sociobiodiversidade

O termo biodiversidade se refere à diversidade das formas de vida. Diz respeito à diversidade de espécies na natureza e também à variabilidade genética que existe entre os indivíduos de uma mesma espécie. Graças a esta diversidade genética dentro da espécie, por exemplo, alguns indivíduos de uma espécie de planta podem ser resistentes a uma determinada praga que a ataca, e assim acabam evitando a extinção da espécie inteira. Essa situação ilustra a enorme importância que a diversidade tem para a natureza e para a vida.

A padronização de sementes promovida pela associação entre indústria química e agronegócio é uma força de destruição de biodiversidade, colocando produtores de alimentos em condição de dependência dos insumos fornecidos por grandes corporações e comprometendo a soberania alimentar.

A diversidade também existe na cultura. A profusão de diferentes modos de viver observados em todo o mundo é manifestação daquilo que chamamos de diversidade cultural. Há pessoas que gostam de viver em cidades, cercados de máquinas, informação e tecnologia, realizando uma infinidade de atividades em um único dia. Há pessoas que preferem viver em retiro, dedicando-se a estudos, a práticas corporais e espirituais, ao serviço comunitário. Há aqueles que vivem em sítios rurais, cuidando da terra e produzindo alimentos.

Certos povos vivem em regiões muito frias, encontram seu alimento em rios e mares que têm a superfície congelada e são capazes, pela observação dos diferentes tons de banco, de obter indícios sobre o clima, de encontrar locais favoráveis para a pesca, de reconhecer lugares onde é perigoso pisar. Outros povos vivem em florestas onde raramente faz frio, chove bastante e é possível caçar, pescar, cultivar a terra ou simplesmente coletar o alimento na mata.

Além de reconhecer a importância da multiplicidade das culturas, a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural estabelece um interessante paralelo entre essas duas formas de diversidade. Logo em seu primeiro artigo, afirma que “A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em beneficio das gerações presentes e futuras.” (UNESCO 2001, grifo nosso).

Existe também uma interessante conexão objetiva entre essas duas formas de diversidade. Devido às características de seus modos de vida, algumas comunidades de agricultores familiares, pescadores, povos indígenas e outros grupos tradicionais cultivam, de forma cooperativa com o ambiente, espécies que representam a biodiversidade regional.

Surge então o conceito de sociobiodiversidade. A forma de viver de certos grupos humanos contribui para fortalecer as espécies de seu meio, atuando como força de conservação da biodiversidade. Seu modo de vida beneficia não apenas o próprio grupo, mas a sociedade como um todo.

Foto: Sérgio Vale / Secom Acre

Há hoje políticas públicas que reconhecem o serviço de conservação da biodiversidade prestado por esses grupos, e assim fomentam tais cadeias produtivas. Como exemplo disso, dentro do Plano Safra deste ano há uma linha de crédito a juros baixos para o custeio da produção espécies da sociobiodiversidade.

A lista dos produtos incluídos nessa política forma um belo repertório de nomes. Alguns exemplos: abiu, araticum, araçá, aroeira-pimenteira, ariá, arumbeva, bacupari, bacuri, baru, biribá, buriti, butiá, cagaita, cajá, carnaúba, castanha-do-brasil, castanha-de-cutia, chichá, chicória-de-caboclo, copaíba, croá, cubiu, cupuaçu, fisalis, goiaba-serrana, jaborandi, jaracatiá, licuri, macaúba, mapati, murici, patauá, pajurá, peperômia, pitanga, pupunha, puxuri, sapota, sete-capotes, taperebá, tucumã, umari, uvaia, uxi.

Enquanto nos grandes centros urbanos, especialmente sudestinos, esses nomes soam apenas como uma forma de poesia, em algumas regiões do país eles são parte da vida. As crianças dali cresceram comendo essas frutas no pé, as geleias e refeições com essas espécies sempre estiveram no cotidiano dessas famílias. Elas são as guardiãs naturais e honorárias dessas plantas.

Ainda que a produção tenha como finalidade a geração de renda, e não apenas a subsistência, é possível fazer uso da natureza de maneira adequada. Isso obviamente só acontece se esses arranjos puderem garantir o respeito aos saberes tradicionais, a certos princípios e a limites na escala produtiva.

É estranho pensar que esse tipo de relação não predatória com a natureza seja hoje apenas excepcional dentro de nossa realidade econômica. O capitalismo desarticula esquemas que sempre funcionaram bem para impor seus meios técnicos de sugar riqueza. A desagregação de comunidades cria uma fonte inesgotável de problemas, e isso é ótimo para o sistema, que pode então vender suas soluções.

Ao fortalecer sistemas produtivos que valorizam práticas tradicionais, as políticas de apoio à sociobiodiversidade ao mesmo tempo protegem a biodiversidade e fortalecem identidades culturais. Ainda que representem uma parcela ínfima da economia nacional, elas servem para nos lembrar que é possível resistir à tendência de destruição das diversidades promovida pela economia capitalista.

plano safra

O Plano Safra da Agricultura Familiar 2025/2026, lançado há pouco mais de uma semana, prevê R$ 89 bilhões a serem investidos nesse segmento do setor produtivo brasileiro. No dia seguinte, foi anunciado também o Plano Safra geral, que contempla o agronegócio, com um montante de R$ 516,2 bilhões para financiar o setor da agricultura e pecuária empresarial.

O contraste entre os valores, ainda mais considerando que o agronegócio é um setor altamente capitalizado que não necessita de dinheiro público para prosperar, mostra que o uso da agricultura para a produção de mercadorias para os mercados interno e externo ainda é uma prioridade sobre a produção de alimentos no país.

O Plano Safra foi criado em 2002 (denominado inicialmente Plano Agrícola e Pecuário) com o objetivo de fortalecer e estimular a expansão e a modernização da agricultura e da pecuária brasileira. No ano seguinte, sindicatos rurais e movimentos sociais ligados ao campo foram envolvidos na elaboração do Plano, de forma que agricultores familiares e assentados da reforma agrária pudessem melhor contribuir para atender à demanda por alimentos no contexto do programa Fome Zero, existente naquela época. Isso dá origem ao Plano Safra da Agricultura Familiar, editado pela primeira vez em 2003.

Os recursos do Plano Safra da Agricultura Familiar estão divididos em segmentos com finalidades específicas. O maior deles, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) foi contemplado com R$ 78,2 bilhões, o maior valor na série histórica.

Por meio do Pronaf, os pequenos produtores podem financiar tanto as despesas com insumos e mão de obra (custeio) como a aquisição de máquinas e sistemas que aumentem a capacidade produtiva (investimento). O programa oferece crédito para a produção de alimentos da cesta básica a uma taxa de juros de 3% ao ano. Essa taxa cai para 2% se o crédito for destinado ao custeio de produtos orgânicos, agroecológicos ou da sociobiodiversidade.

Há também o Pronaf Mais Alimentos, uma linha de crédito mais ampla que financia o investimento em tratores, colheitadeiras, caminhonetes, motocicletas, equipamentos adaptados a pessoas com deficiência, sistemas de armazenagem, ordenhadeiras, tanques e também a construção ou reforma de moradias rurais.

Parte da verba do Pronaf é voltada especificamente para incentivar a agroecologia. Nesta edição, as famílias com renda anual de até R$ 50 mil podem financiar a implantação de sistemas de base agroecológica ou em transição para sistemas de base agroecológica a uma taxa de juros de 0,5% ao ano.

Os quintais produtivos também são contemplados com suas especificidades. Mulheres rurais com renda de até R$ 50 mil podem custear a produção diversificada de alimentos no espaço ao redor da casa, podendo conciliar a atividade produtiva com a lida familiar.

Além do Pronaf, o Plano Safra da Agricultura Familiar inclui outras formas de incentivo. Por meio das compras públicas, o governo não apenas assegura o abastecimento de certos produtos (sendo também um instrumento no combate à inflação de alimentos) como também garante um preço digno a ser pago aos produtores. Há nesta edição do Plano R$ 3,7 bilhões destinados às compras públicas.

Algumas culturas estão sujeitas a perdas de safra em consequência de condições climáticas. Para proteger esses agricultores, existe a Garantia-Safra, que neste ano conta com R$ 1,1 bilhão.

Entre outros segmentos, há também R$ 240 milhões destinados a Assistência Técnica e Extensão Rural para agricultores familiares e R$ 42,7 milhões para garantir um pagamento fixo para alguns produtos da sociobiodiversidade brasileira.

A forma que o Plano Safra da Agricultura Familiar tem hoje é, em parte, resultado da incidência de movimentos sociais. Exemplo disso é o reconhecimento de quintais como unidades produtivas qualificadas para receber financiamento público, uma conquista da Marcha das Margaridas de 2023.

Somente a pressão da sociedade civil organizada pode fazer com que o incentivo público à agricultura familiar siga crescendo e a distância entre os apoios ao pequeno produtor e ao agronegócio possa diminuir ou mesmo, legítima utopia, ser superada.

gosto

Pessoas com paladar acostumado a produtos ultraprocessados podem não se satisfazer com o sabor de uma comida caseira, temperada naturalmente e sem exagero. Temperos ultraprocessados são uma mistura de saborizantes diversos e quase sempre usam um agente realçador de sabor, como o glutamato monossódico – e quando esse ingrediente não é mencionado no rótulo, costuma ser difícil de acreditar.

Da primeira vez que vi colocarem aquele tempero em cubinhos no arroz – eu era criança – fiquei impressionado (positivamente, naquela época) com o sabor chegando da cozinha até meu quarto. Fui ver o que era, o arroz estava verde (o que também achei divertido). E então, quando senti o paladar daquilo, vi brilharem aqueles fogos de artifício que reluzem em círculos sobre as torres do castelo do mundo encantado de Disney. Senti que queria mais.

O arroz branco, com tempero da casa e sem exagero de sal, perdeu a graça por algum tempo. Passado aquele período, felizmente curto e apenas experimental em que minha mãe e minha avó usaram esse tipo de produto para fazer arroz, tudo voltou ao normal.

Faz sentido usar tempero artificial para fazer um arroz? Fico pensando como se forma o gosto de uma pessoa que, sem a mesma sorte que eu tive, nunca mais consegue largar o prazer do sabor artificial. Se a pessoa não vê gosto em alimentos menos temperados, não se contentará com menos, terá dificuldade de trocar um doritos por um preparado caseiro equivalente, feito de flocão de milho.

Assim como o prazer do sabor artificial influencia as escolhas alimentícias, as preferências estéticas sobre produtos cinematográficos também se formam a partir daquilo que a pessoa costuma ingerir quando vai ao cinema ou se recolhe a um netflix.

Observe como são os roteiros e o estilo cênico dessas séries documentais de produção recente. Para contar qualquer história, seja a vida na savana, a tomada de Constantinopla, a última inovação da medicina ou um episódio envolvendo gente famosa – além, obviamente, de qualquer produto de ficção –, as produções desse conhecido serviço de streaming invariavelmente recorrem a altos níveis de tensão narrativa para atender os desejos de consumidores que querem mais e mais em suas maratonas televisivas. Afinal, a última coisa que pode acontecer é os espectadores ficarem entediados e trocarem de programa.

Assim, quando resolvemos conhecer um pouco mais sobre, por exemplo, a tomada de Constantinopla, somos obrigados a ver guerreiros tendo o peito varado pela espada e o sangue espirrando no teto, precisamos ouvir uma narração em que tanto o texto como a prosódia geram uma descarga de adenalina que nos coloca em estado fisiológico de lutar ou fugir. Como tudo é emoção, temos até que engolir uma história de amor absolutamente irrelevante para o conhecimento dos fatos supostamente históricos que estão sendo apresentados.

São esses os produtos audiovisuais ultraprocessados. Feitos para consumidores que já são incapazes de sentir gosto se não houver todo esse exagero e não verão graça em qualquer coisa aquém isso.

A escolha das produtoras dessas séries ultraprocessadas, assim como a da indústria que fabrica produtos comestíveis ultraprocessados, é compreensível, considerando que elas têm como principal objetivo ganhar dinheiro – e sempre querem sempre mais. Mas as escolhas dos consumidores poderiam ser diferentes.

O paralelo poderia ser estendido também aos jogos digitais. Ao contrário de jogos antigos, em que o sujeito jogador era uma navinha protegendo o planeta da invasão de extraterrestres ou um homenzinho tosco atravessando a selva e correndo risco de cair na boca de um jacaré, hoje temos jogos cada vez mais realistas graficamente, contextualizados em situações da vida e muitas vezes envolvendo violência. Verdadeiros simuladores de relações interpessoais, oferecem ao jogador uma infinidade de opções e recursos para ajudá-lo a alcançar seu objetivo. Adultos e crianças hoje passam horas imersos nessas realidades ultraprocessadas. Poderão essas pessoas um dia perder o gosto pela vida cotidiana e natural que acontece aqui fora no mundo físico?

O termo ultraprocessado pode ser entendido em muitas esferas, para além dos produtos comestíveis. A indústria sabe bem como criar desejos insaciáveis para em seguida oferecer sua satisfação temporária. Do outro lado, aqui na ponta do consumo tanto de produtos alimentícios quanto de produtos audiovisuais e eletrônicos, ainda temos, em boa parte das situações, a possibilidade de escolher o que consumir. E essa escolha cabe somente a nós, pois quem produz esse tipo de coisa jamais fará diferente.

Se o estabelecimento – físico ou digital – onde vamos para nutrir nossos corpos e mentes não oferece opções que não sejam ultraprocessadas, é preciso pensar em mudar de estabelecimento.

decrescimento

Dizem que a economia precisa sempre crescer. Esse mantra, repetido constantemente em quase todos os meios de comunicação, criou um consenso tão forte que raramente alguém questiona a afirmação ou pede que se apresentem justificativas para a necessidade de crescimento. Há, porém, um movimento de pessoas tecnicamente muito bem fundamentadas que defende o contrário: as grandes economias de hoje deveriam buscar não o crescimento, mas o decrescimento.

O argumento central é simples: não há crescimento infinito possível em um planeta finito. Portanto, considerando que certos países já cresceram demais e consomem mais de 80% dos recursos naturais do planeta, é preciso abandonar o paradigma tecnocrático, segundo o qual a atividade econômica deve sempre crescer e crescer, e buscar a redução da produção e do consumo, diminuindo o uso de energia e a dilapidação dos recursos naturais do planeta. Dentro dessa proposta, bem-estar social e ecológico passa a ser a prioridade, deixando para trás um sistema que causa exploração humana e destruição ambiental.

Os defensores do decrescimento propõem uma sociedade marcada por autonomia, trabalho partilhado, auto-organização e convivialidade. Nela, o Produto Interno Bruto (PIB) perde o sentido como parâmetro de prosperidade. Indicadores ligados a saúde, vitalidade comunitária, longevidade e felicidade são mais importantes aqui.

A diminuição da atividade econômica e dos conglomerados altamente capitalizados tende a devolver espaço para os negócios de menor tamanho. A economia se reorganiza e passa a operar em uma escala mais humana, na qual as pessoas deixam de ser engrenagens do sistema e podem ter seu trabalho devidamente valorizado. A velocidade da vida volta a ser saudável, os laços comunitários se regeneram, os índices de felicidade aumentam.

Podemos acrescentar que, nessas condições, a saúde geral da população melhora e a venda de remédios cai. Tal efeito, que dentro do pensamento econômico hoje dominante seria considerado um problema – afinal, os remédios e toda a indústria da doença correspondem a parte importante do PIB – não seria motivo de preocupação em um mundo onde o PIB deixou de ser o fetiche dos tecnocratas e governantes.

Foto: Anton Atanasov / Pexels

No sistema alimentar, a atuação de grandes corporações na distribuição de alimentos prejudica os pequenos produtores e também os consumidores, controlando os preços em ambas as pontas. E quanto à produção, os alimentos parecem estar longe do interesse dos latifúndios, que preferem produzir commodities para os mercados interno e externo. Temos aqui um bom exemplo de como o crescimento sem limites chega ao ponto de desviar completamente a finalidade da terra, que no caso do agronegócio já não serve para produzir comida.

Ter na bicicleta um referencial para a estruturação de sistemas alimentares autônomos é uma proposta radical que tem ressonância, em termos teóricos e práticos, com a doutrina do decrescimento. Além de se basear em uma fonte de energia altamente renovável, o alimento, e ser pouquíssimo poluente (zero emissão em seu uso e pouco nociva na produção e no descarte), a bicicleta coloca limites na carga transportada por viagem e na distância viável num sistema produtivo.

A bicicleta oferece autonomia com baixo consumo de energia, em uma escala pequena de operação, podendo dar conta de boa parte da logística de alimentos em uma área geográfica restrita. Dito de outra forma, cria-se uma comunidade de consumidores de alimentos produzidos localmente, um arranjo que contribui para o fortalecimento comunitário.

Trata-se de uma economia localizada e conectada, conforme os princípios do localismo, outra referência importante dentro da teoria do decrescimento. Como proposta de economia política, o localismo coloca-se como resposta aos problemas criados pela globalização, defendendo que cada comunidade deve ser livre para encaminhar seu destino conforme os desejos de seus habitantes. Isso passa pela organização de economias baseadas na autossuficiência local, de forma a minimizar os impactos originados externamente, pelas decisões tecnocráticas de grandes corporações nacionais ou internacionais.

Um aspecto frequentemente destacado pelos defensores do decrescimento é sua oposição a propostas chamadas de “crescimento sustentável” ou qualquer expressão equivalente. Eles nos lembram da importância de estarmos atentos a essas supostas críticas ao crescimento – geralmente criadas e propagadas pelos próprios atores que se beneficiam do crescimento destrutivo sem limites – que, na prática, não almejam reais mudanças.

Na opinião de Serge Latouche, economista francês e um dos mais destacados pensadores da teoria do decrescimento, apenas acrescentar a ideia de “sustentável” ao crescimento faz crer que não há alternativas, nos mantém dentro do pensamento único. A palavra decrescimento, pelo estranhamento que causa, faz parar para pensar, funciona como um slogan provocador, deixando patente a necessidade de sairmos da demagogia produtivista, desenvolvimentista, de superarmos o paradigma do crescimento, que nada mais é que outra forma de dizer “acumulação de capital”.

Costuma ser atribuída ao economista brasileiro Delfim Netto a afirmação “É preciso primeiro fazer crescer o bolo para depois dividi-lo”. A frase é eficaz como recurso de doutrinação, pois remete a uma realidade concreta, que qualquer um consegue enxergar: um bolo maior de fato resulta em pedaços maiores quando dividido. Há nela, porém, uma afirmação implícita: “o bolo ainda não é suficiente grande”. Quando alguém aceita a parte explícita e doce dessa ideia, engole junto a parte implícita, passando a acreditar que o bolo não é grande o suficiente.

Porém, o bolo é bem grande, sim! Se ele for dividido hoje, de forma equânime e justa, as partes serão suficientes para todos. Defender o crescimento é mais uma forma de garantir a concentração de riquezas que existe em praticamente qualquer país, seja ele considerado desenvolvido ou não.

Propor decrescimento em uma cultura obcecada pelo crescimento sem limites soa como heresia. É um ato radical de resistência. Enquanto a ideologia dominante tenta nos convencer que é natural passar nossas vidas trabalhando como escravos, decrescimento é uma provocação para nos lembrar que cada ser está aqui com um propósito maior do que simplesmente trabalhar e produzir sempre mais.

Para além da teoria, o decrescimento é um princípio que pode nortear cada decisão do cotidiano. Precisamos reduzir essa loucura coletiva e reorganizar um projeto de sociedade que sustente as bases naturais da vida.

polinizadores

Ao carregar em suas patas o pólen de uma planta para outra, as abelhas executam uma tarefa essencial na reprodução sexuada. Ao contrário dos seres que geram sozinhos seus descendentes, como aqueles que se autoduplicam, as espécies que dependem de outro indivíduo para se reproduzirem trocam genes entre si. Do encontro entre dois indivíduos resultam seres que herdam as inovações de ambas as linhagens. Isso leva a maior diversidade, dando à espécie como um todo maiores possibilidades de se adaptar a ambientes e situações hostis, contribuindo para sua sobrevivência.

O intercâmbio de ideias funciona de forma semelhante. Eu poderia passar a vida isolado, desenvolvendo somente aquelas que surgiram na minha cabeça – que, assim como a sua, tem uma capacidade infinita de criar ideias novas. Porém, se pudermos nos encontrar e trocar ideias, algo mágico pode surgir. Um pequeno detalhe de algo que pensei, e que em princípio não fazia muito sentido para mim, ao chegar na sua cabeça poderá unir-se a outras informações, ou simplesmente produzir um sentido diferente, já que a sua vivência e sua visão das coisas é diferente da minha. Então aquela microideia que se transformou ao chegar em você pode ser concretizada por você ou mesmo ser devolvida a mim com um sentido aperfeiçoado, e então algo que saiu da minha cabeça sem muita possibilidade de se concretizar volta para mim como algo viável de ser posto em prática. Você me ajudou a desenvolver uma ideia que poderia não dar em nada se eu estivesse sozinho. Juntos, co-criamos. Esse processo se chama polinização de ideias.

Como abelha com as patas cheias de pólen, eu posso também ser apenas o portador de uma ideia. Escuto numa conversa algo inovador que está acontecendo num determinado contexto. Aquilo não serve exatamente para mim, mas de alguma forma me fascina. Então eu levo aquele pedacinho de ideia a um outro ambiente e lanço na cabeça de pessoas que vivem num contexto no qual aquela ideia faz todo sentido e pode florescer de uma outra maneira, solucionando outras situações. É como a semente que achou o solo perfeito para se desenvolver com todo seu potencial. Esse tipo de troca concretiza da melhor forma o potencial da diversidade humana, a forma mais poderosa de comunidade.

Alguns espaços, por sua dinâmica de encontros, são ambientes propícios à polinização de ideias. Certas metodologias, como por exemplo o Open Space, ajudam a polinização a acontecer ao orientar a possibilidade de esse papel ser assumido conscientemente pelos participantes.

Assim, tendo ou não consciência disso, muitas vezes fazemos o papel de abelhas em nosso ecossistema de ideias regenerativas. Encontros de pessoas têm sempre o potencial de gerar bons projetos. Só que da mesma forma que as abelhas são sensíveis a inseticidas e outros agentes tóxicos, a polinização de ideias também necessita de condições favoráveis. A sabedoria está em saber manter esse ambiente, o que muitas vezes se dá a partir de aspectos bastante sutis.

abelhas em risco

No dia 20 de maio é celebrado o Dia Mundial das Abelhas, como forma de rememorar a importância desses insetos em nosso ecossistema. A data comemorativa foi estabelecida pela ONU durante sua Assembleia Geral em dezembro de 2017 e é celebrada desde maio de 2018.

Para muito além de produzir mel, própolis e geleia real, as abelhas têm a importante função de polinizar as plantas, o que na prática significa espalhar a vida. Ao pousarem nas flores para sugar o néctar, o pólen fica grudado em suas patas. Assim elas levam o pólen para outras flores, fazendo sua fecundação. Quando o pólen chega a uma flor de outra espécie, acontece a fecundação cruzada, um dos principais mecanismos da natureza para gerar diversidade.

Infelizmente, porém, há pouco o que comemorar, pelo menos aqui no Brasil. Nosso sistema alimentar está matando as abelhas. O avanço das áreas do agronegócio, movido por queimadas e/ou motosserras, destroi as matas onde esses seres vivem e se alimentam. As secas causadas pelas mudanças climáticas também ajudam a expulsá-las de seus ambientes naturais.

E como se isso não bastasse, elas ainda estão sendo envenenadas pelos agrotóxicos utilizados por esse sistema industrial e destrutivo de produção de commodities agrícolas. Se não matam, tais substâncias atacam o sistema nervoso das abelhas ao ponto de afetar seu sistema de orientação, e assim elas não conseguem voltar para suas colmeias e perdem-se para sempre.

Foto: Johann Piber / Pexels

Privadas de seus ambientes e totalmente desorientadas, algumas abelhas vão parar em áreas urbanas, onde encontrarão ainda menos verde e mais substâncias tóxicas. Você já reparou como hoje é comum encontrarmos abelhas pelo chão? Em certos bairros vemos, com alguma frequência, abelhas rastejando, muitas vezes em círculos, prestes a morrer, ou mesmo já mortas. Está aí, em tempo real e visível a olho nu, o efeito do nosso modo de vida nesses insetos polinizadores.

Quatro espécies de abelhas são hoje classificadas pelo Ministério do Meio Ambiente como ameaçadas de extinção: Partamona littoralis (comum na Mata Atlântica), Melipona capixaba (do Espírito Santo), Melipona scutellaris (frequente no Norte e Nordeste do país) e Melipona rufiventris (do Cerrado).

Pouco tem sido feito no Brasil para proteger as abelhas. O Fipronil é um veneno usado para matar formigas e outros insetos das lavouras. Mesmo em doses baixíssimas, ele é muito tóxico para as abelhas. Em janeiro deste ano, o Ibama restringiu o uso dessa substância, proibindo sua pulverização aérea. Um mês depois foi a vez do Tiametoxam, um agrotóxico amplamente utilizado em culturas como soja, algodão, milho e cevada. Seu uso já era restrito em muitos países. A partir de fevereiro, seu uso está proibido em certas plantações, mas segue autorizado em outras, desde que seja esguichado diretamente no solo ou aplicado no tratamento das sementes.

Ainda assim, as abelhas seguem em perigo. A extinção de qualquer espécie da natureza devido à ação humana já é, por si só, motivo de vergonha coletiva. No caso das abelhas, é ainda mais preocupante devido ao seu papel no ciclo de vida de muitas espécies vegetais. É assunto que precisa ser lembrado não apenas no mês de maio, mas no mínimo a cada vez que vemos uma abelha agonizante pelo chão.

agricultura em programas habitacionais

Está em tramitação na Câmara dos Deputados um projeto de lei que pode contribuir para o aumento das áreas de cultivo de alimentos nas cidades. Trata-se do PL 4074/2021, o qual determina que “programas habitacionais públicos federais ou financiados com recursos públicos federais deverão incorporar projeto de agricultura urbana ou periurbana”.

O projeto de lei destaca, em sua justificação, a importância da agricultura urbana e periurbana como “instrumento importantíssimo para o aprimoramento das cidades e da qualidade de vida das pessoas”.

A partir da aprovação desse projeto de lei, os entes federativos que forem beneficiários de programas habitacionais federais deverão, além de reservar no projeto uma área para o cultivo, firmar compromisso de apoio ao uso e manutenção do local destinado à implementação do projeto agrícola. Isso consiste em infraestrutura básica, suporte técnico à população beneficiária, insumos (com prioridade para adubos orgânicos) e integração com políticas e programas setoriais, especialmente de educação, saúde e meio ambiente.

O projeto de lei foi apresentado em novembro de 2021 pelo deputado Célio Moura e outros 24 parlamentares, todos do PT. Foi então designado para passar por três Comissões da Câmara dos Deputados: Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR); Desenvolvimento Urbano (CDU); e Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ).

Durante a tramitação na CAPADR, o projeto de lei recebe um pequeno ajuste, por parte do relator, referente às classes profissionais habilitadas para atestar eventual inviabilidade técnica desse tipo de projeto agrícola.

Em uma das reuniões deliberativas dessa comissão, em maio de 2022, uma deputada paranaense do extinto PROS (Partido Republicano da Ordem Social) pede a palavra para trazer solicitações da Caixa Econômica Federal, para que a Comissão pudesse “discutir para não criar nenhum tipo de desconforto e nenhum problema em relação à efetivação, para que não seja mais um projeto de lei de papel”. Fala de dificuldades em relação ao “aumento do custo desses programas habitacionais, e [que] isso precisa ser verificado em questões legais”. Diz que é preciso “verificar a possibilidade de acatarmos algumas das sugestões, visto que os maiores programas habitacionais são feitos pela Caixa Econômica”.

Então a deputada pede vista ao projeto, suspendendo sua tramitação por um determinado prazo. Transcorrido o prazo de vista, o projeto volta à pauta da Comissão. No histórico de tramitação, disponível na página da Câmara dos Deputados, não há registro de novas alterações, e o parecer do relator é aprovado nessa Comissão alguns dias depois.

O projeto de lei é então distribuído à CDU em junho de 2022. Dez meses depois é designada uma relatora. O projeto novamente recebe elogios e também ajustes referentes às categorias profissionais habilitadas para atestar eventual inviabilidade técnica. A tramitação do PL 4074/2021 encontra-se aparentemente parada nessa Comissão sendo que, na presente data, o último registro de tramitação ali disponível é de 25/08/2023. Quando voltar a tramitar, o projeto de lei precisa ainda ser aprovado pela CDU, passar pela CCJ, seguir para o senado e depois para sanção presidencial. Tudo isso deve levar algum tempo ainda.

Enquanto isso, seguem existindo as iniciativas individuais e coletivas que resultam em projetos agrícolas urbanos, tanto em conjuntos habitacionais e condomínios privados como em áreas públicas. O valor dessas iniciativas está não só na produção de alimentos mas também na melhoria da relação das pessoas com a própria alimentação. O fomento desse tipo de atividade por meio de uma lei seria muito benéfico para nossas cidades.

comer mal, comer caro

“Comer bem custa mais caro do que comer mal”.

O que dá sentido a essa afirmação é o fato de vivermos em uma sociedade de consumo, que tem como um de seus dogmas a ideia de que maior qualidade implica maior preço. Em muitos casos essa afirmação é, de fato, verdadeira.

Um levantamento apresentado no Atlas de los Sistemas Alimentarios del Cono Sur (lançado em 2022 pela Fundación Rosa Luxemburgo de Buenos Aires e prestes a ter uma edição brasileira) traz dados sobre valor da alimentação nos cinco países do Cone Sul.

Comparação dos valores de refeições precárias e saudáveis nos países do Cone Sul; percentuais das populações sem acesso a dietas saudáveis nesses países. Imagem: Atlas de los Sistemas Alimentarios del Cono Sur. CLIQUE PARA AMPLIAR

De acordo com essas informações, uma dieta saudável no Brasil é 3,9 vezes mais cara do que uma dieta precária. Interessante observar que, dos cinco países, o Brasil é aquele com a menor relação entre a dieta saudável e a dieta precária. Essa relação é de 5,3 vezes na Argentina, 5 vezes no Chile e 4,3 vezes tanto no Paraguai como no Uruguai.

O estudo nos deixa curiosos para saber o que se entende, nessa comparação, por “dieta de mínimas calorías” e por “dieta saludable”, pois infelizmente não traz detalhes sobre os tipos de refeição cujos custos estão sendo comparados. Diz no subtítulo do infográfico que a dieta mais barata na comparação é baseada em ultraprocessados. Sabe-se que esse tipo de produto não costuma ser baixo em calorias, e isso levanta a dúvida sobre o que está sendo considerado na dieta menos saudável.

Algo que chama atenção é o fato de os valores das dietas nos cinco países, apresentados em dólares, serem próximos. Isso mostra como, apesar de esses cinco povos viverem realidades sociais e políticas bastante específicas, estão todos sujeitos às condições de um mesmo sistema alimentar. É ele que determina os valores de troca dos alimentos e a exploração que acontece em ambas as pontas, produtores e consumidores.

Podemos também observar nos infográficos a proporção de pessoas, em cada país, que não têm acesso a dietas saudáveis. O país onde essa proporção é maior, o Paraguai, é também aquele onde as dietas, tanto a precária como a saudável, são as mais caras entre os cinco comparados, e isso provavelmente não é um acaso.

Os dados são um importante alerta sobre as condições impostas às populações por esse sistema alimentar predatório e insalubre. Escassez e fome são consequências naturais de um sistema no qual comida é mercadoria.

Porém, é preciso observar que o dogma maior qualidade implica maior preço nem sempre se comprova, pelo menos quando os ultraprocessados estão envolvidos na comparação. Além de serem a opção de pior qualidade, os ultraprocessados podem também ser mais caros. Isso se confirma não apenas em exemplos extremos e aberrantes, como no caso nada raro em que um quilo de salgadinho industrializado, com valor nutritivo praticamente nulo, custa mais caro que um quilo de contrafilé.

Pense em uma refeição pronta encontrada em supermercados, uma sobremesa industrializada, ou mesmo um simples lanche embalado de fábrica. Esses produtos não são mais baratos que as versões preparadas em casa com ingredientes in natura ou minimamente processados. Seu grande apelo é o fato de estarem já prontos ou quase prontos para o consumo.

É importante o consumidor perceber isto: ao oferecerem praticidade e recorrerem agressivamente a táticas que atuam de forma irracional na decisão de compra, como propaganda e embalagens altamente atrativas, eles não precisam ser mais baratos para que sejam escolhidos. Um produto que necessitou de várias etapas de processamento, transporte e estocagem, aditivos e condições especiais de conservação, além dos custos de embalagem e publicidade, não tem como ser mais barato do que os ingredientes necessários mais a energia e o gás usados para preparar um equivalente caseiro.

Há outro fato interessante sobre valor dos ultraprocessados. Pelo menos no Brasil, os dados mostram que os ultraprocessados estão mais presentes entre as famílias mais abastadas. Segundo o Atlas das situações alimentares no Brasil, publicado em 2021, o consumo de ultraprocessados é maior entre os mais ricos, enquanto as famílias de menor poder aquisitivo têm proporcionalmente mais alimentos in natura em sua alimentação.

O consumo de ultraprocessados existe, sim, nos grupos economicamente menos favorecidos, mas, em muitos casos, essa opção parece ser muito mais uma questão cultural ou de falta de tempo – o qual é sugado até a última gota por este sistema produtivo que transforma pessoas em máquinas – do que uma escolha racional, baseada em fatores objetivos, como o preço.

A ideia de que produtos orgânicos sempre custam mais caro também é problemática. Uma coisa é comparar o preço de verduras orgânicas e convencionais em supermercados, especialmente aqueles caros, frequentados por gente feliz. Independentemente dos custos, os orgânicos nesses lugares serão sempre precificados de forma a serem mais caros que os convencionais, aplicando o dogma acima, de forma a serem percebidos pelos consumidores como melhores. Outra coisa é considerar os preços de orgânicos em redes de consumo alternativas, onde é possível encontrá-los a preços equivalentes aos de convencionais.

Tecnologias como os sistemas agroflorestais, a biodinâmica e a agricultura sintrópica criam ambientes produtivos tão equilibrados e fortalecidos que dispensam defensivos agrícolas e fertilizantes químicos, eliminando importantes custos de produção.

Ao olhar para as relações entre qualidade e preço na alimentação, é preciso ir além de simplesmente constatar que um pacote de miojo é, de fato, mais barato que uma refeição feita em casa ou um PF no restaurante.

Se aceitamos como natural e repetimos passivamente a ideia de que maior qualidade implica maior preço, trabalhamos para reforçar um dos dogmas centrais desse sistema que atribui aos alimentos um valor de troca desvinculado da realidade objetiva. Pior que isso, deixamos de enxergar alternativas de alimentação que estão ao nosso alcance e podem ser ampliadas para que beneficiem cada vez mais pessoas.

nosso sonho

Durante quatro dias, a IV Feira Nacional da Reforma Agrária, organizada pelo MST, concretizou o sonho de muitos dos que lutam pela soberania alimentar no Brasil. Nesse sonho, além do acesso a uma grande abundância de alimentos produzidos sem veneno, está a possibilidade de comprá-los diretamente de seus produtores.

Na compra direta, a quantia paga pelos consumidores servirá integralmente para remunerar de forma digna esse trabalho tão essencial que é produzir alimentos, além de pagar os custos de produção e transporte. Esses valores têm ainda a função de apoiar a importante missão do movimento como um todo, que é ocupar terras improdutivas e lutar pelo direito de plantar para alimentar pessoas.

A abundância material e humana que havia ali traz sensação de acolhimento e segurança. Poder estar perto das pessoas que produzem os alimentos que consumimos é uma experiência enriquecedora, pelas trocas que possibilita. Para os produtores, suponho que o contato direto com aqueles que se beneficiam do resultado de seu trabalho gere semelhante sensação de segurança. Garantir o escoamento da produção é essencial para a sobrevivência de qualquer unidade produtiva, mais ainda quando ela é pouco capitalizada, como é o caso daquelas pequenas propriedades.

Porém, nos dias em que estive na Feira, ao mesmo tempo em que eu olhava todos aqueles alimentos sobre as bancas dos produtores, ficava me perguntando: e quando a feira acabar? Como é possível reproduzir pelo resto do ano toda essa proximidade, que garante aos agricultores o escoamento de sua produção? A resposta também emergiu em meio a toda aquela abundância. Parece se tratar simplesmente de conexões.

Foto: Dionizio Bueno

Redes de distribuição de alimentos são nada mais do que isso: conexões entre produtores, consumidores e, quando não há alternativas, intermediários. O poder das conexões é tão grande que a possibilidade de controlá-las dá a certos agentes altamente capitalizados a possibilidade de determinar o preço de compra do lado da produção e o preço de venda do lado do consumo.

Portanto, construir alternativas a esses esquemas estabelecidos, criando a possibilidade de acesso direto ou quase direto entre produtores e consumidores, é o caminho para a autonomia. Há muitos formatos para se criar essas conexões, e diversas experiências já existem, funcionando muito bem.

cooperativas de militantes | São grupos organizados que coletam a produção de diversos assentamentos regionais e os distribuem aos consumidores na cidade. Realizam a venda através de páginas na internet ou por meio de grupos de consumo e entregam os produtos em domicílio ou em pontos de retirada espalhados em pontos estratégicos, para que os consumidores possam economizar o custo do frete.

lojas do próprio movimento | Com lojas em diversas cidades do país, redes como o Armazém do Campo oferecem produtos da reforma agrária de diversas regionais, utilizando também a estrutura dos esquemas de distribuição mantidos pela própria militância.

pequenos entrepostos | Essas iniciativas, individuais ou de pequenos coletivos, vendem alimentos tanto da reforma agrária como de hortas urbanas e pequenos produtores na cidade e em volta dela. Verdadeiras zonas autônomas, tais espaços possibilitam o acesso a alimentos saudáveis em suas vizinhanças, algumas vezes em situação de fragilidade institucional, necessitando portanto do apoio comunitário em luta de resistência.

cooperativas de consumo | Com um formato bastante inovador no Brasil, uma cooperativa está sendo formada para gerir um mercado no qual os cooperados realizam grande parte das tarefas práticas e administrativas da loja, diminuindo sensivelmente seu custo operacional e, como consequência, o preço final para os consumidores.

grupos de compras coletivas | Há certamente centenas, senão milhares deles. Basta que uma pessoa colete os pedidos de várias famílias e realize o pedido diretamente à unidade produtora, recebendo a encomenda em sua casa, onde as pessoas do grupo poderão retirar suas compras.

Nos próximos meses e anos, veremos iniciativas como estas crescendo e se proliferando. Mas para consolidar o sonho do amplo acesso aos alimentos saudáveis produzidos pela reforma agrária, é preciso que iniciativas como essas entrem nas vidas de cada vez mais pessoas, e isso pode exigir algumas adaptações, nas duas pontas do sistema.

Foto: Dionizio Bueno

Do lado do consumidor, é preciso planejar o abastecimento da casa. No caso das compras coletivas, por exemplo, os pedidos são abertos somente em certas datas. Concentrando aí as quantidades para um período mais longo (o que naturalmente só é possível no caso de produtos menos perecíveis), todos ajudam a compor um pedido de maior volume, facilitando a negociação de preço com o produtor e ajudando a diluir os custos de frete.

Esse planejamento vale também para produtos mais perecíveis, de compra mais frequente. Por enquanto, as lojas que oferecem produtos orgânicos da reforma agrária existem apenas em certos locais da cidade. As compras de produtos in natura podem ser feitas semanalmente ou até quinzenalmente, evitando demandas de última hora que acabam sendo feitas em qualquer mercado mais próximo.

É muito importante também entender que um padrão de alimentação mais saudável estará sempre sujeito a sazonalidades. É natural que certos produtos não estejam disponíveis em todos os lugares durante o ano todo.

Por meio de seus regimes industriais de produção de alimentos, o sistema alimentar baseado em grandes redes de distribuição e varejo cria artificialmente a possibilidade de ter quase tudo durante todo o ano. Os alimentos são produzidos de forma intensiva em fazendas que podem estar a milhares de quilômetros da sua casa, em regiões com outro padrão climático. Crescem por meio de estimulação artificial, utilizando fertilizantes químicos, e são colhidos enquanto estão verdes, conforme seus cronogramas de linha de produção e a quantidade de pedidos recebidos pelo departamento comercial dessas indústrias agrícolas. Por fim, têm o seu amadurecimento forçado através da exposição a gás etileno obtido do petróleo.

É perfeitamente possível ter uma alimentação baseada em produtos da época, tornando desnecessários esses recursos artificiais criados para viabilizar a produção de alimentos em enormes escalas, gerando grandes lucros para uns poucos, além de mimar um consumidor que quer ter de tudo agora.

Imagem: divulgação

Do lado dos produtores, um pequeno esforço de organização pode contribuir muito para o florescimento dessas redes de distribuição. Só eles podem ter a visão de todos os pedidos que estão recebendo, com suas respectivas datas, destinos e quantidades. Uma boa organização das rotas pode fazer o custo do frete ser dividido entre vários pedidos, diminuindo para todos os custos de transporte e fazendo com que os produtos cheguem a um preço mais baixo para os consumidores, beneficiando as vendas.

E com relação às entidades e grupos que organizam essas iniciativas, cabe ter a inteligência coletiva de entender que o espalhamento e a capilarização desse novo sistema alimentar são benéficos para toda a rede. Seria totalmente fora de propósito enxergar novas iniciativas semelhantes como concorrência. Claro que é preciso cuidado para que a atuação de iniciativas mais capitalizadas ou profissionalizadas não resulte na eliminação de outras que já se encontravam em funcionamento. Por isso é essencial manter o contato e o diálogo entre essas organizações, formando uma teia de cooperação.

Se lutamos para construir esse outro mundo com o qual sempre sonhamos, mas não formos capazes de nos libertar do paradigma da competição, em que o ganho de um implica a perda de outro, me parece que não aprendemos nada.

Produtores e consumidores têm muito a ganhar juntos com essas novas conexões. Em seu conjunto elas estão formando uma rede de produção e distribuição de alimentos que passa ao largo dos conglomerados de logística e varejo geridos pelo grande capital, que atualmente dominam o mercado de alimentos no Brasil. Vivemos a era da retomada dos circuitos curtos. Por muito tempo cultivamos nossos sonhos, hoje eles finalmente começam a florescer.

hortas comunitárias e hábitos alimentares

Uma pesquisa publicada em 2008 buscou aferir se existe relação entre o envolvimento das pessoas com hortas comunitárias e seus hábitos de alimentação, especificamente o consumo diário de frutas e verduras. Realizada em Flint, uma cidade estadunidense que em termos populacionais é comparável a Alfenas (MG) ou Vinhedo (SP), a pesquisa mediu o número médio de vezes ao dia que as pessoas consomem frutas e verduras e também a porcentagem de pessoas que consomem ao menos cinco porções desses alimentos in natura por dia, contemplando as recomendações das autoridades de saúde daquele país.

Entre os participantes da pesquisa, aqueles que têm ao menos um membro da família envolvido com horta comunitária consumiam frutas e verduras, em média, 4,4 vezes por dia, enquanto que quem não tem gente da família envolvida com essas iniciativas apresentou um consumo médio desses alimentos de 3,3 vezes por dia. No primeiro grupo, foi bem maior também o número de pessoas que consumiam ao menos cinco porções frutas e verduras por dia: 32,4%, comparado aos 17,8% entre as famílias sem envolvimento com hortas.

Ainda que a pesquisa assuma suas limitações metodológicas, afirmando que não é possível estabelecer relações de causalidade entre o trabalho em hortas comunitárias e os hábitos alimentares, os dados permitem reflexões interessantes sobre a relação das pessoas com os alimentos in natura.

O artigo apresenta uma discussão sobre as barreiras para o consumo de alimentos saudáveis. Há, em primeiro lugar, a questão da disponibilidade de alimentos frescos in natura, que é de fato um fator determinante. Localidades onde é difícil encontrar alimentos saudáveis, pois seus mercados oferecem apenas produtos industrializados, são consideradas desertos alimentares. De acordo com o artigo, esse é o caso da cidade de Flint. Importante lembrar que feiras livres não são comuns naquele país como são aqui no Brasil. Outros obstáculos apontados pelo artigo para o consumo de alimentos saudáveis seriam: os hábitos e a preferência pessoal, a qualidade do que está disponível, o custo de aquisição e o custo do transporte até o local de compra desses alimentos.

Nesses casos todos, uma horta comunitária local ajuda bastante, ao tornar possível obter alimentos naturais, pelo menos quando estão prontos para serem colhidos, a um custo baixo, que seria apenas o dos insumos para se manter a horta e do tempo alocado a esse trabalho.

Foto: Bárbara Zem

Podemos também acrescentar a dimensão relacional que se estabelece entre a pessoa e a planta por meio do envolvimento com o trabalho prático na horta. Essa vivência traz familiaridade e proximidade com esses alimentos, colocando-os dentro do universo cotidiano da pessoa. O trabalho com a horta proporciona um contato físico periódico com plantas alimentícias, o que não é pouca coisa se pensarmos que o contexto urbano oferece limitações tanto pelo cenário de concreto quanto pela rotina de vida que costuma impor. Para quem mora em apartamento, que é uma realidade para boa parte dos habitantes de grandes cidades, o cultivo de plantas alimentícias ou ornamentais é ainda mais difícil.

Para além de todos os aspectos sociais e ambientais associados a uma horta urbana, o envolvimento com iniciativas desse tipo torna possível que a pessoa tenha em sua vida, diariamente se quiser, importantes experiências dos sentidos: o cheiro das plantas, o toque na terra e nas folhas, a visão do campo verde produzindo vida, o som do vento passando pelas folhas e dos pássaros que habitam esses espaços naturais, o sabor da amostra de alimento beliscada do canteiro enquanto se trabalha.

É natural que toda essa relação afetiva com as plantas alimentícias na horta influencie os hábitos alimentares das pessoas. Além dos evidentes efeitos de fortalecimento comunitário, a convivência com vizinhos e colegas de horta reforça ainda mais a relação com os alimentos quando eles se transformam em assunto de conversas, objeto de curiosidade e fascínio, tema de novas pesquisas e explorações.

Segundo fontes citadas no artigo, foi demonstrado que o envolvimento com hortas escolares ajuda a formar nas crianças o gosto por alimentos in natura. Se as crianças forem envolvidas no trabalho nas hortas urbanas comunitárias, o potencial de criar hábitos alimentares saudáveis se multiplica para o futuro.

Hortas comunitárias têm um evidente papel na construção da autonomia e da segurança alimentar, ao mesmo tempo em que reforçam laços e fortalecem a solidariedade. Ao considerarmos seu potencial de influenciar hábitos alimentares, podemos expandir a ideia de cidade educadora também para o campo da saúde. Criam-se, assim, as bases para uma reconfiguração revolucionária dos sistemas alimentares e da própria paisagem urbana.

consea

Espaços institucionais de articulação entre o governo e a sociedade civil são essenciais para a formulação e a implementação de políticas públicas favoráveis aos interesses coletivos da sociedade. No campo da segurança alimentar e nutricional da população brasileira, esse espaço é o Consea – Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Não por acaso, o Consea foi desativado no primeiro dia de governo da pessoa que ocupou o cargo de presidente da república entre 2019 e 2022, cujo nome não merece ser pronunciado nem escrito.

A reinstalação do Consea se efetivou em 28 de fevereiro de 2023 e foi celebrada por movimentos sociais e ativistas em todo o país. Ao conhecer a relevância e a forma de funcionamento desse conselho, compreendemos melhor a importância desse retorno.

O Consea é um órgão de assessoramento imediato à Presidência da República, com competência para apresentar proposições de políticas relacionadas à segurança alimentar e nutricional e também para exercer monitoramento e controle social na execução dessas políticas. Tem caráter consultivo e atualmente integra o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan).

De seus 60 membros, dois terços são representantes da sociedade civil e um terço são ministros de Estado. Trata-se, portanto, de um espaço importantíssimo para movimentos e organizações sociais que atuam pelo aprimoramento das políticas públicas ligadas a soberania e segurança alimentar e nutricional no Brasil, colocando-os em posição de serem ouvidos diretamente pelo presidente do país.

O Consea teve importante papel na construção de diversas políticas públicas. Alguns exemplos: exigência de que 30% das aquisições do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) venha da agricultura familiar, formulação da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, elaboração do Guia Alimentar para a População Brasileira, criação do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), inclusão do direito à alimentação saudável na Constituição Federal, criação do Sisan.

Tais políticas foram determinantes para a sensível redução do número de pessoas em situação de subalimentação, tirando o Brasil do mapa da fome da ONU em 2014. Por sua atuação, o Consea obteve importante reconhecimento fora do país e já recebeu a visita de delegações internacionais que vieram conhecer o seu trabalho.

A cada quatro anos, o Consea organiza a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CNSAN), que é a instância máxima do Sisan e indica as diretrizes e prioridades da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. O encontro é precedido de conferências municipais, regionais e estaduais, nas quais são eleitos delegados e delegadas que irão participar da conferência nacional.

Histórico das CNSANs já realizadas. Adaptado de Relatório final da 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. CLIQUE PARA AMPLIAR

A última conferência que aconteceu até o momento foi a 5ª CNSAN, em novembro de 2015, em Brasília. Apenas para lembrar, em 2015 a Dilma era presidente, o golpe contra ela já estava sendo articulado mas ainda não havia sido consumado, Lula ainda não havia sido preso, o povo brasileiro ainda não tinha escolhido um fascista para presidente da república, não existia pandemia, ainda não havia 33 milhões de pessoas passando fome no país.

Entre os vários resultados da 5ª Conferência está um trabalho coletivo de escolha de prioridades dentro de um conjunto de 331 proposições trazidas das conferências estaduais. As três proposições mais votadas foram: “Garantir, ampliar e fortalecer as ações de assistência técnica e extensão rural (Ater) na promoção da inclusão produtiva das famílias em situação de pobreza extrema no meio rural, respeitando a forma dos saberes culturais dos povos e comunidades tradicionais”; “Promover o papel da agricultura familiar, camponesa e indígena como um dos elementos estruturantes das estratégias nacionais e regionais de soberania e segurança alimentar e nutricional, por meio do estímulo à produção local de alimentos baseada em modelos diversificados e de base agroecológica, em estratégias soberanas de abastecimento alimentar e em articulação com os preceitos de uma alimentação adequada e saudável”; “Implementar planos de proteção de bacias com recursos para a revitalização e renaturalização dos corpos hídricos, considerando o caráter intermunicipal e interestadual das bacias hidrográficas no momento da tomada de decisões relacionadas às políticas de recursos hídricos, sejam elas estaduais ou federais e que as ações de revitalização atuem prioritariamente nas causas de degradação das bacias hidrográficas”.

Em síntese, na avaliação conjunta dos delegados e delegadas presentes na 5ª Conferência, os três temas mais sensíveis naquele momento eram: inclusão produtiva por meio de assistência técnica, estímulo à agricultura familiar com base na agroecologia e proteção aos recursos hídricos.

No intervalo entre as CNSAN, costuma ser organizado um encontro nacional denominado CNSAN+2, com o objetivo de realizar um balanço das proposições da conferência e do estado de implementação das medidas de segurança alimentar e nutricional no país. A 5ª CNSAN+2 aconteceu em março de 2018, também em Brasília. O relatório desse encontro já identificava retrocessos no campo da segurança alimentar e nutricional, os quais, como sabemos, se aprofundariam nos anos seguintes: “a atual conjuntura de retrocessos na democracia impôs um cenário de desconstrução de direitos, precarização das relações de trabalho, aumento do desemprego, esvaziamento de políticas públicas e iminente volta do Brasil ao Mapa da Fome”.

A conferência seguinte deveria acontecer em 2019, e sua convocatória chegou a ser aprovada em novembro de 2018. Com a desativação do Consea, o encontro naturalmente não aconteceu.

Durante o período em que esteve desativado, os integrantes do Consea mantiveram-se mobilizados, junto com os Conseas estaduais e movimentos sociais de combate à fome, monitorando os movimentos do governo em relação à segurança alimentar e nutricional.

A nutricionista, pesquisadora e professora Elisabetta Recine, que presidia o Consea no momento de sua desativação, foi agora reconduzida ao cargo, junto com seus conselheiros. O gesto mostra a expectativa, por parte do atual governo e da sociedade brasileira, de que o conselho retome os trabalhos do ponto em que foram interrompidos, no início de 2019.

comensalidade

Na língua latina, o verbo ‘comer’ se expressava pela forma edere (uma palavra proparoxítona, com o acento na antepenúltima sílaba). Esse verbo era usualmente acompanhado da preposição cum, que deu origem à nossa preposição ‘com’ e traz sentidos como estar junto, simultaneidade, acompanhamento, inclusão, concomitância, suporte, vínculo, estar entre, fazer parte.

Para se referir ao ato de comer, dizia-se cum edere: ‘comer com’, ‘comer acompanhado de’, ‘estar com [alguém] enquanto se come’, já que as pessoas geralmente faziam suas refeições acompanhadas de outras. A preposição era tão frequente no uso do verbo que, ao longo dos séculos, esse uso foi se cristalizando e a preposição passou a ser percebida como parte dessa forma linguística.

Primeiramente, a forma perde a sílaba pós-tônica, passando de cume(de)re a cumere. Ocorre então a perda da vogal final, e cumer(e) vira cumer. A primeira vogal se modifica e isso leva à forma portuguesa atual ‘comer’.

Foto: Kaboompics / Pexels

Portanto, na origem latina, o nosso verbo ‘comer’ traz, de maneira implícita porém inseparável, a ideia de uma ação que se dá em coletividade. O ato de comer é um momento propício ao compartilhamento. É naturalmente uma celebração do fato de estarmos vivos, juntos e termos uma boa colheita que nos permite reproduzir a vida. Aqueles com quem dividimos a mesa são nossos comensais, são pessoas que ocupam um lugar importante em nosso dia a dia.

A ideia latina de ‘comer com’ faz parte de nossa herança linguística, muitas vezes sem que nos demos conta disso. Conhecer esse pequeno detalhe talvez nos ajude a lembrar de como o momento da refeição é tão essencial para a saúde de nossas relações como é para a saúde de nosso corpo. Em nossa língua, comer é, por definição, um ato de celebração da vida coletiva.

cresan butantã

Em volta dos canteiros suspensos da horta, as crianças observam e tocam folhas que nunca haviam visto antes. Uma tarde que tinha tudo para ser trivial na rotina da escola de educação infantil transforma-se em uma vivência memorável, que pode mudar a relação da criança com os alimentos.

Estamos em um Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional (Cresan) da Prefeitura de São Paulo, localizado no Butantã, zona oeste da cidade. Aqui acontecem ações de educação alimentar e nutricional voltadas para diversos públicos.

Esta unidade dispõe de uma horta pedagógica, com diversas espécies de plantas comestíveis. Aqui, crianças e adultos podem conhecer um pouco sobre alimentação saudável, agroecologia, compostagem, consumo consciente e outros temas ligados à segurança alimentar e nutricional. O Cresan Butantã também está equipado com uma cozinha escola, onde acontecem treinamentos para manipulação de alimentos, cursos de culinária saudável, gastronomia e receitas tradicionais, entre outros, sempre acompanhados por nutricionistas da prefeitura ou das entidades parceiras.

Na horta suspensa do Cresan Butantã, crianças sentem a textura das folhas de peixinho, uma planta alimentícia ainda pouco conhecida. Foto: Dionizio Bueno.

As ações desenvolvidas no Cresan tem como referência os Guias Alimentares publicados pelo Ministério da Saúde com a finalidade de promover alimentação adequada e saudável entre a população brasileira.

Por meio de parcerias com escolas, CEUs, unidades de saúde e organizações sociais, o Cresan Butantã recebeu, entre abril e outubro de 2022, mais de 1200 pessoas em atividades educativas e formativas.

Durante as visitas de escolas, as crianças são conduzidas em uma vivência que busca trazer não só informações, mas também experiências sensoriais. Elas podem conhecer o cheiro de ervas aromáticas e até de provar verduras e temperos apanhados diretamente da terra. Podem também tocar folhas com texturas diferentes do usual, como boldo ou peixinho. Depois de passar pela horta, as crianças vão para a sala degustar um lanchinho preparado com vegetais que acabaram de ser colhidos, além de cantar e participar de brincadeiras. Ao final, recebem mudinhas de plantas, que vão levar para casa com a proposta de aprenderem a cuidar.

A gestora do Cresan Butantã, Sheyla Sicília, fala do potencial educativo e transformador dessa vivência: “As crianças saem felizes dessa experiência, é algo realmente contagiante. Além disso, a atividade está alinhada aos componentes curriculares que estão sendo trabalhados na escola.”

Se buscamos construir um sistema alimentar no qual as pessoas possam ser protagonistas na escolha de seus alimentos – um sistema em que a soberania alimentar seja genuinamente construída de baixo para cima –, é essencial que as pessoas sejam educadas para a alimentação saudável. Isso se constrói, em primeiro lugar, por meio do conhecimento. A importância do Cresan Butantã é ser um equipamento público que trabalha para a educação alimentar e nutricional com um enfoque comunitário, sendo ainda um laboratório para a construção de políticas públicas que promovam segurança alimentar em grande escala.

Atualmente, existem dois Cresans em São Paulo: este no Butantã e um na Vila Maria, onde funciona o banco de alimentos da cidade.

banco de alimentos

Todos os dias, centenas de quilos de produtos alimentícios saem do Banco de Alimentos da Prefeitura de São Paulo, tendo como destino diversas entidades assistenciais, espalhadas por toda a cidade. Essas entidades vão repassá-los a famílias em situação de insegurança alimentar. Nos últimos seis meses (de abril a setembro de 2022), o Banco de Alimentos distribuiu, em média, 30,8 toneladas de alimentos por mês.

Os gêneros que chegam ao Banco de Alimentos vêm de três origens: doados por empresas parceiras (distribuidores, redes de varejo, indústrias), adquiridos da agricultura familiar e arrecadados pelo Programa Municipal de Combate ao Desperdício e à Perda de Alimentos, que coleta, nas feiras livres e mercados municipais da cidade, alimentos já fora dos padrões de comercialização mas que se encontram em perfeitas condições de consumo. No caso das doações de empresas parceiras, trata-se de produtos com pequenas avarias nas embalagens ou próximos à data do vencimento.

“Existem manuais que orientam sobre quando se pode destinar alimentos com danos na embalagem. Nós treinamos nossos funcionários para fazerem essa triagem”, diz Luíza Araújo, nutricionista responsável pelo programa. “Quando recebemos produtos muito próximos ao vencimento, nós acionamos entidades que produzem um grande número de refeições e as entregam prontas às famílias, de forma a garantir que esses alimentos serão consumidos ainda dentro do vencimento. No caso das entidades que distribuem sacolas de produtos fechados para as famílias, encaminhamos produtos que estão menos perto do vencimento”. Após uma avaliação inicial e triagem, são feitas correções nas embalagens ou, caso estejam muito danificadas, os produtos são transferidos de embalagem. Estas recebem uma nova etiqueta, com as informações necessárias sobre o produto.

O Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional (Cresan) da Vila Maria, onde funciona o Banco de Alimentos da Prefeitura de São Paulo. Foto: Dionizio Bueno.

Atualmente, há 410 entidades cadastradas para receber os produtos. Existe um esquema rotativo que garante a cada entidade que, quando for sua vez de receber alimentos, haverá quantidade suficiente para atender todos os seus beneficiários. É importante também que haja um bom aproveitamento do transporte que a entidade envia ao Banco, localizado na Vila Maria, zona norte, para receber os produtos. De um modo geral, cada carga tem 300 quilos de alimentos ou mais.

De acordo com os balanços mensais do programa, que são publicados no Diário Oficial e ficam disponíveis no portal da Prefeitura, ultimamente o Banco tem atendido cerca de 70 entidades a cada mês, o que dá uma média de 440 quilos de alimentos por entidade. O Banco dispõe de câmara fria, sala de manipulação, diversas salas de estocagem e uma cozinha industrial, onde acontecem oficinas de capacitação para as entidades, formações para geração de renda com alimentação saudável e atividades de educação nutricional para escolas, unidades de saúde e população do entorno.

Servidora apresenta uma das salas de estocagem do Banco de Alimentos a profissionais das entidades beneficiadas, dando dicas sobre armazenamento e conservação dos produtos. Foto: Dionizio Bueno.

Os dados disponíveis sobre o Banco de Alimentos mostram que em 2020, primeiro ano da pandemia, houve um sensível aumento na quantidade de alimentos recebidos e distribuídos pelo Banco. Isso demonstra como é fundamental que um sistema de segurança alimentar esteja sempre em funcionamento, pronto para ampliar sua atividade em períodos de agravamento da fome, por meio de ações emergenciais.

Podemos também atribuir a um equipamento público como este uma importância que vai muito além da perspectiva de mitigação dos efeitos de um sistema alimentar excludente. Ele pode ser usado para a própria construção e consolidação de um sistema alimentar mais justo e acessível. A estrutura do Banco de Alimentos pode, por exemplo, ser utilizada com enfoque de fortalecimento da economia local, por meio de aquisições governamentais permanentes de produtos da agricultura familiar existente na região em que está instalado. Seria uma contribuição sistêmica para a erradicação da fome, profundamente alinhada aos princípios da segurança alimentar, um modelo que poderia ser replicado em outras regiões da cidade.

As dinâmicas do mercado e do capital tendem a excluir da cadeia produtiva o pequeno produtor. Para contrabalançar essa tendência, cabe ao poder público adotar um papel ativo no sentido de garantir a viabilidade econômica desses estabelecimentos. A quantidade de sítios produtores e hortas urbanas existentes no município demonstra como isso é possível inclusive dentro de uma metrópole como São Paulo. Além dos evidentes benefícios sociais, um sistema localizado de produção de alimentos afeta o preço final, ao diminuir os custos de transporte, e também a qualidade do alimento, que viajará menos e chegará mais fresco à mesa das pessoas.

Criado em 2002, o Banco de Alimentos da Prefeitura de São Paulo é um programa da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Trabalho (SMDET), por meio da Coordenadoria de Segurança Alimentar e Nutricional (Cosan).

efeméride

Já ouvi histórias de casais que guardam a data exata em que fizeram a criança. Pelo menos em segredo entre eles, essa criança terá dois aniversários: além do nascimento oficial, data em que saiu da barriga, poderá ter a data em que foi concebida como motivo de celebração.

No dia 30 de setembro de 2017, uma Feira de Trocas de Sementes Crioulas me levou à Comuna da Terra Irmã Alberta, e ali surgiu a ideia do Bicicarreto.

Imagens de bicicleta na estrada são sempre muito inspiradoras. Esta é a foto que marca a data.

Beira da via Anhanguera, pouco antes da entrada para a Comuna da Terra Irmã Alberta. Foto: Dionizio Bueno, setembro/2017.

A ideia precisou de meses para amadurecimento, pesquisa e articulação. A primeira ação concreta, na estrada, aconteceria em 7 de julho de 2018, exatamente 280 dias depois. Quarenta semanas.

feiras de produtores

Feiras são encontros de pessoas para fazerem trocas. Existem desde a antiguidade e, na baixa Idade Média, marcaram a fase histórica de reabertura do comércio. Nelas, os produtores podem vender seus produtos diretamente às pessoas que vão consumi-los. Temos aí o menor circuito de distribuição possível, apenas produtor e consumidor.

Neste contato direto o produtor recebe o valor que considera justo por seus produtos enquanto o consumidor obtém, teoricamente, o melhor preço possível, já que não há intermediários. Porém os benefícios que esse encontro direto trazem ao sistema alimentar vão muito além do fator econômico.

O contato direto promove uma interlocução entre aqueles que produzem os alimentos e aqueles que se nutrem com eles. O produtor pode aprender a partir das informações de seus fregueses, obtém um retorno em relação aos hábitos alimentares, às variedades preferidas, às mudanças de qualidade conforme as técnicas de cultivo que vai experimentando. Os consumidores têm a oportunidade de um contato mais próximo com o fazer produtivo, as sazonalidades, as influências do clima e outros fatores naturais em sua alimentação. Nada pode ser mais humano que um sistema alimentar marcado pela compreensão mútua.

Sobretudo para os consumidores, existe nisso um grande aprendizado. Nossa sociedade busca nos acostumar com a ideia de que é possível ter tudo a qualquer momento. O supermercado se passa por um lugar encantado, sempre pronto a saciar qualquer desejo. Na sociedade de consumo, o alimento sai das fábricas, e o leite é um líquido que nasce dentro de caixinhas.

O contato mais próximo com a produção ajuda a tirar os alimentos desse lugar de meras mercadorias, sujeitas aos caprichos dos consumidores e às artimanhas dos mercadólogos. Nossos alimentos são criações da natureza.

Foto: Barbara Zem / MST

Para os produtores, a venda direta dá sentido e viabilidade às pequenas escalas de produção, liberando-os da ideia de que a única via de sobrevivência é aumentar a escala para ter acesso aos mercados por meio dos sistemas de distribuição. A produção pode se manter em escala compatível com a capacidade da unidade produtiva, qualquer que seja seu tamanho.

Ao viabilizarem as trocas, que podem ser monetárias ou não, as feiras tornam possível um certo grau de especialização da produção, sem entrar no regime industrial, no qual os produtores tendem a abandonar cultivos de subsistência. Alguns sítios concentram esforços em frutas, outros em ovos, outros produzem grãos, outros legumes, hortaliças. Em uma feira de produtores diversificada, aqueles que não produzem (os consumidores) podem ter tudo ou quase tudo que necessitam para a alimentação diária. Na pequena escala, os sítios suprem a demanda de suas regiões. Em cada região, um esquema semelhante, há demanda para todos. Assim, o sistema alimentar tende naturalmente à alimentação local. Tudo tão perto que pode ser transportado até de bicicleta!

Através da ideia de que só grandes escalas são economicamente viáveis, o sistema alimentar da sociedade de consumo cria a dependência dos grandes esquemas de transporte, necessariamente motorizados, abrindo espaço e gerando demanda para mais e mais elos na cadeia de distribuição. Os intermediários passam a ditar as condições e preços tanto na ponta do consumo como na da produção. O sistema cria as mazelas e ainda gera a ilusão de que nada fora dele é possível.

Ao mesmo tempo em que são uma prática muito antiga, as feiras de produtores são revolucionárias. Venda direta, proximidade e pequena escala desfazem os pressupostos desse sistema que aprisiona produtores e consumidores. Por meio do encontro direto entre os dois agentes mais importantes do sistema produtivo, as feiras criam uma insurreição. Seus efeitos são econômicos, relacionais e estruturais.

Feiras de produtores são uma ameaça ao sistema do capital. É preciso que resistam, que floresçam e se multipliquem.

projeções do agronegócio

Para que serve a terra no Brasil? Para produzir alimentos ou para ganhar muito dinheiro?

Um documento produzido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento traz informações desanimadoras para quem acredita que a terra deveria servir para saciar a fome das pessoas. Resumindo: alimentos como arroz, feijão, batata, mandioca, banana e café estão perdendo áreas de cultivo, enquanto commodities como milho, soja, algodão, fumo e cana de açúcar estão ganhando ainda mais território.

Reeditado a cada ano, o relatório Projeções do Agronegócio traz estimativas sobre como ficará a atividade agrícola nos dez anos seguintes à sua publicação. O último relatório disponível neste momento é de 2021, e suas projeções vão até o ano safra 2030/2031.

Os dados mais assustadores se referem à perda da área plantada de alguns alimentos. O arroz deve perder 62% de seu espaço: dos 1.687 mil hectares dedicados ao seu plantio em 2020/2021, devem restar apenas 641 mil hectares em 2030/2031. O feijão, que no ano safra 2020/2021 dispõe de 2.898 mil hectares para seu cultivo, ficará com apenas 1.830 mil hectares em 2030/2031, uma perda de 36,8%.

Enquanto isso, produtos agrícolas que servem principalmente como matérias primas industriais, e não como alimentos saudáveis, estão em expansão. A área plantada de milho deve crescer de 19.841 mil hectares em 2020/2021 para 21.948 mil hectares em 2030/2031, um aumento de 10,6%. O crescimento da soja é ainda maior: de 38.502 mil hectares em 2020/2021, deve subir para 48.851 mil hectares em 2030/2031, aumento de 26,8%.

O relatório fala das possibilidades à disposição do agronegócio para aumentar a área plantada dessas culturas. Um exemplo: “A expansão de área de soja e cana-de-açúcar deverá ocorrer pela incorporação de áreas novas, áreas de pastagens naturais e também pela substituição de outras lavouras que deverão ceder área” (p. 87). Note o uso das expressões ‘incorporação de áreas novas’, que pode servir de eufemismo para ‘desmatamento’, e ‘substituição de outras lavouras que deverão ceder área’, uma referência a cultivos que estão perdendo área plantada, onde se incluem o arroz e o feijão.

Os dados que o relatório apresenta sobre anos anteriores mostram que a redução das áreas plantadas de arroz e de feijão já é um processo em curso há pelo menos dez anos. Entre os anos safra 2009/2010 e 2019/2020, esses cultivos perderam, respectivamente, 39,7% e 18,9% de seus territórios. No mesmo período, houve enorme expansão das commodities: 42,6% no caso do milho e 57,4% no caso da soja.

Área Plantada com 5 principais grãos – Brasil (mil hectares). Fonte: Projeções do Agronegócio 2020/2021 a 2030/2031. CLIQUE PARA AMPLIAR

No momento atual, a diferença entre as áreas plantadas de alimentos e de commodities é gritante. A título de exemplo, em 2020/2021 temos 4.585 mil hectares na soma das áreas de arroz e feijão, contra 58.343 mil hectares no total para milho e soja. A área dedicada a estas duas commodities é 12,7 vezes maior que a área de cultivo de dois dos principais alimentos dos brasileiros.

O estudo avalia que “algumas lavouras, como mandioca, café, arroz, laranja e feijão, devem perder área, mas a redução será compensada por ganhos de produtividade” (p. 86). As estimativas para 2030/2031 são de que, nessas condições, a produção de arroz cresça 3,4% e a produção de feijão caia 1,2%.

Ganhos de produtividade são incertos e, sobretudo para as pequenas propriedades, responsáveis pela maior parte dos cultivos de arroz e feijão, dependem de programas de fomento à produção e de assistência técnica e extensão rural. Por outro lado, os grandes estabelecimentos produtivos do agronegócio, altamente capitalizados, conseguem sem dificuldade comprar ou arrendar propriedades menores que hoje produzem alimentos. Assim, o cenário apontado no relatório é extremamente delicado. Políticas públicas específicas para a produção de alimentos são essenciais para evitar redução nas colheitas, fazendo os preços subirem ainda mais.

Se há mesmo perspectivas de aumento de produtividade nos cultivos de arroz e feijão, melhor seria se isso fosse usado para trazer um sensível crescimento de sua produção, provocando queda nos preços e facilitando o acesso da população a esses alimentos. Infelizmente, no olhar do agronegócio, o esperado ganho de produtividade de arroz e feijão é apenas mais um fator para contribuir na expansão das commodities, mesmo havendo 33,1 milhões de brasileiros passando fome.

Para argumentar que a perda de áreas de cultivo de alimentos não levará a problemas de abastecimento, o relatório apresenta ainda um prognóstico de queda no consumo de arroz e feijão. Os cálculos dizem que, até 2030/2031, o consumo de arroz no Brasil deve cair 2,2% e o de feijão deve cair 0,7%.

Se mesmo com as expectativas de que a população brasileira cresça até 2030 esses prognósticos estiverem corretos, o relatório está anunciando um futuro tenebroso. A queda no consumo desses dois itens básicos na cultura alimentar brasileira só pode significar duas coisas: ou as pessoas vão mesmo comer menos (ou seja, mais fome!) ou passarão a comer outras coisas (provavelmente menos saudáveis). Provavelmente, ambos.

De fato, o Atlas das situações alimentares no Brasil já aponta, com base em dados de 2002 a 2018, uma queda no consumo de alimentos in natura ou minimamente processados, acompanhada de um aumento no consumo dos alimentos processados e ultraprocessados. Estamos diante de um cenário de aumento da fome e queda na qualidade da alimentação.

O relatório Projeções do Agronegócio é escrito na perspectiva daqueles para quem a agricultura é uma atividade para se ganhar muito dinheiro. Ao falar da alta nos preços agrícolas em 2021, apresenta isso como uma boa notícia: “os preços de carnes, bovina e suína, e também de milho e soja sobressaem-se em relação aos demais. São produtos que têm-se beneficiado do comércio internacional favorável, e da taxa de câmbio vigente neste ano” (p. 9, grifos nossos).

Com o dólar em alta, quem exporta ganha mais dinheiro, e isso puxa os preços internos para cima. Numa perspectiva de combate à fome, que definitivamente não é a do agronegócio, boa notícia seria uma queda de preços, pois isso significaria alimentos mais baratos para a população brasileira.

Cabe aqui citar um trecho de um livro do professor José Graziano da Silva, em que ele descreve o latifúndio escravista, principal atividade econômica do Brasil colônia, mais de quatrocentos anos no passado.

“A produção de alimentos do latifúndio variava muito em função do preço do seu produto principal destinado à exportação. Por exemplo, quando o preço do açúcar (e mais tarde do café) subia no mercado mundial, todas as terras e os escravos eram utilizados para expandir a sua produção, diminuindo assim a produção de alimentos. Nesses períodos havia fome na colônia e as autoridades estimulavam os pequenos agricultores a expandirem sua produção, para abastecer não só as vilas e cidades, como às vezes os próprios latifúndios” (O que é Questão Agrária, p. 27).

Perceba como vivemos exatamente no mesmo país que ele descreve.

Apenas dois comentários sobre essa rápida viagem no tempo. A fome, que segue firme aqui na colônia, tem basicamente as mesmas causas estruturais. E quem de fato alimenta este país são e sempre foram os pequenos agricultores.

pnae

Construído ao longo de décadas através de sucessivas melhorias, como resultado de muita mobilização social, o Programa Nacional de Alimentação Escolar é considerado um dos maiores programas no mundo com essa finalidade e, segundo sua página oficial, é o único com atendimento universalizado.

Começou a ser estruturado na década de 1950, na forma de uma campanha de merenda escolar. Inicialmente dependeu de convênios com organismos internacionais, tendo ainda o enfoque do atendimento a populações carentes. A Constituição de 1988 assegurou o direito à alimentação escolar a todos os alunos do ensino fundamental. Em 1994 sua operação (planejamento de cardápios, aquisição dos gêneros, distribuição) foi descentralizada, por meio do envolvimento das secretarias estaduais de educação e de convênios com os municípios.

Em 2001 a legislação introduziu o respeito aos hábitos alimentares regionais e à vocação agrícola de cada município. Além disso, passou a exigir que 70% dos recursos sejam aplicados em produtos básicos. Dois importantes passos em direção à qualidade nutricional e ao respeito às culturas alimentares locais. Em 2009, foi estendido para toda a rede pública de educação básica e, em 2013, para os alunos de EJA (educação de jovens e adultos), AEE (atendimento educacional especializado) e escolas de tempo integral.

A legislação de 2009 é considerada um marco importante na história do PNAE por tornar obrigatório que no mínimo 30% dos recursos repassados sejam utilizados na “aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas” (Lei nº 11.947/2009, Art. 14º). Nesses casos, fica dispensado o processo licitatório, e a aquisição passa a ser encaminhada por meio de chamadas públicas.

Os efeitos desse envolvimento da agricultura familiar podem ser sentidos de diversas formas. Nos refeitórios das escolas, houve sensível melhoria no cardápio das refeições. O feijão enlatado que era servido em muitas escolas, proveniente de locais indefinidos de qualquer canto do planeta e cheio de conservantes químicos, foi substituído por feijão fresco, produzido em pequenas propriedades na própria região. As crianças passaram a receber frutas locais no lugar de biscoitos industrializados. Um simples artigo da lei pode provocar a substituição de produtos ultraprocessados por alimentos in natura na alimentação de milhões de crianças.

Foto: divulgação

Fora da escola as mudanças também são significativas. As compras municipais garantem renda para agricultores e agricultoras locais, que passam a viver em melhores condições e a consumir mais no comércio da cidade, fazendo girar a economia, gerando distribuição de riqueza e aumentando a arrecadação de impostos do município. A justiça social se propaga por toda a cadeia econômica na forma de prosperidade para todos.

A oportunidade dada aos pequenos agricultores pelo programa também estimula o associativismo, a formação de cooperativas e a organização da classe produtora sendo, portanto, um fator de fortalecimento político da agricultura familiar. Quando as escolas foram fechadas em função da pandemia, o programa manteve as compras municipais desses pequenos produtores, garantindo o escoamento da produção. As famílias dos alunos podiam retirar os alimentos nas escolas e, em alguns casos de maior vulnerabilidade, podiam recebê-los em casa.

A concretização desse potencial, no entanto, depende em grande medida das entidades municipais e estaduais que fazem a gestão dos recursos. São elas que decidem sobre quais produtos adquirir, e de quem. Talvez pela própria formulação do texto da lei, ela infelizmente não consegue “garantir”, como muito se diz em matérias sobre o assunto, o percentual mínimo de 30% em compras da agricultura familiar.

O próprio artigo 14 da referida lei já prevê as condições nas quais esse percentual pode ser flexibilizado, oferecendo possibilidades de justificativas que são difíceis de serem verificadas pelos mecanismos de controle social. A página de perguntas frequentes sobre o PNAE informa que, no caso do não cumprimento dos 30%, basta às entidades executoras justificarem posteriormente as razões para isso. De tempos em tempos circulam notícias sobre o descumprimento da exigência por parte das entidades municipais e estaduais (exemplos aqui, aqui e aqui).

Dados sobre as compras da agricultura familiar disponíveis na própria página do governo federal apontam para um quadro pouco animador no que se refere ao cumprimento dos 30% estabelecidos pela lei. As informações mais recentes disponíveis nessa página se referem a 2017 e, ainda que já um pouco antigas, dão uma ideia da situação.

Dos 640 municípios paulistas listados na base de dados disponível, apenas 226 (35,3%) empregaram 30% ou mais da verba do PNAE na compra de produtos da agricultura familiar. No caso de 280 prefeituras (43,8%), o percentual de compras da agricultura familiar fica abaixo do exigido por lei. Há 123 municípios em que o dado referente a compras da agricultura familiar está marcado com um traço, sem esclarecer se isso corresponde a um zero ou a simples ausência de informações. Portanto, o percentual de prefeituras que não atingiram os 30% é provavelmente ainda maior, podendo chegar a 63% caso esse traço seja mesmo um zero em todos os casos.

No município de São Paulo, no ano de 2017, o percentual da verba do PNAE investido em compras da agricultura familiar foi, segundo essa base de dados, de apenas 7,8%, muito distante do mínimo exigido pela legislação.

Ao comprarem produtos em varejistas ou mesmo em grandes distribuidoras, as prefeituras pagam mais caro, pois estão optando por alimentar uma cadeia de distribuição cheia de intermediários. Além disso, estão quase sempre jogando recursos para fora do município. Ao escolherem a agricultura familiar, a verba vai diretamente para os pequenos produtores, promovendo justiça econômica e social. O que está em jogo nesta decisão do gestor público é a escolha entre fortalecer trabalhadores e trabalhadoras da região ou fortalecer ainda mais o grande capital.

Um agricultor familiar que deseje vender sua produção para o PNAE deve, em primeiro lugar, emitir a sua DAP (Declaração de Aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), que é o documento que habilita a unidade produtiva para participar do programa. Precisa então ficar atento, junto à prefeitura de seu município, para as chamadas públicas para aquisição de alimentos. Deverá entregar um projeto de venda de gêneros alimentícios para alimentação escolar e demais documentos exigidos por aquela chamada. Uma vez aprovado o projeto, será elaborado um contrato de aquisição entre a prefeitura e a unidade produtiva.

Ao incluir a agricultura familiar diretamente nas compras públicas, o PNAE cria a oportunidade de reconfigurar os sistemas alimentares a partir das relações locais, com impactos imediatos na saúde da população estudante, nas condições de vida dos pequenos produtores e na economia local. Sendo a prefeitura municipal o único intermediário entre produtor e consumidor, forma-se um circuito curto que leva os alimentos da horta ao refeitório escolar sem dispersão de recursos e com grande qualidade nutricional.

Sua efetividade, porém, depende de constante vigilância e pressão por parte da sociedade civil, que pode fazer isso por meio dos Conselhos de Alimentação Escolar ou através de incidência direta junto a prefeituras, secretarias de educação e câmaras de vereadores. Milhares de municípios brasileiros respeitam a lei, investindo 30% ou mais (em alguns casos, bem mais) em compras diretas da agricultura familiar. Mas há milhares de municípios que ainda estão abaixo ou bem abaixo dessa exigência legal. Existe aqui um imenso campo de oportunidades para o fortalecimento da agricultura familiar.

revolução verde

Duas palavras bonitas, associadas a ideologias de esquerda e posições progressistas: revolução, música para os ouvidos de quem sonha em derrubar esse sistema que promove a expropriação sem limites; verde, referência a visões de mundo em que o respeito à natureza prevalece sobre o desejo insaciável de ganhar dinheiro.

Cuidado com o que você ouve. Juntas, essas palavras formam uma expressão que aponta para um lado oposto a isso tudo. Diz respeito a uma importante mudança na forma de produzir alimentos que concentrou ainda mais a riqueza, tirou o camponês da terra e envenenou a comida que hoje comemos.

Revolução verde se refere às inovações que surgiram sobretudo na década de 1960 com a finalidade de aumentar a produção agrícola. Trata-se de um conjunto de tecnologias como mecanização, fertilizantes químicos, irrigação controlada e o uso de variedades de cereais de alto rendimento.

O termo foi usado pela primeira vez em 1968, em referência ao desenvolvimento de novas variedades de trigo e milho. Tanto na pesquisa quanto na implementação, a revolução verde contou com o apoio de grandes fundações estadunidenses, e teve no México um imenso campo de pesquisa e testes.

O processo se baseou em transferência de tecnologia, que vinha na forma de um conjunto de práticas que, por meio das promessas de grandes lucros aos produtores e de erradicação da fome no mundo, começou a ser praticamente imposto no campo.

Para a agricultura, o pacote tecnológico incluía fertilizantes, agrotóxicos, máquinas e variedades de sementes. Para a criação de animais, havia rações, fármacos, instalações projetadas para máxima produtividade e naturalmente o uso de matrizes e reprodutores selecionados. Como resultado, a atividade no campo tomou a forma de produção industrial, com monoculturas e a criação de animais em confinamento.

A finalidade era o aumento da produção, mas isso não quer dizer que essa produção seria usada para saciar a fome das pessoas. O objetivo era, e ainda é, a produção de commodities para exportação.

Na análise de Ceres Hadich e Gilmar Andrade, autores do verbete sobre o assunto no Dicionário de Agroecologia e Educação, entre os muitos efeitos da revolução verde podemos destacar: aumento da concentração fundiária e empobrecimento dos pequenos agricultores; êxodo rural massivo; esgotamento do solo, avanço do desmatamento e redução da biodiversidade; apropriação de recursos naturais brasileiros por parte de multinacionais; transformação da semente em propriedade privada; padronização da produção e consumo de alimentos, comprometendo a soberania alimentar.

A fome no mundo, como se sabe, não acabou. Ao contrario, nestes últimos anos temos assistido um agravamento da pobreza, e isso se deve, entre outros fatores, aos efeitos da revolução verde: concentração de riqueza, expropriação das terras e, devido à maior integração e fortalecimento dos agentes do sistema agroindustrial, o aumento de seu poder para defender os seus interesses econômicos, que vêm se mostrando contrários aos interesses dos povos, da natureza e da vida.

aquisição de alimentos

Uma forma de se caracterizar as situações alimentares existentes no país é através dos dados sobre a aquisição de alimentos. Aqui temos em vista a alimentação que as pessoas fazem em seus domicílios, desconsiderando aquilo que elas comem fora de casa. Por outro lado, neste tipo de pesquisa o IBGE computa as informações tanto daquilo que as famílias compram (aquisições monetárias) quanto dos alimentos obtidos de outras formas (aquisições não monetárias), como através de produção própria, coleta em hortas, pomares e canteiros, pesca, caça e doações recebidas.

O Atlas das situações alimentares no Brasil: a disponibilidade domiciliar de alimentos e a fome no Brasil contemporâneo, publicado em 2021, traz informações interessantes referentes à aquisição de alimentos pelos brasileiros. O estudo utilizou dados de diversas edições da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), elaboradas pelo IBGE. O Atlas apresenta os dados de maneira um tanto restrita, omitindo informações que poderiam ser do interesse de alguns leitores, mas ainda assim permite observações interessantes.

Foram computados os dados de aquisição de alimentos per capita em quilogramas, organizando em grupos alimentares os itens adquiridos pelas famílias. Porém apenas alguns dados relativos são apresentados. A aquisição alimentar da classe de maior rendimento (mais de 15 salários-mínimos) é, como se poderia supor, acima da média geral em vários grupos alimentares. A aquisição de frutas dessa classe, por exemplo, é 124,9% superior à média geral. Essa classe também se destaca em outros grupos alimentares: hortaliças folhosas e florais (114,3% acima da média), hortaliças frutosas, tuberosas e outras (83,6% acima da média) e laticínios (74,5% acima da média geral).

Diferença na aquisição alimentar per capita anual em relação à média nacional (2017-2018). Dados: IBGE. Adaptado de Atlas das situações alimentares no Brasil. CLIQUE PARA AMPLIAR

Porém o grupo alimentar em que há o maior destaque dessa classe econômica são os alimentos preparados e misturas industriais, no qual o consumo dessa classe é 187% acima da média geral. Nesse grupo encontram-se produtos como alimentos congelados, refeições prontas, frango empanado, batata frita, salgadinhos e misturas para bolo. São produtos de maior valor agregado (ainda que alguns deles sejam de baixíssimo valor nutricional), o que pode explicar o fato de aparecerem com destaque nessa classe econômica.

A classe de menor rendimento (até 2 salários-mínimos) se destaca da média geral na aquisição de alguns grupos alimentares: farinhas e féculas (17,4% acima da média), feijão (12,1% acima da média) e arroz (11,9% acima da média).

In natura e ultraprocessados

O estudo também apresenta uma avaliação da disponibilidade domiciliar de alimentos com base em uma classificação diferente proposta pelo IBGE, a qual agrupa os produtos alimentares com base na extensão de seu processamento industrial. Essa classificação resulta em quatro grupos alimentares: alimentos in natura (ou minimamente processados), ingredientes culinários (processados), alimentos processados e alimentos ultraprocessados.

As regiões sul e sudeste são aquelas onde a aquisição de ultraprocessados é maior entre as famílias (22% e 21,4%, respectivamente). É nessas duas regiões também que se observam os menores percentuais na aquisição de alimentos in natura: 47,3% na região sul e 44,9% na região sudeste. A região norte é a que apresenta, ao mesmo tempo, a menor participação de alimentos ultraprocessados (11,4%) e a maior participação de alimentos in natura (58,2%) na aquisição de alimentos pelas famílias.

Participação dos grupos de alimentos no total de calorias a partir da aquisição domiciliar (2017-2018). Dados: IBGE. Adaptado de Atlas das situações alimentares no Brasil. CLIQUE PARA AMPLIAR

A situação do domicílio (urbano ou rural) também influencia na participação dos ultraprocessados. Nos domicílios urbanos, a aquisição de ultraprocessados representa 19,8% da aquisição das famílias, contra apenas 11,3% nos domicílios rurais. Inversamente, os alimentos in natura representam 47,7% da aquisição alimentar dos domicílios urbanos, número que sobe para 57,9% nos domicílios rurais.

A aquisição de alimentos in natura e ultraprocessados varia de maneira bem marcada conforme a renda. Entre os 20% mais pobres, os alimentos in natura representam 55,6% da aquisição dos domicílios e os ultraprocessados representam 12,5%. Ao longo dos outros grupos de renda, os alimentos in natura vão diminuindo e os ultraprocessados vão aumentando com regularidade, até chegarmos aos 20% mais ricos, onde a participação dos alimentos in natura cai para 44,2% e a dos alimentos ultraprocessados sobe para 24,7%, praticamente um quarto da aquisição de produtos alimentícios nesses domicílios.

Percebe-se como existe aqui uma questão de cultura alimentar. Os 20% mais ricos, que teriam condições de fazer melhores escolhas, inclusive com alimentos orgânicos, tidos como caros, optam mais por produtos comestíveis de baixíssimo valor nutricional.

Um olhar ao longo dos anos também mostra a diminuição gradual dos alimentos in natura e o aumento dos ultraprocessados na aquisição das famílias. Os alimentos in natura caem de 53,3% em 2002/2003 para 49,5% em 2017/2018. Ao mesmo tempo, os ultraprocessados crescem de 12,6% em 2002/2003 para 18,4% em 2017/2018.

Vemos, assim, dados que associam o avanço da chamada vida urbana moderna a hábitos alimentares de menor qualidade.

mapa da fome

Em 2014, o Brasil foi um dos destaques do Relatório de Insegurança Alimentar no Mundo, elaborado anualmente pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). A publicação, que traz dados gerais sobre a insegurança alimentar, dedicou ao país uma seção especial de três páginas e meia, onde sintetizou as lições que a comunidade internacional poderia aprender a partir das políticas públicas do então governo brasileiro. Foi um importante reconhecimento, por um órgão internacional, de um amplo e continuado conjunto de medidas que tirou milhões de brasileiros da fome e da miséria.

A publicação dessa edição do relatório tornou-se referência por marcar o momento em que o Brasil sai do mapa da fome da ONU. Esse mapa tem como base o indicador PoU – Prevalência de Subalimentação (Prevalence of Undernourishment, no original em inglês), usado na época para monitorar o progresso dos países no cumprimento dos então vigentes Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Sair do mapa da fome, naquele contexto, significava passar a apresentar um valor abaixo de 5% no indicador PoU.

Esse indicador mede a probabilidade de uma pessoa escolhida aleatoriamente apresentar um consumo de calorias abaixo dos requisitos mínimos para uma vida ativa e saudável. O índice é calculado com base em informações de grande escala dos países, por exemplo, dados macro sobre oferta de alimentos nos territórios. Trata-se, portanto, de uma estratégia bastante indireta e abstrata de se medir a chamada insegurança alimentar. Além disso, ao definir a fome com base em quantidade de calorias, o indicador opta por uma caracterização da fome de um ponto de vista clínico, deixando de lado os aspectos sociais e subjetivos dessa questão tão delicada.

A fome é uma experiência individual, uma condição sentida e vivenciada por seres conscientes. Uma abordagem mais próxima dos sujeitos parece mais adequada para investigá-la. Em vez de medir (ou, pior ainda, estimar) a quantidade de calorias ingeridas, acreditamos que a forma mais razoável e cientificamente honesta de saber se uma pessoa está com fome é perguntar a ela.

A Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) é um estudo aplicado pelo IBGE em suas pesquisas junto aos domicílios brasileiros. Os participantes respondem perguntas relacionadas a experiências concretas de suas famílias: sentir preocupação com a falta de condições para obter alimentos, ficar impossibilitado de comer certos tipos de alimentos, ter que comer menos do que sentia ser necessário, ter que deixar de fazer certas refeições, passar um dia inteiro sem comer. Pesquisas baseadas nessa escala são capazes de captar experiências de fome nas diferentes formas e intensidades que isso pode tomar nas vidas das pessoas.

Lançado no mês passado, o Atlas das situações alimentares no Brasil: a disponibilidade domiciliar de alimentos e a fome no Brasil contemporâneo se baseia em dados sobre a fome levantados pela EBIA. O trabalho traz um breve histórico dos indicadores de fome, propondo uma importante reflexão sobre a terminologia usada para se tratar desse tema. Mostra inclusive o contexto no qual o termo fome, a pedido do Departamento de Agricultura dos EUA, foi suprimido do indicador adotado na época naquele país, permanecendo apenas ‘insegurança alimentar’. De forma a eliminar eufemismos, o Atlas adota explicitamente o termo fome para situações usualmente tratadas como ‘insegurança alimentar moderada ou grave’ e risco de fome para os casos chamados de ‘insegurança alimentar leve’.

O Atlas traz dados dos anos de 2004, 2009, 2013 (nos quais ela foi aplicada dentro da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e de 2017/2018 (em que a EBIA foi aplicada com a Pesquisa de Orçamentos Familiares).

É possível observar uma clara diminuição da fome e do risco de fome entre 2004 e 2013. Nesse ano temos as menores proporções de domicílios com fome (7,8%) e com risco de fome (14,8%) no país. Há então uma reversão nessa tendência. A fome e o risco de fome voltam a aumentar e, na pesquisa de 2017/2018 atingem, respectivamente, 12,7% e 24% dos domicílios.

Evolução da fome e do risco de fome (2004-2018). Dados: IBGE. Adaptado de Atlas das situações alimentares no Brasil. CLIQUE PARA AMPLIAR

Os dados segmentados por situação do domicílio revelam um quadro duplamente intrigante. Em termos absolutos, o numero de domicílios com fome ou risco de fome nas áreas urbanas é muito maior. São 6,9 milhões de domicílios em condição de fome e 14 milhões de domicílios em risco de fome, segundo os dados de 2017/2018. Trata-se de um triste retrato do cenário de miséria a que são submetidas as pessoas que escolhem a vida urbana em busca das oportunidades que ela lhes promete. O dado aponta para a questão do acesso à alimentação, um dos componentes desse fenômeno multifatorial que é a segurança alimentar. Além da situação de pobreza ou miséria que atinge muitas pessoas, há ainda, em muitas áreas, a dificuldade ou impossibilidade de se conseguir alimentos saudáveis a preços acessíveis, os chamados desertos alimentares.

Ao mesmo tempo, em termos proporcionais, as áreas rurais são mais afetadas. Nos dados de 2017/2018, a fome aparece em 19,3% dos domicílios rurais (contra 11,6% dos domicílios urbanos) e o risco de fome em 27,1% deles (contra 23,5% dos urbanos). É assustador perceber que os territórios que teoricamente deveriam servir para produzir alimentos estão negando essa possibilidade às pessoas, pois estão dominados pelo sistema do agronegócio, que destrói a produção de subsistência. Nele, a terra serve para ganhar dinheiro e não para saciar a fome das pessoas.

Entre 2004 e 2009, a redução da fome e do risco de fome foi maior no campo do que na cidade. Já entre 2009 e 2013 a melhora mais expressiva se deu nas áreas urbanas.

Os dados por unidades da federação mostram que São Paulo, Bahia e Minas Gerais concentram os maiores números absolutos de domicílios em situação de fome; quanto ao risco de fome, os maiores números estão em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Em termos relativos, os maiores percentuais de fome estão nos estados de Amazonas, Maranhão e Amapá; as maiores proporções de risco de fome estão em Maranhão, Alagoas e Pará.

O fato concreto é que os dados mais recentes apresentados pelo Atlas mostram um quadro em que há fome em 8,7 milhões de domicílios brasileiros e risco de fome em outros 16,5 milhões de domicílios. Em um cálculo aproximado, assumindo uma média de 3 pessoas por domicílio, podemos estimar que havia 26,1 milhões de pessoas com fome e 49,5 pessoas em risco de fome no Brasil em 2018. Tudo isso ainda antes da pandemia e do desmonte, aprofundado nestes últimos anos, das políticas de combate à fome e à miséria que fizeram o Brasil ser destaque no relatório da FAO de 2014.

Papel mundialmente infame para um país que se destaca como grande exportador de commodities agrícolas. Fica claro como manter mais de um terço da população em situação de fome ou risco de fome é resultado de uma escolha política.

soberania alimentar

Como pode uma comunidade de pessoas fazer suas próprias escolhas sobre as formas de se alimentar se o controle da produção e distribuição de alimentos está nas mãos de corporações, sejam elas nacionais ou transnacionais? Esta é a questão fundamental para se pensar a noção de soberania aplicada a este aspecto essencial da vida que é a alimentação.

Soberania diz respeito à condição, de uma pessoa ou de um povo, de ser independente e livre para tomar decisões referentes aos seus próprios assuntos, estando imune aos interesses alheios e externos.

Portanto, quando falamos de soberania alimentar, estamos nos referindo à possibilidade de uma comunidade ou uma nação de fazer suas próprias escolhas quanto ao seu sistema alimentar: o que cultivar, com que técnicas, onde comercializar os alimentos, como transportá-los, como gerir os recursos da natureza essenciais à sua produção.

Um sistema alimentar pode ser pensado para gerar renda para um grande número de pequenos produtores, proporcionando-lhes uma vida digna, fortalecendo comunidades e produzindo alimentos saudáveis, ou pode ser estruturado de forma a produzir ganhos milionários para umas poucas empresas agropecuárias altamente capitalizadas, em enormes fazendas que empregam pouca mão de obra e esvaziam o campo, utilizando grande quantidade de veneno para minimizar prejuízos.

A produção de alimentos em escala industrial utiliza monoculturas e processos uniformizados, que levam à perda da diversidade. Fazendas de menor porte, quando convertidas a esses processos produtivos, também acabam presas, através dos contratos, às decisões corporativas, fazendo com que agricultores deixem de produzir as variedades que sempre cultivaram. Os produtos do agronegócio acabam dominando os sistemas de distribuição e comercio. Assim, da produção até o varejo, o sistema impõe produtos alimentícios a comunidades que antes cultivavam e consumiam variedades tradicionais e/ou locais, que acabam desaparecendo. Neste tipo de arranjo, a produtividade do capital é mais importante que a liberdade de escolha do consumidor.

Assim, a soberania alimentar diz respeito também à possibilidade de as pessoas obterem aquilo que comem de forma independente do enorme complexo de distribuição de alimentos, composto por transportadoras de longa distância, atacadistas, grandes entrepostos e redes de varejo, que têm o poder de decidir aquilo que o consumidor vai comer e aquilo que ele jamais encontrará nas prateleiras.

Naturalmente, o acesso dos pequenos produtores à terra é crucial quando se pensa em soberania alimentar. E terra não basta, é preciso que seja uma terra onde exista água, sem a qual o cultivo não é possível. Água potável ou com condições mínimas para uso em irrigação das plantações, livre de contaminação por agrotóxicos, esgotos, detritos industriais e substâncias tóxicas resultantes de mineração, garimpo e outras atividades legais ou ilegais.

Foto: Dionizio Bueno

Existe ainda um outro fator essencial que é o acesso a sementes. É importante que sejam sementes livres, como sempre foram na história da humanidade, e não sementes proprietárias, pertencentes a alguma corporação, e que prendem o agricultor em uma teia de obrigações e armadilhas contratuais. Sementes que têm um dono e não se reproduzem representam talvez a condição mais oposta à soberania alimentar. São dependência e submissão em um de seus mais altos graus.

A questão dos recursos naturais é essencial para se pensar em soberania alimentar. Terra, água e sementes são condições para a vida, deveriam ser bens públicos por definição, jamais serem privatizados. O sistema produtivo do agronegócio vem há décadas deteriorando o solo, contaminando rios e lençóis freáticos com veneno, destruindo ecossistemas. Assim, a discussão sobre soberania alimentar está naturalmente articulada a outras agendas mais amplas, de interesse de toda a sociedade.

A Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, criada pela UNESCO em 2001, afirma, em seu primeiro artigo: “Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza.” As culturas alimentares fazem parte do patrimônio de um povo. O respeito à diversidade está ligado à continuidade dessas formas de se alimentar, de cultivar o solo, de se relacionar com o lugar onde se habita. Novas tecnologias podem existir como opções para os agricultores, mas a decisão entre adotá-las ou manter as tradições agrícolas locais deve ser exclusivamente dessas comunidades, e não imposta a partir de fora por organizações alienígenas, seja com armas contratuais, seja pela sedução do dinheiro.

Falamos aqui de direito à alimentação, a um meio ambiente saudável e livre de veneno, à diversidade de formas de viver, plantar e se alimentar. Soberania alimentar é, portanto, uma questão de direitos humanos. Quando os direitos humanos são de fato prioritários sobre os direitos econômicos, o sistema agrícola é organizado para produzir alimentos, e não commodities. Alimentos servem para saciar a fome de seres que têm direito à vida; commodities servem para corporações ganharem dinheiro.

O termo soberania alimentar foi cunhado pela Via Campesina durante a Cúpula Mundial da Alimentação, um evento realizado em Roma pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), em 1996.

É preciso notar a diferença entre esse conceito e a ideia de segurança alimentar. Esta surgiu na década de 1970, num contexto em que as tecnologias produtivas como transgenia, monoculturas e alta mecanização estavam trazendo um aumento significativo da quantidade de alimentos produzida. Segurança alimentar diz respeito muito mais à disponibilidade de alimentos do que à sua qualidade ou às características do sistema alimentar e suas implicações econômicas, sociais e ambientais.

Ainda que o monitoramento das condições de segurança alimentar de uma população gere indicadores de extrema importância, discutir o problema da fome simplesmente nos termos da segurança alimentar pode estimular um regime alimentar corporativo, com produção em larga escala e todas as consequências apontadas aqui. A ideia de segurança alimentar deixa de contemplar diversas questões presentes no conceito de soberania alimentar e, em certos aspectos, até se opõe a ele. A proposta de simplesmente colocar alimentos na mesa, não importando quais sejam eles ou como são produzidos, pode levar a soluções que a indústria da alimentação, por sua capacidade de trabalhar em grande escala, tem mais condições de oferecer. No contexto em que vivemos, defesa da soberania alimentar traz de volta à discussão aspectos como a qualidade nutricional dos alimentos e todas as consequências do sistema que os produz.

O Dia Internacional de Luta pela Soberania Alimentar é celebrado todos os anos em 16 de outubro. Neste ano, a Conferência contra Fome aconteceu de forma remota e reuniu representantes de mais de 20 movimentos e organizações populares, rurais e urbanas. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) divulgou o documento Alimentação é Direito de Todo Ser Humano, no qual se posiciona diante do problema da fome no Brasil.

Discutir amplamente a soberania alimentar é um convite para que a sociedade deixe de pensar nos alimentos como mercadorias e volte a considerá-los um direito humano, essencial à reprodução da vida.

reaprendizagem

A torneira está pingando. Chama o encanador e manda trocar por uma torneira nova? Acordou enjoado ou com dores abdominais. Vai até a farmácia e se enche de comprimidos? Pneu da bicicleta furou. Leva na bicicletaria e manda trocar a câmera? A calça está arrastando no chão. Precisa do serviço de costura do shopping center para ajustar uma barra?

Alguns conhecimentos que eram amplamente difundidos há apenas uma ou duas gerações, hoje são bem mais raros entre as pessoas. Consertar ou até produzir roupas, usar ferramentas manuais para fazer reparos na casa, produzir conservas, fazer pão, aliviar pequenos males com chás ou remédios caseiros, utilizar áreas verdes para produzir alimentos, estas e outras habilidades eram triviais na geração dos nossos pais (ou dos avós dos mais jovens).

Em apenas algumas décadas, a cultura do consumo conseguiu varrer esses conhecimentos de boa parte da população, ao nos acostumar com soluções pensadas para gerar faturamento para grandes empresas e produzir em nós a dependência dos produtos e serviços oferecidos pelo mercado. No caso dos bens de consumo, a mensagem é “vá até o mercado e compre pronto”. Quanto aos chamados bens duráveis, “jogue esse fora e compre um novo”.

Um projeto voltado para a autonomia precisa se contrapor a esse tipo de mensagem, valorizando as soluções que estão ao alcance das pessoas. Por que eu preciso de um novo se eu posso fazer um pequeno reparo ou trocar uma peça daquele que eu já tenho? Além disso, é preciso criar um processo de reaprendizagem, no qual podemos compartilhar e difundir habilidades que permitem resolver pequenos problemas, sem ter que recorrer a serviços profissionais ou à compra de um novo bem.

Dentro do conceito de Cidades em Transição, que propõe um conjunto de ações que cidades ou grupos menores podem adotar para criar um modelo de desenvolvimento mais razoável e autossuficiente, isso recebe o nome de reskilling. O conceito surge no contexto da adaptação às mudanças climáticas e à escassez das fontes energéticas usadas atualmente, sobretudo o petróleo.

De fato, o fim da energia abundante e barata obriga a sociedade a repensar muitos aspectos da vida e da economia, como por exemplo os sistemas de distribuição baseados em redes de transporte de longa distância. A agricultura local ocupa um lugar de destaque como alternativa a esse modelo sem sentido. Se a estupidez da ideia de comer alimentos produzidos a milhares de quilômetros quando é possível produzir bem mais perto não foi suficiente para nos fazer repensar esse arranjo econômico, a escassez de energia finalmente virá para convencer a sociedade a priorizar a produção regional ou local.

Mas não precisamos pensar na reaprendizagem como uma tarefa que precisaremos encarar em vista de um cenário ameaçador de mudança climática e crise energética. Reaprender é interessante simplesmente porque é bom saber as coisas! O conhecimento é libertador e traz autonomia. Além de útil e importante, recuperar habilidades que nos foram tiradas pela cultura de consumo tem um forte sentido político.

O processo de reaprendizagem é uma oportunidade para que possamos compartilhar nossas habilidades, valorizando saberes e criando vínculos fortes e saudáveis entre as pessoas. É possível pensar, por exemplo, em pequenos encontros ou oficinas onde as pessoas troquem esses conhecimentos que permitem resolver pequenos problemas do dia a dia: técnicas de cultivo, costura, marcenaria, mecânica básica, uso de ervas medicinais, técnicas corporais voltadas para a saúde, tarefas simples domésticas como trocar um courinho de torneira ou um interruptor elétrico. Se isso puder acontecer de maneira comunitária, sem monetização dos saberes, será ainda mais incrível.

Essas oficinas têm ainda o efeito de valorizar o conhecimento dos mais velhos, neste mundo que, a bem do consumo, fica nos dizendo que tudo que é velho tem que ser jogado fora e substituído. A reaprendizagem deixa nas pessoas o sentimento de “eu consigo resolver, não dependo dos outros”. A construção da autonomia, inclusive nas pequenas tarefas da vida, é um prazer em si mesma, e fortalece pessoas e comunidades.

preço por unidade de medida

Na gôndola do mercado, você encontra diversas opções de biscoitos industrializados. Um deles é um biscoito quadrado dito integral, de uma marca bem conceituada, em uma embalagem de 200 gramas, ao preço unitário de R$ 2,76. Outro é um biscoito tipo água e sal comum, de uma marca considerada mais popular, com 160 gramas, por R$ 2,39. Qual desses dois produtos, vendidos em quantidades diferentes, é o mais barato?

Muitos consumidores apostarão na segunda opção. Mesmo com a diferença de peso, seu valor unitário parece bem menor. E além de não ser integral, é de uma marca menos conceituada. Porém, uma conta simples vai surpreender. Dividindo o preço do primeiro por seu peso em quilogramas (0,2), temos o valor de R$ 13,80 o quilo. Fazemos a mesma conta para o segundo, seu preço unitário deve ser dividido por 0,16 quilos (outra forma de dizer 160 gramas), e chegaremos no valor de R$ 14,94 o quilo. Apesar das aparências, o segundo biscoito é o mais caro!

Outro bom exemplo de armadilha é o sabão em pó oferecido em embalagem de 800 gramas por R$ 5,49 e em embalagem chamada de ‘econômica’, com 2,4 quilogramas, por R$ 17,90. Se você fizer as contas (apresentadas no texto anterior deste blogue), verá que é mais barato levar três embalagens menores do que uma ‘econômica’.

A política de preços aliada à escolha do tamanho das embalagens é um instrumento à disposição de fabricantes e comerciantes para atingir seus principais (e muitas vezes únicos) objetivos: aumentar as vendas e maximizar os ganhos. Ao jogarem com preços e quantidades nas embalagens, lançam mão de um artifício que tem a finalidade de fazer o consumidor pagar mais caro enquanto pensa que está pagando mais barato.

Há duas possibilidades de defesa contra essas armadilhas. Uma delas depende da iniciativa individual do consumidor: usar a calculadora do telefone celular (que hoje a maioria das pessoas carrega sempre no bolso) e converter os preços para uma unidade em comum, como fizemos acima, para fazer a comparação.

A outra forma de defesa seria, visto que temos aqui uma questão de interesse coletivo, uma lei que obrigasse os estabelecimentos comerciais a exibir nas gôndolas os preços por unidade de medida dos produtos. Essa obrigatoriedade existe há anos em diversos países. Há no Brasil, pelo menos na cidade de São Paulo, alguns raros mercados que espontaneamente já exibem os preços por unidade nas etiquetas de gôndola. Porém, por não se tratar de uma obrigação, eles podem abandonar essa prática a qualquer momento, conforme suas decisões gerenciais. Isso deveria estar em todos os lugares.

Houve em 2015 um primeiro esforço no sentido de regulamentar e generalizar essa prática. A lei nº 13.175/2015 determina a exibição do preço por unidade de medida no comércio de varejo, porém apenas na venda de produtos fracionados em pequenas quantidades. Por ser um caso específico demais, ela não se aplica aos milhares de produtos que chegam já embalados de fábrica. Assim, não ajuda em nada.

Alguns anos mais tarde, um projeto de lei propõe estender a obrigatoriedade a todos os produtos embalados à venda no varejo. O projeto de lei nº 4.355, apresentado em agosto de 2019, determina a exibição do preço por unidade de medida com a finalidade expressa de possibilitar que o consumidor efetue a comparação de preços entre produtos iguais ou similares, oferecidos em embalagens com quantidades diferentes entre si. Porém, até o momento, este projeto de lei encontra-se ainda em tramitação e, ao que tudo indica, está parado em alguma gaveta. Por ser uma interessante amostra de como um projeto de interesse público pode ser tratado de forma a dificultar sua aprovação, segue um breve resumo de como ele tramitou desde sua proposição até agora.

Ao receber o projeto de lei, a mesa diretora da câmara dos deputados determinou que ele passasse por algumas comissões, procedimento de praxe para avaliar seus aspectos técnicos específicos. São elas: Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços (CDEICS), Defesa do Consumidor (CDC) e Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). O projeto chega à primeira delas, a CDEICS, ainda no mês de agosto. É designado um relator, que vai conduzir a análise do projeto pela comissão. Em setembro, encerra-se o prazo para emendas ao projeto, sem que nenhuma tenha sido apresentada. Em novembro o relator apresenta seu parecer, no qual considera o projeto meritório e vota por sua aprovação.

Em dezembro de 2019 o projeto vai para reunião deliberativa. A sessão foi registrada em vídeo, que se encontra disponível no portal da câmara dos deputados (a avaliação deste PL começa no ponto 1:35’07” da gravação). Após fala inicial do relator, na qual ele se declara favorável, o projeto passa a ser discutido por outros membros da comissão.

Quatro deputados manifestam-se contrários ao projeto, sendo que alguns dos argumentos apresentados são falsos ou completamente sem sentido. Três desses deputados vão na linha de dizer que “isso já acontece” ou “o Código de Defesa do Consumidor já pede esse padrão”. Além de isso não ser verdade, esses argumentos têm a evidente finalidade de criar a impressão de que o projeto é desnecessário por ser redundante. Há também argumentos relacionados aos custos gerados pela medida. Um deles classifica isso como “barreiras ao empreendedor” e alega que “ninguém é obrigado a comprar nada, ninguém põe um revolver na cabeça [do consumidor] obrigando-o a comprar”. Um intrigante desafio à inteligência humana.

O último deputado a se manifestar, após chamar o projeto de “controverso”, pede vista ao relatório. O pedido de vista é um ritual de tramitação que dá à parte interessada mais tempo para reunir informações e formar opiniões sobre o assunto, o que tem o efeito de tirar o projeto, por um período determinado de tempo, da pauta da comissão. O presidente da sessão responde afirmativamente ao pedido de vista antes mesmo do término da frase do deputado. Enquanto o presidente encaminha a continuidade da sessão para o próximo assunto em pauta, a câmera ainda mostra, por alguns segundos, esse deputado que pediu vista. É possível vê-lo lançando uma expressão facial cheia de cumplicidade, com piscadinha e tudo, a algum outro membro que não dá para identificar pelo vídeo.

No ano de 2020, primeiro da pandemia, não há tramitação. O único fato mencionado é que, em fevereiro desse ano, o relator (aquela única pessoa a se manifestar favoravelmente na discussão) deixa de ser membro da comissão. Em março de 2021 encerra-se o prazo do pedido de vista concedido a um dos deputados. Em abril do mesmo ano é designado um novo relator. Desde então, não há no portal da câmara dos deputados nenhum outro registro de tramitação desse projeto de lei. Uma vez aprovado na câmara, o projeto precisaria ainda passar pelo senado e então seguir para sanção presidencial.

Paralelamente a esse projeto de lei federal, há também algumas iniciativas isoladas em nível estadual. Este blogue teve conhecimento de duas delas. Uma é a lei nº 7.834/2016 do estado de Alagoas, originada por um projeto de lei de 2015. Esta lei está, teoricamente, em vigor no estado. Buscaremos informações complementares sobre a efetividade concreta dessa lei nos supermercados de lá. A outra iniciativa é o projeto de lei nº 3.859/2018, em tramitação na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O último registro de tramitação desse projeto disponível no portal dessa casa legislativa data do início deste mês, agosto de 2021. Na prática, o projeto ainda não está aprovado.

Se, por um lado, os estabelecimentos comerciais poderiam ter o interesse de prestar um bom serviço a seus fregueses, fornecendo informações transparentes que facilitem suas escolhas, por outro, eles têm negócios milionários com seus parceiros fornecedores. Tendem, portanto, a se alinhar com os interesses destes últimos. Ao não informar o preço por unidade de medida, podem beneficiar-se de promoções enganosas, nas quais vendem mais caro produtos que deveriam ser mais baratos. Podem também usar as diferenças de quantidade para mascarar diferenças de preço dos produtos de qualidades diferentes.

Na ponta da cadeia econômica encontra-se o consumidor, aparentemente sozinho. Enquanto não temos leis efetivas a esse respeito, parece que a única alternativa para se defender desse tipo de armadilha é perder a resistência em lidar com números e jamais ter vergonha de usar a calculadora na frente da gôndola ao escolher as compras.

dúzia de dez

Sabemos que a educação precária é uma grande aliada do capital. Graças às deficiências educacionais em habilidades matemáticas bem simples, que qualquer pessoa com ensino fundamental completo deveria dominar, as empresas podem jogar com preços em seu benefício, sem que o consumidor se dê conta disso. A variação da quantidade de produto nas embalagens é uma estratégia eficaz dos fabricantes e varejistas para mascarar diferenças de preços.

Vejamos o caso real de um sabão em pó oferecido em dois tamanhos diferentes. A embalagem de 800g custa R$ 5,49. Existe também uma embalagem dita econômica, com 2,4kg, vendida a R$ 17,90. Acostumado a pensar que em quantidades maiores os produtos saem mais em conta, e influenciado pela palavra ‘econômica’ impressa na embalagem, o consumidor não hesita. Aproveita para reforçar o estoque da casa e escolhe a embalagem de 2,4kg. Mal sabe ele que está pagando mais caro ao fazer essa opção. Se levasse três embalagens de 800g, pagaria menos pela mesma quantidade de produto.

Foto: Dionizio Bueno, março/2021

Mesmo nesse raro caso em que o peso da embalagem maior é um múltiplo da embalagem menor (geralmente não são, exatamente para dificultar comparações), esse consumidor nem pensou em multiplicar o preço da embalagem menor por três. Se as pessoas fizessem isso, ninguém jamais levaria a embalagem maior com esses preços. Mas levam. O gerente acompanha diariamente as vendas, podendo fazer pequenos reajustes nos preços quando achar necessário. Existe entre os consumidores uma crença segundo a qual “em quantidades maiores os produtos são mais baratos”. O gerente se aproveita da fé do consumidor nessa crença e coloca esses preços de propósito.

A forma mais garantida de comparar preços é calcular o preço por unidade. Sabão em pó é quantificado por peso, portanto a unidade é o quilograma. Para fazer isso, basta dividir o preço de cada embalagem pela quantidade de quilogramas existente nela. Na embalagem menor há 0,8kg, então dividimos seu preço (R$ 5,49) por 0,8 e obtemos R$ 6,86 por quilograma. Dividimos então o preço da embalagem maior (R$ 17,90) pela quantidade de quilogramas que há nela (2,4), obtendo o valor de R$ 7,46 por quilograma. Fica claro que o produto sai mais caro na embalagem maior. Tendo os preços por quilograma, podemos compará-los, e descobriremos que na embalagem maior o sabão fica 8,7% mais caro.

Três fatores facilitam bastante o uso dessas técnicas pelas empresas.

Primeiro, muitas pessoas não têm o conhecimento matemático para fazer essa conta. Apesar de ser uma operação matemática bastante simples para quem dispõe de uma calculadora – e hoje, com os smartphones, qualquer pessoa tem o tempo todo uma calculadora no bolso – essa operação é ignorada por grande parte da população. Não me lembro de problemas matemáticos desse tipo em meu tempo de escola, e me parece que continua não fazendo parte dos conteúdos escolares atualmente.

Segundo, grande parte daqueles que têm tal conhecimento – e uma calculadora no bolso – abre mão de fazer essa conta, seja por pressa, por preguiça, por sua excessiva confiança nas empresas, por acreditar que sabe a resposta sem fazer a conta, ou talvez até por achar que seria mesquinharia, coisa de quem está precisando, e isso não pega bem socialmente. Pare por dez minutos junto à gôndola de algum supermercado e observe quantas pessoas fazem alguma conta na calculadora enquanto comparam os preços. Provavelmente não verá nenhuma.

E o terceiro fator é a falta de efetividade de uma lei que, se estivéssemos em um país sério, poderia compensar os dois fatores anteriores. Já existe uma lei que obriga os estabelecimentos varejistas a exibirem nas gôndolas, além dos preços unitários de cada embalagem, o preço por unidade do produto: preço por quilograma para produtos quantificados por peso, preço por litro para produtos medidos em volume, preço por metro para produtos que variam em comprimento. Porém, como não está regulamentada, essa lei não tem efeito.

Sem essa lei e sem a iniciativa dos consumidores em fazer cálculos e comparar, são vários os truques usados pelos fabricantes e estabelecimentos comerciais, que costumam articular em parceria as políticas de preços ao consumidor. Os truques funcionam muito bem.

Há fabricantes de pão de forma industrializado que colocam todas as opções do produto a um mesmo preço, variando apenas a quantidade na embalagem. As embalagens dos pães mais simples contêm 500g e, conforme aumenta a “sofisticação” do produto, o peso diminui: 450g, 380g e assim por diante. A maioria dos consumidores ignora que, sendo iguais os preços unitários, o pão de 380g sai 31,6% mais caro que o pão de 500g. É evidente que há diferenças qualitativas entre os dois produtos, mas só conhecendo a diferença no preço por quilograma é que o consumidor pode decidir livremente, segundo seus próprios critérios, se a compra do produto mais caro se justifica.

Um varejista oferece manteiga vegana colocando em destaque que o preço do pote é exatamente o mesmo da concorrente convencional ao lado. Manteiga é um produto que costuma ser vendido em potes de 200g (ainda que haja também opções de potes maiores). Isso é tão comum que talvez muitos não percebam que o pote daquela manteiga diferenciada tem apenas 170g.

Foto: Dionizio Bueno, julho/2021

A embalagem é cuidadosamente projetada com dimensões semelhantes às das marcas concorrentes, com o mesmo diâmetro na parte superior e na tampa, apenas ligeiramente reduzida apenas na parte inferior. Quem nota a diferença de quantidade sabe que ela sai mais caro. Porém, quanto mais cara é essa manteiga? Se a lei fosse efetiva, o consumidor veria na etiqueta de gôndola que a manteiga vegana é vendida a R$ 76,35 o quilograma, enquanto a manteiga concorrente custa R$ 64,90 o quilograma. O preço da vegana é 17,6% maior que o da convencional ao lado.

Certos frigoríficos com lojas de varejo próprias dimensionam suas embalagens sempre com 900g do produto. O consumidor está acostumado a comprar carne e linguiça a granel pensando em seu preço por quilo. Ao entrar nessas lojas, tem na memória como referência o preço por quilo dos açougues e mercados que frequenta. Muitos consumidores talvez achem que é pouca diferença, ou talvez nem percebam que ali tem menos de um quilo. Se uma embalagem dessa custar o mesmo preço que um quilo da mesma carne no açougue em frente, o produto estará 11,1% mais caro nesta embalagem.

Ovos são tradicionalmente vendidos em dúzias. Há também opções de embalagens maiores (por exemplo, com 30 ovos) e menores (por exemplo, com meia dúzia), mas a dúzia é, na cultura brasileira, uma quantidade padrão de ovos, praticamente uma unidade de medida para ovos. Ao fazer listas de compras, raramente se especifica a quantidade unitária de ovos, geralmente escrevemos quantas dúzias pretendemos trazer do mercado.

Eis que surgem variedades diferenciadas: ovos caipiras, ovos orgânicos, ovos de galinhas livres. Por serem tidas como de maior qualidade, essas variedades são vendidas a valores mais altos. Se essa diferença de preços puder ser disfarçada, isso tende a reduzir a resistência do consumidor, que tem diversas opções à sua disposição logo ao lado, na gôndola. A solução para evitar um preço ostensivamente maior é diminuir a quantidade de produto por embalagem.

Cria-se a dúzia de dez. As embalagens são cuidadosamente projetadas para terem o mesmo tamanho externo daquelas que trazem doze ovos, para que o consumidor só perceba a diferença de quantidade se ler as letras miúdas ou contar os ovos. E mesmo entre aqueles que só consomem esses ovos diferenciados, quase sempre vendidos em embalagens com dez unidades, muitos continuarão anotando em dúzias as quantidades de ovos em suas listas de compras.

Para resistir contra as artimanhas que o mercado cria para enganar consumidores, é importante conhecer suas táticas. É necessário também compartilhar esse conhecimento. Adote o hábito de calcular o preço por unidade. Usar a calculadora diante da gôndola é um gesto de quem tem domínio das próprias escolhas, não uma vergonha. Ao comparar ostensivamente os preços por unidade de medida, comentando os valores com quem está próximo, você contribui para difundir uma postura crítica entre consumidores.

A conta é simples, muita gente pode adotar esse hábito, principalmente enquanto a lei brasileira não for efetiva para obrigar a exibição do preço por unidade nas gôndolas, como já acontece em muitos países civilizados.

preços incompletos

Um comerciante seleciona e reúne uma linha de produtos em sua loja, fazendo com que estejam disponíveis em um lugar conveniente para o consumidor. É essa a natureza do trabalho do comerciante, e é por isso que ele é remunerado. Ele oferece ao consumidor a facilidade de não ter que ir até cada produtor para fazer suas compras. A infraestrutura da loja tem um custo, que inclui o trabalho do próprio comerciante. Isso tudo naturalmente é repassado no preço do produto. Quando o preço final em determinado comércio é justo, vale a pena comprar nesse local.

Alimentos orgânicos podem ter um custo de produção maior que aqueles produzidos em larga escala, com uso de máquinas e aditivos químicos que aumentam a produtividade. Mesmo que a qualidade (produtos sem veneno, mais frescos e saudáveis) justifique o preço mais elevado, a comparação com os preços de equivalentes não orgânicos pode gerar resistência no consumidor. Sabendo disso, produtores e comerciantes buscam formas de tornar essa diferença de preços menos evidente, de forma a vencer essa resistência. Bom exemplo disso é a estratégia de usar embalagens com quantidade menor, para que possam ser expostas na gôndola com preços mais próximos de seus equivalentes não orgânicos.

A busca de estratégias para exibir preços mais baixos acaba gerando soluções inovadoras e, às vezes, um tanto polêmicas. Uma prática que tem sido adotada em alguns mercados de orgânicos é exibir preços incompletos dos produtos. Conforme informado em cartazes nesses locais, os valores exibidos nas gôndolas são os preços pagos aos produtores. A margem referente às despesas do ponto comercial é adicionada somente depois, sobre o total da compra.

Matematicamente, você deve saber, tanto faz se uma determinada porcentagem é incorporada ao preço individual de cada produto ou é acrescentada somente ao passar no caixa, sobre a soma total. O resultado é exatamente o mesmo. Porém, a estratégia de exibir valores incompletos permite que os produtos apareçam para o consumidor com preços mais baixos do que eles de fato custarão.

É realmente prazeroso estar nesses mercados. Você se vê cercado de alimentos frescos e exuberantes, a preços que parecem baratos, ainda mais sabendo que tudo ali é orgânico. É fácil se deixar levar pelas aparências. É preciso, porém, fazer um esforço constante para se lembrar que aqueles preços estão incompletos e vão aumentar bem na hora de passar pelo caixa.

Esses estabelecimentos alegam que essa seria uma política de transparência, ao exibir para o consumidor final o valor que os produtores, em sua maioria pequenas propriedades de agricultura familiar, receberam por aqueles produtos. Eles então “convidam” o consumidor a acrescentar uma “contribuição” para ajudar a pagar a infraestrutura do local, sugerindo que essa “contribuição” seja igual a 35% do valor total da compra.

Do ponto de vista econômico, a margem de 35% para um comércio desse tipo é bastante razoável. Um ponto de venda gera despesas como aluguel do espaço, pagamento de funcionários, água, energia e impostos. Esse percentual sobre o preço de custo dos produtos é realista e justificável. O intrigante nessa história é: se essa margem é justa e necessária para o funcionamento do ponto comercial, por que exibir os preços sem ela?

Pode ser interessante para o consumidor saber quanto o produtor recebeu por aquele alimento, mas por que não exibir também o preço final a ser pago pelo consumidor, para que ele possa tomar conscientemente sua decisão de compra? Ao insistirem em omitir o preço completo de cada produto, fica parecendo ser mais uma estratégia para exibir valores menores, de forma que uma comparação pareça vantajosa, seja em relação aos produtos convencionais, seja em relação a produtos também orgânicos em outros estabelecimentos.

E tudo indica que funciona. Já ouvi pessoas dizendo que compram orgânicos nesses mercados porque têm preços iguais ou mesmo menores que produtos não orgânicos. Certa vez perguntei se a pessoa estava levando em conta nessa comparação o adicional de 35%, e ela respondeu: “É verdade, teria que considerar isso também, mas mesmo assim não é tão caro”. Ou seja, o valor que fica é o que está lá escrito, por mais que a pessoa saiba que está incompleto. A menos que você fique o tempo todo com uma calculadora na mão, multiplicando tudo por 1,35 conforme circula na loja, estará usando informações distorcidas ao avaliar os preços.

Foto: Sergey Ryzhov

Infelizmente, muitos produtos são vendidos nesses lugares a preços ainda mais altos do que naquelas conhecidas redes de supermercados e empórios voltados para público de alto poder aquisitivo. É inevitável que acabem se tornando boutiques de alimentos, reforçando sentidos sociais segundo os quais comprar orgânicos é um estilo de vida, de forma perfeitamente integrada à cultura do consumo. Essa proposta é bastante distante da reflexão política, proposta neste blogue e em vários outros ambientes, sobre a maneira como os alimentos são produzidos, distribuídos e escolhidos.

Um desses estabelecimentos chega a afirmar em sua comunicação que, caso optasse por exibir preços já com a margem, estaria praticando “especulação”. Além do erro conceitual no uso desse termo da economia, a afirmação acaba sendo uma ofensa a qualquer comerciante, honesto ou não. Será que, no entender dos gestores do estabelecimento que afirma isso, todos os comerciantes que exibem nas gôndolas o preço de venda completo, com margem, são especuladores?

O que indica se o comércio é justo ou injusto não o fato de exibir na gôndola o preço de custo ou o preço de venda, mas a margem praticada pelo estabelecimento. Se a margem de 35% adotada nesses mercados é mesmo justa, não há motivo para escondê-la. Na prática, esses estabelecimentos não abrem mão de sua margem, apenas contam uma história diferente sobre ela. O que eles fazem é retirar artificialmente dos preços um de seus componentes, fingindo estarem fora da cadeia produtiva, e reaparecem magicamente na hora de fechar a conta.

Eles costumam alegar que os 35% são apenas uma “sugestão”, e que com esse sistema o consumidor pode pagar um percentual abaixo disso, se quiser. Há, porém, diversos relatos de pessoas que escolheram pagar um percentual menor e receberam em troca uma cara bem feia, ou mesmo um pequeno sermão dirigido à sua consciência, questionando sua ética. É possível oferecer flexibilidade de preços, tornando os produtos mais acessíveis, sem distorcer as informações.

Alimentos orgânicos são mais saudáveis do que aqueles produzidos com fertilizantes químicos e venenos contra pragas, e isso pode afetar seus preços. Alimentos produzidos em sítios próximos chegam à mesa mais frescos do que aqueles produzidos em latifúndios a centenas de quilômetros e que, por serem cultivados em larga escala, com agricultura intensiva, podem até ser mais baratos. Trata-se de sistemas produtivos diferentes, cada um com profundas implicações políticas, econômicas e sociais. É importante que as pessoas reflitam sobre o valor dos alimentos e façam suas escolhas conscientemente, conhecendo o preço real dos produtos. Ressignificar o trabalho do comerciante de forma a mascarar os preços dos alimentos acaba parecendo apenas mais uma estratégia de varejo.

confiança à venda

“Estive hoje cedo na horta urbana aqui perto de casa para comprar verduras, temperos e algumas frutas. Trouxe também uma dúzia de ovos das galinhas que vivem ali. Cada ovo de uma cor diferente, coisa linda. Aproveitei para tomar um café com o pessoal lá da horta. Tenho ido lá quase toda semana, é natural que a gente vá fazendo amizade. Gosto muito dos produtos orgânicos que encontro lá. Eles não têm certificado, mas por que eu precisaria disso para confiar neles?”

“Uma amiga, que mora aqui na rua de casa, tem parentes em Minas e viaja sempre. Ela traz um queijo incrível de lá. A família conhece o produtor, que tem um sítio pertinho da cidade, ele cria as próprias vacas. Tenho sempre encomendado duas ou três peças de queijo cada vez que ela vai para lá. Eu e essa amiga temos opiniões parecidas sobre boa alimentação, procuramos sempre que possível evitar comida envenenada, cheia de hormônios e conservantes. Eu nunca estive no sítio desse produtor lá em Minas, mesmo assim tenho sempre um queijo incrível em casa e sei de onde ele vem. Por que eu precisaria que ele fosse certificado?”

“Tenho feito as compras em uma cooperativa de produtores e produtoras. Quem me apresentou esse lugar foi um amigo meu, que é um desses produtores. De tanto encontrar os outros clientes ali, vamos fazendo novas amizades. A maioria ali conhece pelo menos algum desses produtores cooperados, eventualmente já esteve no sítio de onde vêm os produtos. Vamos formando uma rede de confiança e seguimos em diálogo permanente para fortalecer essa rede. Para que precisaríamos de alguém de fora que venha aqui para nos certificar sobre as práticas desses produtores e produtoras?”

Foto: Mael Balland / Pexels

Monoculturas, produção em larga escala, transporte de longa distância, crescimento das cadeias de comercialização, dependência de grandes empresas de distribuição. Essas mudanças surgem na passagem do sistema de produção de alimentos para uma escala industrial, no qual o esquema produtivo vai sendo moldado conforme as preferências do grande capital. Isso afastou a produção do consumo, tornando totalmente inviável que as pessoas conheçam as condições em que os alimentos são produzidos e tudo que acontece com eles até chegarem à mesa. Nesse sistema, para quem busca alimentos saudáveis e livres de veneno e hormônios, a única forma de ter alguma garantia de qualidade é a certificação.

Um certificado nada mais é do que uma narrativa. “Eu, agente certificador com boa reputação perante a sociedade, declaro que este alimento é produzido em condições de acordo com aquilo que você, consumidor consciente, busca ou deveria buscar em um produto como este.” Na outra ponta está o consumidor, destinatário da mensagem. “Eu, consumidor consciente, ao ver nesta embalagem a expressão ‘produto certificado’, dou meu voto de confiança a este produto e, portanto, estou disposto a adquiri-lo, pagando por ele um valor mais elevado que por outro produto equivalente sem certificação.”

O selo de certificação substitui a relação de confiança que deixou de existir no momento em que produtor e consumidor perderam o contato. A confiança, que antes era construída dentro de uma relação humana, pode agora ser adquirida em uma transação econômica.

Há algo de muito interessante na forma que o capital tem de atuar. Primeiro ele molda os sistemas segundo seus interesses, sem qualquer consideração com as necessidades humanas. Isso naturalmente gera problemas. Então o mesmo capital passa a oferecer as soluções para esses problemas, criando novos mercados e beneficiando a si mesmo. Enquanto a sociedade aceitar viver sob a lógica do capital, ele sempre tenderá a se fortalecer.

Para que possam vender confiança junto com seus produtos, os produtores precisam adquiri-la dos fornecedores de confiança, os certificadores. Essa confiança monetizada entra na lista de custos do produto, junto das despesas com insumos, embalagens, salários, impostos. Naturalmente o preço final do produto vai aumentar.

Talvez um fenômeno mais danoso que o aumento do custo seja o fato de a cultura da certificação tornar obsoletas as relações interpessoais de confiança. Muitos leitores provavelmente sorriem diante da ideia de recolocar as relações humanas dentro do sistema produtivo, considerando que isso é coisa de um tempo passado, de relações econômicas primitivas, e que o mundo contemporâneo globalizado não pode mais depender desse tipo de coisa.

Estamos aqui propondo reflexões sobre nosso sistema alimentar e os valores de nossa sociedade que tornam esse sistema possível. Nas situações em que jamais poderia haver possibilidade de contato direto com a produção, como no caso de produtos de biomas distantes, uma narrativa de certificação é de fato melhor que nada para orientar a decisão do consumidor. Não se trata de desvalorizar as certificadoras ou os produtos certificados. Trata-se apenas de ter sempre em mente que, no cenário que sonhamos em ver, e pelo qual lutamos nos campos teórico e prático para construir, restaurando a proximidade e os vínculos entre produtor e consumidor, a certificação é simplesmente desnecessária.

preços e valores

Talvez as pessoas refletissem mais antes de comprar certos produtos comestíveis se conhecessem seus verdadeiros preços, sem disfarces. Mesmo entre aqueles que comem produtos hiperprocessados, muitos já sabem, no fundo, que aquilo tem valor nutricional baixíssimo. Porém, ao saber que, além disso, esses produtos comestíveis custam mais caro do que muitos alimentos bem mais saudáveis, é possível que as escolhas fossem diferentes.

Em primeiro lugar, lembremos que a melhor maneira de comparar preços é comparar quantidades iguais de produto. Facilita ainda mais se usarmos unidades inteiras, como um quilo, um litro, um metro. É difícil, por exemplo, comparar o preço do pão em duas padarias que vendem pães de tamanhos diferentes e preços também diferentes, mas é simples constatar que o pão vendido a R$ 15,90 o quilo é mais caro que o pão vendido a R$ 13,90 o quilo. Se a qualidade do pão mais caro compensa a compra, é outra história, sujeita a escolha pessoal, mas sabendo o preço por quilo nas duas padarias eu posso saber não só qual pão é mais caro, como também a diferença de preço (cerca de 14%, neste exemplo).

Vejamos então um salgadinho vendido em pacotes de 110g por R$ 8,49. Quanto custa esse salgadinho? Nada menos que R$ 77,18 o quilo. No pacote de 60g, vendido por R$ 5,49, o comestível sai ainda mais caro: R$ 91,50 o quilo!

Mais caro que filé mignon: nesta embalagem, o produto sai por nada menos que R$ 91,50 o quilo!

Apenas como referência, vejamos o preço de alguns alimentos no mesmo mercado e na mesma data. Arroz: R$ 6,99 o quilo; feijão: R$ 6,79 o quilo; abobrinha: R$ 1,69 o quilo; batata: R$ 3,99 o quilo; mussarela: R$ 37,90 o quilo; alcatra: R$ 50,98 o quilo; contra-filé: R$ 52,98 o quilo.

Claro que o arroz-feijão, a carne e os legumes têm que ser preparados antes do consumo, enquanto o salgadinho pode ser consumido na hora. Vejamos então um produto equivalente, consumido nas mesmas condições. O amendoim frito, vendido em pacotes de 150g por R$ 6,99 no mesmo mercado sai por R$ 46,60 o quilo, sendo bem mais nutritivo que o tal salgadinho. E se a questão é o preparo da refeição, lembremos que a maioria dos restaurantes por quilo estão, atualmente, na faixa de cinquenta e poucos reais o quilo, não sendo difícil encontrar preços abaixo de cinquenta.

É chocante saber que milho transgênico extrudado e depois banhado em uma infinidade de produtos químicos e aromatizantes artificiais é vendido (e comprado!) por R$ 91,50 o quilo. Ainda que o preço de um pacote pareça baixo, pois a quantidade é pequena, é importante saber o preço real que está sendo pago pelo produto. Um simples pão com queijo comprado no mesmo mercado já custa bem menos do que isso e, ainda que não seja exatamente uma refeição, é bem mais nutritivo que um salgadinho industrializado.

Praticamente qualquer telefone móvel funciona também como calculadora, portanto a maioria das pessoas certamente tem sempre uma no bolso, onde quer que esteja. A conta é simples. Basta pegar o preço da gôndola e dividir pela quantidade em quilos existente naquela embalagem. No salgadinho do exemplo, o preço do pacote é 5,49 e a quantidade é 0,06 quilos. Divida 5,49 por 0,06 e o resultado será 91,50.

Adote o hábito de saber o preço por quilo (ou por litro, ou por metro, etc.) de tudo que você consome ou pensa em consumir. Você terá uma visão diferente do valor de muitas coisas.

agricultura familiar

Desde os primórdios da agricultura, o cultivo da terra normalmente acontece em um grupo de pessoas com vínculos de parentesco, seja uma família nos moldes ocidentais, seja uma parentela extensa ou grupo local nas sociedades diferentes da nossa.

Com o surgimento do sistema de produção capitalista, a atividade no campo ganhou traços industriais. Áreas de cultivo muito maiores, produção em larga escala, trabalho regido por princípios de eficiência. Passa a ser necessário contratar trabalhadores, sejam eles permanentes, para cuidar de tarefas diárias da fazenda, ou temporários, para os picos de demanda de trabalho como as épocas de plantio e colheita.

Sobretudo a partir dos anos 1960, houve um intenso fluxo migratório em direção às áreas urbanas. A mecanização agrícola diminuiu a demanda por trabalhadores no campo, enquanto o desenvolvimento da indústria e as imagens de modernidade passaram a atrair pessoas para as cidades. O processo ficou conhecido como êxodo rural: milhares de famílias migraram para as cidades atrás das promessas de bons salários e melhores condições de vida.

Nesse movimento, muitas famílias trocaram a condição de pequenos proprietários rurais por uma situação de grande vulnerabilidade econômica e social, vivendo nas periferias de áreas urbanas. Passaram a fazer parte do grande exército de reserva de mão de obra, que o capital usa para manter os salários em níveis baixos.

Além disso, essas pessoas deixaram para trás não apenas seus pequenos sítios, que lhes garantiam a sobrevivência e a dignidade. Perderam também vínculos familiares, costumes cotidianos e a possibilidade de uma vida pouco custosa no campo.

Felizmente parece haver também uma força oposta nesse processo, com a recente valorização da agricultura familiar. Esse modelo produtivo vem conquistando reconhecimento institucional nos últimos 25 anos, resultante da criação de políticas públicas, programas governamentais, espaços de participação e naturalmente da promulgação de leis. A mais significativa delas é a Lei da Agricultura Familiar (lei federal nº 11.326/2006) que reconhece oficialmente a atividade como profissão e estabelece diretrizes de uma política nacional.

Foto: Rose dos Santos e Guilherme Martins / MST Paraná

Um produtor é considerado agricultor familiar quando utiliza predominantemente mão de obra de pessoas ligadas a ele por vínculos familiares e não por vínculos patronais.

Segundo informações do Censo Agropecuário 2017, 77% dos estabelecimentos produtores do Brasil são de agricultura familiar. Entretanto, a área ocupada por eles corresponde a apenas 23% de toda área produtiva do país. Tal diferença naturalmente se explica pelo pequeno tamanho dessas propriedades, especialmente se comparadas às enormes fazendas do agronegócio. Além disso, é na agricultura familiar que estão 67% dos trabalhadores do setor agropecuário.

Percentual de estabelecimentos caracterizados como agricultura familiar em relação ao total de estabelecimentos (2006). Fonte: IBGE, Censo Agropecuário 2006. CLIQUE PARA AMPLIAR

Os dados detalhados de produção disponíveis no Censo Agropecuário 2006 mostram mais claramente a participação da agricultura familiar na produção dos itens que compõem a alimentação básica das pessoas. É da agricultura familiar que vem 70% do feijão, 34% do arroz, 87% da mandioca e 58% do leite de vaca. Já o modelo não familiar de agricultura, tipicamente usado no agronegócio, destaca-se na produção de commodities, que são exportados ou vendidos internamente depois de processados: produz 84% da soja, 79% do trigo e 62% do café.

Podemos constatar, portanto, que a agricultura familiar é fonte de parte significativa daquilo que de fato alimenta as pessoas, enquanto que o agronegócio não esconde sua vocação de simplesmente produzir para ganhar dinheiro.

Foto: Gisele David / MST-PR

Programas e projetos que valorizam a agricultura familiar representam um estímulo para o desenvolvimento do pequeno produtor. Um modelo de produção e distribuição de alimentos orientado para a autonomia só é possível se a produção estiver espalhada pelo território, cada um produzindo um pouco em cada lugar. Isso também contribui para que o trabalho esteja espacialmente distribuído, garantindo renda e segurança alimentar para milhões de famílias em todo o território.

Quase tão importante quanto o trabalho é a possibilidade de uma vida que preserve vínculos comunitários, tradições, referências culturais. Sem esses aspectos nutridores da condição humana, as pessoas se transformam em consumidores passivos, reféns das mídias e facilmente manipuláveis, inclusive em seus hábitos alimentares.

hipermobilidade e dependência

A rapidez com que o vírus se espalhou pelo mundo, gerando uma pandemia, só é possível graças à mobilidade dos humanos, que atuaram como vetores da doença. Mobilidade é definida como um atributo do indivíduo que expressa sua capacidade de se deslocar pelo território. Essa capacidade naturalmente varia em função de sua condição social, já que todo meio de transporte tem um custo proporcional a seu alcance e sua velocidade. Dá até para pensar numa hipermobilidade, como a condição que alguns têm de se locomover praticamente sem limites entre localidades de todo o planeta. No Brasil, e provavelmente em outros países, o vírus penetrou e se difundiu a partir de meios sociais abastados, justamente onde existe hipermobilidade.

Graças ao desenvolvimento dos sistemas de transportes, é possível conceber arranjos produtivos distribuídos por localidades muito distantes umas das outras. Isso se dá em escala global, com componentes e produtos acabados cruzando o mundo em busca de seus mercados, e também em escala nacional, com mercadorias viajando mais de mil quilômetros entre o local de produção e a residência em que serão utilizadas ou consumidas.

A razão que leva a esses arranjos produtivos é, como quase sempre, econômica. Na escala global, uma mercadoria produzida em um país distante pode ser mais barata que outra produzida localmente graças à grande escala de produção e transporte, muitas vezes aliada a altos níveis de precarização do trabalho, que reduz muito o valor da mão de obra. Com os empresários sempre passando por cima de tudo em busca do maior lucro possível, e os consumidores geralmente escolhendo o menor preço que encontram, tais arranjos produtivos acabam se estabelecendo e eliminando as alternativas.

Dentro do país, especialmente quando se trata de um território imenso como o brasileiro, consumimos uma fruta ou legume que viajou dias de caminhão quando poderíamos ter na mesa a mesma fruta ou legume produzido dentro de um raio de cem quilômetros em torno da localidade onde estamos. As grandes redes de distribuição e comercialização de alimentos têm um papel determinante nisso quando optam por oferecer apenas produtos que vêm de longe, que elas compram a um custo muito baixo. São produzidos por meio de agricultura intensiva, altamente mecanizada e com grande uso de produtos químicos, e chegam até nós por meio de sistemas de distribuição bastante poluentes.

A disponibilidade do transporte é de fato uma condição para que tudo isso seja possível. Mas existe uma série de escolhas que resultam nesses esquemas. Uma vez que eles são implementados, nos tornamos dependentes deles. Uma sociedade que avalia tudo pelo critério econômico não é capaz de enxergar o quanto de absurdo há nisso. Nesse sistema de valores, tudo bem fechar uma fábrica em nosso país só porque alguém produz a mesma coisa do outro lado do mundo e entrega aqui pela metade do preço; tudo bem comer uma fruta que passou dias chacoalhando dentro de um caminhão sendo que tem gente produzindo a mesma fruta a uma distância que pode ser coberta de bicicleta.

Eis que um vírus, com sua altíssima capacidade de deslocar-se pelo espaço graças à hipermobilidade disponível para alguns, provoca uma situação de emergência mundial, tornando necessário restringir a mobilidade dos humanos, enclausurando-os em suas casas.

Nesse prolongado período de prisão domiciliar, neste momento ainda sem previsão de término, talvez as pessoas tenham tempo para pensar no quanto se encontram dependentes de sistemas econômicos absurdos, e percebam que existe terra fértil e produção exuberante bem mais perto do que imaginam.