agroecologia nas eleições

Das três esferas da política institucional, a municipal é onde são vividos e decididos os assuntos ligados de forma mais imediata à vida cotidiana das pessoas. Isso faz do período de eleições municipais uma época especialmente propícia para se tratar de certos assuntos, como as relações comunitárias, a alimentação, a cultura, a saúde e o meio ambiente. Essas áreas estão diretamente conectadas a políticas públicas locais, cuja execução pode ser acompanhada de perto pelos cidadãos e cidadãs.

Para levantar a discussão sobre esses temas neste momento oportuno, a ANA publicou uma carta política intitulada “Democracia e agroecologia como princípios para a construção de políticas de futuro e para a garantia de soberania e segurança alimentar nos municípios brasileiros – Desafios para as candidaturas nas eleições de 2024”. Trata-se da terceira edição da iniciativa Agroecologia nas Eleições, que nos anos eleitorais desde 2020 tem buscado trazer a pauta da agroecologia para o debate público.

A carta política foi elaborada por organizações, coletivos e movimentos sociais, apresentando um total de 51 propostas, organizadas em 15 áreas temáticas. Todas as propostas são de extrema importância para a construção da soberania alimentar e nutricional, o fortalecimento das relações comunitárias e a garantia da democracia. Destacamos aqui alguns mais diretamente ligados ao campo teórico e prático do Bicicarreto.

Imagem: divulgação

Na seção ‘Comercialização, circuitos curtos e compras institucionais’, o documento chama atenção para a importância da adesão do município ao Programa de Aquisição de Alimentos e, no que se refere ao Programa Nacional de Alimentação Escolar, que as administrações municipais estabeleçam metas progressivas anuais de forma que finalmente possa ser atingida a condição determinada pela Lei nº 11.947/2009, de se destinar no mínimo 30% dos recursos do programa para compras da agricultura familiar.

Também propõe a criação de uma política municipal de apoio a feiras de produtores e a equipamentos públicos de abastecimento alimentar.

No tópico sobre ‘Agricultura urbana’, para que se possa garantir sua efetivação, defende a destinação de áreas públicas e privadas para produção de alimentos e plantas medicinais, com assessoria para produtores e produtoras, apoio a coletivos de mulheres e suporte à implementação de hortas nas escolas.

Chama a atenção ainda para a importância do uso de instrumentos urbanísticos, como planos diretores, para a promoção da agricultura urbana, propondo inclusive a criação de áreas especiais de segurança alimentar.

O documento inclui temas que aparecem com pouca frequência no debate político em nível municipal, como o ‘Controle e restrição de atividades que geram impactos negativos à saúde e ao meio ambiente’. Dentro deste tópico destacamos a efetivação de leis que estabeleçam zonas livres de agrotóxicos no município (proibindo inclusive sua pulverização aérea), a restrição do uso de transgênicos nos programas públicos de abastecimento alimentar e a implementação de ações de educação alimentar, com o estímulo ao consumo dos alimentos in natura e minimamente processados.

Partindo de uma visão ampla da agroecologia, o documento também contempla práticas integrativas, com incentivo ao uso de fitoterápicos e plantas medicinais produzidas pela agricultura familiar ou nas unidades de saúde, o fortalecimento de iniciativas de comunicação popular, como rádios comunitárias, e a inserção de conteúdos relacionados à agroecologia e segurança alimentar nas ações pedagógicas das escolas, em cidades e áreas rurais.

Em sua apresentação, a carta política destaca que “a agroecologia é um dos caminhos mais efetivos não só para a produção de alimentos e territórios saudáveis e sustentáveis, como também para garantir justiça social e climática e construir tecnologias sociais capazes de enfrentar a nova realidade que estamos vivendo”.

Assim, além do propósito central de fornecer uma agenda propositiva para as candidaturas e trazer esses temas sistematizados para pautar uma discussão envolvendo toda a sociedade, a carta política Agroecologia nas Eleições 2024 cumpre também o papel de apresentar a agroecologia a um público mais amplo, mostrando que ela é muito mais que um conjunto de técnicas de cultivo.

Declaração de Quito

Em abril de 2000, a poucos meses do fim do século XX, representantes de diversas cidades latino-americanas estiveram juntos na capital equatoriana, durante o seminário internacional “Agricultura Urbana en las Ciudades del Siglo XXI”. O encontro foi organizado por diversas entidades de importância mundial ou regional, como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Programa de Gestão Urbana para a América Latina e o Caribe (PGU-ALC), a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o Centro Internacional de Pesquisa para o Desenvolvimento (IDRC), o Centro das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (Hábitat) e a Coordenação Regional para América Latina e Caribe.

Um dos resultados desse encontro foi a Declaração de Quito, um documento firmado por mais de 30 cidades latino-americanas que convida governos e demais atores públicos e privados a comprometerem-se com a prática da agricultura urbana e com o apoio ativo ao seu desenvolvimento.

A Declaração de Quito é tida como o primeiro documento internacional diretamente voltado à promoção da agricultura urbana, reconhecendo a atividade como central em diversas áreas e propondo caminhos para que seja tratada como política pública. O texto da Declaração faz um chamado aos “governos estaduais e nacionais para que considerem a Agricultura Urbana em seus programas de combate à pobreza, segurança alimentar, promoção do desenvolvimento local e melhoria do ambiente e da saúde”.

Um dos destaques do documento é a ênfase que ele dá ao papel proativo que as administrações municipais podem ter na integração da atividade ao desenvolvimento das cidades. Hoje é comum que a agricultura urbana ocupe espaços vazios, como terrenos, cantos de praças, áreas de servidão. É preciso ir muito além disso. A Declaração sugere, por exemplo, que as prefeituras poderiam “promover a coleta de informações sobre as atividades da Agricultura Urbana em seus processos de planejamento territorial” e, com isso, antecipar o ordenamento urbano de forma a prever espaços para o crescimento das áreas cultiváveis nas cidades.

Horta urbana no Jaguaré, zona oeste de São Paulo. Foto: Dionizio Bueno.

Alguns municípios brasileiros participaram do seminário e tornaram-se signatários da Declaração: Brasilia (DF), Curacá (BA), Maranguape (CE), Teresina (PI) e Fortaleza (CE). Durante os trabalhos do encontro, as cidades presentes apresentaram suas políticas municipais relacionadas à agricultura urbana.

Brasília, por exemplo, compartilhou a experiência de um programa, vigente entre 1995 e 1998, de apoio a produtores com poucos recursos, oferecendo-lhes crédito, assistência técnica e apoio à formação de microempresas. O programa também desenvolveu uma marca comercial para os produtos e criou pontos de venda na cidade para o escoamento da produção. Posteriormente, o projeto foi estendido aos estados de Minas Gerais e Mato Grosso do Sul.

Teresina trouxe o relato de um programa da prefeitura que deu suporte a hortas comunitárias para 2500 famílias, convertendo 120 hectares de terrenos vazios em terras produtivas. Além disso, fornecia irrigação, insumos básicos e assistência técnica aos produtores.

Durante o seminário, formou-se também o “Grupo de Trabalho de Cidades sobre Agricultura Urbana e Segurança Alimentar”. Entre outras ações, o GT encaminhou a produção e divulgação, com apoio de entidades internacionais, de ferramentas metodológicas, guias e mecanismos que coletem experiências regionais e informem a formulação e execução de políticas públicas, principalmente relacionadas a planejamento urbano e ordenamento territorial, reutilização de água e resíduos sólidos orgânicos e linhas de crédito para a agricultura urbana.

Importante legado desse seminário, a Declaração de Quito é ainda hoje uma referência fundamental para o devido posicionamento da agricultura urbana dentro da gestão municipal. Sendo uma atividade com impactos tão evidentes em diversas esferas da vida nas cidades, a agricultura urbana precisa urgentemente ser pensada de forma mais ampla, como uma estratégia essencial para um desenvolvimento urbano sustentável.

hortas comunitárias e hábitos alimentares

Uma pesquisa publicada em 2008 buscou aferir se existe relação entre o envolvimento das pessoas com hortas comunitárias e seus hábitos de alimentação, especificamente o consumo diário de frutas e verduras. Realizada em Flint, uma cidade estadunidense que em termos populacionais é comparável a Alfenas (MG) ou Vinhedo (SP), a pesquisa mediu o número médio de vezes ao dia que as pessoas consomem frutas e verduras e também a porcentagem de pessoas que consomem ao menos cinco porções desses alimentos in natura por dia, contemplando as recomendações das autoridades de saúde daquele país.

Entre os participantes da pesquisa, aqueles que têm ao menos um membro da família envolvido com horta comunitária consumiam frutas e verduras, em média, 4,4 vezes por dia, enquanto que quem não tem gente da família envolvida com essas iniciativas apresentou um consumo médio desses alimentos de 3,3 vezes por dia. No primeiro grupo, foi bem maior também o número de pessoas que consumiam ao menos cinco porções frutas e verduras por dia: 32,4%, comparado aos 17,8% entre as famílias sem envolvimento com hortas.

Ainda que a pesquisa assuma suas limitações metodológicas, afirmando que não é possível estabelecer relações de causalidade entre o trabalho em hortas comunitárias e os hábitos alimentares, os dados permitem reflexões interessantes sobre a relação das pessoas com os alimentos in natura.

O artigo apresenta uma discussão sobre as barreiras para o consumo de alimentos saudáveis. Há, em primeiro lugar, a questão da disponibilidade de alimentos frescos in natura, que é de fato um fator determinante. Localidades onde é difícil encontrar alimentos saudáveis, pois seus mercados oferecem apenas produtos industrializados, são consideradas desertos alimentares. De acordo com o artigo, esse é o caso da cidade de Flint. Importante lembrar que feiras livres não são comuns naquele país como são aqui no Brasil. Outros obstáculos apontados pelo artigo para o consumo de alimentos saudáveis seriam: os hábitos e a preferência pessoal, a qualidade do que está disponível, o custo de aquisição e o custo do transporte até o local de compra desses alimentos.

Nesses casos todos, uma horta comunitária local ajuda bastante, ao tornar possível obter alimentos naturais, pelo menos quando estão prontos para serem colhidos, a um custo baixo, que seria apenas o dos insumos para se manter a horta e do tempo alocado a esse trabalho.

Foto: Bárbara Zem

Podemos também acrescentar a dimensão relacional que se estabelece entre a pessoa e a planta por meio do envolvimento com o trabalho prático na horta. Essa vivência traz familiaridade e proximidade com esses alimentos, colocando-os dentro do universo cotidiano da pessoa. O trabalho com a horta proporciona um contato físico periódico com plantas alimentícias, o que não é pouca coisa se pensarmos que o contexto urbano oferece limitações tanto pelo cenário de concreto quanto pela rotina de vida que costuma impor. Para quem mora em apartamento, que é uma realidade para boa parte dos habitantes de grandes cidades, o cultivo de plantas alimentícias ou ornamentais é ainda mais difícil.

Para além de todos os aspectos sociais e ambientais associados a uma horta urbana, o envolvimento com iniciativas desse tipo torna possível que a pessoa tenha em sua vida, diariamente se quiser, importantes experiências dos sentidos: o cheiro das plantas, o toque na terra e nas folhas, a visão do campo verde produzindo vida, o som do vento passando pelas folhas e dos pássaros que habitam esses espaços naturais, o sabor da amostra de alimento beliscada do canteiro enquanto se trabalha.

É natural que toda essa relação afetiva com as plantas alimentícias na horta influencie os hábitos alimentares das pessoas. Além dos evidentes efeitos de fortalecimento comunitário, a convivência com vizinhos e colegas de horta reforça ainda mais a relação com os alimentos quando eles se transformam em assunto de conversas, objeto de curiosidade e fascínio, tema de novas pesquisas e explorações.

Segundo fontes citadas no artigo, foi demonstrado que o envolvimento com hortas escolares ajuda a formar nas crianças o gosto por alimentos in natura. Se as crianças forem envolvidas no trabalho nas hortas urbanas comunitárias, o potencial de criar hábitos alimentares saudáveis se multiplica para o futuro.

Hortas comunitárias têm um evidente papel na construção da autonomia e da segurança alimentar, ao mesmo tempo em que reforçam laços e fortalecem a solidariedade. Ao considerarmos seu potencial de influenciar hábitos alimentares, podemos expandir a ideia de cidade educadora também para o campo da saúde. Criam-se, assim, as bases para uma reconfiguração revolucionária dos sistemas alimentares e da própria paisagem urbana.

consea

Espaços institucionais de articulação entre o governo e a sociedade civil são essenciais para a formulação e a implementação de políticas públicas favoráveis aos interesses coletivos da sociedade. No campo da segurança alimentar e nutricional da população brasileira, esse espaço é o Consea – Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Não por acaso, o Consea foi desativado no primeiro dia de governo da pessoa que ocupou o cargo de presidente da república entre 2019 e 2022, cujo nome não merece ser pronunciado nem escrito.

A reinstalação do Consea se efetivou em 28 de fevereiro de 2023 e foi celebrada por movimentos sociais e ativistas em todo o país. Ao conhecer a relevância e a forma de funcionamento desse conselho, compreendemos melhor a importância desse retorno.

O Consea é um órgão de assessoramento imediato à Presidência da República, com competência para apresentar proposições de políticas relacionadas à segurança alimentar e nutricional e também para exercer monitoramento e controle social na execução dessas políticas. Tem caráter consultivo e atualmente integra o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan).

De seus 60 membros, dois terços são representantes da sociedade civil e um terço são ministros de Estado. Trata-se, portanto, de um espaço importantíssimo para movimentos e organizações sociais que atuam pelo aprimoramento das políticas públicas ligadas a soberania e segurança alimentar e nutricional no Brasil, colocando-os em posição de serem ouvidos diretamente pelo presidente do país.

O Consea teve importante papel na construção de diversas políticas públicas. Alguns exemplos: exigência de que 30% das aquisições do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) venha da agricultura familiar, formulação da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, elaboração do Guia Alimentar para a População Brasileira, criação do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), inclusão do direito à alimentação saudável na Constituição Federal, criação do Sisan.

Tais políticas foram determinantes para a sensível redução do número de pessoas em situação de subalimentação, tirando o Brasil do mapa da fome da ONU em 2014. Por sua atuação, o Consea obteve importante reconhecimento fora do país e já recebeu a visita de delegações internacionais que vieram conhecer o seu trabalho.

A cada quatro anos, o Consea organiza a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CNSAN), que é a instância máxima do Sisan e indica as diretrizes e prioridades da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. O encontro é precedido de conferências municipais, regionais e estaduais, nas quais são eleitos delegados e delegadas que irão participar da conferência nacional.

Histórico das CNSANs já realizadas. Adaptado de Relatório final da 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. CLIQUE PARA AMPLIAR

A última conferência que aconteceu até o momento foi a 5ª CNSAN, em novembro de 2015, em Brasília. Apenas para lembrar, em 2015 a Dilma era presidente, o golpe contra ela já estava sendo articulado mas ainda não havia sido consumado, Lula ainda não havia sido preso, o povo brasileiro ainda não tinha escolhido um fascista para presidente da república, não existia pandemia, ainda não havia 33 milhões de pessoas passando fome no país.

Entre os vários resultados da 5ª Conferência está um trabalho coletivo de escolha de prioridades dentro de um conjunto de 331 proposições trazidas das conferências estaduais. As três proposições mais votadas foram: “Garantir, ampliar e fortalecer as ações de assistência técnica e extensão rural (Ater) na promoção da inclusão produtiva das famílias em situação de pobreza extrema no meio rural, respeitando a forma dos saberes culturais dos povos e comunidades tradicionais”; “Promover o papel da agricultura familiar, camponesa e indígena como um dos elementos estruturantes das estratégias nacionais e regionais de soberania e segurança alimentar e nutricional, por meio do estímulo à produção local de alimentos baseada em modelos diversificados e de base agroecológica, em estratégias soberanas de abastecimento alimentar e em articulação com os preceitos de uma alimentação adequada e saudável”; “Implementar planos de proteção de bacias com recursos para a revitalização e renaturalização dos corpos hídricos, considerando o caráter intermunicipal e interestadual das bacias hidrográficas no momento da tomada de decisões relacionadas às políticas de recursos hídricos, sejam elas estaduais ou federais e que as ações de revitalização atuem prioritariamente nas causas de degradação das bacias hidrográficas”.

Em síntese, na avaliação conjunta dos delegados e delegadas presentes na 5ª Conferência, os três temas mais sensíveis naquele momento eram: inclusão produtiva por meio de assistência técnica, estímulo à agricultura familiar com base na agroecologia e proteção aos recursos hídricos.

No intervalo entre as CNSAN, costuma ser organizado um encontro nacional denominado CNSAN+2, com o objetivo de realizar um balanço das proposições da conferência e do estado de implementação das medidas de segurança alimentar e nutricional no país. A 5ª CNSAN+2 aconteceu em março de 2018, também em Brasília. O relatório desse encontro já identificava retrocessos no campo da segurança alimentar e nutricional, os quais, como sabemos, se aprofundariam nos anos seguintes: “a atual conjuntura de retrocessos na democracia impôs um cenário de desconstrução de direitos, precarização das relações de trabalho, aumento do desemprego, esvaziamento de políticas públicas e iminente volta do Brasil ao Mapa da Fome”.

A conferência seguinte deveria acontecer em 2019, e sua convocatória chegou a ser aprovada em novembro de 2018. Com a desativação do Consea, o encontro naturalmente não aconteceu.

Durante o período em que esteve desativado, os integrantes do Consea mantiveram-se mobilizados, junto com os Conseas estaduais e movimentos sociais de combate à fome, monitorando os movimentos do governo em relação à segurança alimentar e nutricional.

A nutricionista, pesquisadora e professora Elisabetta Recine, que presidia o Consea no momento de sua desativação, foi agora reconduzida ao cargo, junto com seus conselheiros. O gesto mostra a expectativa, por parte do atual governo e da sociedade brasileira, de que o conselho retome os trabalhos do ponto em que foram interrompidos, no início de 2019.

tratado sobre recursos fitogenéticos

O Tratado Internacional sobre os Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura é um acordo que reconhece um conjunto de espécies vegetais alimentícias como patrimônio da humanidade. Trata-se de um importante mecanismo de proteção da biodiversidade agrícola.

Dos milhares de cultivos já desenvolvidos pelas sociedades ao longo de sua história, mais de três quartos foram perdidos nos últimos cem anos. Em nome do aumento da produtividade, a agricultura intensiva, mecanizada e baseada em pacotes tecnológicos prefere cultivos únicos e sementes modificadas em laboratórios. Como consequência, muitas variedades são abandonadas, rompendo a continuidade do processo reprodutivo da vida. Isso se chama extinção. Diante desse processo de desaparecimento de espécies comestíveis, proteger a diversidade torna-se um requisito para garantir a segurança da alimentação dos povos.

Construído no âmbito da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o documento foi assinado em 2001 e entrou em vigor em 2004. Atualmente, conta com 149 nações e organizações signatárias. Entre seus objetivos estão “a conservação e a utilização sustentável dos recursos fitogenéticos para a alimentação e a agricultura e a partilha justa e equitativa dos benefícios resultantes da sua utilização”.

Foto: Min An / Pexels

O texto do tratado destaca a importância dos agricultores para a diversidade de cultivares que alimentam as pessoas de todo o mundo. As comunidades locais de agricultores são as guardiãs da biodiversidade. Dispondo conhecimento acumulado através de muitas gerações, conhecem soluções testadas e aperfeiçoadas ao longo de séculos de prática das técnicas tradicionais. É por isso que o Tratado inclui, entre as diretrizes a serem seguidas pelos países signatários, o apoio aos agricultores e às comunidades locais para a manutenção desses cultivos.

Cada país contratante deve também inventariar os recursos fitogenéticos para a alimentação e a agricultura, promover a conservação in situ das espécies através do apoio às comunidades locais, proteger as variedades que se encontrem ameaçadas, entre outras ações. Para fomentar projetos de fortalecimento, o Tratado prevê um Fundo de Distribuição de Benefícios, que concede subvenções a projetos inovadores e escaláveis, especialmente nos chamados países em desenvolvimento. A mais recente chamada para projetos foi em maio de 2022.

Desde 2002, o Brasil é signatário do Tratado. Em 2008, o Decreto nº 6.476 promulga o Tratado no Brasil. A partir daí, diversos marcos legais foram surgindo e têm servido para, entre outras finalidades, apoiar sua implementação. Alguns exemplos são a Lei da Biodiversidade, a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica e o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica.

guia alimentar

Produzido com a participação de especialistas de várias áreas, o Guia Alimentar para a População Brasileira, editado pelo Ministério da Saúde em 2014, é uma importante obra de referência para a educação alimentar num sentido amplo, voltada para a população em geral. Oferece uma oportunidade para que cada um possa refletir sobre suas práticas alimentares e compreender a amplitude de aspectos que estão relacionados à alimentação, muitas vezes sem nos darmos conta disso.

Trata-se de um esforço para melhorar as condições de saúde da população por meio da alimentação adequada e saudável, diante do aumento nos índices de obesidade e de diversas doenças, relacionado a um processo contínuo de substituição de alimentos in natura por alimentos ultraprocessados, observado em todas as regiões do país e todas as camadas da população.

É preciso enfatizar que o Guia Alimentar não é nem um livro de receitas nem um manual de dieta alimentar, com tabelas nutricionais de cada prato ou refeição. O Guia aborda o tema da alimentação de forma abrangente, desde a escolha e aquisição dos alimentos, passando pelo seu preparo, até o momento da refeição propriamente dito, com todos os aspectos relacionais e sociais envolvidos. Além disso, se propõe a ser referência para a população brasileira, com toda sua diversidade física e cultural.

Há sim sugestões de cardápios. Mas em vez de elas virem da fala de autoridade de profissionais, amparados em complexos cálculos nutricionais, vêm da mesa de brasileiros reais, das diferentes regiões do país, que consomem esses cardápios em seu dia a dia, seguindo suas referências culturais e tradições familiares. Para cada uma das três grandes refeições diárias (café da manhã, almoço e janta), são apresentados, a título de exemplo, oito cardápios compostos exclusivamente de alimentos in natura ou minimamente processados.

Imagem: divulgação

Ao longo de todo seu texto, o Guia enfatiza que alimentar-se é também um ato político e comunitário, já que muitas das escolhas têm efeitos que vão muito além do aspecto fisiológico individual. Ao escolher meus alimentos, que pessoas ou corporações eu estou remunerando com o pagamento da minha compra? Que sistema alimentar eu estou fortalecendo? Quais agentes econômicos se beneficiam quando escolho comprar em uma grande rede varejista sem fazer ideia sobre quem produziu esta comida e quantos quilômetros ela percorreu até chegar aqui?

Depois de escolher, adquirir e preparar os alimentos, chegamos ao ato de alimentar-se propriamente dito. Quem está comigo neste momento? Que pessoas estão próximas em meu cotidiano a ponto de compartilharem comigo este ato tão importante para o corpo, a mente e o grupo comunitário? Que relações entre semelhantes eu estou fortalecendo durante esses minutos tão importantes à saúde? Com quem estou compartilhando minhas opiniões sobre saúde, nutrição, comunidade, projeto de vida?

Interessante lembrar que a importância da comensalidade foi mais uma vez demonstrada durante a pandemia. O trabalho remoto tirou a hora do almoço da rotina diária dos trabalhadores. Especialistas da área da saúde mental apontam a perda desse importante momento de convivência e compartilhamento entre colegas de trabalho como um fator, entre tantos outros, para o aumento de ansiedade e depressão entre as pessoas que passaram a trabalhar isoladas em suas casas.

Outro aspecto importante do ato de alimentar-se é a experiência consciente dos aromas e sabores da refeição. Observe um restaurante que as pessoas frequentam diariamente em seu horário de almoço e procure contar quantas não estão mexendo no telefone enquanto mastigam. Com a atenção totalmente tomada pela sedução digital, mal percebem o sabor do que estão ingerindo, o ato de comer torna-se um gesto mecânico e meramente funcional, excluindo do cotidiano o prazer de comer!

Em diversas passagens, o Guia Alimentar enfatiza a importância de se separar o ato de alimentar-se das praticas de consumo ou da exposição à publicidade comercial. Em locais como praças de alimentação, a refeição se confunde com um gesto de consumo. Também sugere que as pessoas evitem comer enquanto se expõem a mensagens publicitárias, que trazem imagens que afetam profundamente, ainda que de maneira inconsciente, não apenas a escolha dos alimentos como a satisfação – ou frustração – proporcionada por aquilo que se está comendo.

Detalhes como esses mostram o interesse público da obra, pois ela orienta os cidadãos a se resguardarem dos interesses corporativos da indústria da alimentação.

Foto: Fauxels / Pexels

A edição de 2014 do Guia Alimentar para a População Brasileira tem atualizações significativas em relação a sua primeira edição, de 2006, não somente em seus conteúdos, mas também na linguagem e na forma como foi elaborado. Especialistas das áreas da saúde, educação, agricultura, professores de universidades e membros de organizações de defesa do consumidor foram reunidos em uma oficina de escuta. Uma versão preliminar ficou então por três meses em consulta pública na página do Ministério da Saúde e foi objeto de novas oficinas, em todos os estados do Brasil, para acolher as diferentes percepções do público em geral, incorporando à obra a imensa diversidade regional do país.

Escrito em um estilo de texto leve, trazendo recomendações sem tom impositivo, o Guia se destaca em meio a tantas mensagens sobre alimentação disponíveis atualmente na mídia, seja da publicidade, seja dos especialistas de plantão, que nos dizem o tempo todo, em tom muitas vezes taxativo e autoritário, como devemos e como não devemos comer. Estilisticamente, soa como uma refeição suave e caseira para quem está acostumado com comida industrializada cheia de realçador de sabor.

Todos esses aspectos do Guia convidam a uma degustação lenta, prolongando o prazer e a profundidade da reflexão. É perfeito como tema de aulas, rodas de conversa, oficinas e estudos dirigidos, um ótimo material para ser lido e estudado por professores, terapeutas, cuidadores, gastrônomos, profissionais da saúde. Além de estimular mudanças positivas nos hábitos alimentares, tem a importante missão de formar e informar cidadãos para que possam exigir o cumprimento do direito humano a uma alimentação decente e saudável.

cresan butantã

Em volta dos canteiros suspensos da horta, as crianças observam e tocam folhas que nunca haviam visto antes. Uma tarde que tinha tudo para ser trivial na rotina da escola de educação infantil transforma-se em uma vivência memorável, que pode mudar a relação da criança com os alimentos.

Estamos em um Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional (Cresan) da Prefeitura de São Paulo, localizado no Butantã, zona oeste da cidade. Aqui acontecem ações de educação alimentar e nutricional voltadas para diversos públicos.

Esta unidade dispõe de uma horta pedagógica, com diversas espécies de plantas comestíveis. Aqui, crianças e adultos podem conhecer um pouco sobre alimentação saudável, agroecologia, compostagem, consumo consciente e outros temas ligados à segurança alimentar e nutricional. O Cresan Butantã também está equipado com uma cozinha escola, onde acontecem treinamentos para manipulação de alimentos, cursos de culinária saudável, gastronomia e receitas tradicionais, entre outros, sempre acompanhados por nutricionistas da prefeitura ou das entidades parceiras.

Na horta suspensa do Cresan Butantã, crianças sentem a textura das folhas de peixinho, uma planta alimentícia ainda pouco conhecida. Foto: Dionizio Bueno.

As ações desenvolvidas no Cresan tem como referência os Guias Alimentares publicados pelo Ministério da Saúde com a finalidade de promover alimentação adequada e saudável entre a população brasileira.

Por meio de parcerias com escolas, CEUs, unidades de saúde e organizações sociais, o Cresan Butantã recebeu, entre abril e outubro de 2022, mais de 1200 pessoas em atividades educativas e formativas.

Durante as visitas de escolas, as crianças são conduzidas em uma vivência que busca trazer não só informações, mas também experiências sensoriais. Elas podem conhecer o cheiro de ervas aromáticas e até de provar verduras e temperos apanhados diretamente da terra. Podem também tocar folhas com texturas diferentes do usual, como boldo ou peixinho. Depois de passar pela horta, as crianças vão para a sala degustar um lanchinho preparado com vegetais que acabaram de ser colhidos, além de cantar e participar de brincadeiras. Ao final, recebem mudinhas de plantas, que vão levar para casa com a proposta de aprenderem a cuidar.

A gestora do Cresan Butantã, Sheyla Sicília, fala do potencial educativo e transformador dessa vivência: “As crianças saem felizes dessa experiência, é algo realmente contagiante. Além disso, a atividade está alinhada aos componentes curriculares que estão sendo trabalhados na escola.”

Se buscamos construir um sistema alimentar no qual as pessoas possam ser protagonistas na escolha de seus alimentos – um sistema em que a soberania alimentar seja genuinamente construída de baixo para cima –, é essencial que as pessoas sejam educadas para a alimentação saudável. Isso se constrói, em primeiro lugar, por meio do conhecimento. A importância do Cresan Butantã é ser um equipamento público que trabalha para a educação alimentar e nutricional com um enfoque comunitário, sendo ainda um laboratório para a construção de políticas públicas que promovam segurança alimentar em grande escala.

Atualmente, existem dois Cresans em São Paulo: este no Butantã e um na Vila Maria, onde funciona o banco de alimentos da cidade.

banco de alimentos

Todos os dias, centenas de quilos de produtos alimentícios saem do Banco de Alimentos da Prefeitura de São Paulo, tendo como destino diversas entidades assistenciais, espalhadas por toda a cidade. Essas entidades vão repassá-los a famílias em situação de insegurança alimentar. Nos últimos seis meses (de abril a setembro de 2022), o Banco de Alimentos distribuiu, em média, 30,8 toneladas de alimentos por mês.

Os gêneros que chegam ao Banco de Alimentos vêm de três origens: doados por empresas parceiras (distribuidores, redes de varejo, indústrias), adquiridos da agricultura familiar e arrecadados pelo Programa Municipal de Combate ao Desperdício e à Perda de Alimentos, que coleta, nas feiras livres e mercados municipais da cidade, alimentos já fora dos padrões de comercialização mas que se encontram em perfeitas condições de consumo. No caso das doações de empresas parceiras, trata-se de produtos com pequenas avarias nas embalagens ou próximos à data do vencimento.

“Existem manuais que orientam sobre quando se pode destinar alimentos com danos na embalagem. Nós treinamos nossos funcionários para fazerem essa triagem”, diz Luíza Araújo, nutricionista responsável pelo programa. “Quando recebemos produtos muito próximos ao vencimento, nós acionamos entidades que produzem um grande número de refeições e as entregam prontas às famílias, de forma a garantir que esses alimentos serão consumidos ainda dentro do vencimento. No caso das entidades que distribuem sacolas de produtos fechados para as famílias, encaminhamos produtos que estão menos perto do vencimento”. Após uma avaliação inicial e triagem, são feitas correções nas embalagens ou, caso estejam muito danificadas, os produtos são transferidos de embalagem. Estas recebem uma nova etiqueta, com as informações necessárias sobre o produto.

O Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional (Cresan) da Vila Maria, onde funciona o Banco de Alimentos da Prefeitura de São Paulo. Foto: Dionizio Bueno.

Atualmente, há 410 entidades cadastradas para receber os produtos. Existe um esquema rotativo que garante a cada entidade que, quando for sua vez de receber alimentos, haverá quantidade suficiente para atender todos os seus beneficiários. É importante também que haja um bom aproveitamento do transporte que a entidade envia ao Banco, localizado na Vila Maria, zona norte, para receber os produtos. De um modo geral, cada carga tem 300 quilos de alimentos ou mais.

De acordo com os balanços mensais do programa, que são publicados no Diário Oficial e ficam disponíveis no portal da Prefeitura, ultimamente o Banco tem atendido cerca de 70 entidades a cada mês, o que dá uma média de 440 quilos de alimentos por entidade. O Banco dispõe de câmara fria, sala de manipulação, diversas salas de estocagem e uma cozinha industrial, onde acontecem oficinas de capacitação para as entidades, formações para geração de renda com alimentação saudável e atividades de educação nutricional para escolas, unidades de saúde e população do entorno.

Servidora apresenta uma das salas de estocagem do Banco de Alimentos a profissionais das entidades beneficiadas, dando dicas sobre armazenamento e conservação dos produtos. Foto: Dionizio Bueno.

Os dados disponíveis sobre o Banco de Alimentos mostram que em 2020, primeiro ano da pandemia, houve um sensível aumento na quantidade de alimentos recebidos e distribuídos pelo Banco. Isso demonstra como é fundamental que um sistema de segurança alimentar esteja sempre em funcionamento, pronto para ampliar sua atividade em períodos de agravamento da fome, por meio de ações emergenciais.

Podemos também atribuir a um equipamento público como este uma importância que vai muito além da perspectiva de mitigação dos efeitos de um sistema alimentar excludente. Ele pode ser usado para a própria construção e consolidação de um sistema alimentar mais justo e acessível. A estrutura do Banco de Alimentos pode, por exemplo, ser utilizada com enfoque de fortalecimento da economia local, por meio de aquisições governamentais permanentes de produtos da agricultura familiar existente na região em que está instalado. Seria uma contribuição sistêmica para a erradicação da fome, profundamente alinhada aos princípios da segurança alimentar, um modelo que poderia ser replicado em outras regiões da cidade.

As dinâmicas do mercado e do capital tendem a excluir da cadeia produtiva o pequeno produtor. Para contrabalançar essa tendência, cabe ao poder público adotar um papel ativo no sentido de garantir a viabilidade econômica desses estabelecimentos. A quantidade de sítios produtores e hortas urbanas existentes no município demonstra como isso é possível inclusive dentro de uma metrópole como São Paulo. Além dos evidentes benefícios sociais, um sistema localizado de produção de alimentos afeta o preço final, ao diminuir os custos de transporte, e também a qualidade do alimento, que viajará menos e chegará mais fresco à mesa das pessoas.

Criado em 2002, o Banco de Alimentos da Prefeitura de São Paulo é um programa da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Trabalho (SMDET), por meio da Coordenadoria de Segurança Alimentar e Nutricional (Cosan).

quilombo quebrada

Pouco a pouco, novas conexões estratégicas vão se formando entre produtores e consumidores. Alimentos produzidos nos quilombos do Vale do Ribeira, região sul do estado de São Paulo, agora chegam diretamente ao bairro de São Miguel Paulista, na zona leste da capital, por meio da iniciativa Quilombo Quebrada.

A ação aconteceu pela primeira vez no dia 9 de julho, no Galpão ZL, que pertence à Fundação Tide Setúbal, e voltou a ocorrer no mês de agosto. Os alimentos foram trazidos pela Cooperquivale (Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira), que tem sede no município de Eldorado, através de uma articulação do Instituto Socioambiental (ISA). Além de serem agroecológicos, esses alimentos são produzidos por meio do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola, um conjunto de saberes reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio imaterial do Brasil.

O Quilombo Quebrada é uma feira de produtores que leva alimentos saudáveis até uma região onde as pessoas têm dificuldade para obter comida sem veneno. Sabemos como os alimentos orgânicos custam caro nas redes de supermercados, e são poucas as feiras livres que oferecem essas alternativas. Ao criar um circuito curto, a iniciativa possibilita o acesso aos alimentos saudáveis a um preço mais acessível.

Colheita de mandioca no Quilombo Cangume, em Itaóca – SP. Foto: © Manoela Meyer / ISA.

Há um importante antecedente nessa articulação com a cooperativa do Vale do Ribeira. Em 2021, durante uma das fases mais críticas da pandemia, aproximadamente 11 toneladas de alimentos produzidos nos quilombos foram entregues no Jardim São Remo, na zona oeste de São Paulo. Os moradores da comunidade, por sua vez, foram recebidos nos quilombos, e ali puderam ter contato direto com os produtores e produtoras da região. Essa riquíssima troca de olhares e experiências foi retratada no minidocumentário “Do Quilombo pra Favela – alimento para a resistência negra”, produzido pelo ISA.

A ideia é que o Quilombo Quebrada aconteça mensalmente no Galpão ZL. A próxima ação está marcada para o sábado 10 de setembro.

aquisição de alimentos

Uma forma de se caracterizar as situações alimentares existentes no país é através dos dados sobre a aquisição de alimentos. Aqui temos em vista a alimentação que as pessoas fazem em seus domicílios, desconsiderando aquilo que elas comem fora de casa. Por outro lado, neste tipo de pesquisa o IBGE computa as informações tanto daquilo que as famílias compram (aquisições monetárias) quanto dos alimentos obtidos de outras formas (aquisições não monetárias), como através de produção própria, coleta em hortas, pomares e canteiros, pesca, caça e doações recebidas.

O Atlas das situações alimentares no Brasil: a disponibilidade domiciliar de alimentos e a fome no Brasil contemporâneo, publicado em 2021, traz informações interessantes referentes à aquisição de alimentos pelos brasileiros. O estudo utilizou dados de diversas edições da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), elaboradas pelo IBGE. O Atlas apresenta os dados de maneira um tanto restrita, omitindo informações que poderiam ser do interesse de alguns leitores, mas ainda assim permite observações interessantes.

Foram computados os dados de aquisição de alimentos per capita em quilogramas, organizando em grupos alimentares os itens adquiridos pelas famílias. Porém apenas alguns dados relativos são apresentados. A aquisição alimentar da classe de maior rendimento (mais de 15 salários-mínimos) é, como se poderia supor, acima da média geral em vários grupos alimentares. A aquisição de frutas dessa classe, por exemplo, é 124,9% superior à média geral. Essa classe também se destaca em outros grupos alimentares: hortaliças folhosas e florais (114,3% acima da média), hortaliças frutosas, tuberosas e outras (83,6% acima da média) e laticínios (74,5% acima da média geral).

Diferença na aquisição alimentar per capita anual em relação à média nacional (2017-2018). Dados: IBGE. Adaptado de Atlas das situações alimentares no Brasil. CLIQUE PARA AMPLIAR

Porém o grupo alimentar em que há o maior destaque dessa classe econômica são os alimentos preparados e misturas industriais, no qual o consumo dessa classe é 187% acima da média geral. Nesse grupo encontram-se produtos como alimentos congelados, refeições prontas, frango empanado, batata frita, salgadinhos e misturas para bolo. São produtos de maior valor agregado (ainda que alguns deles sejam de baixíssimo valor nutricional), o que pode explicar o fato de aparecerem com destaque nessa classe econômica.

A classe de menor rendimento (até 2 salários-mínimos) se destaca da média geral na aquisição de alguns grupos alimentares: farinhas e féculas (17,4% acima da média), feijão (12,1% acima da média) e arroz (11,9% acima da média).

In natura e ultraprocessados

O estudo também apresenta uma avaliação da disponibilidade domiciliar de alimentos com base em uma classificação diferente proposta pelo IBGE, a qual agrupa os produtos alimentares com base na extensão de seu processamento industrial. Essa classificação resulta em quatro grupos alimentares: alimentos in natura (ou minimamente processados), ingredientes culinários (processados), alimentos processados e alimentos ultraprocessados.

As regiões sul e sudeste são aquelas onde a aquisição de ultraprocessados é maior entre as famílias (22% e 21,4%, respectivamente). É nessas duas regiões também que se observam os menores percentuais na aquisição de alimentos in natura: 47,3% na região sul e 44,9% na região sudeste. A região norte é a que apresenta, ao mesmo tempo, a menor participação de alimentos ultraprocessados (11,4%) e a maior participação de alimentos in natura (58,2%) na aquisição de alimentos pelas famílias.

Participação dos grupos de alimentos no total de calorias a partir da aquisição domiciliar (2017-2018). Dados: IBGE. Adaptado de Atlas das situações alimentares no Brasil. CLIQUE PARA AMPLIAR

A situação do domicílio (urbano ou rural) também influencia na participação dos ultraprocessados. Nos domicílios urbanos, a aquisição de ultraprocessados representa 19,8% da aquisição das famílias, contra apenas 11,3% nos domicílios rurais. Inversamente, os alimentos in natura representam 47,7% da aquisição alimentar dos domicílios urbanos, número que sobe para 57,9% nos domicílios rurais.

A aquisição de alimentos in natura e ultraprocessados varia de maneira bem marcada conforme a renda. Entre os 20% mais pobres, os alimentos in natura representam 55,6% da aquisição dos domicílios e os ultraprocessados representam 12,5%. Ao longo dos outros grupos de renda, os alimentos in natura vão diminuindo e os ultraprocessados vão aumentando com regularidade, até chegarmos aos 20% mais ricos, onde a participação dos alimentos in natura cai para 44,2% e a dos alimentos ultraprocessados sobe para 24,7%, praticamente um quarto da aquisição de produtos alimentícios nesses domicílios.

Percebe-se como existe aqui uma questão de cultura alimentar. Os 20% mais ricos, que teriam condições de fazer melhores escolhas, inclusive com alimentos orgânicos, tidos como caros, optam mais por produtos comestíveis de baixíssimo valor nutricional.

Um olhar ao longo dos anos também mostra a diminuição gradual dos alimentos in natura e o aumento dos ultraprocessados na aquisição das famílias. Os alimentos in natura caem de 53,3% em 2002/2003 para 49,5% em 2017/2018. Ao mesmo tempo, os ultraprocessados crescem de 12,6% em 2002/2003 para 18,4% em 2017/2018.

Vemos, assim, dados que associam o avanço da chamada vida urbana moderna a hábitos alimentares de menor qualidade.

mapa da fome

Em 2014, o Brasil foi um dos destaques do Relatório de Insegurança Alimentar no Mundo, elaborado anualmente pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). A publicação, que traz dados gerais sobre a insegurança alimentar, dedicou ao país uma seção especial de três páginas e meia, onde sintetizou as lições que a comunidade internacional poderia aprender a partir das políticas públicas do então governo brasileiro. Foi um importante reconhecimento, por um órgão internacional, de um amplo e continuado conjunto de medidas que tirou milhões de brasileiros da fome e da miséria.

A publicação dessa edição do relatório tornou-se referência por marcar o momento em que o Brasil sai do mapa da fome da ONU. Esse mapa tem como base o indicador PoU – Prevalência de Subalimentação (Prevalence of Undernourishment, no original em inglês), usado na época para monitorar o progresso dos países no cumprimento dos então vigentes Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Sair do mapa da fome, naquele contexto, significava passar a apresentar um valor abaixo de 5% no indicador PoU.

Esse indicador mede a probabilidade de uma pessoa escolhida aleatoriamente apresentar um consumo de calorias abaixo dos requisitos mínimos para uma vida ativa e saudável. O índice é calculado com base em informações de grande escala dos países, por exemplo, dados macro sobre oferta de alimentos nos territórios. Trata-se, portanto, de uma estratégia bastante indireta e abstrata de se medir a chamada insegurança alimentar. Além disso, ao definir a fome com base em quantidade de calorias, o indicador opta por uma caracterização da fome de um ponto de vista clínico, deixando de lado os aspectos sociais e subjetivos dessa questão tão delicada.

A fome é uma experiência individual, uma condição sentida e vivenciada por seres conscientes. Uma abordagem mais próxima dos sujeitos parece mais adequada para investigá-la. Em vez de medir (ou, pior ainda, estimar) a quantidade de calorias ingeridas, acreditamos que a forma mais razoável e cientificamente honesta de saber se uma pessoa está com fome é perguntar a ela.

A Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) é um estudo aplicado pelo IBGE em suas pesquisas junto aos domicílios brasileiros. Os participantes respondem perguntas relacionadas a experiências concretas de suas famílias: sentir preocupação com a falta de condições para obter alimentos, ficar impossibilitado de comer certos tipos de alimentos, ter que comer menos do que sentia ser necessário, ter que deixar de fazer certas refeições, passar um dia inteiro sem comer. Pesquisas baseadas nessa escala são capazes de captar experiências de fome nas diferentes formas e intensidades que isso pode tomar nas vidas das pessoas.

Lançado no mês passado, o Atlas das situações alimentares no Brasil: a disponibilidade domiciliar de alimentos e a fome no Brasil contemporâneo se baseia em dados sobre a fome levantados pela EBIA. O trabalho traz um breve histórico dos indicadores de fome, propondo uma importante reflexão sobre a terminologia usada para se tratar desse tema. Mostra inclusive o contexto no qual o termo fome, a pedido do Departamento de Agricultura dos EUA, foi suprimido do indicador adotado na época naquele país, permanecendo apenas ‘insegurança alimentar’. De forma a eliminar eufemismos, o Atlas adota explicitamente o termo fome para situações usualmente tratadas como ‘insegurança alimentar moderada ou grave’ e risco de fome para os casos chamados de ‘insegurança alimentar leve’.

O Atlas traz dados dos anos de 2004, 2009, 2013 (nos quais ela foi aplicada dentro da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e de 2017/2018 (em que a EBIA foi aplicada com a Pesquisa de Orçamentos Familiares).

É possível observar uma clara diminuição da fome e do risco de fome entre 2004 e 2013. Nesse ano temos as menores proporções de domicílios com fome (7,8%) e com risco de fome (14,8%) no país. Há então uma reversão nessa tendência. A fome e o risco de fome voltam a aumentar e, na pesquisa de 2017/2018 atingem, respectivamente, 12,7% e 24% dos domicílios.

Evolução da fome e do risco de fome (2004-2018). Dados: IBGE. Adaptado de Atlas das situações alimentares no Brasil. CLIQUE PARA AMPLIAR

Os dados segmentados por situação do domicílio revelam um quadro duplamente intrigante. Em termos absolutos, o numero de domicílios com fome ou risco de fome nas áreas urbanas é muito maior. São 6,9 milhões de domicílios em condição de fome e 14 milhões de domicílios em risco de fome, segundo os dados de 2017/2018. Trata-se de um triste retrato do cenário de miséria a que são submetidas as pessoas que escolhem a vida urbana em busca das oportunidades que ela lhes promete. O dado aponta para a questão do acesso à alimentação, um dos componentes desse fenômeno multifatorial que é a segurança alimentar. Além da situação de pobreza ou miséria que atinge muitas pessoas, há ainda, em muitas áreas, a dificuldade ou impossibilidade de se conseguir alimentos saudáveis a preços acessíveis, os chamados desertos alimentares.

Ao mesmo tempo, em termos proporcionais, as áreas rurais são mais afetadas. Nos dados de 2017/2018, a fome aparece em 19,3% dos domicílios rurais (contra 11,6% dos domicílios urbanos) e o risco de fome em 27,1% deles (contra 23,5% dos urbanos). É assustador perceber que os territórios que teoricamente deveriam servir para produzir alimentos estão negando essa possibilidade às pessoas, pois estão dominados pelo sistema do agronegócio, que destrói a produção de subsistência. Nele, a terra serve para ganhar dinheiro e não para saciar a fome das pessoas.

Entre 2004 e 2009, a redução da fome e do risco de fome foi maior no campo do que na cidade. Já entre 2009 e 2013 a melhora mais expressiva se deu nas áreas urbanas.

Os dados por unidades da federação mostram que São Paulo, Bahia e Minas Gerais concentram os maiores números absolutos de domicílios em situação de fome; quanto ao risco de fome, os maiores números estão em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Em termos relativos, os maiores percentuais de fome estão nos estados de Amazonas, Maranhão e Amapá; as maiores proporções de risco de fome estão em Maranhão, Alagoas e Pará.

O fato concreto é que os dados mais recentes apresentados pelo Atlas mostram um quadro em que há fome em 8,7 milhões de domicílios brasileiros e risco de fome em outros 16,5 milhões de domicílios. Em um cálculo aproximado, assumindo uma média de 3 pessoas por domicílio, podemos estimar que havia 26,1 milhões de pessoas com fome e 49,5 pessoas em risco de fome no Brasil em 2018. Tudo isso ainda antes da pandemia e do desmonte, aprofundado nestes últimos anos, das políticas de combate à fome e à miséria que fizeram o Brasil ser destaque no relatório da FAO de 2014.

Papel mundialmente infame para um país que se destaca como grande exportador de commodities agrícolas. Fica claro como manter mais de um terço da população em situação de fome ou risco de fome é resultado de uma escolha política.

agricultura familiar

Desde os primórdios da agricultura, o cultivo da terra normalmente acontece em um grupo de pessoas com vínculos de parentesco, seja uma família nos moldes ocidentais, seja uma parentela extensa ou grupo local nas sociedades diferentes da nossa.

Com o surgimento do sistema de produção capitalista, a atividade no campo ganhou traços industriais. Áreas de cultivo muito maiores, produção em larga escala, trabalho regido por princípios de eficiência. Passa a ser necessário contratar trabalhadores, sejam eles permanentes, para cuidar de tarefas diárias da fazenda, ou temporários, para os picos de demanda de trabalho como as épocas de plantio e colheita.

Sobretudo a partir dos anos 1960, houve um intenso fluxo migratório em direção às áreas urbanas. A mecanização agrícola diminuiu a demanda por trabalhadores no campo, enquanto o desenvolvimento da indústria e as imagens de modernidade passaram a atrair pessoas para as cidades. O processo ficou conhecido como êxodo rural: milhares de famílias migraram para as cidades atrás das promessas de bons salários e melhores condições de vida.

Nesse movimento, muitas famílias trocaram a condição de pequenos proprietários rurais por uma situação de grande vulnerabilidade econômica e social, vivendo nas periferias de áreas urbanas. Passaram a fazer parte do grande exército de reserva de mão de obra, que o capital usa para manter os salários em níveis baixos.

Além disso, essas pessoas deixaram para trás não apenas seus pequenos sítios, que lhes garantiam a sobrevivência e a dignidade. Perderam também vínculos familiares, costumes cotidianos e a possibilidade de uma vida pouco custosa no campo.

Felizmente parece haver também uma força oposta nesse processo, com a recente valorização da agricultura familiar. Esse modelo produtivo vem conquistando reconhecimento institucional nos últimos 25 anos, resultante da criação de políticas públicas, programas governamentais, espaços de participação e naturalmente da promulgação de leis. A mais significativa delas é a Lei da Agricultura Familiar (lei federal nº 11.326/2006) que reconhece oficialmente a atividade como profissão e estabelece diretrizes de uma política nacional.

Foto: Rose dos Santos e Guilherme Martins / MST Paraná

Um produtor é considerado agricultor familiar quando utiliza predominantemente mão de obra de pessoas ligadas a ele por vínculos familiares e não por vínculos patronais.

Segundo informações do Censo Agropecuário 2017, 77% dos estabelecimentos produtores do Brasil são de agricultura familiar. Entretanto, a área ocupada por eles corresponde a apenas 23% de toda área produtiva do país. Tal diferença naturalmente se explica pelo pequeno tamanho dessas propriedades, especialmente se comparadas às enormes fazendas do agronegócio. Além disso, é na agricultura familiar que estão 67% dos trabalhadores do setor agropecuário.

Percentual de estabelecimentos caracterizados como agricultura familiar em relação ao total de estabelecimentos (2006). Fonte: IBGE, Censo Agropecuário 2006. CLIQUE PARA AMPLIAR

Os dados detalhados de produção disponíveis no Censo Agropecuário 2006 mostram mais claramente a participação da agricultura familiar na produção dos itens que compõem a alimentação básica das pessoas. É da agricultura familiar que vem 70% do feijão, 34% do arroz, 87% da mandioca e 58% do leite de vaca. Já o modelo não familiar de agricultura, tipicamente usado no agronegócio, destaca-se na produção de commodities, que são exportados ou vendidos internamente depois de processados: produz 84% da soja, 79% do trigo e 62% do café.

Podemos constatar, portanto, que a agricultura familiar é fonte de parte significativa daquilo que de fato alimenta as pessoas, enquanto que o agronegócio não esconde sua vocação de simplesmente produzir para ganhar dinheiro.

Foto: Gisele David / MST-PR

Programas e projetos que valorizam a agricultura familiar representam um estímulo para o desenvolvimento do pequeno produtor. Um modelo de produção e distribuição de alimentos orientado para a autonomia só é possível se a produção estiver espalhada pelo território, cada um produzindo um pouco em cada lugar. Isso também contribui para que o trabalho esteja espacialmente distribuído, garantindo renda e segurança alimentar para milhões de famílias em todo o território.

Quase tão importante quanto o trabalho é a possibilidade de uma vida que preserve vínculos comunitários, tradições, referências culturais. Sem esses aspectos nutridores da condição humana, as pessoas se transformam em consumidores passivos, reféns das mídias e facilmente manipuláveis, inclusive em seus hábitos alimentares.

Bicicarreto #04

Toda reflexão sobre as possibilidades de desenvolvimento do Bicicarreto é construída a partir da prática, em movimento. De fato, o pedalar na estrada é propício para arejar o pensamento ao mesmo tempo em que nos empoderamos quanto aos caminhos para transformar ideias em ações concretas.

Foto: Adriana Marmo.

Para que as ações de ativismo sejam sustentáveis como uma prática periódica, precisamos reconhecer que toda ação tem um valor expressivo, além naturalmente de seu valor instrumental. Os efeitos recompensadores de uma ação vêm não apenas dos resultados práticos que ela produz mas também de sua própria execução. Sentindo-se bem durante o processo, a pessoa vai querer fazer de novo.

Foto: Arnaldo Machado.

Nesse aspecto, o Bicicarreto tem sido sempre uma experiência incrível para todos os participantes. Envolve bicicleta, estrada, terra produtiva, amigos, jardins, histórias, hortas, mato e sol. Que mais precisa?

Foto: Dionizio Bueno.

Levar as provocações do Bicicarreto ao ambiente escolar foi o propósito que deu origem a esta ação #04. Neste ano, a Mostra Cultural da escola municipal Théo Dutra, na Brasilândia, iria contar com uma pequena feira agroecológica, articulada pela professora Fernanda Rodrigues. O Bicicarreto entrou na parceria para fazer o transporte de parte desses alimentos.

Foto: Fernanda Rodrigues.

Ver um grupo de bicicletas chegando diretamente da roça, trazendo produtos orgânicos recém colhidos, é um ponto de partida bastante inspirador para muitas reflexões. A escola precisa assumir um papel protagonista na formação de cidadãos críticos e não de consumidores passivos.

Foto: Fernanda Rodrigues.

Temas como produção e distribuição de alimentos, segurança alimentar, reforma agrária, alimentação saudável e agricultura urbana precisam ser regularmente abordados em sala de aula, pois dizem respeito à saúde e à vida de todos nós.

Foto: Ana Fediczko.

Com a prática, vamos acumulando aprendizados sobre as possibilidades das ações de ativismo do Bicicarreto. Trata-se simplesmente de pegar a estrada, chegar cedo a um sítio produtivo na área rural, encontrar pessoas queridas, conversar sobre novas articulações que reforcem nossa luta. Pedalar é (quase) sempre um ato cheio de sentidos políticos.

semente

Quando resolveu invadir a Índia com suas sementes geneticamente modificadas, a indústria do pesticida fez campanhas agressivas nos pequenos vilarejos, exibindo filmes que mostravam seus produtos junto a deidades do hinduísmo, como forma de quebrar a resistência e ganhar a simpatia dos agricultores. Eles gostaram da proposta, aceitaram converter suas plantações para a transgenia e compraram sacas de sementes patenteadas. A estratégia funcionou. Até aqui, apenas uma velha e manjada ferramenta da publicidade.

Acontece que os agricultores naturalmente tinham o hábito de estocar as sementes de suas culturas, pois eram elas que reiniciavam o ciclo de cultivo no ano seguinte. Essas sementes nativas ameaçavam o interesse da indústria: se não gostassem da nova experiência, os agricultores poderiam voltar a plantar suas próprias sementes e a indústria perderia aquele mercado. Era preciso garantir a dependência perpétua. Era preciso eliminar qualquer outra alternativa dos agricultores, destruir as chances de sobrevivência das formas tradicionais de cultivo. Como aquele tiro que o assassino dá na cabeça do morto caído no chão, para garantir que ele está mesmo bem morto.

Foi simples fazer isso. Os agentes da indústria ofereceram uma quantia em dinheiro em troca de quaisquer sementes antigas que os agricultores pudessem ter guardadas nas fazendas. Parecia um bom negócio, afinal eles agora tinham as novas sementes, cheias de promessas, e nenhum motivo para supor que poderiam precisar das antigas. Alguns trocados a mais fariam diferença no orçamento daquelas famílias simples. Entregaram tudo. Quando começaram a se dar conta da armadilha em que haviam caído, houve uma onda de suicídios de agricultores. Um deles se matou bebendo o próprio pesticida.

O filme Semente: a história nunca contada (Seed: The Untold Story) apresenta apenas um ou outro caso sinistro como esse. É importante conhecer o adversário, saber com quem estamos lidando para jamais duvidar da sua absoluta falta de escrúpulos. Porém, o que vale o filme são as belas histórias de resistência, iniciativas de ativistas de diversos lugares do mundo que estão contribuindo para preservar a diversidade. Ao longo do século XX, 94% das variedades de sementes desapareceram.

Um banco de sementes em Iowa, EUA.

Você conhecerá colecionadores de sementes, bibliotecas de sementes, bancos comunitários de sementes, caçadores de sementes raras que só restaram em poucos lugares do mundo. Verá soluções que os agricultores e agricultoras estão encontrando para ajudarem uns aos outros e resistirem contra as investidas dessa indústria de destruição da vida. Como as feiras de trocas de sementes nativas, por exemplo.

Foi durante a I Feira de Trocas de Sementes e Mudas da Reforma Agrária, realizada na Comuna da Terra Irmã Alberta em setembro de 2017, que saiu da terra o primeiro broto de ideia do BiciCarreto.

Belo tributo a esses pedaços de matéria que carregam a vida inteira dentro deles, Semente: a história nunca contada é perfeito como primeira sugestão de filme publicada neste blogue.

cicloativismo rural

Com foco no espaço urbano, o cicloativismo costuma estar voltado para a conquista e legitimação do espaço urbano para a bicicleta e outros modais ativos. Isso implica a reorganização das cidades, que há quase um século vêm sendo construídas e reconstruídas conforme um projeto de vida baseado no transporte motorizado sobre pneus.

Aqui, a reflexão vai além dos limites da cidade. Saímos para a estrada, produzindo uma narrativa de cicloativismo em ambiente rural.

Trata-se igualmente do reconhecimento da bicicleta como um poderoso meio de transporte. Ao lidar com produção agrícola, porém, o ativismo aqui está voltado para uma ideia radical de autonomia. No campo, a bicicleta pode ser um fator de segurança alimentar para uma família ou uma comunidade de produtores. Eles passam a ter autonomia para escoar sua produção. Se isso é levado a sério, a tendência natural, isto é se forças fortes contrárias não atuarem, é de formação de cooperativas, mercados locais de produtores e circuitos curtos.

Escoamento da produção é um problema frequente nos assentamentos da reforma agrária. Ajudar no transporte dessa produção é um gesto naturalmente ativista. Melhor ainda no dia em que os ativistas forem desnecessários, e os próprios produtores estiverem levando muitas coisas, pelo menos as que o transporte em bicicletas for viável.

Queremos comida sem veneno. Produtos agrícolas são alimento. Mesmo tendo um apelo diferencial por serem orgânicos, são importantes demais para serem tratados como itens de luxo de butiques alimentícias ou redes de supermercados para gente feliz.

Em meio rural, o cicloativismo ganha muitos novos significados, conecta muitas lutas. Talvez melhor dizendo, mostra como a luta é uma só.

alimentação local

Qual o sentido de escolher um alimento que viajou centenas ou milhares de quilômetros quando é possível ter o mesmo alimento produzido localmente ou numa cidade vizinha?

Ao olhar para um tomate que foi plantado a milhares de quilômetros, você tem pelo menos duas certezas. Uma é que o custo dessa viagem absurdamente longa está embutido nesse preço, e se nem assim ele está especialmente caro é porque alguém, provavelmente o produtor, está sendo muito explorado, tendo seu trabalho pago bem abaixo do que deveria. A outra certeza é que esse tomate passou muito mais horas chacoalhando dentro de um caminhão, em condições precárias de higiene, do que um tomate plantado perto de você.

O princípio da alimentação local é muito simples: dar preferência a alimentos produzidos em locais próximos. Essa escolha tem impactos diversos. Fortalece as redes econômicas locais. Incentiva produtores próximos, cujas hortas você pode eventualmente vir a conhecer pessoalmente. Apoia produtores de pequeno porte em detrimento de esquemas econômicos baseados na produção e no transporte em larga escala, que se sustentam na exploração do trabalho humano. Desincentiva o transporte de longa distância, que consome grande quantidade de energia e emite muitos poluentes.

A alimentação local é tema de reflexão em muitos lugares do mundo e, havendo um número significativo de pessoas com esse tipo de preocupação em suas escolhas, é eventualmente chamada de movimento. Há quem fale em critérios para se considerar um alimento como local. No caso de critérios baseados em distância, há na Europa limites que variam entre 100 e 250 quilômetros, enquanto que a legislação estadunidense fala em 400 milhas (640 quilômetros) de distância entre produção e consumo. Segundo essa mesma legislação, o estado pode também ser um critério, o que naturalmente fica confuso quando se trata de produção ou consumo próximo às divisas de estado (regiões em outros estados acabam sendo mais próximas que algumas regiões do mesmo estado). Há também critérios pensados em termos de unidade ecológica, definida de acordo com clima, bioma, bacia hidrográfica, solo etc., levando às noções de ecorregião ou de bacia alimentar.

No contexto do BiciCarreto, podemos propor um critério mais radical para se pensar a localidade. Alimentação local é aquela em que a produção fica a uma distância viável para ser coberta por meio de bicicletas. Numa economia dominada pelo agronegócio e pelos dogmas da globalização, a ideia de alimentação local nos serve como inspiração para um mundo que certamente é possível e estará tão mais próximo de nós conforme nossas pequenas decisões cotidianas apontarem nessa direção.

É importante sempre questionar sobre a origem daquilo que estamos comendo. Para os produtores da maioria dos alimentos que você ingere, aquilo é nada mais que um commodity, um bem que existe por seu valor de troca e que pode muito bem ser produzido na Bahia, trazido de caminhão até o CEAGESP em São Paulo para ser então negociado e despachado para o Amazonas, sem que haja nada de estranho nisso.

Para você, porém, aquilo é o seu alimento, é a substância que forma os tecidos do seu corpo e nutre sua vida. Ao escolher de onde vem aquilo que come, você também escolhe que esquema econômico vai ajudar a alimentar. Além dos critérios nutricionais, a compra de um alimento envolve sempre uma decisão política.

segurança alimentar

A ideia de segurança alimentar diz respeito ao “direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente”, conforme o Artigo 3º da lei federal nº 11.346/2006, conhecida como Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional. Em seu Artigo 4º, a Lei define que a segurança alimentar abrange também “a ampliação das condições de acesso aos alimentos por meio da produção, em especial da agricultura tradicional e familiar, (…) do abastecimento e da distribuição dos alimentos”.

foto: Luiz Costa/SMCS

Entendendo a segurança alimentar como um elemento essencial na vida de qualquer comunidade, o BiciCarreto propõe uma organização do sistema de produção e distribuição de alimentos na qual todas as comunidades tenham condições de alcançar o máximo de autonomia. Aqui, como em outros contextos, autonomia deve ser compreendida como uma configuração em que existe o mínimo possível de dependência.

A bicicleta é uma forma de transporte que oferece possibilidade de autonomia praticamente ilimitada, além de ser um meio de alta eficiência energética, chegando a ser 25 vezes mais eficiente que um automóvel.

O uso da bicicleta para o transporte da produção, associado a uma organização adequada dos produtores, contribui fortemente para a segurança alimentar. As comunidades passam a ter acesso aos alimentos sem depender de combustíveis fósseis, da propriedade de um veículo motorizado (com todos os custos de manutenção e impostos que isso implica) ou da atuação de intermediários que façam a distribuição. Como consequência, ficam protegidas dos mercados de combustíveis, de veículos e de serviços. Ficam também imunes aos efeitos da variação da oferta desses serviços, como acontece nos casos, ainda que pouco frequentes, de alteração ou paralisação dos sistemas de transportes.

Por ser uma forma pessoal de transporte, sem a velocidade das máquinas, a bicicleta humaniza as relações comerciais, fortalecendo ainda mais as comunidades. Produtores, comerciantes e consumidores são atores essenciais em uma economia local. A segurança alimentar da comunidade é o resultado de suas escolhas.