Um comerciante seleciona e reúne uma linha de produtos em sua loja, fazendo com que estejam disponíveis em um lugar conveniente para o consumidor. É essa a natureza do trabalho do comerciante, e é por isso que ele é remunerado. Ele oferece ao consumidor a facilidade de não ter que ir até cada produtor para fazer suas compras. A infraestrutura da loja tem um custo, que inclui o trabalho do próprio comerciante. Isso tudo naturalmente é repassado no preço do produto. Quando o preço final em determinado comércio é justo, vale a pena comprar nesse local.
Alimentos orgânicos podem ter um custo de produção maior que aqueles produzidos em larga escala, com uso de máquinas e aditivos químicos que aumentam a produtividade. Mesmo que a qualidade (produtos sem veneno, mais frescos e saudáveis) justifique o preço mais elevado, a comparação com os preços de equivalentes não orgânicos pode gerar resistência no consumidor. Sabendo disso, produtores e comerciantes buscam formas de tornar essa diferença de preços menos evidente, de forma a vencer essa resistência. Bom exemplo disso é a estratégia de usar embalagens com quantidade menor, para que possam ser expostas na gôndola com preços mais próximos de seus equivalentes não orgânicos.
A busca de estratégias para exibir preços mais baixos acaba gerando soluções inovadoras e, às vezes, um tanto polêmicas. Uma prática que tem sido adotada em alguns mercados de orgânicos é exibir preços incompletos dos produtos. Conforme informado em cartazes nesses locais, os valores exibidos nas gôndolas são os preços pagos aos produtores. A margem referente às despesas do ponto comercial é adicionada somente depois, sobre o total da compra.
Matematicamente, você deve saber, tanto faz se uma determinada porcentagem é incorporada ao preço individual de cada produto ou é acrescentada somente ao passar no caixa, sobre a soma total. O resultado é exatamente o mesmo. Porém, a estratégia de exibir valores incompletos permite que os produtos apareçam para o consumidor com preços mais baixos do que eles de fato custarão.
É realmente prazeroso estar nesses mercados. Você se vê cercado de alimentos frescos e exuberantes, a preços que parecem baratos, ainda mais sabendo que tudo ali é orgânico. É fácil se deixar levar pelas aparências. É preciso, porém, fazer um esforço constante para se lembrar que aqueles preços estão incompletos e vão aumentar bem na hora de passar pelo caixa.
Esses estabelecimentos alegam que essa seria uma política de transparência, ao exibir para o consumidor final o valor que os produtores, em sua maioria pequenas propriedades de agricultura familiar, receberam por aqueles produtos. Eles então “convidam” o consumidor a acrescentar uma “contribuição” para ajudar a pagar a infraestrutura do local, sugerindo que essa “contribuição” seja igual a 35% do valor total da compra.
Do ponto de vista econômico, a margem de 35% para um comércio desse tipo é bastante razoável. Um ponto de venda gera despesas como aluguel do espaço, pagamento de funcionários, água, energia e impostos. Esse percentual sobre o preço de custo dos produtos é realista e justificável. O intrigante nessa história é: se essa margem é justa e necessária para o funcionamento do ponto comercial, por que exibir os preços sem ela?
Pode ser interessante para o consumidor saber quanto o produtor recebeu por aquele alimento, mas por que não exibir também o preço final a ser pago pelo consumidor, para que ele possa tomar conscientemente sua decisão de compra? Ao insistirem em omitir o preço completo de cada produto, fica parecendo ser mais uma estratégia para exibir valores menores, de forma que uma comparação pareça vantajosa, seja em relação aos produtos convencionais, seja em relação a produtos também orgânicos em outros estabelecimentos.
E tudo indica que funciona. Já ouvi pessoas dizendo que compram orgânicos nesses mercados porque têm preços iguais ou mesmo menores que produtos não orgânicos. Certa vez perguntei se a pessoa estava levando em conta nessa comparação o adicional de 35%, e ela respondeu: “É verdade, teria que considerar isso também, mas mesmo assim não é tão caro”. Ou seja, o valor que fica é o que está lá escrito, por mais que a pessoa saiba que está incompleto. A menos que você fique o tempo todo com uma calculadora na mão, multiplicando tudo por 1,35 conforme circula na loja, estará usando informações distorcidas ao avaliar os preços.

Se a “contribuição” é necessária, por que não incluir essa margem nos preços exibidos? Foto: Dionizio Bueno
Infelizmente, muitos produtos são vendidos nesses lugares a preços ainda mais altos do que naquelas conhecidas redes de supermercados e empórios voltados para público de alto poder aquisitivo. É inevitável que acabem se tornando boutiques de alimentos, reforçando sentidos sociais segundo os quais comprar orgânicos é um estilo de vida, de forma perfeitamente integrada à cultura do consumo. Essa proposta é bastante distante da reflexão política, proposta neste blogue e em vários outros ambientes, sobre a maneira como os alimentos são produzidos, distribuídos e escolhidos.
Um desses estabelecimentos chega a afirmar em sua comunicação que, caso optasse por exibir preços já com a margem, estaria praticando “especulação”. Além do erro conceitual no uso desse termo da economia, a afirmação acaba sendo uma ofensa a qualquer comerciante, honesto ou não. Será que, no entender dos gestores do estabelecimento que afirma isso, todos os comerciantes que exibem nas gôndolas o preço de venda completo, com margem, são especuladores?
O que indica se o comércio é justo ou injusto não o fato de exibir na gôndola o preço de custo ou o preço de venda, mas a margem praticada pelo estabelecimento. Se a margem de 35% adotada nesses mercados é mesmo justa, não há motivo para escondê-la. Na prática, esses estabelecimentos não abrem mão de sua margem, apenas contam uma história diferente sobre ela. O que eles fazem é retirar artificialmente dos preços um de seus componentes, fingindo estarem fora da cadeia produtiva, e reaparecem magicamente na hora de fechar a conta.
Eles costumam alegar que os 35% são apenas uma “sugestão”, e que com esse sistema o consumidor pode pagar um percentual abaixo disso, se quiser. Há, porém, diversos relatos de pessoas que escolheram pagar um percentual menor e receberam em troca uma cara bem feia, ou mesmo um pequeno sermão dirigido à sua consciência, questionando sua ética. É possível oferecer flexibilidade de preços, tornando os produtos mais acessíveis, sem distorcer as informações.
Alimentos orgânicos são mais saudáveis do que aqueles produzidos com fertilizantes químicos e venenos contra pragas, e isso pode afetar seus preços. Alimentos produzidos em sítios próximos chegam à mesa mais frescos do que aqueles produzidos em latifúndios a centenas de quilômetros e que, por serem cultivados em larga escala, com agricultura intensiva, podem até ser mais baratos. Trata-se de sistemas produtivos diferentes, cada um com profundas implicações políticas, econômicas e sociais. É importante que as pessoas reflitam sobre o valor dos alimentos e façam suas escolhas conscientemente, conhecendo o preço real dos produtos. Ressignificar o trabalho do comerciante de forma a mascarar os preços dos alimentos acaba parecendo apenas mais uma estratégia de varejo.