressão ao meio ambiente.

A organização da produção e distribuição de alimentos em circuitos curtos, tendo em conta também os princípios da alimentação local na escolha das distâncias percorridas poderia, por exemplo, levar à criação de conexões diretas entre os sítios produtivos das áreas periurbanas e os consumidores das regiões periféricas das aglomerações urbanas. Infelizmente, apesar de haver tanta demanda por alimentos saudáveis em áreas tão próximas à produção, os produtos orgânicos hoje acabam sendo direcionados a áreas mais abastadas da cidade, onde podem ser vendidos como produtos diferenciados a um valor de troca mais alto.

Sistemas produtivos convencionais são pensados visando apenas benefícios econômicos. Quando se trata de nutrição das pessoas e reprodução da vida, é importante lembrar que um sistema produtivo pode também ser estruturado para criar relações e vínculos significativos. Muito mais do que um princípio dogmático de organização, a proximidade física e social é um fator de fortalecimento comunitário, e cada vez mais precisamos disso.

Bicicarreto #03

Domingo de sol e céu azul, perfeito para dar um pulinho na roça, sentir cheiro de terra e abastecer a casa. Caixas agrícolas montadas no bagageiro das bicicletas, fomos para a estrada, rumo à Comuna da Terra Irmã Alberta.

Aqui passa o trópico e passam também bicicletas que transportam alimentos. Foto: Dionizio Bueno.

Comuna cheia de visitantes, diversas atividades, cursos e ações acontecendo ao mesmo tempo por lá. Entre elas, uma vivência em que os participantes aplicam a agroecologia conforme é praticada nos assentamentos do MST.

Na casa da Nice, um cafezinho acompanhou uma rica conversa. Foto: Dionizio Bueno.

Desta vez, nossa ideia era passar o dia na Comuna, sem teto de horário para estar de volta e entregar a encomenda. Logo que chegamos, fomos conhecer o jardim e a horta da Jô, que planta de tudo. Ouvimos suas histórias passeando entre aqueles canteiros cheios de verduras.

A disposição dos canteiros evita encharcamento e perdas na época das chuvas. Foto: Dionizio Bueno.

Quantos tons de verde! Tanta saúde naquelas verduras, totalmente livres de pesticidas, herbicidas ou fertilizantes químicos.

As folhas do repolho também são comestíveis. Como desprezar tamanha abundância? Foto: Adriana Marmo.

Depois do almoço e de muita prosa, organizamos nossa lista de produtos, que até aquele momento ainda estavam na terra. Com exceção da mandioca, tudo que trouxemos foi colhido ali na hora: abacate, rúcula, agrião, alface, mostarda, espinafre, couve.

Um rápido banho nas raízes para tirar o excesso de terra. Foto: Dionizio Bueno.

Da horta diretamente para as bicicletas. Desta vez a viagem de volta foi à noite, com a temperatura bem agradável. Mesmo assim, é bom borrifar as verduras de vez em quando para que continuem viçosas.

Tudo pronto para pegar a estrada. Foto: Dionizio Bueno.

A cultura do consumo transforma alimentos em mercadorias. Nos assentamentos e nas pequenas propriedades, a agricultura familiar trabalha diariamente na resistência, garantindo a disponibilidade de alimentos saudáveis para quem quiser. Transportando um pouco por vez, seguimos na estrada mostrando que tudo isso está ao nosso alcance, sem depender de combustível e veículos caros e altamente poluidores.