projeções do agronegócio

Para que serve a terra no Brasil? Para produzir alimentos ou para ganhar muito dinheiro?

Um documento produzido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento traz informações desanimadoras para quem acredita que a terra deveria servir para saciar a fome das pessoas. Resumindo: alimentos como arroz, feijão, batata, mandioca, banana e café estão perdendo áreas de cultivo, enquanto commodities como milho, soja, algodão, fumo e cana de açúcar estão ganhando ainda mais território.

Reeditado a cada ano, o relatório Projeções do Agronegócio traz estimativas sobre como ficará a atividade agrícola nos dez anos seguintes à sua publicação. O último relatório disponível neste momento é de 2021, e suas projeções vão até o ano safra 2030/2031.

Os dados mais assustadores se referem à perda da área plantada de alguns alimentos. O arroz deve perder 62% de seu espaço: dos 1.687 mil hectares dedicados ao seu plantio em 2020/2021, devem restar apenas 641 mil hectares em 2030/2031. O feijão, que no ano safra 2020/2021 dispõe de 2.898 mil hectares para seu cultivo, ficará com apenas 1.830 mil hectares em 2030/2031, uma perda de 36,8%.

Enquanto isso, produtos agrícolas que servem principalmente como matérias primas industriais, e não como alimentos saudáveis, estão em expansão. A área plantada de milho deve crescer de 19.841 mil hectares em 2020/2021 para 21.948 mil hectares em 2030/2031, um aumento de 10,6%. O crescimento da soja é ainda maior: de 38.502 mil hectares em 2020/2021, deve subir para 48.851 mil hectares em 2030/2031, aumento de 26,8%.

O relatório fala das possibilidades à disposição do agronegócio para aumentar a área plantada dessas culturas. Um exemplo: “A expansão de área de soja e cana-de-açúcar deverá ocorrer pela incorporação de áreas novas, áreas de pastagens naturais e também pela substituição de outras lavouras que deverão ceder área” (p. 87). Note o uso das expressões ‘incorporação de áreas novas’, que pode servir de eufemismo para ‘desmatamento’, e ‘substituição de outras lavouras que deverão ceder área’, uma referência a cultivos que estão perdendo área plantada, onde se incluem o arroz e o feijão.

Os dados que o relatório apresenta sobre anos anteriores mostram que a redução das áreas plantadas de arroz e de feijão já é um processo em curso há pelo menos dez anos. Entre os anos safra 2009/2010 e 2019/2020, esses cultivos perderam, respectivamente, 39,7% e 18,9% de seus territórios. No mesmo período, houve enorme expansão das commodities: 42,6% no caso do milho e 57,4% no caso da soja.

Área Plantada com 5 principais grãos – Brasil (mil hectares). Fonte: Projeções do Agronegócio 2020/2021 a 2030/2031. CLIQUE PARA AMPLIAR

No momento atual, a diferença entre as áreas plantadas de alimentos e de commodities é gritante. A título de exemplo, em 2020/2021 temos 4.585 mil hectares na soma das áreas de arroz e feijão, contra 58.343 mil hectares no total para milho e soja. A área dedicada a estas duas commodities é 12,7 vezes maior que a área de cultivo de dois dos principais alimentos dos brasileiros.

O estudo avalia que “algumas lavouras, como mandioca, café, arroz, laranja e feijão, devem perder área, mas a redução será compensada por ganhos de produtividade” (p. 86). As estimativas para 2030/2031 são de que, nessas condições, a produção de arroz cresça 3,4% e a produção de feijão caia 1,2%.

Ganhos de produtividade são incertos e, sobretudo para as pequenas propriedades, responsáveis pela maior parte dos cultivos de arroz e feijão, dependem de programas de fomento à produção e de assistência técnica e extensão rural. Por outro lado, os grandes estabelecimentos produtivos do agronegócio, altamente capitalizados, conseguem sem dificuldade comprar ou arrendar propriedades menores que hoje produzem alimentos. Assim, o cenário apontado no relatório é extremamente delicado. Políticas públicas específicas para a produção de alimentos são essenciais para evitar redução nas colheitas, fazendo os preços subirem ainda mais.

Se há mesmo perspectivas de aumento de produtividade nos cultivos de arroz e feijão, melhor seria se isso fosse usado para trazer um sensível crescimento de sua produção, provocando queda nos preços e facilitando o acesso da população a esses alimentos. Infelizmente, no olhar do agronegócio, o esperado ganho de produtividade de arroz e feijão é apenas mais um fator para contribuir na expansão das commodities, mesmo havendo 33,1 milhões de brasileiros passando fome.

Para argumentar que a perda de áreas de cultivo de alimentos não levará a problemas de abastecimento, o relatório apresenta ainda um prognóstico de queda no consumo de arroz e feijão. Os cálculos dizem que, até 2030/2031, o consumo de arroz no Brasil deve cair 2,2% e o de feijão deve cair 0,7%.

Se mesmo com as expectativas de que a população brasileira cresça até 2030 esses prognósticos estiverem corretos, o relatório está anunciando um futuro tenebroso. A queda no consumo desses dois itens básicos na cultura alimentar brasileira só pode significar duas coisas: ou as pessoas vão mesmo comer menos (ou seja, mais fome!) ou passarão a comer outras coisas (provavelmente menos saudáveis). Provavelmente, ambos.

De fato, o Atlas das situações alimentares no Brasil já aponta, com base em dados de 2002 a 2018, uma queda no consumo de alimentos in natura ou minimamente processados, acompanhada de um aumento no consumo dos alimentos processados e ultraprocessados. Estamos diante de um cenário de aumento da fome e queda na qualidade da alimentação.

O relatório Projeções do Agronegócio é escrito na perspectiva daqueles para quem a agricultura é uma atividade para se ganhar muito dinheiro. Ao falar da alta nos preços agrícolas em 2021, apresenta isso como uma boa notícia: “os preços de carnes, bovina e suína, e também de milho e soja sobressaem-se em relação aos demais. São produtos que têm-se beneficiado do comércio internacional favorável, e da taxa de câmbio vigente neste ano” (p. 9, grifos nossos).

Com o dólar em alta, quem exporta ganha mais dinheiro, e isso puxa os preços internos para cima. Numa perspectiva de combate à fome, que definitivamente não é a do agronegócio, boa notícia seria uma queda de preços, pois isso significaria alimentos mais baratos para a população brasileira.

Cabe aqui citar um trecho de um livro do professor José Graziano da Silva, em que ele descreve o latifúndio escravista, principal atividade econômica do Brasil colônia, mais de quatrocentos anos no passado.

“A produção de alimentos do latifúndio variava muito em função do preço do seu produto principal destinado à exportação. Por exemplo, quando o preço do açúcar (e mais tarde do café) subia no mercado mundial, todas as terras e os escravos eram utilizados para expandir a sua produção, diminuindo assim a produção de alimentos. Nesses períodos havia fome na colônia e as autoridades estimulavam os pequenos agricultores a expandirem sua produção, para abastecer não só as vilas e cidades, como às vezes os próprios latifúndios” (O que é Questão Agrária, p. 27).

Perceba como vivemos exatamente no mesmo país que ele descreve.

Apenas dois comentários sobre essa rápida viagem no tempo. A fome, que segue firme aqui na colônia, tem basicamente as mesmas causas estruturais. E quem de fato alimenta este país são e sempre foram os pequenos agricultores.

pnae

Construído ao longo de décadas através de sucessivas melhorias, como resultado de muita mobilização social, o Programa Nacional de Alimentação Escolar é considerado um dos maiores programas no mundo com essa finalidade e, segundo sua página oficial, é o único com atendimento universalizado.

Começou a ser estruturado na década de 1950, na forma de uma campanha de merenda escolar. Inicialmente dependeu de convênios com organismos internacionais, tendo ainda o enfoque do atendimento a populações carentes. A Constituição de 1988 assegurou o direito à alimentação escolar a todos os alunos do ensino fundamental. Em 1994 sua operação (planejamento de cardápios, aquisição dos gêneros, distribuição) foi descentralizada, por meio do envolvimento das secretarias estaduais de educação e de convênios com os municípios.

Em 2001 a legislação introduziu o respeito aos hábitos alimentares regionais e à vocação agrícola de cada município. Além disso, passou a exigir que 70% dos recursos sejam aplicados em produtos básicos. Dois importantes passos em direção à qualidade nutricional e ao respeito às culturas alimentares locais. Em 2009, foi estendido para toda a rede pública de educação básica e, em 2013, para os alunos de EJA (educação de jovens e adultos), AEE (atendimento educacional especializado) e escolas de tempo integral.

A legislação de 2009 é considerada um marco importante na história do PNAE por tornar obrigatório que no mínimo 30% dos recursos repassados sejam utilizados na “aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas” (Lei nº 11.947/2009, Art. 14º). Nesses casos, fica dispensado o processo licitatório, e a aquisição passa a ser encaminhada por meio de chamadas públicas.

Os efeitos desse envolvimento da agricultura familiar podem ser sentidos de diversas formas. Nos refeitórios das escolas, houve sensível melhoria no cardápio das refeições. O feijão enlatado que era servido em muitas escolas, proveniente de locais indefinidos de qualquer canto do planeta e cheio de conservantes químicos, foi substituído por feijão fresco, produzido em pequenas propriedades na própria região. As crianças passaram a receber frutas locais no lugar de biscoitos industrializados. Um simples artigo da lei pode provocar a substituição de produtos ultraprocessados por alimentos in natura na alimentação de milhões de crianças.

Foto: divulgação

Fora da escola as mudanças também são significativas. As compras municipais garantem renda para agricultores e agricultoras locais, que passam a viver em melhores condições e a consumir mais no comércio da cidade, fazendo girar a economia, gerando distribuição de riqueza e aumentando a arrecadação de impostos do município. A justiça social se propaga por toda a cadeia econômica na forma de prosperidade para todos.

A oportunidade dada aos pequenos agricultores pelo programa também estimula o associativismo, a formação de cooperativas e a organização da classe produtora sendo, portanto, um fator de fortalecimento político da agricultura familiar. Quando as escolas foram fechadas em função da pandemia, o programa manteve as compras municipais desses pequenos produtores, garantindo o escoamento da produção. As famílias dos alunos podiam retirar os alimentos nas escolas e, em alguns casos de maior vulnerabilidade, podiam recebê-los em casa.

A concretização desse potencial, no entanto, depende em grande medida das entidades municipais e estaduais que fazem a gestão dos recursos. São elas que decidem sobre quais produtos adquirir, e de quem. Talvez pela própria formulação do texto da lei, ela infelizmente não consegue “garantir”, como muito se diz em matérias sobre o assunto, o percentual mínimo de 30% em compras da agricultura familiar.

O próprio artigo 14 da referida lei já prevê as condições nas quais esse percentual pode ser flexibilizado, oferecendo possibilidades de justificativas que são difíceis de serem verificadas pelos mecanismos de controle social. A página de perguntas frequentes sobre o PNAE informa que, no caso do não cumprimento dos 30%, basta às entidades executoras justificarem posteriormente as razões para isso. De tempos em tempos circulam notícias sobre o descumprimento da exigência por parte das entidades municipais e estaduais (exemplos aqui, aqui e aqui).

Dados sobre as compras da agricultura familiar disponíveis na própria página do governo federal apontam para um quadro pouco animador no que se refere ao cumprimento dos 30% estabelecidos pela lei. As informações mais recentes disponíveis nessa página se referem a 2017 e, ainda que já um pouco antigas, dão uma ideia da situação.

Dos 640 municípios paulistas listados na base de dados disponível, apenas 226 (35,3%) empregaram 30% ou mais da verba do PNAE na compra de produtos da agricultura familiar. No caso de 280 prefeituras (43,8%), o percentual de compras da agricultura familiar fica abaixo do exigido por lei. Há 123 municípios em que o dado referente a compras da agricultura familiar está marcado com um traço, sem esclarecer se isso corresponde a um zero ou a simples ausência de informações. Portanto, o percentual de prefeituras que não atingiram os 30% é provavelmente ainda maior, podendo chegar a 63% caso esse traço seja mesmo um zero em todos os casos.

No município de São Paulo, no ano de 2017, o percentual da verba do PNAE investido em compras da agricultura familiar foi, segundo essa base de dados, de apenas 7,8%, muito distante do mínimo exigido pela legislação.

Ao comprarem produtos em varejistas ou mesmo em grandes distribuidoras, as prefeituras pagam mais caro, pois estão optando por alimentar uma cadeia de distribuição cheia de intermediários. Além disso, estão quase sempre jogando recursos para fora do município. Ao escolherem a agricultura familiar, a verba vai diretamente para os pequenos produtores, promovendo justiça econômica e social. O que está em jogo nesta decisão do gestor público é a escolha entre fortalecer trabalhadores e trabalhadoras da região ou fortalecer ainda mais o grande capital.

Um agricultor familiar que deseje vender sua produção para o PNAE deve, em primeiro lugar, emitir a sua DAP (Declaração de Aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), que é o documento que habilita a unidade produtiva para participar do programa. Precisa então ficar atento, junto à prefeitura de seu município, para as chamadas públicas para aquisição de alimentos. Deverá entregar um projeto de venda de gêneros alimentícios para alimentação escolar e demais documentos exigidos por aquela chamada. Uma vez aprovado o projeto, será elaborado um contrato de aquisição entre a prefeitura e a unidade produtiva.

Ao incluir a agricultura familiar diretamente nas compras públicas, o PNAE cria a oportunidade de reconfigurar os sistemas alimentares a partir das relações locais, com impactos imediatos na saúde da população estudante, nas condições de vida dos pequenos produtores e na economia local. Sendo a prefeitura municipal o único intermediário entre produtor e consumidor, forma-se um circuito curto que leva os alimentos da horta ao refeitório escolar sem dispersão de recursos e com grande qualidade nutricional.

Sua efetividade, porém, depende de constante vigilância e pressão por parte da sociedade civil, que pode fazer isso por meio dos Conselhos de Alimentação Escolar ou através de incidência direta junto a prefeituras, secretarias de educação e câmaras de vereadores. Milhares de municípios brasileiros respeitam a lei, investindo 30% ou mais (em alguns casos, bem mais) em compras diretas da agricultura familiar. Mas há milhares de municípios que ainda estão abaixo ou bem abaixo dessa exigência legal. Existe aqui um imenso campo de oportunidades para o fortalecimento da agricultura familiar.

revolução verde

Duas palavras bonitas, associadas a ideologias de esquerda e posições progressistas: revolução, música para os ouvidos de quem sonha em derrubar esse sistema que promove a expropriação sem limites; verde, referência a visões de mundo em que o respeito à natureza prevalece sobre o desejo insaciável de ganhar dinheiro.

Cuidado com o que você ouve. Juntas, essas palavras formam uma expressão que aponta para um lado oposto a isso tudo. Diz respeito a uma importante mudança na forma de produzir alimentos que concentrou ainda mais a riqueza, tirou o camponês da terra e envenenou a comida que hoje comemos.

Revolução verde se refere às inovações que surgiram sobretudo na década de 1960 com a finalidade de aumentar a produção agrícola. Trata-se de um conjunto de tecnologias como mecanização, fertilizantes químicos, irrigação controlada e o uso de variedades de cereais de alto rendimento.

O termo foi usado pela primeira vez em 1968, em referência ao desenvolvimento de novas variedades de trigo e milho. Tanto na pesquisa quanto na implementação, a revolução verde contou com o apoio de grandes fundações estadunidenses, e teve no México um imenso campo de pesquisa e testes.

O processo se baseou em transferência de tecnologia, que vinha na forma de um conjunto de práticas que, por meio das promessas de grandes lucros aos produtores e de erradicação da fome no mundo, começou a ser praticamente imposto no campo.

Para a agricultura, o pacote tecnológico incluía fertilizantes, agrotóxicos, máquinas e variedades de sementes. Para a criação de animais, havia rações, fármacos, instalações projetadas para máxima produtividade e naturalmente o uso de matrizes e reprodutores selecionados. Como resultado, a atividade no campo tomou a forma de produção industrial, com monoculturas e a criação de animais em confinamento.

A finalidade era o aumento da produção, mas isso não quer dizer que essa produção seria usada para saciar a fome das pessoas. O objetivo era, e ainda é, a produção de commodities para exportação.

Na análise de Ceres Hadich e Gilmar Andrade, autores do verbete sobre o assunto no Dicionário de Agroecologia e Educação, entre os muitos efeitos da revolução verde podemos destacar: aumento da concentração fundiária e empobrecimento dos pequenos agricultores; êxodo rural massivo; esgotamento do solo, avanço do desmatamento e redução da biodiversidade; apropriação de recursos naturais brasileiros por parte de multinacionais; transformação da semente em propriedade privada; padronização da produção e consumo de alimentos, comprometendo a soberania alimentar.

A fome no mundo, como se sabe, não acabou. Ao contrario, nestes últimos anos temos assistido um agravamento da pobreza, e isso se deve, entre outros fatores, aos efeitos da revolução verde: concentração de riqueza, expropriação das terras e, devido à maior integração e fortalecimento dos agentes do sistema agroindustrial, o aumento de seu poder para defender os seus interesses econômicos, que vêm se mostrando contrários aos interesses dos povos, da natureza e da vida.

municípios agroecológicos

Como uma prefeitura municipal pode incentivar a agroecologia em seu território? O levantamento Municípios agroecológicos e políticas de futuro, realizado pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), mostra diversos caminhos que as prefeituras podem seguir para fortalecer a agricultura familiar e a produção agroecológica, beneficiando-se dos efeitos positivos disso para a economia municipal e, sobretudo, a saúde e qualidade de vida de seus cidadãos.

Foi feito um mapeamento preliminar, em todas as unidades da federação, das ações, políticas, programas e leis municipais que, de alguma forma, contribuem para fortalecer a agroecologia. Em seguida, houve um aprofundamento no estudo dessas ações, o que resultou num conjunto com 721 iniciativas das quais o poder público municipal seja executor e/ou financiador, incluindo aquelas que surgiram da sociedade civil mas em que as prefeituras tenham um papel chave. As iniciativas foram categorizadas, formando uma lista com 41 campos temáticos.

A lista abaixo está resumida, incentivamos fortemente a leitura do estudo. Temos aí possibilidades interessantes e concretas de atuação, que estão acontecendo ou já aconteceram em cidades brasileiras.

  • apoio à formação de circuitos curtos de comercialização (cessão de espaço público para realização da feira, construção de pontos fixos de comercialização, compra de barracas, apoio na logística de transportes);
  • promoção das compras institucionais (acesso a políticas como PAA e PNAE, criação de restaurantes populares);
  • fomento à infraestrutura de produção (estruturação de espaços de armazenamento e/ou beneficiamento de alimentos, construção de sistemas ecológicos de saneamento, implantação de sistemas de geração de energia solar);
  • apoio a bancos de sementes comunitários e viveiros de mudas nativas (melhoramento genético participativo);
  • melhoria no acesso à água (recuperação de nascentes e matas ciliares, cisternas, reuso de água);
  • incentivo à produção agrícola em áreas urbanas e periurbanas (hortas comunitárias, hortas escolares, centros municipais e públicos de produção de alimentos);
  • uso de plantas medicinais e práticas integrativas de saúde no âmbito do SUS (intercâmbio entre saberes tradicionais e conhecimentos científicos, indicação de fitoterápicos aos pacientes, implementação de laboratórios de manipulação de plantas medicinais);
  • apoio técnico e extensão rural (convênios com organizações da sociedade civil para incentivar a agroecologia);
  • disponibilização de equipamentos e insumos (uso coletivo de máquinas da prefeitura, programas de ensilagem, distribuição de insumos);
  • fiscalização e restrição de atividades que geram impactos negativos (leis municipais que proíbem a expansão do agronegócio, instituição de zonas livres de agrotóxicos, proibição de monoculturas como eucalipto e cana-de-açúcar, proibição do uso de árvores nativas para produção de carvão vegetal em escala industrial).

Nuvem de temas do levantamento. Fonte: Municípios agroecológicos e políticas de futuro. CLIQUE PARA AMPLIAR

A região Sul do país se destaca com 282 (39%) das iniciativas catalogadas, seguida pela região Nordeste, onde estão 223 (31%) delas. Porém, é a região Nordeste que tem o maior número de municípios com iniciativas (228, ou 43%), enquanto que na região Sul há apenas 170 municípios com iniciativas (32%). Ou seja, há no Nordeste mais municípios onde existe algum apoio à causa, enquanto no Sul as iniciativas estão concentradas em menos municípios. Seria interessante se o estudo indicasse também a porcentagem de municípios com iniciativas sobre o total de municípios (por região e por estado), permitindo medir o avanço dessas iniciativas ao longo do tempo.

Apoio a feiras e circuitos curtos é o tipo de iniciativa que mais aparece em todas as regiões exceto a Sul, onde o predominam iniciativas da categoria Fomento à produção, e é também o tema de maior incidência entre todas as iniciativas catalogadas.

Neste blogue, temos defendido a proximidade entre produtor e consumidor. O apoio às feiras de produtores e à formação de circuitos curtos de comercialização permite, com um investimento relativamente baixo, contribuir para o florescimento da atividade agrícola local, com benefícios para produtores e consumidores, além de permitir o fortalecimento dos vínculos entre eles. No caso da cessão de espaços públicos para a realização de feiras de produtores, por exemplo, o custo é próximo de zero.

Em cidades pequenas, as feiras de produtores têm um papel que vai além da simples função de abastecimento, são locais de encontro entre moradores das áreas rural e urbana. Nas cidades grandes, quando localizadas em regiões periféricas, colocam em contato direto os consumidores dessas regiões com os produtores das áreas periurbanas. Apesar da proximidade geográfica entre elas, é comum que a produção orgânica dos cinturões verdes das grandes cidades seja inteiramente deslocada para regiões centrais e bairros abastados, onde serão comercializadas como produtos diferenciados, mais caros. O desenvolvimento da agroecologia é uma boa oportunidade para superar contradições de nossa organização social.

Além do relatório, está também disponível na página da ANA uma base de dados com todas as 721 experiências que entraram no estudo, trazendo a descrição das iniciativas e outros dados. É uma fonte de informações sobre experiências concretas, que podem ajudar gestores públicos a compor suas visões estratégicas e inspirar a sociedade civil na organização de suas demandas.

O incentivo à agroecologia atinge imediatamente as vidas dos pequenos produtores, que se fortalecem economicamente, e dos consumidores, que passam a ter acesso a mais alimentos saudáveis e a preços menores. Isso tudo se reflete positivamente nos indicadores de saúde das localidades.

É no plano local que se constrói a mudança concreta, e daí vem a importância das prefeituras no desenvolvimento de um sistema alimentar genuinamente voltado para atender as necessidades da população.

dicionário de agroecologia

A luta dos movimentos populares pela construção de uma realidade mais justa, baseada em novas relações entre seres humanos e entre estes e a natureza, acaba de ganhar mais uma importante ferramenta. O Dicionário de Agroecologia e Educação foi publicado no final do ano passado e está disponível, nas versões impressa e digital, para educadores, militantes, pesquisadores e pessoas interessadas em se aprofundar em temas importantíssimos na reflexão sobre nossas escolhas como sociedade. O Dicionário foi produzido pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV-Fiocruz), de forma coordenada com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e em parceria com a Editora Expressão Popular.

A obra conta com 106 verbetes, elaborados por uma equipe de 169 autores e autoras, e foi estruturada tendo em vista as necessidades e expectativas dos educadores e educadoras das escolas do campo. Alguns exemplos de verbetes: antropoceno, bens comuns, capitalismo verde, deserto verde, diversidade sexual e de gênero, educação do campo, feminismo camponês e popular, financeirização da economia, homeopatia, medicina tradicional brasileira, metodologias emancipatórias, plantas medicinais e fitoterápicos na saúde pública, política agrária, teia alimentar, território, transição agroecológica. Toda a equipe foi orientada a redigir textos aprofundados e rigorosos quanto aos conceitos, mas ao mesmo tempo escritos em linguagem acessível.

Imagem: divulgação

Os autores advertem que, mesmo tratando-se de um dicionário, ele não pretende ter caráter normativo. O propósito de uma obra como esta vai muito além de simplesmente apresentar definições – ainda que elas estejam presentes em muitos verbetes. Há ali uma rica discussão quanto aos fundamentos de cada um dos temas, além de dados históricos que mostram o processo de formação dos conceitos. Trata-se de um material pensado em uma perspectiva crítica, com a finalidade de fundamentar o diálogo entre todos aqueles que se inserem nesta luta.

Ainda que a agroecologia venha sendo pensada e praticada em todo o mundo, é importante que cada povo possa construir seu próprio entendimento sobre o tema, tendo em vista a sua realidade sócio-histórica e suas práticas locais. O capítulo introdutório chama a atenção para a importância estratégica que a agroecologia tem na “promoção da saúde nos territórios e na elaboração de políticas públicas que visem a estruturação da soberania alimentar”.

O Dicionário de Agroecologia e Educação é um documento riquíssimo tanto para qualificar a discussão política no âmbito da militância como para articular a construção do projeto político pedagógico nas escolas, sobretudo tendo em vista a educação do campo. Os verbetes trazem bibliografia detalhada e sugestões de materiais de apoio para o desenvolvimento do tema, pensando em seu uso em sala de aula.

Informações tão bem sistematizadas inspiram inclusive ações pedagógicas para além da sala de aula. Podemos, por exemplo, pensar na articulação de encontros com rodas de conversa que partem da leitura de verbetes, como forma de enriquecer o debate, manter ideias em movimento e reforçar vínculos nas comunidades.

A transformação social se dá pela construção de alternativas concretas ao modelo de desenvolvimento capitalista. Este dicionário mostra que os fundamentos da agroecologia se articulam com esse projeto em diversos campos de ação.

aquisição de alimentos

Uma forma de se caracterizar as situações alimentares existentes no país é através dos dados sobre a aquisição de alimentos. Aqui temos em vista a alimentação que as pessoas fazem em seus domicílios, desconsiderando aquilo que elas comem fora de casa. Por outro lado, neste tipo de pesquisa o IBGE computa as informações tanto daquilo que as famílias compram (aquisições monetárias) quanto dos alimentos obtidos de outras formas (aquisições não monetárias), como através de produção própria, coleta em hortas, pomares e canteiros, pesca, caça e doações recebidas.

O Atlas das situações alimentares no Brasil: a disponibilidade domiciliar de alimentos e a fome no Brasil contemporâneo, publicado em 2021, traz informações interessantes referentes à aquisição de alimentos pelos brasileiros. O estudo utilizou dados de diversas edições da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), elaboradas pelo IBGE. O Atlas apresenta os dados de maneira um tanto restrita, omitindo informações que poderiam ser do interesse de alguns leitores, mas ainda assim permite observações interessantes.

Foram computados os dados de aquisição de alimentos per capita em quilogramas, organizando em grupos alimentares os itens adquiridos pelas famílias. Porém apenas alguns dados relativos são apresentados. A aquisição alimentar da classe de maior rendimento (mais de 15 salários-mínimos) é, como se poderia supor, acima da média geral em vários grupos alimentares. A aquisição de frutas dessa classe, por exemplo, é 124,9% superior à média geral. Essa classe também se destaca em outros grupos alimentares: hortaliças folhosas e florais (114,3% acima da média), hortaliças frutosas, tuberosas e outras (83,6% acima da média) e laticínios (74,5% acima da média geral).

Diferença na aquisição alimentar per capita anual em relação à média nacional (2017-2018). Dados: IBGE. Adaptado de Atlas das situações alimentares no Brasil. CLIQUE PARA AMPLIAR

Porém o grupo alimentar em que há o maior destaque dessa classe econômica são os alimentos preparados e misturas industriais, no qual o consumo dessa classe é 187% acima da média geral. Nesse grupo encontram-se produtos como alimentos congelados, refeições prontas, frango empanado, batata frita, salgadinhos e misturas para bolo. São produtos de maior valor agregado (ainda que alguns deles sejam de baixíssimo valor nutricional), o que pode explicar o fato de aparecerem com destaque nessa classe econômica.

A classe de menor rendimento (até 2 salários-mínimos) se destaca da média geral na aquisição de alguns grupos alimentares: farinhas e féculas (17,4% acima da média), feijão (12,1% acima da média) e arroz (11,9% acima da média).

In natura e ultraprocessados

O estudo também apresenta uma avaliação da disponibilidade domiciliar de alimentos com base em uma classificação diferente proposta pelo IBGE, a qual agrupa os produtos alimentares com base na extensão de seu processamento industrial. Essa classificação resulta em quatro grupos alimentares: alimentos in natura (ou minimamente processados), ingredientes culinários (processados), alimentos processados e alimentos ultraprocessados.

As regiões sul e sudeste são aquelas onde a aquisição de ultraprocessados é maior entre as famílias (22% e 21,4%, respectivamente). É nessas duas regiões também que se observam os menores percentuais na aquisição de alimentos in natura: 47,3% na região sul e 44,9% na região sudeste. A região norte é a que apresenta, ao mesmo tempo, a menor participação de alimentos ultraprocessados (11,4%) e a maior participação de alimentos in natura (58,2%) na aquisição de alimentos pelas famílias.

Participação dos grupos de alimentos no total de calorias a partir da aquisição domiciliar (2017-2018). Dados: IBGE. Adaptado de Atlas das situações alimentares no Brasil. CLIQUE PARA AMPLIAR

A situação do domicílio (urbano ou rural) também influencia na participação dos ultraprocessados. Nos domicílios urbanos, a aquisição de ultraprocessados representa 19,8% da aquisição das famílias, contra apenas 11,3% nos domicílios rurais. Inversamente, os alimentos in natura representam 47,7% da aquisição alimentar dos domicílios urbanos, número que sobe para 57,9% nos domicílios rurais.

A aquisição de alimentos in natura e ultraprocessados varia de maneira bem marcada conforme a renda. Entre os 20% mais pobres, os alimentos in natura representam 55,6% da aquisição dos domicílios e os ultraprocessados representam 12,5%. Ao longo dos outros grupos de renda, os alimentos in natura vão diminuindo e os ultraprocessados vão aumentando com regularidade, até chegarmos aos 20% mais ricos, onde a participação dos alimentos in natura cai para 44,2% e a dos alimentos ultraprocessados sobe para 24,7%, praticamente um quarto da aquisição de produtos alimentícios nesses domicílios.

Percebe-se como existe aqui uma questão de cultura alimentar. Os 20% mais ricos, que teriam condições de fazer melhores escolhas, inclusive com alimentos orgânicos, tidos como caros, optam mais por produtos comestíveis de baixíssimo valor nutricional.

Um olhar ao longo dos anos também mostra a diminuição gradual dos alimentos in natura e o aumento dos ultraprocessados na aquisição das famílias. Os alimentos in natura caem de 53,3% em 2002/2003 para 49,5% em 2017/2018. Ao mesmo tempo, os ultraprocessados crescem de 12,6% em 2002/2003 para 18,4% em 2017/2018.

Vemos, assim, dados que associam o avanço da chamada vida urbana moderna a hábitos alimentares de menor qualidade.

mapa da fome

Em 2014, o Brasil foi um dos destaques do Relatório de Insegurança Alimentar no Mundo, elaborado anualmente pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). A publicação, que traz dados gerais sobre a insegurança alimentar, dedicou ao país uma seção especial de três páginas e meia, onde sintetizou as lições que a comunidade internacional poderia aprender a partir das políticas públicas do então governo brasileiro. Foi um importante reconhecimento, por um órgão internacional, de um amplo e continuado conjunto de medidas que tirou milhões de brasileiros da fome e da miséria.

A publicação dessa edição do relatório tornou-se referência por marcar o momento em que o Brasil sai do mapa da fome da ONU. Esse mapa tem como base o indicador PoU – Prevalência de Subalimentação (Prevalence of Undernourishment, no original em inglês), usado na época para monitorar o progresso dos países no cumprimento dos então vigentes Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Sair do mapa da fome, naquele contexto, significava passar a apresentar um valor abaixo de 5% no indicador PoU.

Esse indicador mede a probabilidade de uma pessoa escolhida aleatoriamente apresentar um consumo de calorias abaixo dos requisitos mínimos para uma vida ativa e saudável. O índice é calculado com base em informações de grande escala dos países, por exemplo, dados macro sobre oferta de alimentos nos territórios. Trata-se, portanto, de uma estratégia bastante indireta e abstrata de se medir a chamada insegurança alimentar. Além disso, ao definir a fome com base em quantidade de calorias, o indicador opta por uma caracterização da fome de um ponto de vista clínico, deixando de lado os aspectos sociais e subjetivos dessa questão tão delicada.

A fome é uma experiência individual, uma condição sentida e vivenciada por seres conscientes. Uma abordagem mais próxima dos sujeitos parece mais adequada para investigá-la. Em vez de medir (ou, pior ainda, estimar) a quantidade de calorias ingeridas, acreditamos que a forma mais razoável e cientificamente honesta de saber se uma pessoa está com fome é perguntar a ela.

A Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) é um estudo aplicado pelo IBGE em suas pesquisas junto aos domicílios brasileiros. Os participantes respondem perguntas relacionadas a experiências concretas de suas famílias: sentir preocupação com a falta de condições para obter alimentos, ficar impossibilitado de comer certos tipos de alimentos, ter que comer menos do que sentia ser necessário, ter que deixar de fazer certas refeições, passar um dia inteiro sem comer. Pesquisas baseadas nessa escala são capazes de captar experiências de fome nas diferentes formas e intensidades que isso pode tomar nas vidas das pessoas.

Lançado no mês passado, o Atlas das situações alimentares no Brasil: a disponibilidade domiciliar de alimentos e a fome no Brasil contemporâneo se baseia em dados sobre a fome levantados pela EBIA. O trabalho traz um breve histórico dos indicadores de fome, propondo uma importante reflexão sobre a terminologia usada para se tratar desse tema. Mostra inclusive o contexto no qual o termo fome, a pedido do Departamento de Agricultura dos EUA, foi suprimido do indicador adotado na época naquele país, permanecendo apenas ‘insegurança alimentar’. De forma a eliminar eufemismos, o Atlas adota explicitamente o termo fome para situações usualmente tratadas como ‘insegurança alimentar moderada ou grave’ e risco de fome para os casos chamados de ‘insegurança alimentar leve’.

O Atlas traz dados dos anos de 2004, 2009, 2013 (nos quais ela foi aplicada dentro da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e de 2017/2018 (em que a EBIA foi aplicada com a Pesquisa de Orçamentos Familiares).

É possível observar uma clara diminuição da fome e do risco de fome entre 2004 e 2013. Nesse ano temos as menores proporções de domicílios com fome (7,8%) e com risco de fome (14,8%) no país. Há então uma reversão nessa tendência. A fome e o risco de fome voltam a aumentar e, na pesquisa de 2017/2018 atingem, respectivamente, 12,7% e 24% dos domicílios.

Evolução da fome e do risco de fome (2004-2018). Dados: IBGE. Adaptado de Atlas das situações alimentares no Brasil. CLIQUE PARA AMPLIAR

Os dados segmentados por situação do domicílio revelam um quadro duplamente intrigante. Em termos absolutos, o numero de domicílios com fome ou risco de fome nas áreas urbanas é muito maior. São 6,9 milhões de domicílios em condição de fome e 14 milhões de domicílios em risco de fome, segundo os dados de 2017/2018. Trata-se de um triste retrato do cenário de miséria a que são submetidas as pessoas que escolhem a vida urbana em busca das oportunidades que ela lhes promete. O dado aponta para a questão do acesso à alimentação, um dos componentes desse fenômeno multifatorial que é a segurança alimentar. Além da situação de pobreza ou miséria que atinge muitas pessoas, há ainda, em muitas áreas, a dificuldade ou impossibilidade de se conseguir alimentos saudáveis a preços acessíveis, os chamados desertos alimentares.

Ao mesmo tempo, em termos proporcionais, as áreas rurais são mais afetadas. Nos dados de 2017/2018, a fome aparece em 19,3% dos domicílios rurais (contra 11,6% dos domicílios urbanos) e o risco de fome em 27,1% deles (contra 23,5% dos urbanos). É assustador perceber que os territórios que teoricamente deveriam servir para produzir alimentos estão negando essa possibilidade às pessoas, pois estão dominados pelo sistema do agronegócio, que destrói a produção de subsistência. Nele, a terra serve para ganhar dinheiro e não para saciar a fome das pessoas.

Entre 2004 e 2009, a redução da fome e do risco de fome foi maior no campo do que na cidade. Já entre 2009 e 2013 a melhora mais expressiva se deu nas áreas urbanas.

Os dados por unidades da federação mostram que São Paulo, Bahia e Minas Gerais concentram os maiores números absolutos de domicílios em situação de fome; quanto ao risco de fome, os maiores números estão em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Em termos relativos, os maiores percentuais de fome estão nos estados de Amazonas, Maranhão e Amapá; as maiores proporções de risco de fome estão em Maranhão, Alagoas e Pará.

O fato concreto é que os dados mais recentes apresentados pelo Atlas mostram um quadro em que há fome em 8,7 milhões de domicílios brasileiros e risco de fome em outros 16,5 milhões de domicílios. Em um cálculo aproximado, assumindo uma média de 3 pessoas por domicílio, podemos estimar que havia 26,1 milhões de pessoas com fome e 49,5 pessoas em risco de fome no Brasil em 2018. Tudo isso ainda antes da pandemia e do desmonte, aprofundado nestes últimos anos, das políticas de combate à fome e à miséria que fizeram o Brasil ser destaque no relatório da FAO de 2014.

Papel mundialmente infame para um país que se destaca como grande exportador de commodities agrícolas. Fica claro como manter mais de um terço da população em situação de fome ou risco de fome é resultado de uma escolha política.

soberania alimentar

Como pode uma comunidade de pessoas fazer suas próprias escolhas sobre as formas de se alimentar se o controle da produção e distribuição de alimentos está nas mãos de corporações, sejam elas nacionais ou transnacionais? Esta é a questão fundamental para se pensar a noção de soberania aplicada a este aspecto essencial da vida que é a alimentação.

Soberania diz respeito à condição, de uma pessoa ou de um povo, de ser independente e livre para tomar decisões referentes aos seus próprios assuntos, estando imune aos interesses alheios e externos.

Portanto, quando falamos de soberania alimentar, estamos nos referindo à possibilidade de uma comunidade ou uma nação de fazer suas próprias escolhas quanto ao seu sistema alimentar: o que cultivar, com que técnicas, onde comercializar os alimentos, como transportá-los, como gerir os recursos da natureza essenciais à sua produção.

Um sistema alimentar pode ser pensado para gerar renda para um grande número de pequenos produtores, proporcionando-lhes uma vida digna, fortalecendo comunidades e produzindo alimentos saudáveis, ou pode ser estruturado de forma a produzir ganhos milionários para umas poucas empresas agropecuárias altamente capitalizadas, em enormes fazendas que empregam pouca mão de obra e esvaziam o campo, utilizando grande quantidade de veneno para minimizar prejuízos.

A produção de alimentos em escala industrial utiliza monoculturas e processos uniformizados, que levam à perda da diversidade. Fazendas de menor porte, quando convertidas a esses processos produtivos, também acabam presas, através dos contratos, às decisões corporativas, fazendo com que agricultores deixem de produzir as variedades que sempre cultivaram. Os produtos do agronegócio acabam dominando os sistemas de distribuição e comercio. Assim, da produção até o varejo, o sistema impõe produtos alimentícios a comunidades que antes cultivavam e consumiam variedades tradicionais e/ou locais, que acabam desaparecendo. Neste tipo de arranjo, a produtividade do capital é mais importante que a liberdade de escolha do consumidor.

Assim, a soberania alimentar diz respeito também à possibilidade de as pessoas obterem aquilo que comem de forma independente do enorme complexo de distribuição de alimentos, composto por transportadoras de longa distância, atacadistas, grandes entrepostos e redes de varejo, que têm o poder de decidir aquilo que o consumidor vai comer e aquilo que ele jamais encontrará nas prateleiras.

Naturalmente, o acesso dos pequenos produtores à terra é crucial quando se pensa em soberania alimentar. E terra não basta, é preciso que seja uma terra onde exista água, sem a qual o cultivo não é possível. Água potável ou com condições mínimas para uso em irrigação das plantações, livre de contaminação por agrotóxicos, esgotos, detritos industriais e substâncias tóxicas resultantes de mineração, garimpo e outras atividades legais ou ilegais.

Foto: Dionizio Bueno

Existe ainda um outro fator essencial que é o acesso a sementes. É importante que sejam sementes livres, como sempre foram na história da humanidade, e não sementes proprietárias, pertencentes a alguma corporação, e que prendem o agricultor em uma teia de obrigações e armadilhas contratuais. Sementes que têm um dono e não se reproduzem representam talvez a condição mais oposta à soberania alimentar. São dependência e submissão em um de seus mais altos graus.

A questão dos recursos naturais é essencial para se pensar em soberania alimentar. Terra, água e sementes são condições para a vida, deveriam ser bens públicos por definição, jamais serem privatizados. O sistema produtivo do agronegócio vem há décadas deteriorando o solo, contaminando rios e lençóis freáticos com veneno, destruindo ecossistemas. Assim, a discussão sobre soberania alimentar está naturalmente articulada a outras agendas mais amplas, de interesse de toda a sociedade.

A Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, criada pela UNESCO em 2001, afirma, em seu primeiro artigo: “Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza.” As culturas alimentares fazem parte do patrimônio de um povo. O respeito à diversidade está ligado à continuidade dessas formas de se alimentar, de cultivar o solo, de se relacionar com o lugar onde se habita. Novas tecnologias podem existir como opções para os agricultores, mas a decisão entre adotá-las ou manter as tradições agrícolas locais deve ser exclusivamente dessas comunidades, e não imposta a partir de fora por organizações alienígenas, seja com armas contratuais, seja pela sedução do dinheiro.

Falamos aqui de direito à alimentação, a um meio ambiente saudável e livre de veneno, à diversidade de formas de viver, plantar e se alimentar. Soberania alimentar é, portanto, uma questão de direitos humanos. Quando os direitos humanos são de fato prioritários sobre os direitos econômicos, o sistema agrícola é organizado para produzir alimentos, e não commodities. Alimentos servem para saciar a fome de seres que têm direito à vida; commodities servem para corporações ganharem dinheiro.

O termo soberania alimentar foi cunhado pela Via Campesina durante a Cúpula Mundial da Alimentação, um evento realizado em Roma pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), em 1996.

É preciso notar a diferença entre esse conceito e a ideia de segurança alimentar. Esta surgiu na década de 1970, num contexto em que as tecnologias produtivas como transgenia, monoculturas e alta mecanização estavam trazendo um aumento significativo da quantidade de alimentos produzida. Segurança alimentar diz respeito muito mais à disponibilidade de alimentos do que à sua qualidade ou às características do sistema alimentar e suas implicações econômicas, sociais e ambientais.

Ainda que o monitoramento das condições de segurança alimentar de uma população gere indicadores de extrema importância, discutir o problema da fome simplesmente nos termos da segurança alimentar pode estimular um regime alimentar corporativo, com produção em larga escala e todas as consequências apontadas aqui. A ideia de segurança alimentar deixa de contemplar diversas questões presentes no conceito de soberania alimentar e, em certos aspectos, até se opõe a ele. A proposta de simplesmente colocar alimentos na mesa, não importando quais sejam eles ou como são produzidos, pode levar a soluções que a indústria da alimentação, por sua capacidade de trabalhar em grande escala, tem mais condições de oferecer. No contexto em que vivemos, defesa da soberania alimentar traz de volta à discussão aspectos como a qualidade nutricional dos alimentos e todas as consequências do sistema que os produz.

O Dia Internacional de Luta pela Soberania Alimentar é celebrado todos os anos em 16 de outubro. Neste ano, a Conferência contra Fome aconteceu de forma remota e reuniu representantes de mais de 20 movimentos e organizações populares, rurais e urbanas. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) divulgou o documento Alimentação é Direito de Todo Ser Humano, no qual se posiciona diante do problema da fome no Brasil.

Discutir amplamente a soberania alimentar é um convite para que a sociedade deixe de pensar nos alimentos como mercadorias e volte a considerá-los um direito humano, essencial à reprodução da vida.

reaprendizagem

A torneira está pingando. Chama o encanador e manda trocar por uma torneira nova? Acordou enjoado ou com dores abdominais. Vai até a farmácia e se enche de comprimidos? Pneu da bicicleta furou. Leva na bicicletaria e manda trocar a câmera? A calça está arrastando no chão. Precisa do serviço de costura do shopping center para ajustar uma barra?

Alguns conhecimentos que eram amplamente difundidos há apenas uma ou duas gerações, hoje são bem mais raros entre as pessoas. Consertar ou até produzir roupas, usar ferramentas manuais para fazer reparos na casa, produzir conservas, fazer pão, aliviar pequenos males com chás ou remédios caseiros, utilizar áreas verdes para produzir alimentos, estas e outras habilidades eram triviais na geração dos nossos pais (ou dos avós dos mais jovens).

Em apenas algumas décadas, a cultura do consumo conseguiu varrer esses conhecimentos de boa parte da população, ao nos acostumar com soluções pensadas para gerar faturamento para grandes empresas e produzir em nós a dependência dos produtos e serviços oferecidos pelo mercado. No caso dos bens de consumo, a mensagem é “vá até o mercado e compre pronto”. Quanto aos chamados bens duráveis, “jogue esse fora e compre um novo”.

Um projeto voltado para a autonomia precisa se contrapor a esse tipo de mensagem, valorizando as soluções que estão ao alcance das pessoas. Por que eu preciso de um novo se eu posso fazer um pequeno reparo ou trocar uma peça daquele que eu já tenho? Além disso, é preciso criar um processo de reaprendizagem, no qual podemos compartilhar e difundir habilidades que permitem resolver pequenos problemas, sem ter que recorrer a serviços profissionais ou à compra de um novo bem.

Dentro do conceito de Cidades em Transição, que propõe um conjunto de ações que cidades ou grupos menores podem adotar para criar um modelo de desenvolvimento mais razoável e autossuficiente, isso recebe o nome de reskilling. O conceito surge no contexto da adaptação às mudanças climáticas e à escassez das fontes energéticas usadas atualmente, sobretudo o petróleo.

De fato, o fim da energia abundante e barata obriga a sociedade a repensar muitos aspectos da vida e da economia, como por exemplo os sistemas de distribuição baseados em redes de transporte de longa distância. A agricultura local ocupa um lugar de destaque como alternativa a esse modelo sem sentido. Se a estupidez da ideia de comer alimentos produzidos a milhares de quilômetros quando é possível produzir bem mais perto não foi suficiente para nos fazer repensar esse arranjo econômico, a escassez de energia finalmente virá para convencer a sociedade a priorizar a produção regional ou local.

Mas não precisamos pensar na reaprendizagem como uma tarefa que precisaremos encarar em vista de um cenário ameaçador de mudança climática e crise energética. Reaprender é interessante simplesmente porque é bom saber as coisas! O conhecimento é libertador e traz autonomia. Além de útil e importante, recuperar habilidades que nos foram tiradas pela cultura de consumo tem um forte sentido político.

O processo de reaprendizagem é uma oportunidade para que possamos compartilhar nossas habilidades, valorizando saberes e criando vínculos fortes e saudáveis entre as pessoas. É possível pensar, por exemplo, em pequenos encontros ou oficinas onde as pessoas troquem esses conhecimentos que permitem resolver pequenos problemas do dia a dia: técnicas de cultivo, costura, marcenaria, mecânica básica, uso de ervas medicinais, técnicas corporais voltadas para a saúde, tarefas simples domésticas como trocar um courinho de torneira ou um interruptor elétrico. Se isso puder acontecer de maneira comunitária, sem monetização dos saberes, será ainda mais incrível.

Essas oficinas têm ainda o efeito de valorizar o conhecimento dos mais velhos, neste mundo que, a bem do consumo, fica nos dizendo que tudo que é velho tem que ser jogado fora e substituído. A reaprendizagem deixa nas pessoas o sentimento de “eu consigo resolver, não dependo dos outros”. A construção da autonomia, inclusive nas pequenas tarefas da vida, é um prazer em si mesma, e fortalece pessoas e comunidades.

preço por unidade de medida

Na gôndola do mercado, você encontra diversas opções de biscoitos industrializados. Um deles é um biscoito quadrado dito integral, de uma marca bem conceituada, em uma embalagem de 200 gramas, ao preço unitário de R$ 2,76. Outro é um biscoito tipo água e sal comum, de uma marca considerada mais popular, com 160 gramas, por R$ 2,39. Qual desses dois produtos, vendidos em quantidades diferentes, é o mais barato?

Muitos consumidores apostarão na segunda opção. Mesmo com a diferença de peso, seu valor unitário parece bem menor. E além de não ser integral, é de uma marca menos conceituada. Porém, uma conta simples vai surpreender. Dividindo o preço do primeiro por seu peso em quilogramas (0,2), temos o valor de R$ 13,80 o quilo. Fazemos a mesma conta para o segundo, seu preço unitário deve ser dividido por 0,16 quilos (outra forma de dizer 160 gramas), e chegaremos no valor de R$ 14,94 o quilo. Apesar das aparências, o segundo biscoito é o mais caro!

Outro bom exemplo de armadilha é o sabão em pó oferecido em embalagem de 800 gramas por R$ 5,49 e em embalagem chamada de ‘econômica’, com 2,4 quilogramas, por R$ 17,90. Se você fizer as contas (apresentadas no texto anterior deste blogue), verá que é mais barato levar três embalagens menores do que uma ‘econômica’.

A política de preços aliada à escolha do tamanho das embalagens é um instrumento à disposição de fabricantes e comerciantes para atingir seus principais (e muitas vezes únicos) objetivos: aumentar as vendas e maximizar os ganhos. Ao jogarem com preços e quantidades nas embalagens, lançam mão de um artifício que tem a finalidade de fazer o consumidor pagar mais caro enquanto pensa que está pagando mais barato.

Há duas possibilidades de defesa contra essas armadilhas. Uma delas depende da iniciativa individual do consumidor: usar a calculadora do telefone celular (que hoje a maioria das pessoas carrega sempre no bolso) e converter os preços para uma unidade em comum, como fizemos acima, para fazer a comparação.

A outra forma de defesa seria, visto que temos aqui uma questão de interesse coletivo, uma lei que obrigasse os estabelecimentos comerciais a exibir nas gôndolas os preços por unidade de medida dos produtos. Essa obrigatoriedade existe há anos em diversos países. Há no Brasil, pelo menos na cidade de São Paulo, alguns raros mercados que espontaneamente já exibem os preços por unidade nas etiquetas de gôndola. Porém, por não se tratar de uma obrigação, eles podem abandonar essa prática a qualquer momento, conforme suas decisões gerenciais. Isso deveria estar em todos os lugares.

Houve em 2015 um primeiro esforço no sentido de regulamentar e generalizar essa prática. A lei nº 13.175/2015 determina a exibição do preço por unidade de medida no comércio de varejo, porém apenas na venda de produtos fracionados em pequenas quantidades. Por ser um caso específico demais, ela não se aplica aos milhares de produtos que chegam já embalados de fábrica. Assim, não ajuda em nada.

Alguns anos mais tarde, um projeto de lei propõe estender a obrigatoriedade a todos os produtos embalados à venda no varejo. O projeto de lei nº 4.355, apresentado em agosto de 2019, determina a exibição do preço por unidade de medida com a finalidade expressa de possibilitar que o consumidor efetue a comparação de preços entre produtos iguais ou similares, oferecidos em embalagens com quantidades diferentes entre si. Porém, até o momento, este projeto de lei encontra-se ainda em tramitação e, ao que tudo indica, está parado em alguma gaveta. Por ser uma interessante amostra de como um projeto de interesse público pode ser tratado de forma a dificultar sua aprovação, segue um breve resumo de como ele tramitou desde sua proposição até agora.

Ao receber o projeto de lei, a mesa diretora da câmara dos deputados determinou que ele passasse por algumas comissões, procedimento de praxe para avaliar seus aspectos técnicos específicos. São elas: Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços (CDEICS), Defesa do Consumidor (CDC) e Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). O projeto chega à primeira delas, a CDEICS, ainda no mês de agosto. É designado um relator, que vai conduzir a análise do projeto pela comissão. Em setembro, encerra-se o prazo para emendas ao projeto, sem que nenhuma tenha sido apresentada. Em novembro o relator apresenta seu parecer, no qual considera o projeto meritório e vota por sua aprovação.

Em dezembro de 2019 o projeto vai para reunião deliberativa. A sessão foi registrada em vídeo, que se encontra disponível no portal da câmara dos deputados (a avaliação deste PL começa no ponto 1:35’07” da gravação). Após fala inicial do relator, na qual ele se declara favorável, o projeto passa a ser discutido por outros membros da comissão.

Quatro deputados manifestam-se contrários ao projeto, sendo que alguns dos argumentos apresentados são falsos ou completamente sem sentido. Três desses deputados vão na linha de dizer que “isso já acontece” ou “o Código de Defesa do Consumidor já pede esse padrão”. Além de isso não ser verdade, esses argumentos têm a evidente finalidade de criar a impressão de que o projeto é desnecessário por ser redundante. Há também argumentos relacionados aos custos gerados pela medida. Um deles classifica isso como “barreiras ao empreendedor” e alega que “ninguém é obrigado a comprar nada, ninguém põe um revolver na cabeça [do consumidor] obrigando-o a comprar”. Um intrigante desafio à inteligência humana.

O último deputado a se manifestar, após chamar o projeto de “controverso”, pede vista ao relatório. O pedido de vista é um ritual de tramitação que dá à parte interessada mais tempo para reunir informações e formar opiniões sobre o assunto, o que tem o efeito de tirar o projeto, por um período determinado de tempo, da pauta da comissão. O presidente da sessão responde afirmativamente ao pedido de vista antes mesmo do término da frase do deputado. Enquanto o presidente encaminha a continuidade da sessão para o próximo assunto em pauta, a câmera ainda mostra, por alguns segundos, esse deputado que pediu vista. É possível vê-lo lançando uma expressão facial cheia de cumplicidade, com piscadinha e tudo, a algum outro membro que não dá para identificar pelo vídeo.

No ano de 2020, primeiro da pandemia, não há tramitação. O único fato mencionado é que, em fevereiro desse ano, o relator (aquela única pessoa a se manifestar favoravelmente na discussão) deixa de ser membro da comissão. Em março de 2021 encerra-se o prazo do pedido de vista concedido a um dos deputados. Em abril do mesmo ano é designado um novo relator. Desde então, não há no portal da câmara dos deputados nenhum outro registro de tramitação desse projeto de lei. Uma vez aprovado na câmara, o projeto precisaria ainda passar pelo senado e então seguir para sanção presidencial.

Paralelamente a esse projeto de lei federal, há também algumas iniciativas isoladas em nível estadual. Este blogue teve conhecimento de duas delas. Uma é a lei nº 7.834/2016 do estado de Alagoas, originada por um projeto de lei de 2015. Esta lei está, teoricamente, em vigor no estado. Buscaremos informações complementares sobre a efetividade concreta dessa lei nos supermercados de lá. A outra iniciativa é o projeto de lei nº 3.859/2018, em tramitação na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O último registro de tramitação desse projeto disponível no portal dessa casa legislativa data do início deste mês, agosto de 2021. Na prática, o projeto ainda não está aprovado.

Se, por um lado, os estabelecimentos comerciais poderiam ter o interesse de prestar um bom serviço a seus fregueses, fornecendo informações transparentes que facilitem suas escolhas, por outro, eles têm negócios milionários com seus parceiros fornecedores. Tendem, portanto, a se alinhar com os interesses destes últimos. Ao não informar o preço por unidade de medida, podem beneficiar-se de promoções enganosas, nas quais vendem mais caro produtos que deveriam ser mais baratos. Podem também usar as diferenças de quantidade para mascarar diferenças de preço dos produtos de qualidades diferentes.

Na ponta da cadeia econômica encontra-se o consumidor, aparentemente sozinho. Enquanto não temos leis efetivas a esse respeito, parece que a única alternativa para se defender desse tipo de armadilha é perder a resistência em lidar com números e jamais ter vergonha de usar a calculadora na frente da gôndola ao escolher as compras.