obesidade supera subnutrição

Quando se fala em crianças desnutridas, a imagem que vem à mente é de uma criança magra, esquálida, só pele e osso. Com o avanço das estratégias mercadológicas da indústria de ultraprocessados, essa imagem precisa ser atualizada. Agora, a imagem da desnutrição é uma criança obesa.

De acordo com o relatório Feeding Profit – how food environments are failing children (Alimentando o Lucro – como os ambientes alimentares estão falhando com as crianças), publicado pela UNICEF em setembro, o número de crianças obesas no mundo já supera o de crianças subnutridas. O documento trabalha com os dados consolidados mais recentes disponíveis, que são de 2024 para uma das faixas etárias e de 2022 para as outras.

O relatório mostra que a prevalência global de obesidade entre crianças e adolescentes dos 5 aos 19 anos em 2022 foi de 9,4% e apresenta padrão de aumento. O índice supera o de prevalência de subpeso nessa mesma faixa etária, que vem caindo nos últimos anos e em 2022 foi de 9,2%.

Outro dado preocupante é que, entre os casos de sobrepeso, a obesidade vem ganhando participação. No ano 2000, 30% das crianças e adolescentes entre 5 e 19 anos com sobrepeso eram obesas. Em 2022, esse índice já estava em 42%, ou seja, 163 milhões de crianças e adolescentes obesos no mundo. Além de ser mais difícil de reverter, a obesidade, que é a forma severa do sobrepeso, representa um risco maior de problemas graves de saúde.

De acordo com o relatório, muitas crianças vivem inseridas em ambientes alimentares insalubres, onde ficam expostas às práticas mercadológicas agressivas da indústria de ultraprocessados. Esses produtos comestíveis se proliferam nas lojas de varejo e conseguem se infiltrar em escolas. As crianças vivem cercadas.

Imagem: divulgação

Em alguns países observou-se que a presença de produtos açucarados em locais frequentados por crianças é maior nos bairros economicamente desfavorecidos do que em áreas mais ricas, e o Brasil é mencionado como exemplo de país onde isso acontece. Dados de outros estudos citados mostram a agressividade da indústria de ultraprocessados em suas práticas mercadológicas, com destaque para a propaganda em meios digitais. Crianças e adolescentes relatam sentimentos de tentação, pressão e impotência diante da onipresença desses produtos e de sua publicidade.

O relatório chama a atenção para as práticas antiéticas dessas corporações, que se aproveitam de desastres humanitários e situações emergenciais de saúde pública, como a recente pandemia, para expandir seu alcance e pressionar pelo enfraquecimento das políticas de proteção dos consumidores.

Diante da gravidade dos fatos, o relatório apresenta propostas para conter o avanço desse quadro e garantir o direito das crianças à nutrição adequada. Entre as sugestões: um código internacional para disciplinar a comercialização de substitutos do leite materno e promover a amamentação natural; políticas abrangentes para aumentar a disponibilidade de alimentos saudáveis produzidos localmente; regras de cumprimento obrigatório para transformar os ambientes alimentares de crianças e adolescentes, incluindo restrições nas escolas; medidas robustas capazes de proteger as políticas públicas contra a interferência da indústria de ultraprocessados; sistemas de vigilância padronizados, nacionais e globais, para monitorar os ambientes alimentares, as dietas e os dados referentes à saúde alimentar de crianças e adolescentes.

O documento aponta o papel dos diversos atores da sociedade no combate a isso que podemos considerar uma pandemia fabricada de desnutrição. Destaca-se aqui o nosso papel, como membros da sociedade civil, em promover o amplo debate sobre os danos causados pelos produtos ultraprocessados, construindo uma demanda pública por políticas que melhorem os ambientes alimentares, para todos nós.

direitos dos camponeses

Declarações universais da Organização das Nações Unidas (ONU) têm o propósito de estabelecer direitos fundamentais, orientar países na formulação de suas leis e servir de inspiração e referência em lutas e debates, em todo o planeta, sobre os temas de que tratam.

Em dezembro de 2018, sua Assembleia Geral aprovou, por meio de uma resolução, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses (abreviada como UNDROP, seguindo o nome em inglês). O documento tem 28 artigos que tratam de assuntos essenciais como direito à terra, às sementes, à biodiversidade, à soberania alimentar, à justiça e à água, entre outros.

Infelizmente, as resoluções da Assembleia Geral não são vinculativas, isto é, não têm força imperativa para os Estados membros. Se tudo que está lá afirmado fosse de cumprimento obrigatório pelos países, certamente os camponeses de todo o mundo viveriam uma realidade bem diferente.

Em 2002, durante uma conferência regional, a organização camponesa internacional Via Campesina formulou sua Declaração dos Direitos das Camponesas e Camponeses, a qual foi lançada e adotada oficialmente em 2009. Esse documento mais tarde serviria de inspiração para a UNDROP.

Dentro da ONU, a elaboração iniciou no Conselho de Direitos Humanos, por incidência da Bolívia. Uma primeira versão do documento foi aprovada pelo Conselho em 28 de setembro de 2018, contando com 33 votos a favor, 3 votos contra (Austrália, Hungria e Reino Unido) e 11 abstenções (o Brasil entre elas).

Em seguida, o texto passou pelo Terceiro Comitê da Assembleia Geral, o qual lida com questões sociais e humanitárias. Foi aí aprovado em 19 de novembro do mesmo ano, com 119 votos a favor, 7 votos contra (Austrália, Estados Unidos, Hungria, Israel, Nova Zelândia, Reino Unido e Suécia) e 49 abstenções (o Brasil novamente entre elas).

Finalmente, o texto da Declaração seguiu para a Assembleia Geral, onde foi aprovado, em 17 de dezembro, com 121 votos a favor, 8 votos contra (todos que se opuseram no Terceiro Comitê mais a Guatemala) e 54 abstenções (o Brasil, mais uma vez, neste grupo). Desconhecemos a justificativa do Brasil para as abstenções nas três etapas, mas sabe-se que em contextos como esse a abstenção é uma forma de negar apoio à causa sem que isso represente um grande comprometimento perante a opinião pública. É importante ter em mente o momento político no qual o país se encontrava nessa época.

Esse estilo de declaração começa por elencar os princípios e noções gerais que norteiam sua elaboração. Assim, em seu preâmbulo, a UNDROP reconhece a especial relação dos camponeses com a terra, a água e a natureza, elementos dos quais dependem para sua subsistência. Reconhece também sua contribuição para a conservação da biodiversidade, que constitui a base da produção alimentar e agrícola em todo o mundo, assim como seu papel essencial na garantia dos direitos à alimentação adequada e à segurança alimentar.

Entre os documentos que lhe serviram de embasamento, faz referência à Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979) e à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007), entre muitos outros.

Em seu primeiro artigo, apresenta uma interessante definição de camponês: “qualquer pessoa que se dedique ou pretenda dedicar-se, individualmente, em associação ou como comunidade, à produção agrícola em pequena escala para subsistência ou comércio, que para este efeito dependa em grande parte, embora não necessariamente de forma exclusiva, do trabalho de membros da sua família ou agregado familiar, ou de outras formas não monetárias de organização do trabalho, e que tenha um vínculo especial de dependência ou ligação com a terra” (Artigo 1.1.). Assim, são excluídos da definição os empreendimentos agrícolas baseados exclusivamente em relações de trabalho capitalistas. O termo camponês seria então equivalente ao que chamamos de agricultor familiar.

Imagem: Reprodução de Déclaration des Nations Unies sur les Droits des paysan·ne·s et Autres Personnes Travaillant dans les Zones Rurales – livret d’illustrations. La Via Campesina, 2020.

A partir dessa definição, desenha-se para os camponeses um cenário que, se fosse concretizado, seria um verdadeiro mundo dos sonhos. Seguem alguns destaques e comentários sobre as perspectivas oferecidas pela Declaração. Como não há uma versão em português desse documento no repositório oficial da ONU, os trechos citados aqui são traduções nossas a partir das versões em espanhol e em inglês.

O parágrafo sobre produtos tóxicos, se efetivo, garantiria a camponeses e camponesas não apenas a opção de não utilizarem veneno como também a possibilidade de não estarem sujeitos às suas consequências. “Os camponeses e outras pessoas que trabalham em zonas rurais têm o direito de não utilizar nem de estar expostos a substâncias perigosas ou produtos químicos tóxicos, tais como agrotóxicos ou poluentes agrícolas ou industriais” (Artigo 14.2.).

As correntes de vento transportam substâncias jogadas na atmosfera, podendo trazer o veneno utilizado em fazendas vizinhas para a roça de alguém que optou por não utilizar esses produtos e contaminando sua produção, sua terra e seus trabalhadores. Os agrotóxicos têm também o efeito de dizimar populações de abelhas, comprometendo o sistema natural de polinização das plantas, o que caracteriza séria agressão ao meio ambiente e à biodiversidade, cuja proteção é abordada em outros pontos da Declaração.

Devido ao alcance dos impactos maléficos dessas substâncias, decisões individuais dos produtores não lhes garantem a possibilidade de estarem protegidos delas. Portanto, a menos que o uso de veneno seja proibido em caráter nacional ou ao menos regional, esse direito dificilmente será garantido.

A Declaração entende que o direito à soberania alimentar passa pela possibilidade de se participar das decisões sobre as políticas que afetam a forma como os alimentos são produzidos e distribuídos. “Os camponeses e outros trabalhadores rurais têm o direito de determinar seus próprios sistemas agroalimentares, o que é reconhecido por muitos Estados e regiões como o direito à soberania alimentar. Isso inclui o direito de participar dos processos de tomada de decisão relativos às políticas agroalimentares e o direito a alimentos saudáveis ​​e adequados, produzidos através de métodos ecológicos e sustentáveis que respeitem suas culturas” (Artigo 15.4.).

Para a construção de um sistema alimentar justo e saudável, é essencial a presença da sociedade civil nas instâncias participativas existentes. Ao mesmo tempo, é importante fortalecer iniciativas que representem alternativas concretas ao sistema alimentar vigente, controlado por interesses corporativos.

Há na Declaração um único parágrafo que, sozinho, evitaria conflitos atualmente em curso em diversas partes do mundo, caso fosse efetivo. “Os camponeses e outras pessoas que trabalham em zonas rurais têm o direito de serem protegidos contra qualquer deslocamento arbitrário e ilegal que os remova das suas terras, do seu local de residência habitual ou de outros recursos naturais que utilizam nas suas atividades e de que necessitam para usufruir de condições de vida adequadas. (…) Os Estados devem proibir os despejos arbitrários e ilegais, a destruição de zonas agrícolas e o confisco ou a expropriação de terras e outros recursos naturais, em particular quando usados como medida punitiva ou como meio ou método de guerra” (Artigo 17.4.). Uma rápida olhada para a profusão de conflitos em andamento hoje no mundo mostra como isto está longe de se concretizar.

O parágrafo que trata da reforma agrária é, curiosamente, o único em que a sentença inicia de modo condicional. “Quando apropriado, os Estados devem tomar as medidas adequadas para implementar reformas agrárias a fim de facilitar o acesso amplo e equitativo à terra e a outros recursos naturais necessários para garantir que os camponeses e demais trabalhadores rurais desfrutem de condições de vida adequadas e para limitar a concentração e o controle excessivos da terra, levando em consideração sua função social. Os camponeses sem-terra, os jovens, os pescadores artesanais e outros trabalhadores rurais devem ter prioridade na distribuição de terras públicas, áreas de pesca e florestas” (Artigo 17.6., grifo nosso).

É interessante observar como a Declaração dos Direitos das Camponesas e Camponeses, da Via Campesina, adota uma posição bem mais assertiva sobre o tema. “Grandes propriedades rurais não devem ser permitidas. A terra deve cumprir sua função social. Limites de posse de terra devem ser aplicados quando necessário para garantir o acesso equitativo à terra” (Artigo IV.11., grifo nosso). Por mais que a ONU tenha um papel importante no reconhecimento internacional dos direitos de grupos vulneráveis em todo o mundo, este caso exemplifica como ela é também capaz de barrar afirmações que os grupos dominantes de seus países membros considerem excessivas.

De qualquer forma, o conjunto de direitos apresentado pela Declaração representa um grande avanço em relação às condições objetivas enfrentadas por camponesas e camponeses em todo o mundo. A partir daí, existe o caminho para a efetivação desses direitos, por meio dos processos internos de cada país.

No Brasil, muitos dos direitos afirmados na Declaração já aparecem, de alguma forma, em marcos legais. Porém, a realidade das camponesas e camponeses daqui está muito longe do sonho desenhado pelo documento. Uma das demonstrações mais emblemáticas dessa precariedade é o fato de muitas áreas rurais apresentarem índices de insegurança alimentar maiores que áreas urbanas, mesmo estando seus habitantes diretamente em contato com a terra que produz – ou deveria produzir – alimentos.

A Declaração atribui aos Estados nacionais o papel de implementar e garantir os direitos nela estabelecidos. “Os Estados devem respeitar, proteger e cumprir os direitos dos camponeses e de outras pessoas que trabalham em zonas rurais. Devem prontamente tomar medidas legislativas, administrativas e outras cabíveis para alcançar progressivamente a plena realização dos direitos enunciados na presente Declaração que não possam ser imediatamente garantidos” (Artigo 2.1.). De fato, é ingenuidade esperar que tais iniciativas venham de poderes privados, como latifundiários e corporações, justamente aqueles que vêm historicamente se beneficiando da inexistência, na prática e muitas vezes também na teoria, desses direitos.

Portanto, declarações como esta servem como lembretes da importância de Estados fortes e com amplo apoio popular, capazes de resistir à infiltração dos interesses privados no aparelho estatal, de forma que possam concretizar direitos já reconhecidos como universais.

sociobiodiversidade

O termo biodiversidade se refere à diversidade das formas de vida. Diz respeito à diversidade de espécies na natureza e também à variabilidade genética que existe entre os indivíduos de uma mesma espécie. Graças a esta diversidade genética dentro da espécie, por exemplo, alguns indivíduos de uma espécie de planta podem ser resistentes a uma determinada praga que a ataca, e assim acabam evitando a extinção da espécie inteira. Essa situação ilustra a enorme importância que a diversidade tem para a natureza e para a vida.

A padronização de sementes promovida pela associação entre indústria química e agronegócio é uma força de destruição de biodiversidade, colocando produtores de alimentos em condição de dependência dos insumos fornecidos por grandes corporações e comprometendo a soberania alimentar.

A diversidade também existe na cultura. A profusão de diferentes modos de viver observados em todo o mundo é manifestação daquilo que chamamos de diversidade cultural. Há pessoas que gostam de viver em cidades, cercados de máquinas, informação e tecnologia, realizando uma infinidade de atividades em um único dia. Há pessoas que preferem viver em retiro, dedicando-se a estudos, a práticas corporais e espirituais, ao serviço comunitário. Há aqueles que vivem em sítios rurais, cuidando da terra e produzindo alimentos.

Certos povos vivem em regiões muito frias, encontram seu alimento em rios e mares que têm a superfície congelada e são capazes, pela observação dos diferentes tons de banco, de obter indícios sobre o clima, de encontrar locais favoráveis para a pesca, de reconhecer lugares onde é perigoso pisar. Outros povos vivem em florestas onde raramente faz frio, chove bastante e é possível caçar, pescar, cultivar a terra ou simplesmente coletar o alimento na mata.

Além de reconhecer a importância da multiplicidade das culturas, a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural estabelece um interessante paralelo entre essas duas formas de diversidade. Logo em seu primeiro artigo, afirma que “A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em beneficio das gerações presentes e futuras.” (UNESCO 2001, grifo nosso).

Existe também uma interessante conexão objetiva entre essas duas formas de diversidade. Devido às características de seus modos de vida, algumas comunidades de agricultores familiares, pescadores, povos indígenas e outros grupos tradicionais cultivam, de forma cooperativa com o ambiente, espécies que representam a biodiversidade regional.

Surge então o conceito de sociobiodiversidade. A forma de viver de certos grupos humanos contribui para fortalecer as espécies de seu meio, atuando como força de conservação da biodiversidade. Seu modo de vida beneficia não apenas o próprio grupo, mas a sociedade como um todo.

Foto: Sérgio Vale / Secom Acre

Há hoje políticas públicas que reconhecem o serviço de conservação da biodiversidade prestado por esses grupos, e assim fomentam tais cadeias produtivas. Como exemplo disso, dentro do Plano Safra deste ano há uma linha de crédito a juros baixos para o custeio da produção espécies da sociobiodiversidade.

A lista dos produtos incluídos nessa política forma um belo repertório de nomes. Alguns exemplos: abiu, araticum, araçá, aroeira-pimenteira, ariá, arumbeva, bacupari, bacuri, baru, biribá, buriti, butiá, cagaita, cajá, carnaúba, castanha-do-brasil, castanha-de-cutia, chichá, chicória-de-caboclo, copaíba, croá, cubiu, cupuaçu, fisalis, goiaba-serrana, jaborandi, jaracatiá, licuri, macaúba, mapati, murici, patauá, pajurá, peperômia, pitanga, pupunha, puxuri, sapota, sete-capotes, taperebá, tucumã, umari, uvaia, uxi.

Enquanto nos grandes centros urbanos, especialmente sudestinos, esses nomes soam apenas como uma forma de poesia, em algumas regiões do país eles são parte da vida. As crianças dali cresceram comendo essas frutas no pé, as geleias e refeições com essas espécies sempre estiveram no cotidiano dessas famílias. Elas são as guardiãs naturais e honorárias dessas plantas.

Ainda que a produção tenha como finalidade a geração de renda, e não apenas a subsistência, é possível fazer uso da natureza de maneira adequada. Isso obviamente só acontece se esses arranjos puderem garantir o respeito aos saberes tradicionais, a certos princípios e a limites na escala produtiva.

É estranho pensar que esse tipo de relação não predatória com a natureza seja hoje apenas excepcional dentro de nossa realidade econômica. O capitalismo desarticula esquemas que sempre funcionaram bem para impor seus meios técnicos de sugar riqueza. A desagregação de comunidades cria uma fonte inesgotável de problemas, e isso é ótimo para o sistema, que pode então vender suas soluções.

Ao fortalecer sistemas produtivos que valorizam práticas tradicionais, as políticas de apoio à sociobiodiversidade ao mesmo tempo protegem a biodiversidade e fortalecem identidades culturais. Ainda que representem uma parcela ínfima da economia nacional, elas servem para nos lembrar que é possível resistir à tendência de destruição das diversidades promovida pela economia capitalista.

rede local de Bicicarreto

Manhã fria de agosto, o sol estava nascendo quando chegamos à Nossa Horta Parque Continental, localizada no distrito do Jaguaré, em São Paulo, bem perto da divisa com o município de Osasco. Nossa missão era transportar uma pequena encomenda de verduras produzidas nessa horta até o Ponto de Economia Solidária do Butantã, para serem vendidas na feira de orgânicos que funciona nesse local.

A ação concretiza um esforço de articulação iniciado há vários meses, no qual buscamos conectar produtores e entrepostos da região, construindo uma rede de distribuição de alimentos em bicicletas a partir do produtor.

Foto: Dionizio Bueno

A Nossa Horta tem um grande espaço dividido em lotes. Cada um desses lotes é cuidado por uma família da vizinhança. A lista de produtos foi enviada na véspera a uma das pessoas da Nossa Horta.

Essa produtora fez a comunicação interna entre as várias famílias produtoras de forma a encontrar quem tinha os produtos da lista no ponto de colheita. Os alimentos foram colhidos poucas horas antes de serem embarcados nas bicicletas.

Foto: Dionizio Bueno

No trajeto, de cerca de 8 quilômetros, o trânsito de automóveis estava bem difícil, como ocorre todas as manhãs. Nesses trechos, as bicicletas puderam fluir livremente, e o tempo total de trajeto em bicicleta certamente foi bem próximo do que seria em veículo motorizado, talvez até menor. E só na bicicleta as verduras podem tomar a brisa fresca da manhã enquanto são transportadas!

No destino final, os produtos foram identificados com a etiqueta do Bicicarreto. Um cartaz ao lado dá uma informação importante sobre eles: “Os produtos com esta etiqueta foram plantados em uma horta urbana aqui pertinho e foram transportados até esta loja de bicicleta. Até aqui, nenhuma gota de combustível foi consumida no seu transporte!”.

Foto: Dionizio Bueno

Além de divulgar o conceito, essas etiquetas trazem uma narrativa que funciona indiretamente como “certificação”, chamando atenção para a ideia de alimentação local. Os produtos foram organizados em uma cesta com destaque e ficaram expostos junto aos outros alimentos orgânicos vendidos no Ponto de Economia Solidária.

Os esforços de pesquisa e articulação do Bicicarreto estão atualmente voltados para demonstrar a viabilidade de uma rede de produção, distribuição e comércio de alimentos baseada no transporte em bicicleta, de forma que o modelo possa ser reproduzido em diversos bairros.

Tudo que vem da natureza e nos alimenta é criado a partir da terra, começa no chão de um produtor. É assim também o nosso trabalho.

plano safra

O Plano Safra da Agricultura Familiar 2025/2026, lançado há pouco mais de uma semana, prevê R$ 89 bilhões a serem investidos nesse segmento do setor produtivo brasileiro. No dia seguinte, foi anunciado também o Plano Safra geral, que contempla o agronegócio, com um montante de R$ 516,2 bilhões para financiar o setor da agricultura e pecuária empresarial.

O contraste entre os valores, ainda mais considerando que o agronegócio é um setor altamente capitalizado que não necessita de dinheiro público para prosperar, mostra que o uso da agricultura para a produção de mercadorias para os mercados interno e externo ainda é uma prioridade sobre a produção de alimentos no país.

O Plano Safra foi criado em 2002 (denominado inicialmente Plano Agrícola e Pecuário) com o objetivo de fortalecer e estimular a expansão e a modernização da agricultura e da pecuária brasileira. No ano seguinte, sindicatos rurais e movimentos sociais ligados ao campo foram envolvidos na elaboração do Plano, de forma que agricultores familiares e assentados da reforma agrária pudessem melhor contribuir para atender à demanda por alimentos no contexto do programa Fome Zero, existente naquela época. Isso dá origem ao Plano Safra da Agricultura Familiar, editado pela primeira vez em 2003.

Os recursos do Plano Safra da Agricultura Familiar estão divididos em segmentos com finalidades específicas. O maior deles, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) foi contemplado com R$ 78,2 bilhões, o maior valor na série histórica.

Por meio do Pronaf, os pequenos produtores podem financiar tanto as despesas com insumos e mão de obra (custeio) como a aquisição de máquinas e sistemas que aumentem a capacidade produtiva (investimento). O programa oferece crédito para a produção de alimentos da cesta básica a uma taxa de juros de 3% ao ano. Essa taxa cai para 2% se o crédito for destinado ao custeio de produtos orgânicos, agroecológicos ou da sociobiodiversidade.

Há também o Pronaf Mais Alimentos, uma linha de crédito mais ampla que financia o investimento em tratores, colheitadeiras, caminhonetes, motocicletas, equipamentos adaptados a pessoas com deficiência, sistemas de armazenagem, ordenhadeiras, tanques e também a construção ou reforma de moradias rurais.

Parte da verba do Pronaf é voltada especificamente para incentivar a agroecologia. Nesta edição, as famílias com renda anual de até R$ 50 mil podem financiar a implantação de sistemas de base agroecológica ou em transição para sistemas de base agroecológica a uma taxa de juros de 0,5% ao ano.

Os quintais produtivos também são contemplados com suas especificidades. Mulheres rurais com renda de até R$ 50 mil podem custear a produção diversificada de alimentos no espaço ao redor da casa, podendo conciliar a atividade produtiva com a lida familiar.

Além do Pronaf, o Plano Safra da Agricultura Familiar inclui outras formas de incentivo. Por meio das compras públicas, o governo não apenas assegura o abastecimento de certos produtos (sendo também um instrumento no combate à inflação de alimentos) como também garante um preço digno a ser pago aos produtores. Há nesta edição do Plano R$ 3,7 bilhões destinados às compras públicas.

Algumas culturas estão sujeitas a perdas de safra em consequência de condições climáticas. Para proteger esses agricultores, existe a Garantia-Safra, que neste ano conta com R$ 1,1 bilhão.

Entre outros segmentos, há também R$ 240 milhões destinados a Assistência Técnica e Extensão Rural para agricultores familiares e R$ 42,7 milhões para garantir um pagamento fixo para alguns produtos da sociobiodiversidade brasileira.

A forma que o Plano Safra da Agricultura Familiar tem hoje é, em parte, resultado da incidência de movimentos sociais. Exemplo disso é o reconhecimento de quintais como unidades produtivas qualificadas para receber financiamento público, uma conquista da Marcha das Margaridas de 2023.

Somente a pressão da sociedade civil organizada pode fazer com que o incentivo público à agricultura familiar siga crescendo e a distância entre os apoios ao pequeno produtor e ao agronegócio possa diminuir ou mesmo, legítima utopia, ser superada.

gosto

Pessoas com paladar acostumado a produtos ultraprocessados podem não se satisfazer com o sabor de uma comida caseira, temperada naturalmente e sem exagero. Temperos ultraprocessados são uma mistura de saborizantes diversos e quase sempre usam um agente realçador de sabor, como o glutamato monossódico – e quando esse ingrediente não é mencionado no rótulo, costuma ser difícil de acreditar.

Da primeira vez que vi colocarem aquele tempero em cubinhos no arroz – eu era criança – fiquei impressionado (positivamente, naquela época) com o sabor chegando da cozinha até meu quarto. Fui ver o que era, o arroz estava verde (o que também achei divertido). E então, quando senti o paladar daquilo, vi brilharem aqueles fogos de artifício que reluzem em círculos sobre as torres do castelo do mundo encantado de Disney. Senti que queria mais.

O arroz branco, com tempero da casa e sem exagero de sal, perdeu a graça por algum tempo. Passado aquele período, felizmente curto e apenas experimental em que minha mãe e minha avó usaram esse tipo de produto para fazer arroz, tudo voltou ao normal.

Faz sentido usar tempero artificial para fazer um arroz? Fico pensando como se forma o gosto de uma pessoa que, sem a mesma sorte que eu tive, nunca mais consegue largar o prazer do sabor artificial. Se a pessoa não vê gosto em alimentos menos temperados, não se contentará com menos, terá dificuldade de trocar um doritos por um preparado caseiro equivalente, feito de flocão de milho.

Assim como o prazer do sabor artificial influencia as escolhas alimentícias, as preferências estéticas sobre produtos cinematográficos também se formam a partir daquilo que a pessoa costuma ingerir quando vai ao cinema ou se recolhe a um netflix.

Observe como são os roteiros e o estilo cênico dessas séries documentais de produção recente. Para contar qualquer história, seja a vida na savana, a tomada de Constantinopla, a última inovação da medicina ou um episódio envolvendo gente famosa – além, obviamente, de qualquer produto de ficção –, as produções desse conhecido serviço de streaming invariavelmente recorrem a altos níveis de tensão narrativa para atender os desejos de consumidores que querem mais e mais em suas maratonas televisivas. Afinal, a última coisa que pode acontecer é os espectadores ficarem entediados e trocarem de programa.

Assim, quando resolvemos conhecer um pouco mais sobre, por exemplo, a tomada de Constantinopla, somos obrigados a ver guerreiros tendo o peito varado pela espada e o sangue espirrando no teto, precisamos ouvir uma narração em que tanto o texto como a prosódia geram uma descarga de adenalina que nos coloca em estado fisiológico de lutar ou fugir. Como tudo é emoção, temos até que engolir uma história de amor absolutamente irrelevante para o conhecimento dos fatos supostamente históricos que estão sendo apresentados.

São esses os produtos audiovisuais ultraprocessados. Feitos para consumidores que já são incapazes de sentir gosto se não houver todo esse exagero e não verão graça em qualquer coisa aquém isso.

A escolha das produtoras dessas séries ultraprocessadas, assim como a da indústria que fabrica produtos comestíveis ultraprocessados, é compreensível, considerando que elas têm como principal objetivo ganhar dinheiro – e sempre querem sempre mais. Mas as escolhas dos consumidores poderiam ser diferentes.

O paralelo poderia ser estendido também aos jogos digitais. Ao contrário de jogos antigos, em que o sujeito jogador era uma navinha protegendo o planeta da invasão de extraterrestres ou um homenzinho tosco atravessando a selva e correndo risco de cair na boca de um jacaré, hoje temos jogos cada vez mais realistas graficamente, contextualizados em situações da vida e muitas vezes envolvendo violência. Verdadeiros simuladores de relações interpessoais, oferecem ao jogador uma infinidade de opções e recursos para ajudá-lo a alcançar seu objetivo. Adultos e crianças hoje passam horas imersos nessas realidades ultraprocessadas. Poderão essas pessoas um dia perder o gosto pela vida cotidiana e natural que acontece aqui fora no mundo físico?

O termo ultraprocessado pode ser entendido em muitas esferas, para além dos produtos comestíveis. A indústria sabe bem como criar desejos insaciáveis para em seguida oferecer sua satisfação temporária. Do outro lado, aqui na ponta do consumo tanto de produtos alimentícios quanto de produtos audiovisuais e eletrônicos, ainda temos, em boa parte das situações, a possibilidade de escolher o que consumir. E essa escolha cabe somente a nós, pois quem produz esse tipo de coisa jamais fará diferente.

Se o estabelecimento – físico ou digital – onde vamos para nutrir nossos corpos e mentes não oferece opções que não sejam ultraprocessadas, é preciso pensar em mudar de estabelecimento.

decrescimento

Dizem que a economia precisa sempre crescer. Esse mantra, repetido constantemente em quase todos os meios de comunicação, criou um consenso tão forte que raramente alguém questiona a afirmação ou pede que se apresentem justificativas para a necessidade de crescimento. Há, porém, um movimento de pessoas tecnicamente muito bem fundamentadas que defende o contrário: as grandes economias de hoje deveriam buscar não o crescimento, mas o decrescimento.

O argumento central é simples: não há crescimento infinito possível em um planeta finito. Portanto, considerando que certos países já cresceram demais e consomem mais de 80% dos recursos naturais do planeta, é preciso abandonar o paradigma tecnocrático, segundo o qual a atividade econômica deve sempre crescer e crescer, e buscar a redução da produção e do consumo, diminuindo o uso de energia e a dilapidação dos recursos naturais do planeta. Dentro dessa proposta, bem-estar social e ecológico passa a ser a prioridade, deixando para trás um sistema que causa exploração humana e destruição ambiental.

Os defensores do decrescimento propõem uma sociedade marcada por autonomia, trabalho partilhado, auto-organização e convivialidade. Nela, o Produto Interno Bruto (PIB) perde o sentido como parâmetro de prosperidade. Indicadores ligados a saúde, vitalidade comunitária, longevidade e felicidade são mais importantes aqui.

A diminuição da atividade econômica e dos conglomerados altamente capitalizados tende a devolver espaço para os negócios de menor tamanho. A economia se reorganiza e passa a operar em uma escala mais humana, na qual as pessoas deixam de ser engrenagens do sistema e podem ter seu trabalho devidamente valorizado. A velocidade da vida volta a ser saudável, os laços comunitários se regeneram, os índices de felicidade aumentam.

Podemos acrescentar que, nessas condições, a saúde geral da população melhora e a venda de remédios cai. Tal efeito, que dentro do pensamento econômico hoje dominante seria considerado um problema – afinal, os remédios e toda a indústria da doença correspondem a parte importante do PIB – não seria motivo de preocupação em um mundo onde o PIB deixou de ser o fetiche dos tecnocratas e governantes.

Foto: Anton Atanasov / Pexels

No sistema alimentar, a atuação de grandes corporações na distribuição de alimentos prejudica os pequenos produtores e também os consumidores, controlando os preços em ambas as pontas. E quanto à produção, os alimentos parecem estar longe do interesse dos latifúndios, que preferem produzir commodities para os mercados interno e externo. Temos aqui um bom exemplo de como o crescimento sem limites chega ao ponto de desviar completamente a finalidade da terra, que no caso do agronegócio já não serve para produzir comida.

Ter na bicicleta um referencial para a estruturação de sistemas alimentares autônomos é uma proposta radical que tem ressonância, em termos teóricos e práticos, com a doutrina do decrescimento. Além de se basear em uma fonte de energia altamente renovável, o alimento, e ser pouquíssimo poluente (zero emissão em seu uso e pouco nociva na produção e no descarte), a bicicleta coloca limites na carga transportada por viagem e na distância viável num sistema produtivo.

A bicicleta oferece autonomia com baixo consumo de energia, em uma escala pequena de operação, podendo dar conta de boa parte da logística de alimentos em uma área geográfica restrita. Dito de outra forma, cria-se uma comunidade de consumidores de alimentos produzidos localmente, um arranjo que contribui para o fortalecimento comunitário.

Trata-se de uma economia localizada e conectada, conforme os princípios do localismo, outra referência importante dentro da teoria do decrescimento. Como proposta de economia política, o localismo coloca-se como resposta aos problemas criados pela globalização, defendendo que cada comunidade deve ser livre para encaminhar seu destino conforme os desejos de seus habitantes. Isso passa pela organização de economias baseadas na autossuficiência local, de forma a minimizar os impactos originados externamente, pelas decisões tecnocráticas de grandes corporações nacionais ou internacionais.

Um aspecto frequentemente destacado pelos defensores do decrescimento é sua oposição a propostas chamadas de “crescimento sustentável” ou qualquer expressão equivalente. Eles nos lembram da importância de estarmos atentos a essas supostas críticas ao crescimento – geralmente criadas e propagadas pelos próprios atores que se beneficiam do crescimento destrutivo sem limites – que, na prática, não almejam reais mudanças.

Na opinião de Serge Latouche, economista francês e um dos mais destacados pensadores da teoria do decrescimento, apenas acrescentar a ideia de “sustentável” ao crescimento faz crer que não há alternativas, nos mantém dentro do pensamento único. A palavra decrescimento, pelo estranhamento que causa, faz parar para pensar, funciona como um slogan provocador, deixando patente a necessidade de sairmos da demagogia produtivista, desenvolvimentista, de superarmos o paradigma do crescimento, que nada mais é que outra forma de dizer “acumulação de capital”.

Costuma ser atribuída ao economista brasileiro Delfim Netto a afirmação “É preciso primeiro fazer crescer o bolo para depois dividi-lo”. A frase é eficaz como recurso de doutrinação, pois remete a uma realidade concreta, que qualquer um consegue enxergar: um bolo maior de fato resulta em pedaços maiores quando dividido. Há nela, porém, uma afirmação implícita: “o bolo ainda não é suficiente grande”. Quando alguém aceita a parte explícita e doce dessa ideia, engole junto a parte implícita, passando a acreditar que o bolo não é grande o suficiente.

Porém, o bolo é bem grande, sim! Se ele for dividido hoje, de forma equânime e justa, as partes serão suficientes para todos. Defender o crescimento é mais uma forma de garantir a concentração de riquezas que existe em praticamente qualquer país, seja ele considerado desenvolvido ou não.

Propor decrescimento em uma cultura obcecada pelo crescimento sem limites soa como heresia. É um ato radical de resistência. Enquanto a ideologia dominante tenta nos convencer que é natural passar nossas vidas trabalhando como escravos, decrescimento é uma provocação para nos lembrar que cada ser está aqui com um propósito maior do que simplesmente trabalhar e produzir sempre mais.

Para além da teoria, o decrescimento é um princípio que pode nortear cada decisão do cotidiano. Precisamos reduzir essa loucura coletiva e reorganizar um projeto de sociedade que sustente as bases naturais da vida.

uma ameaça às corporações

Neste mês de novembro completam-se dez anos desde o lançamento do Guia Alimentar para a População Brasileira. A edição de guias alimentares é uma prática recomendada e apoiada pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, do inglês Food and Agriculture Organization). Atualmente, mais de 100 países têm seus guias alimentares, com recomendações de acordo com as culturas alimentares locais, a disponibilidade de alimentos e a situação nutricional de sua população.

Conforme anunciado à época do lançamento pelo então ministro da saúde, Arthur Chioro, um dos principais objetivos do Guia é “combater a obesidade e o avanço das doenças crônicas no país”. A principal referência conceitual do Guia é a classificação NOVA, que organiza os alimentos em quatro categorias e define o que são os ultraprocessados. Estes produtos comestíveis, com qualidades nutricionais bastante questionáveis, estão altamente associados às doenças crônicas não transmissíveis, que representam uma importante questão de saúde pública para o país.

Acontece que, enquanto os ultraprocessados são uma ameaça para as pessoas e as populações, guias alimentares são uma ameaça para as corporações que fabricam esses ultraprocessados. O caso mais emblemático disso talvez seja o do relatório SRA Top Policy Issues (Principais questões de políticas referentes a assuntos científicos e regulatórios), produzido pela consultoria Sancroft para a Coca-Cola. Aproveitamos aqui a efeméride dos dez anos do Guia para falar um pouco desse relatório, que vê nosso Guia Alimentar como ameaça para os negócios da Coca-Cola.

Trata-se de um documento que apresenta um panorama das pressões regulatórias e políticas globais relacionadas a seis tópicos que podem afetar a produção e as vendas da empresa no mundo todo. Os tópicos são: uso de Bisfenol A (BPA) em embalagens, defensivos agrícolas, rotulagem, organismos geneticamente modificados, restrições a ingredientes específicos (cafeína, caramelo, corantes, aromatizantes, conservantes) e adoçantes (açúcar, produtos não calóricos e teor de doçura).

Imagem: reprodução

Cada capítulo traz um mapa de calor que classifica os países conforme as pressões que apresentam à empresa no tópico tratado. Em seguida vem uma análise das situações e tendências globais e locais referentes à regulação naquela área. O relatório também inclui informações sobre o cenário competitivo no qual a empresa atua e sobre outros atores que podem afetar o mercado da empresa. É interessante observar a forma como os danos à saúde humana causados por ultraprocessados são abordados pelo ponto de vista da corporação que os produz.

O Guia Alimentar para a População Brasileira é mencionado diretamente no capítulo sobre açúcar, adoçantes e teor de doçura. Em seu resumo executivo, esse capítulo começa reconhecendo o aumento nas taxas de obesidade, sobrepeso e doenças não transmissíveis e como isso trouxe a atenção do público ao conteúdo calórico dos alimentos e bebidas. Em seguida, observa que “há uma crescente aversão a ingredientes considerados artificiais ou sintéticos, bem como a alimentos processados em geral” (grifo nosso). É curioso o uso da palavra ‘considerados’, como se o fato de um ingrediente ser natural ou artificial/sintético fosse uma questão de opinião. De qualquer forma, essas constatações iniciais se referem, ao menos do ponto de vista de quem atua em defesa da saúde, a um avanço na consciência do público em relação às características nocivas de certos produtos.

Porém, a perspectiva fica clara quando os interesses corporativos passam ao primeiro plano. Ao mencionar as medidas adotadas por governos, o relatório observa que “Muitas das políticas e regulações propostas são discriminatórias ou punitivas” (grifos nossos) e acrescenta que “Muitas [dessas medidas] afetam negativamente o portifólio da Coca-Cola”. Afetar negativamente, nesse caso, significa diminuir as vendas e a reputação dos produtos da empresa.

Mais adiante, observa que “tem havido uma proliferação de estudos focados no açúcar e seu papel não apenas na obesidade, mas também em sua contribuição para doenças não transmissíveis” (grifo nosso) e afirma, ainda que indiretamente, que isso seria uma forma de demonização desse ingrediente dentro do debate sobre obesidade.

Então vem o mapa de calor, no qual os países do mundo são classificados conforme as ameaças que apresentam à empresa em questões relacionadas a açúcar, adoçantes e teor de doçura. A legenda deste mapa define duas categorias de ameaças: “em vigor” (enacted) e “potenciais” (potential).

O Brasil aparece como um país em que a ameaça está em vigor. O destaque no mapa especifica brevemente a situação aqui: “National negative dietary guidelines. Mixture of LNCS and sugar allowed”. A tradução literal seria: “Diretrizes alimentares nacionais negativas. Mistura de adoçantes e açúcar permitida”. ‘Dietary guidelines’ é equivalente em inglês a ‘guia alimentar’, e está no nome da versão em inglês do nosso Guia (Dietary Guidelines for the Brazilian Population). Na língua inglesa ocorre essa construção ‘diretrizes negativas’, fazendo referência ao fato de o Guia recomendar que se evite o consumo dos produtos da empresa.

Na seção que apresenta as situações regionais, o relatório da Sancroft se refere ao nosso Guia Alimentar afirmando que o Brasil publicou diretrizes alimentares “que são punitivas com relação ao açúcar às nossas bebidas, classificando-as como alimentos ‘ultraprocessados’” (grifo nosso). A frase passa a impressão de que os editores do Guia resolveram punir os refrigerantes, e para isso decidiram atribuir-lhes a avaliação de ultraprocessados, da mesma forma que um aluno mal avaliado alega que a professora lhe deu nota baixa porque assim quis, e não porque seguiu um critério de avaliação.

A definição de alimento ultraprocessado é clara, objetiva e de conhecimento público. Basta aplicar o critério para perceber que um refrigerante industrializado se encaixa, de maneira inequívoca e com bastante folga, dentro dessa categoria. Pelo menos neste caso, a professora não está sendo injusta com o aluno desleixado, a avaliação foi bem merecida.

Parece bastante honroso para o nosso Guia Alimentar ter sido nominalmente citado como ameaça por uma empresa que oferece produtos tão nocivos. Torcemos bastante para que a ameaça se concretize e cada vez mais gente diminua ou abandone o consumo dessas bebidas e demais ultraprocessados, que o mercado entrega às pessoas para que elas encham suas barrigas.

Outra ameaça brasileira mencionada no relatório é o Pacto Nacional para Alimentação Saudável, instituído em 2015, que visa estimular o consumo de alimentos in natura e minimamente processados e regular a propaganda de bebidas e alimentos ultraprocessados em escolas.

Em qualquer luta, é importante conhecer bem os adversários: como atuam, como expressam seus interesses, que recursos têm à sua disposição. Em seus esforços para ganhar dinheiro e dominar mercados, é isso que a Coca-Cola faz ao encomendar à Sancroft uma análise do contexto regulatório nos países em que atua. Em nossos esforços para promover a alimentação saudável, é isso que fazemos ao olhar com atenção para esse tipo de relatório.

O Guia Alimentar para a População Brasileira foi identificado por nosso adversário como uma ameaça, e isso é mais um ótimo indício de sua qualidade e relevância. Parabéns ao Guia pelos seus dez anos!

alimento no prato

Foi lançado no último dia 16, data em que se celebra o Dia Internacional de Luta pela Soberania Alimentar, o Plano Nacional de Abastecimento Alimentar 2025-2028, também chamado de Plano Alimento no Prato. O documento apresenta 29 iniciativas e 92 ações estratégicas, que se encontram estruturadas em seis eixos de atuação.

O Plano Nacional de Abastecimento Alimentar foi concebido pelo Decreto nº 11.820, assinado pelo presidente Lula em dezembro de 2023, que instituiu a Política Nacional de Abastecimento Alimentar (PNAAB). O Plano é o principal instrumento de planejamento e execução da PNAAB, trazendo propostas de políticas públicas com o objetivo de “estabelecer um sistema de abastecimento alimentar sustentável, inclusivo e justo, que assegure o acesso a alimentos saudáveis e amplie a disponibilidade dos itens que compõem a Cesta Básica”.

Entre os seis eixos de atuação que estruturam as iniciativas e ações do Plano, destacamos o Eixo 1: Distribuição e Comercialização de Alimentos Saudáveis. Seu objetivo é estabelecer um sistema de abastecimento alimentar que viabilize o acesso a alimentos saudáveis de maneira sustentável, inclusiva e justa.

Imagem: divulgação

Para que um sistema de abastecimento seja genuinamente inovador e autônomo, é importante garantir que as decisões sobre o que plantar e o que consumir sejam tomadas pelos seus atores mais importantes, ou seja, aqueles que plantam e aqueles que se alimentam. Se a distribuição for dependente de estruturas altamente capitalizadas, capazes de cobrir grandes distâncias transportando quantidades enormes para baratear custos, interesses alheios à cultura alimentar local atuarão sobre o sistema, e tanto produtores quanto consumidores acabam ficando sujeitos à lógica do capital.

Com a aproximação entre produtores e consumidores, torna-se possível a troca de informações entre eles. E aqui é importante entender aproximação não apenas no sentido geográfico, de estar fisicamente perto, mas também no de proximidade dentro da rede de distribuição, com o menor número possível de intermediários entre quem produz e quem consome. Que alimentos os consumidores gostariam de ter em suas mesas, mas não encontram nos mercados convencionais? Quais alimentos sazonais podem ser produzidos pelos agricultores nesta época, podendo ser oferecidos com alto valor nutritivo e a baixo custo, devido à alta produtividade da estação?

Em um sistema alimentar com essas características, torna-se tendência natural o acesso aos alimentos acontecer “de maneira sustentável, inclusiva e justa”, conforme apontado na descrição desse Eixo. Coerentemente a isso, o Plano propõe a criação de centros de abastecimento e comercialização de alimentos produzidos pela agricultura familiar, comunidades tradicionais e estabelecimentos produtivos pautados pelos princípios da economia solidária.

O Plano Alimento no Prato foi construído com a participação do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), de outros órgãos federais ligados ao desenvolvimento rural sustentável e de organizações da sociedade civil envolvidas com a defesa da segurança e da soberania alimentar no país. As ações e iniciativas foram definidas com base em escuta social e em um diagnóstico abrangente, levando em conta experiências consolidadas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

Agora o desafio é garantir sua implementação de fato. É importante que as organizações e movimentos sociais que formam a teia de produção e distribuição de alimentos saudáveis tomem conhecimento do Plano, compreendam em profundidade o potencial das iniciativas e ações propostas e organizem-se para ter acesso às oportunidades concretas que devem surgir a partir desse importante documento.

agricultura familiar urbana

Áreas de servidão com adutoras ou torres de energia elétrica costumam ser locais propícios para a produção de alimentos nas cidades. Em uma dessas áreas fica a Nossa Horta Parque Continental, onde diversas famílias cultivam a terra e alimentam os laços comunitários diariamente.

Desde 2021, um grupo de famílias cuida desse pedaço de chão localizado na zona oeste de São Paulo, bem perto da divisa com Osasco. Ali, cada família produz aquilo que prefere e conforme seu interesse e disponibilidade. Há pessoas que plantam somente para consumo próprio e para compartilhar com parentes e amigos. Outras têm um ritmo de trabalho mais dedicado, produzindo verduras, legumes e frutas em quantidade suficiente para vender ali mesmo na horta, para quem tiver interesse. E há quem escoe sua produção por meio de organizações comunitárias que revendem esses alimentos ou distribuem cestas para pessoas em vulnerabilidade econômica.

Uma coisa existe em comum entre todos ali: ninguém usa veneno. As pragas são controladas com soluções tradicionais, transmitidas de geração em geração, e também por meio de métodos aprendidos mais recentemente com agrônomos, em programas de assistência técnica.

Foto: Dionizio Bueno, agosto/2024

Dilva Duarte, co-fundadora e atual coordenadora da Nossa Horta, conta que no começo algumas pessoas demonstraram pouco interesse em produzir, pois o terreno estava cheio de mato e entulho. Mas bastou um importante trabalho de limpeza, feito de forma colaborativa por ela, seu irmão Damião e mais alguns vizinhos, para que as pessoas logo começassem a se empolgar com a ideia de produzir seu próprio alimento. A área (são, na verdade, dois grandes terrenos, separados por uma rua tranquila) foi então dividida em pequenos lotes, de forma que cada núcleo pudesse produzir no seu ritmo.

Hoje tem ali pessoas das vizinhanças do entorno, como Jaguaré, Parque Continental e Areião, e também da Vila Yara e outros bairros de Osasco, município vizinho. A cada mês, atualmente, são produzidos e vendidos mais de 3000 maços ou pés de verduras como couve, azedinha, alface, escarola, acelga, espinafre, salsinha, cebolinha, coentro. Há também uma grande quantidade de plantas que são colhidas para uso próprio, sem destinação comercial, como alecrim, lavanda, sálvia, orégano, tomate cereja, capuchinha, tomilho, menta, batata doce.

Cuidar do chão e produzir é uma atividade com forte potencial curativo. Uma das vizinhas se encontrava em quadro de depressão quando conheceu a Nossa Horta. Bastou começar a mexer na terra para ela se sentir mais forte e feliz. Largou o remédio e hoje faz parte dessa rede de vizinhos que se ajudam mutuamente.

Por meio de sua frente de articulação em campo, o Bicicarreto hoje atua para formar novas conexões locais entre a Nossa Horta e outros atores da região. Um sistema alimentar se caracteriza justamente pelas conexões que se formam entre produtores, entrepostos e consumidores. É com esses pequenos ajustes que construímos um sistema mais humano, justo e orientado para o nosso sonho.

Além da possibilidade de se obter alimentos sem veneno e com baixo custo, a produção comunitária e organizada nesse tipo de espaço é uma forma simples de aproveitar áreas urbanas desocupadas – contribuindo para sua conservação –, combater os desertos alimentares e reforçar laços comunitários.

agroecologia nas eleições

Das três esferas da política institucional, a municipal é onde são vividos e decididos os assuntos ligados de forma mais imediata à vida cotidiana das pessoas. Isso faz do período de eleições municipais uma época especialmente propícia para se tratar de certos assuntos, como as relações comunitárias, a alimentação, a cultura, a saúde e o meio ambiente. Essas áreas estão diretamente conectadas a políticas públicas locais, cuja execução pode ser acompanhada de perto pelos cidadãos e cidadãs.

Para levantar a discussão sobre esses temas neste momento oportuno, a ANA publicou uma carta política intitulada “Democracia e agroecologia como princípios para a construção de políticas de futuro e para a garantia de soberania e segurança alimentar nos municípios brasileiros – Desafios para as candidaturas nas eleições de 2024”. Trata-se da terceira edição da iniciativa Agroecologia nas Eleições, que nos anos eleitorais desde 2020 tem buscado trazer a pauta da agroecologia para o debate público.

A carta política foi elaborada por organizações, coletivos e movimentos sociais, apresentando um total de 51 propostas, organizadas em 15 áreas temáticas. Todas as propostas são de extrema importância para a construção da soberania alimentar e nutricional, o fortalecimento das relações comunitárias e a garantia da democracia. Destacamos aqui alguns mais diretamente ligados ao campo teórico e prático do Bicicarreto.

Imagem: divulgação

Na seção ‘Comercialização, circuitos curtos e compras institucionais’, o documento chama atenção para a importância da adesão do município ao Programa de Aquisição de Alimentos e, no que se refere ao Programa Nacional de Alimentação Escolar, que as administrações municipais estabeleçam metas progressivas anuais de forma que finalmente possa ser atingida a condição determinada pela Lei nº 11.947/2009, de se destinar no mínimo 30% dos recursos do programa para compras da agricultura familiar.

Também propõe a criação de uma política municipal de apoio a feiras de produtores e a equipamentos públicos de abastecimento alimentar.

No tópico sobre ‘Agricultura urbana’, para que se possa garantir sua efetivação, defende a destinação de áreas públicas e privadas para produção de alimentos e plantas medicinais, com assessoria para produtores e produtoras, apoio a coletivos de mulheres e suporte à implementação de hortas nas escolas.

Chama a atenção ainda para a importância do uso de instrumentos urbanísticos, como planos diretores, para a promoção da agricultura urbana, propondo inclusive a criação de áreas especiais de segurança alimentar.

O documento inclui temas que aparecem com pouca frequência no debate político em nível municipal, como o ‘Controle e restrição de atividades que geram impactos negativos à saúde e ao meio ambiente’. Dentro deste tópico destacamos a efetivação de leis que estabeleçam zonas livres de agrotóxicos no município (proibindo inclusive sua pulverização aérea), a restrição do uso de transgênicos nos programas públicos de abastecimento alimentar e a implementação de ações de educação alimentar, com o estímulo ao consumo dos alimentos in natura e minimamente processados.

Partindo de uma visão ampla da agroecologia, o documento também contempla práticas integrativas, com incentivo ao uso de fitoterápicos e plantas medicinais produzidas pela agricultura familiar ou nas unidades de saúde, o fortalecimento de iniciativas de comunicação popular, como rádios comunitárias, e a inserção de conteúdos relacionados à agroecologia e segurança alimentar nas ações pedagógicas das escolas, em cidades e áreas rurais.

Em sua apresentação, a carta política destaca que “a agroecologia é um dos caminhos mais efetivos não só para a produção de alimentos e territórios saudáveis e sustentáveis, como também para garantir justiça social e climática e construir tecnologias sociais capazes de enfrentar a nova realidade que estamos vivendo”.

Assim, além do propósito central de fornecer uma agenda propositiva para as candidaturas e trazer esses temas sistematizados para pautar uma discussão envolvendo toda a sociedade, a carta política Agroecologia nas Eleições 2024 cumpre também o papel de apresentar a agroecologia a um público mais amplo, mostrando que ela é muito mais que um conjunto de técnicas de cultivo.

polinizadores

Ao carregar em suas patas o pólen de uma planta para outra, as abelhas executam uma tarefa essencial na reprodução sexuada. Ao contrário dos seres que geram sozinhos seus descendentes, como aqueles que se autoduplicam, as espécies que dependem de outro indivíduo para se reproduzirem trocam genes entre si. Do encontro entre dois indivíduos resultam seres que herdam as inovações de ambas as linhagens. Isso leva a maior diversidade, dando à espécie como um todo maiores possibilidades de se adaptar a ambientes e situações hostis, contribuindo para sua sobrevivência.

O intercâmbio de ideias funciona de forma semelhante. Eu poderia passar a vida isolado, desenvolvendo somente aquelas que surgiram na minha cabeça – que, assim como a sua, tem uma capacidade infinita de criar ideias novas. Porém, se pudermos nos encontrar e trocar ideias, algo mágico pode surgir. Um pequeno detalhe de algo que pensei, e que em princípio não fazia muito sentido para mim, ao chegar na sua cabeça poderá unir-se a outras informações, ou simplesmente produzir um sentido diferente, já que a sua vivência e sua visão das coisas é diferente da minha. Então aquela microideia que se transformou ao chegar em você pode ser concretizada por você ou mesmo ser devolvida a mim com um sentido aperfeiçoado, e então algo que saiu da minha cabeça sem muita possibilidade de se concretizar volta para mim como algo viável de ser posto em prática. Você me ajudou a desenvolver uma ideia que poderia não dar em nada se eu estivesse sozinho. Juntos, co-criamos. Esse processo se chama polinização de ideias.

Como abelha com as patas cheias de pólen, eu posso também ser apenas o portador de uma ideia. Escuto numa conversa algo inovador que está acontecendo num determinado contexto. Aquilo não serve exatamente para mim, mas de alguma forma me fascina. Então eu levo aquele pedacinho de ideia a um outro ambiente e lanço na cabeça de pessoas que vivem num contexto no qual aquela ideia faz todo sentido e pode florescer de uma outra maneira, solucionando outras situações. É como a semente que achou o solo perfeito para se desenvolver com todo seu potencial. Esse tipo de troca concretiza da melhor forma o potencial da diversidade humana, a forma mais poderosa de comunidade.

Alguns espaços, por sua dinâmica de encontros, são ambientes propícios à polinização de ideias. Certas metodologias, como por exemplo o Open Space, ajudam a polinização a acontecer ao orientar a possibilidade de esse papel ser assumido conscientemente pelos participantes.

Assim, tendo ou não consciência disso, muitas vezes fazemos o papel de abelhas em nosso ecossistema de ideias regenerativas. Encontros de pessoas têm sempre o potencial de gerar bons projetos. Só que da mesma forma que as abelhas são sensíveis a inseticidas e outros agentes tóxicos, a polinização de ideias também necessita de condições favoráveis. A sabedoria está em saber manter esse ambiente, o que muitas vezes se dá a partir de aspectos bastante sutis.

abelhas em risco

No dia 20 de maio é celebrado o Dia Mundial das Abelhas, como forma de rememorar a importância desses insetos em nosso ecossistema. A data comemorativa foi estabelecida pela ONU durante sua Assembleia Geral em dezembro de 2017 e é celebrada desde maio de 2018.

Para muito além de produzir mel, própolis e geleia real, as abelhas têm a importante função de polinizar as plantas, o que na prática significa espalhar a vida. Ao pousarem nas flores para sugar o néctar, o pólen fica grudado em suas patas. Assim elas levam o pólen para outras flores, fazendo sua fecundação. Quando o pólen chega a uma flor de outra espécie, acontece a fecundação cruzada, um dos principais mecanismos da natureza para gerar diversidade.

Infelizmente, porém, há pouco o que comemorar, pelo menos aqui no Brasil. Nosso sistema alimentar está matando as abelhas. O avanço das áreas do agronegócio, movido por queimadas e/ou motosserras, destroi as matas onde esses seres vivem e se alimentam. As secas causadas pelas mudanças climáticas também ajudam a expulsá-las de seus ambientes naturais.

E como se isso não bastasse, elas ainda estão sendo envenenadas pelos agrotóxicos utilizados por esse sistema industrial e destrutivo de produção de commodities agrícolas. Se não matam, tais substâncias atacam o sistema nervoso das abelhas ao ponto de afetar seu sistema de orientação, e assim elas não conseguem voltar para suas colmeias e perdem-se para sempre.

Foto: Johann Piber / Pexels

Privadas de seus ambientes e totalmente desorientadas, algumas abelhas vão parar em áreas urbanas, onde encontrarão ainda menos verde e mais substâncias tóxicas. Você já reparou como hoje é comum encontrarmos abelhas pelo chão? Em certos bairros vemos, com alguma frequência, abelhas rastejando, muitas vezes em círculos, prestes a morrer, ou mesmo já mortas. Está aí, em tempo real e visível a olho nu, o efeito do nosso modo de vida nesses insetos polinizadores.

Quatro espécies de abelhas são hoje classificadas pelo Ministério do Meio Ambiente como ameaçadas de extinção: Partamona littoralis (comum na Mata Atlântica), Melipona capixaba (do Espírito Santo), Melipona scutellaris (frequente no Norte e Nordeste do país) e Melipona rufiventris (do Cerrado).

Pouco tem sido feito no Brasil para proteger as abelhas. O Fipronil é um veneno usado para matar formigas e outros insetos das lavouras. Mesmo em doses baixíssimas, ele é muito tóxico para as abelhas. Em janeiro deste ano, o Ibama restringiu o uso dessa substância, proibindo sua pulverização aérea. Um mês depois foi a vez do Tiametoxam, um agrotóxico amplamente utilizado em culturas como soja, algodão, milho e cevada. Seu uso já era restrito em muitos países. A partir de fevereiro, seu uso está proibido em certas plantações, mas segue autorizado em outras, desde que seja esguichado diretamente no solo ou aplicado no tratamento das sementes.

Ainda assim, as abelhas seguem em perigo. A extinção de qualquer espécie da natureza devido à ação humana já é, por si só, motivo de vergonha coletiva. No caso das abelhas, é ainda mais preocupante devido ao seu papel no ciclo de vida de muitas espécies vegetais. É assunto que precisa ser lembrado não apenas no mês de maio, mas no mínimo a cada vez que vemos uma abelha agonizante pelo chão.

desperdício de comida

Todos os dias, no mundo inteiro, alimentos são jogados no lixo. A gente já sabe disso mas, mesmo assim, ver números pode ser perturbador.

Um relatório divulgado no fim de março pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) estimou que, em 2022, a quantidade de comida desperdiçada nos domicílios, comércio varejista e estabelecimentos de alimentação totalizou 1,05 bilhão de toneladas.

Os domicílios respondem, nesses cálculos, por 631 milhões de toneladas, o varejo por 131 milhões e os estabelecimentos de alimentação por 290 milhões de toneladas de comida jogada fora. No cálculo médio per capita, seriam 79 kg de alimentos desperdiçados por pessoa no ano.

Por mais que esses números sejam estimativas, são dados assustadores, sobretudo se considerarmos os 783 milhões de pessoas que passam fome atualmente no mundo.

A edição 2024 do Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos trabalhou com dados de 93 países na categoria desperdício domiciliar, um aumento significativo em relação aos 52 países cobertos pela primeira edição do Relatório, publicada em 2021.

É preciso entender bem o que o documento define como desperdício de comida: todos os alimentos, incluindo as partes não comestíveis associadas, que chegam até o varejo ou o consumidor final mas que, em vez de servirem para alimentação, acabam em outros destinos, como lixo, compostagem, esgoto, apodrecimento, aterro, incineração. Um conceito próximo mas diferente é o de perda de comida: tudo aquilo que, na cadeia de produção e distribuição de alimentos, em qualquer uma das etapas antes do varejo (excluindo este), é descartado não retorna de nenhuma outra forma à cadeia de suprimento, e portanto não serve a nenhuma outra utilização. Estimativas da perda de comida no mundo são objeto de outro estudo, também ligado às Nações Unidas. O relatório apresentado aqui diz respeito somente ao desperdício nos domicílios, estabelecimentos comerciais e restaurantes.

E por que as partes não comestíveis são também incluídas na conta? O relatório observa que a definição do que é ou não comestível muitas vezes é cultural. Pés de galinha e miúdos de animais são aproveitados na culinária de algumas residências ou regiões, mas são desprezados como não comestíveis em outras. Em algumas culturas, somente as flores dos brócolis são utilizadas, enquanto em outras as folhas e caules também fazem parte da refeição. Cascas de laranja são usualmente retiradas e jogadas fora, mas em muitas famílias elas são transformadas em deliciosos doces ou geleias.

O estudo encontrou uma pequena correlação entre a temperatura média do país e a quantidade de comida desperdiçada nos domicílios: em países mais quentes o desperdício estimado tende a ser maior. Algumas hipóteses são levantadas como possíveis explicações dessa relação: maior uso de alimentos in natura (portanto maior proporção de partes não comestíveis, que contam como desperdício), maior quantidade de alimentos com casca grossa (resultando em maior peso das partes não utilizadas) e a própria ação do calor (fazendo os alimentos estragarem em menor tempo).

Apontam também a possibilidade de eventos de calor extremo, secas e a falta de refrigeração adequada na cadeia de distribuição nesses países (impactando o estado em que os alimentos chegam aos consumidores finais) terem relação com essa tendência. De qualquer forma, o próprio relatório faz ressalvas quanto a isso, observando que não há relação entre o desperdício e o nível de desenvolvimento econômico do país e que, de um modo geral, há um considerável grau de incerteza em parte dos dados, portanto é preciso cuidado na interpretação dessas conclusões.

Imagem: Food Waste Index Report 2024

Outra correlação encontrada, mas que também deve ser interpretada com cuidado, é entre o local de residência, urbano ou rural, e o desperdício: foi observado que em áreas rurais o desperdício tende a ser menor.

Segundo o próprio relatório, isso pode estar relacionado ao aproveitamento de cascas e outras partes usualmente descartadas dos vegetais para a alimentação tanto dos animais de criação quanto dos domésticos. Além disso, a falta de coleta de resíduos sólidos em muitas dessas áreas faz com que partes rejeitadas dos alimentos sejam habitualmente jogadas nos canteiros, e isso não foi considerado nos dados como desperdício.

O Brasil está entre os países cujos dados foram utilizados nesta edição do Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos. As informações se referem à cidade do Rio de Janeiro, por meio de um estudo feito em 2023, envolvendo 102 domicílios. Essa cidade produz 4.800 toneladas de resíduos alimentares residenciais por dia. Isso corresponde a 77 quilos por pessoa por ano (bem próximo à média mundial, acima), ou 212 gramas por pessoa por dia.

Cada um dos domicílios que participaram do estudo separou seus resíduos sólidos em três categorias: resíduos alimentares, materiais secos de embalagem e demais resíduos. Os resíduos alimentares constituem 62% do total descartado. Esse material é composto de frutas, verduras e legumes (62% dos resíduos alimentares), carne (11%), padaria (16%) e laticínios (11%). Um dado curioso é que o estudo afirma não haver correlação entre a faixa de renda da família e o desperdício de comida gerado por ela.

Ainda que o Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos considere apenas o que é jogado fora nas etapas finais da cadeia de distribuição, é importante compreendermos a relação disso com o sistema alimentar em que estamos inseridos, especialmente as grandes distâncias percorridas entre produtores e consumidores e a quantidade de intermediários entre eles.

Será que as longas horas que frutas e hortaliças passam chacoalhando dentro de um caminhão na estrada não afetariam o estado em que esses alimentos chegam nas gôndolas do varejo e nas residências dos consumidores? E além do tempo e das distâncias, é preciso também levar em conta o efeito do repetido manuseio que os produtos sofrem, nas diversas operações de carga e descarga feitas pelos coletores regionais de produção, transportadoras intermunicipais e interestaduais, centrais de abastecimento nas cidades de destino, distribuidoras locais e outros possíveis intermediários, ainda que, na melhor das hipóteses, haja sistemas frigoríficos adequados tanto nos transportes quanto nos estoques.

Dessa forma, no momento em que chegam ao consumidor final, parte do tempo de vida útil desses alimentos já foi consumido ou reduzido. Eles poderão estragar mais rapidamente nas geladeiras dos domicílios.

Basta observar a durabilidade na geladeira dos alimentos adquiridos por meio de esquemas alternativos de distribuição, como feiras de produtores, compras coletivas e grupos de consumo de produtores regionais ou locais: além de mais saudáveis, esses produtos resistem mais tempo antes de começarem a estragar. Está aí mais uma evidência da relação entre o atual sistema alimentar e o desperdício.

Um caminho para diminuir o desperdício são os bancos de alimentos. Estabelecimentos de varejo podem encaminhar a eles os produtos que já estão fora dos padrões para comercialização mas ainda em condições de consumo, de forma que eles sirvam para alimentar pessoas em vez de acabar em aterros.

O Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos é publicado por uma entidade das Nações Unidas como forma de monitoramento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, especificamente o objetivo 12.3: “Até 2030, reduzir pela metade o desperdício de alimentos per capita mundial, nos níveis de varejo e do consumidor, e reduzir as perdas de alimentos ao longo das cadeias de produção e abastecimento, incluindo as perdas pós-colheita”.

De qualquer forma, para quem tem fome, não é possível esperar até 2030. Repensar aspectos do nosso sistema alimentar é tarefa urgente, e a mudança pode se dar em todos os níveis, inclusive o mais corriqueiro, a cada vez que escolhemos, adquirimos e consumimos os alimentos.

agricultura em programas habitacionais

Está em tramitação na Câmara dos Deputados um projeto de lei que pode contribuir para o aumento das áreas de cultivo de alimentos nas cidades. Trata-se do PL 4074/2021, o qual determina que “programas habitacionais públicos federais ou financiados com recursos públicos federais deverão incorporar projeto de agricultura urbana ou periurbana”.

O projeto de lei destaca, em sua justificação, a importância da agricultura urbana e periurbana como “instrumento importantíssimo para o aprimoramento das cidades e da qualidade de vida das pessoas”.

A partir da aprovação desse projeto de lei, os entes federativos que forem beneficiários de programas habitacionais federais deverão, além de reservar no projeto uma área para o cultivo, firmar compromisso de apoio ao uso e manutenção do local destinado à implementação do projeto agrícola. Isso consiste em infraestrutura básica, suporte técnico à população beneficiária, insumos (com prioridade para adubos orgânicos) e integração com políticas e programas setoriais, especialmente de educação, saúde e meio ambiente.

O projeto de lei foi apresentado em novembro de 2021 pelo deputado Célio Moura e outros 24 parlamentares, todos do PT. Foi então designado para passar por três Comissões da Câmara dos Deputados: Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR); Desenvolvimento Urbano (CDU); e Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ).

Durante a tramitação na CAPADR, o projeto de lei recebe um pequeno ajuste, por parte do relator, referente às classes profissionais habilitadas para atestar eventual inviabilidade técnica desse tipo de projeto agrícola.

Em uma das reuniões deliberativas dessa comissão, em maio de 2022, uma deputada paranaense do extinto PROS (Partido Republicano da Ordem Social) pede a palavra para trazer solicitações da Caixa Econômica Federal, para que a Comissão pudesse “discutir para não criar nenhum tipo de desconforto e nenhum problema em relação à efetivação, para que não seja mais um projeto de lei de papel”. Fala de dificuldades em relação ao “aumento do custo desses programas habitacionais, e [que] isso precisa ser verificado em questões legais”. Diz que é preciso “verificar a possibilidade de acatarmos algumas das sugestões, visto que os maiores programas habitacionais são feitos pela Caixa Econômica”.

Então a deputada pede vista ao projeto, suspendendo sua tramitação por um determinado prazo. Transcorrido o prazo de vista, o projeto volta à pauta da Comissão. No histórico de tramitação, disponível na página da Câmara dos Deputados, não há registro de novas alterações, e o parecer do relator é aprovado nessa Comissão alguns dias depois.

O projeto de lei é então distribuído à CDU em junho de 2022. Dez meses depois é designada uma relatora. O projeto novamente recebe elogios e também ajustes referentes às categorias profissionais habilitadas para atestar eventual inviabilidade técnica. A tramitação do PL 4074/2021 encontra-se aparentemente parada nessa Comissão sendo que, na presente data, o último registro de tramitação ali disponível é de 25/08/2023. Quando voltar a tramitar, o projeto de lei precisa ainda ser aprovado pela CDU, passar pela CCJ, seguir para o senado e depois para sanção presidencial. Tudo isso deve levar algum tempo ainda.

Enquanto isso, seguem existindo as iniciativas individuais e coletivas que resultam em projetos agrícolas urbanos, tanto em conjuntos habitacionais e condomínios privados como em áreas públicas. O valor dessas iniciativas está não só na produção de alimentos mas também na melhoria da relação das pessoas com a própria alimentação. O fomento desse tipo de atividade por meio de uma lei seria muito benéfico para nossas cidades.

cadeia de alimentos no Brasil

Dados bastante abrangentes sobre o sistema alimentar no Brasil podem ser encontrados no Estudo sobre a Cadeia de Alimentos, organizado por Walter Belik, professor titular aposentado do Instituto de Economia da UNICAMP, publicado em 2020, com apoio do Instituto Ibirapitanga e do Instituto Clima e Sociedade.

O documento traz informações sobre hábitos de consumo e compra, a composição da dieta nacional, os gastos com alimentação por faixas socioeconômicas, tendências evolutivas que impactam o cardápio nacional, entre outras. A principal fonte de dados do são as estatísticas agregadas à Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), organizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, disponíveis no momento da publicação.

Destacamos aqui alguns aspectos particularmente interessantes e mais diretamente ligados à investigação sobre sistemas alimentares pelo ponto de vista do Bicicarreto.

Os dados sobre consumo revelam que habitação é a maior despesa em todas as faixas socioeconômicas, representando 42,4% do orçamento das famílias que ganham até 2 salários mínimos e 34% dos gastos das famílias com renda mensal de 25 salários mínimos ou mais. Alimentação vem logo atrás no caso das famílias mais pobres, representando 23,8% das despesas, mas aparece somente em terceiro lugar no caso das famílias mais abastadas, correspondendo a 11,4% do orçamento familiar. No caso deste grupo socioeconômico, é educação que vem em segundo lugar, representando 23% do orçamento.

O gasto mensal médio com alimentação é de R$ 328,74 no caso das famílias de até 2 salários mínimos e de R$ 2.061,34 entre as famílias de 25 ou mais salários mínimos. Portanto, o gasto com alimentação das famílias mais ricas é mais de seis vezes maior que o das famílias mais pobres.

Imagem: divulgação

O Estudo mostra a participação de cada grupo de alimentos, segundo a classificação NOVA, no total de calorias na dieta da população brasileira, comparando os dados ao longo de três edições da POF (2002-3, 2008-9 e 2017-18). Isso mostra como evolui o consumo desses tipos de alimentos ao longo desse período.

O consumo de alimentos in natura ou minimamente processados caiu 7%, passando de 53,3% do total de calorias em 2002-3 para 49,5% em 2017-18. Ao mesmo tempo, observa-se um substancial aumento de 46% na participação dos ultraprocessados na dieta brasileira: esse tipo de produto comestível, que correspondia a 12,6% das calorias em 2002-3 passou a 18,4% em 2017-18. Os alimentos processados subiram de 8,3% em 2002-3 para 9,8% em 2017-18 (aumento de 18%) e os ingredientes culinários processados passaram de 25,8% em 2002-3 para 22,3% em 2017-18 (diminuição de 14%).

Quanto à distribuição de alimentos, o Estudo faz algumas observações gerais sobre um processo de reorganização que esse componente do sistema alimentar vem sofrendo nos últimos anos. O que mais chama a atenção é o avanço do setor de supermercados, que passam a comprar diretamente da indústria de alimentos e dos produtores agropecuários, contribuindo assim para a eliminação da figura do atacadista. Ao mesmo tempo, surge um novo tipo de estabelecimento, o “atacarejo”, que, segundo a pesquisa, se desenvolve de forma coordenada pelos supermercados.

Trata-se daquelas lojas de grande porte, com o leiaute tosco dos antigos atacadistas, porém sem qualquer restrição quanto ao tipo de comprador ou ao tamanho das aquisições. Oferecem duas possibilidades de preço: um é o chamado valor unitário e o outro, denominado “atacado”, só vale a partir de um certo número de unidades, geralmente não muito grande. Conforme nossa observação, essa diferença de preços costuma ser surpreendentemente baixa.

Esse tipo de estabelecimento vem ganhando espaço no fornecimento de alimentos frescos e produtos industrializados, tanto para restaurantes, cozinhas industriais e pequenos varejistas como para consumidores finais.

Observa-se também na população uma tendência de mudança de hábitos quanto à escolha dos locais de compra. Os dados das POFs mostram que as aquisições em supermercados representavam 32,6% das idas a estabelecimentos comerciais em 2002-3 e passaram a representar 41,1% em 2008-9 (dados se referem ao número de compras e não ao montante gasto; não há esses dados para POF 2017-18). Enquanto isso, as idas a todos os outros tipos de estabelecimentos diminuíram. As compras em mercearias e armazéns caíram de 17,4% em 2002-3 para 17,0% em 2008-9; as compras em feiras livres caíram de 4,8% em 2002-3 para 4,5% em 2008-9. Há portanto uma tendência de as pessoas substituírem compras em feiras e pequenos estabelecimentos por compras em supermercados.

O setor atacadista de produtos frescos é composto pelas Ceasas (centrais estaduais de abastecimento). São 74 Ceasas em todo o Brasil, sendo 22 em capitais. Segundo o documento, o entreposto da capital paulista concentra 25% de todo o movimento de produtos frescos no país.

A proporção da produção que passa pelas Ceasas, entretanto, varia bastante conforme o produto. Por exemplo, 62% da produção de alho passa por alguma dessas centrais em algum momento de sua distribuição. O mesmo acontece com 42,4% da produção de maçã, 70,9% do mamão, 71,1% da cenoura e 76,6% do tomate de mesa. Por outro lado, apenas 13,2% da produção de alface, 12,4% da banana e 1% do coentro passam por Ceasas. É possível que isso se deva ao fato de estes produtos serem mais frágeis e perecíveis, e assim sua comercialização acabe encontrando esquemas alternativos.

Junto com o Estudo, foi publicado também um documento síntese, onde se encontram suas principais conclusões e também algumas reflexões e informações que não fazem parte do documento principal.

Mesmo passados já alguns anos desde sua publicação, as informações apresentadas no Estudo sobre a Cadeia de Alimentos continuam válidas por mostrarem características marcantes do sistema alimentar brasileiro e algumas tendências de modificação – muitas das quais, infelizmente, são aspectos negativos se aprofundando.

comer mal, comer caro

“Comer bem custa mais caro do que comer mal”.

O que dá sentido a essa afirmação é o fato de vivermos em uma sociedade de consumo, que tem como um de seus dogmas a ideia de que maior qualidade implica maior preço. Em muitos casos essa afirmação é, de fato, verdadeira.

Um levantamento apresentado no Atlas de los Sistemas Alimentarios del Cono Sur (lançado em 2022 pela Fundación Rosa Luxemburgo de Buenos Aires e prestes a ter uma edição brasileira) traz dados sobre valor da alimentação nos cinco países do Cone Sul.

Comparação dos valores de refeições precárias e saudáveis nos países do Cone Sul; percentuais das populações sem acesso a dietas saudáveis nesses países. Imagem: Atlas de los Sistemas Alimentarios del Cono Sur. CLIQUE PARA AMPLIAR

De acordo com essas informações, uma dieta saudável no Brasil é 3,9 vezes mais cara do que uma dieta precária. Interessante observar que, dos cinco países, o Brasil é aquele com a menor relação entre a dieta saudável e a dieta precária. Essa relação é de 5,3 vezes na Argentina, 5 vezes no Chile e 4,3 vezes tanto no Paraguai como no Uruguai.

O estudo nos deixa curiosos para saber o que se entende, nessa comparação, por “dieta de mínimas calorías” e por “dieta saludable”, pois infelizmente não traz detalhes sobre os tipos de refeição cujos custos estão sendo comparados. Diz no subtítulo do infográfico que a dieta mais barata na comparação é baseada em ultraprocessados. Sabe-se que esse tipo de produto não costuma ser baixo em calorias, e isso levanta a dúvida sobre o que está sendo considerado na dieta menos saudável.

Algo que chama atenção é o fato de os valores das dietas nos cinco países, apresentados em dólares, serem próximos. Isso mostra como, apesar de esses cinco povos viverem realidades sociais e políticas bastante específicas, estão todos sujeitos às condições de um mesmo sistema alimentar. É ele que determina os valores de troca dos alimentos e a exploração que acontece em ambas as pontas, produtores e consumidores.

Podemos também observar nos infográficos a proporção de pessoas, em cada país, que não têm acesso a dietas saudáveis. O país onde essa proporção é maior, o Paraguai, é também aquele onde as dietas, tanto a precária como a saudável, são as mais caras entre os cinco comparados, e isso provavelmente não é um acaso.

Os dados são um importante alerta sobre as condições impostas às populações por esse sistema alimentar predatório e insalubre. Escassez e fome são consequências naturais de um sistema no qual comida é mercadoria.

Porém, é preciso observar que o dogma maior qualidade implica maior preço nem sempre se comprova, pelo menos quando os ultraprocessados estão envolvidos na comparação. Além de serem a opção de pior qualidade, os ultraprocessados podem também ser mais caros. Isso se confirma não apenas em exemplos extremos e aberrantes, como no caso nada raro em que um quilo de salgadinho industrializado, com valor nutritivo praticamente nulo, custa mais caro que um quilo de contrafilé.

Pense em uma refeição pronta encontrada em supermercados, uma sobremesa industrializada, ou mesmo um simples lanche embalado de fábrica. Esses produtos não são mais baratos que as versões preparadas em casa com ingredientes in natura ou minimamente processados. Seu grande apelo é o fato de estarem já prontos ou quase prontos para o consumo.

É importante o consumidor perceber isto: ao oferecerem praticidade e recorrerem agressivamente a táticas que atuam de forma irracional na decisão de compra, como propaganda e embalagens altamente atrativas, eles não precisam ser mais baratos para que sejam escolhidos. Um produto que necessitou de várias etapas de processamento, transporte e estocagem, aditivos e condições especiais de conservação, além dos custos de embalagem e publicidade, não tem como ser mais barato do que os ingredientes necessários mais a energia e o gás usados para preparar um equivalente caseiro.

Há outro fato interessante sobre valor dos ultraprocessados. Pelo menos no Brasil, os dados mostram que os ultraprocessados estão mais presentes entre as famílias mais abastadas. Segundo o Atlas das situações alimentares no Brasil, publicado em 2021, o consumo de ultraprocessados é maior entre os mais ricos, enquanto as famílias de menor poder aquisitivo têm proporcionalmente mais alimentos in natura em sua alimentação.

O consumo de ultraprocessados existe, sim, nos grupos economicamente menos favorecidos, mas, em muitos casos, essa opção parece ser muito mais uma questão cultural ou de falta de tempo – o qual é sugado até a última gota por este sistema produtivo que transforma pessoas em máquinas – do que uma escolha racional, baseada em fatores objetivos, como o preço.

A ideia de que produtos orgânicos sempre custam mais caro também é problemática. Uma coisa é comparar o preço de verduras orgânicas e convencionais em supermercados, especialmente aqueles caros, frequentados por gente feliz. Independentemente dos custos, os orgânicos nesses lugares serão sempre precificados de forma a serem mais caros que os convencionais, aplicando o dogma acima, de forma a serem percebidos pelos consumidores como melhores. Outra coisa é considerar os preços de orgânicos em redes de consumo alternativas, onde é possível encontrá-los a preços equivalentes aos de convencionais.

Tecnologias como os sistemas agroflorestais, a biodinâmica e a agricultura sintrópica criam ambientes produtivos tão equilibrados e fortalecidos que dispensam defensivos agrícolas e fertilizantes químicos, eliminando importantes custos de produção.

Ao olhar para as relações entre qualidade e preço na alimentação, é preciso ir além de simplesmente constatar que um pacote de miojo é, de fato, mais barato que uma refeição feita em casa ou um PF no restaurante.

Se aceitamos como natural e repetimos passivamente a ideia de que maior qualidade implica maior preço, trabalhamos para reforçar um dos dogmas centrais desse sistema que atribui aos alimentos um valor de troca desvinculado da realidade objetiva. Pior que isso, deixamos de enxergar alternativas de alimentação que estão ao nosso alcance e podem ser ampliadas para que beneficiem cada vez mais pessoas.

Declaração de Quito

Em abril de 2000, a poucos meses do fim do século XX, representantes de diversas cidades latino-americanas estiveram juntos na capital equatoriana, durante o seminário internacional “Agricultura Urbana en las Ciudades del Siglo XXI”. O encontro foi organizado por diversas entidades de importância mundial ou regional, como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Programa de Gestão Urbana para a América Latina e o Caribe (PGU-ALC), a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o Centro Internacional de Pesquisa para o Desenvolvimento (IDRC), o Centro das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (Hábitat) e a Coordenação Regional para América Latina e Caribe.

Um dos resultados desse encontro foi a Declaração de Quito, um documento firmado por mais de 30 cidades latino-americanas que convida governos e demais atores públicos e privados a comprometerem-se com a prática da agricultura urbana e com o apoio ativo ao seu desenvolvimento.

A Declaração de Quito é tida como o primeiro documento internacional diretamente voltado à promoção da agricultura urbana, reconhecendo a atividade como central em diversas áreas e propondo caminhos para que seja tratada como política pública. O texto da Declaração faz um chamado aos “governos estaduais e nacionais para que considerem a Agricultura Urbana em seus programas de combate à pobreza, segurança alimentar, promoção do desenvolvimento local e melhoria do ambiente e da saúde”.

Um dos destaques do documento é a ênfase que ele dá ao papel proativo que as administrações municipais podem ter na integração da atividade ao desenvolvimento das cidades. Hoje é comum que a agricultura urbana ocupe espaços vazios, como terrenos, cantos de praças, áreas de servidão. É preciso ir muito além disso. A Declaração sugere, por exemplo, que as prefeituras poderiam “promover a coleta de informações sobre as atividades da Agricultura Urbana em seus processos de planejamento territorial” e, com isso, antecipar o ordenamento urbano de forma a prever espaços para o crescimento das áreas cultiváveis nas cidades.

Horta urbana no Jaguaré, zona oeste de São Paulo. Foto: Dionizio Bueno.

Alguns municípios brasileiros participaram do seminário e tornaram-se signatários da Declaração: Brasilia (DF), Curacá (BA), Maranguape (CE), Teresina (PI) e Fortaleza (CE). Durante os trabalhos do encontro, as cidades presentes apresentaram suas políticas municipais relacionadas à agricultura urbana.

Brasília, por exemplo, compartilhou a experiência de um programa, vigente entre 1995 e 1998, de apoio a produtores com poucos recursos, oferecendo-lhes crédito, assistência técnica e apoio à formação de microempresas. O programa também desenvolveu uma marca comercial para os produtos e criou pontos de venda na cidade para o escoamento da produção. Posteriormente, o projeto foi estendido aos estados de Minas Gerais e Mato Grosso do Sul.

Teresina trouxe o relato de um programa da prefeitura que deu suporte a hortas comunitárias para 2500 famílias, convertendo 120 hectares de terrenos vazios em terras produtivas. Além disso, fornecia irrigação, insumos básicos e assistência técnica aos produtores.

Durante o seminário, formou-se também o “Grupo de Trabalho de Cidades sobre Agricultura Urbana e Segurança Alimentar”. Entre outras ações, o GT encaminhou a produção e divulgação, com apoio de entidades internacionais, de ferramentas metodológicas, guias e mecanismos que coletem experiências regionais e informem a formulação e execução de políticas públicas, principalmente relacionadas a planejamento urbano e ordenamento territorial, reutilização de água e resíduos sólidos orgânicos e linhas de crédito para a agricultura urbana.

Importante legado desse seminário, a Declaração de Quito é ainda hoje uma referência fundamental para o devido posicionamento da agricultura urbana dentro da gestão municipal. Sendo uma atividade com impactos tão evidentes em diversas esferas da vida nas cidades, a agricultura urbana precisa urgentemente ser pensada de forma mais ampla, como uma estratégia essencial para um desenvolvimento urbano sustentável.

novas projeções do agronegócio

Já falamos neste blogue sobre o relatório Projeções do Agronegócio, publicado anualmente pelo Ministério da Agricultura e Pecuária. Trata-se de um entre muitos estudos que olham para a agricultura quase que exclusivamente sob a perspectiva dos negócios e do mercado. Em certos trechos do documento, a produção de alimentos parece ser abordada como um mero subproduto desejável da atividade agrícola.

Voltamos agora a esse documento com uma perspectiva comparativa entre o último relatório publicado até a presente data (Projeções do Agronegócio 2022/23 a 2032/33) e o relatório anteriormente analisado aqui (Projeções do Agronegócio 2020/21 a 2030/31). A partir daqui, vamos nos referir ao documento de 2020/2021 como ‘relatório anterior’, ainda que ele não seja o imediatamente anterior (houve também relatório em 2021/2022).

Daqui a dez anos, o arroz terá menos da metade da área de cultivo que tem hoje: passa dos 1.469 mil hectares no ano safra 2022/2023 para 489 mil hectares em 2032/2033, uma perda de 66,7%. No caso do feijão, a perda estimada é menor mas, ainda assim, é de mais de um terço: dos 2.742 mil hectares dedicados a essa cultura em 2022/2023, passará a ter 1.749 mil hectares em 2032/2033, portanto perdendo 36,2% da área que tem hoje.

No relatório anterior, as perdas de áreas de cultivo de arroz e feijão projetadas para os dez anos seguintes eram, respectivamente, de 62% e 36,9%. Assim, no caso do arroz, o relatório 2022/2023 aponta para um aumento de velocidade na perda de território. No caso do feijão, a velocidade da perda de território projetada agora é ligeiramente menor do que aquela projetada no relatório de dois anos atrás.

Enquanto isso, os produtos agrícolas para o mercado devem seguir crescendo. Dos 21.975 mil hectares de cultivo que tem hoje, o milho deve expandir sua área em 17,1%, atingindo uma área de 25.732 mil hectares em 2032/2033. E a soja passará em dez anos de 43.834 mil hectares hoje para 55.881 mil hectares, um crescimento de 27,5% ou, em valor absoluto, de 12 milhões de hectares, a lavoura que mais deve expandir sua área nesse período.

O relatório 2020/2021 projetava ganhos menores: 10,6% e 26,9% para as áreas de cultivo de milho e soja, respectivamente. Portanto, os dados levados em consideração nos cálculos mais recentes apontam para esse aumento de velocidade na expansão desses dois cultivos. O aumento é proporcionalmente maior no caso do milho.

Área Plantada com 5 principais grãos – Brasil (mil hectares). Fonte: Projeções do Agronegócio 2022/2023 a 2032/2033. CLIQUE PARA AMPLIAR

A desigualdade entre as áreas de cultivo de alimentos e de commodities projetadas para 2032/2033 é também assustadora. Daqui dez anos, a soma das áreas dedicadas apenas às duas commodities aqui analisadas será de 81.613 mil hectares, um valor 36 vezes maior que a soma das áreas de cultivo dos dois principais alimentos dos brasileiros, que será de 2.238 mil hectares.

A visão dos dois relatórios também permite comparar as projeções de área cultivada apresentadas há dois anos para o ano safra 2022/2023 com aquilo que efetivamente se concretizou.

O arroz tinha, no relatório anterior, uma projeção de 1.419 mil hectares para o ano safra 2022/2023, sendo que tivemos de fato 1.469 mil hectares, uma área 3,5% maior do que a projetada. Para o feijão, estavam projetados 2.640 mil hectares em 2022/2023, sendo que a área neste ano safra foi de 2.742 mil hectares, portanto 3,9% maior do que a projetada. No caso do milho, tivemos em 2022/2023 uma área de 21.975 mil hectares, 8,5% maior que a projeção de 20.262 mil hectares do relatório anterior. E a soja teve uma área de 43.834 mil hectares contra os 40.789 mil hectares projetados: área realizada 7,5% maior do que a área estimada na projeção.

Essas comparações mostram dois fatos evidentes. Primeiro, as projeções do documento de 2020/2021 estavam subestimadas para os quatro cultivos analisados. E segundo, a diferença para mais do realizado em relação às projeções foi maior no caso das commodities do que no caso dos alimentos. Se esta tendência se manifestar também nos dez anos contados a partir de agora, podemos esperar que a desigualdade entre as áreas dedicadas aos cultivos de commodities e de alimentos será, lá na frente, ainda maior do que os números agora projetados para 2032/2033 antecipam.

O relatório Projeções do Agronegócio traz também dados, projeções e análises referentes a produção, consumo e exportação dos principais produtos agrícolas brasileiros. Nesta matéria, focamos na área plantada pois este é o indicador mais diretamente conectado à luta pela terra em nosso país. Sigamos firmes.

Irmã Alberta

Durante um encontro na Comuna da Terra Irmã Alberta, no qual aproximadamente 40 ciclistas levaram seu apoio à resistência desse acampamento do MST contra uma ordem de despejo, a agricultora e líder comunitária Maria Alves deu este breve relato sobre a vida e a atuação de Irmã Alberta, freira italiana falecida em 2018 e homenageada de diversas formas ainda em vida. O relato foi complementado posteriormente pela própria agricultora.

Irmã Alberta veio da Itália, da cidade de Veneza, ela veio muito jovem para o Brasil. Assumiu essa luta com o povo da terra e já entrou na Comissão Pastoral da Terra para atuar na região do Araguaia. Lá já tinha o histórico antigo das lutas e dos crimes do latifúndio, assassinatos de Chico Mendes e de outros sindicalistas. Havia um pessoal naquele momento defendendo os seringais, defendendo o sindicato dos seringueiros, Irmã Alberta esteve com eles.

Mas aí um dos padres que estavam junto nessa equipe foi assassinado. Vocês sabem também do assassinato de Irmã Dorothy, tudo na mesma região. Vocês sabem da perseguição a Dom Pedro Casaldáliga, que teve uma atuação muito importante em defesa dos indígenas e também das famílias sem terra contra os jagunços de fazendeiros, contra os crimes do latifúndio. Então, como também estava ameaçada, a Irmã Alberta veio para São Paulo com a missão de ajudar um pouco o pessoal em situação de rua.

Ali na região do Brás, foi criada uma entidade, onde se juntavam os profissionais de saúde, alguns profissionais que iam fazer trabalho voluntário. Se juntavam também pessoas da igreja e o pessoal do Rede Rua, ali junto com o Alderon [Costa]. Eles faziam um trabalho de encaminhamento, triagem, questão de documento para aquelas pessoas, davam alimento. Eles foram ficando em torno dessa entidade, e esse trabalho foi crescendo. Algumas pessoas eram soropositivas, isso estava muito em alta na época, década de 1990, ali por aqueles anos.

Então a Irmã Alberta trabalhou nessas equipes, cuidando do pessoal. Aí quando viram que tinha um contingente bom de pessoas, com condições de trabalhar e gerar sua própria renda, de tirar o seu próprio sustento, eles decidiram chamar o Movimento dos Sem Terra, que veio para dar um auxílio no que se refere a organização, para escolher algumas áreas próximas à grande metrópole e fazer ocupação para essas pessoas trabalharem, gerarem renda e viverem dignamente. A gente encontra Irmã Alberta no final da década de 1990.

O primeiro espaço ocupado, a primeira fazenda foi lá em Franco da Rocha. Lá virou assentamento, é um assentamento do ITESP [(Dom Tomás Balduíno)]. Um ano depois foi feita a ocupação aqui, e a gente está até hoje nessa luta. E teve uma outra ocupação na Grande São Paulo, lá em Cajamar, que é o Dom Pedro Casaldáliga, um assentamento do INCRA. Este acampamento aqui recebeu o nome dela, Comuna da Terra Irmã Alberta. Foi feita essa homenagem a ela porque ela já estava atuando, caminhando junto com o MST em vários estados do Brasil.

Foto: Dionizio Bueno, julho/2023

Mas a Irmã Alberta ajudou não só as pessoas do Movimento dos Sem Terra, do movimento rural, dos movimentos sociais rurais. Ela também ajudou muita gente, ela foi da Pastoral Carcerária, ela foi dos Direitos Humanos, ela era uma freira militante. Andava de hábito, e tudo mais. Estava na igreja, mas quando alguém dizia assim, “Precisa da senhora, Irmã Alberta, para mediar um conflito, para ajudar as famílias, para ajudar num momento tenso de despejo, numa negociação na Secretaria de Justiça, no Gabinete”, ela ia. Esses parlamentares respeitavam muito ela. Ela fazia uma fala segura, era uma mulher que tinha conhecimento das coisas.

A Irmã Alberta foi homenageada porque a gente achou justo. Ela era da tua altura [aponta para uma moça de baixa estatura que escuta o relato]. Ela até dizia assim: “Mas eu não morrri ainda!” [pronuncia um ‘R’ forte, imitando sotaque italiano, provocando risos]. Foi homenageada em vida mesmo. Ela morreu com 97 anos. Deixou um legado e um exemplo que a gente não pode esquecer.

Então eu estou trazendo aqui só um pouquinho da história de Irmã Alberta. Ela era uma ameaça. Mesmo daquele tamanhozinho, ela ficava entre aqueles policiais enormes assim. Aí, quando as famílias precisavam de uma palavra, ela dizia, “Deixa eu conversar com o meu pessoal”. Porque a polícia fecha os portões e não deixa ninguém entrar. Mas ela, eles liberavam. Então a Irmã Alberta, ao mesmo tempo que ela era a delicadeza em pessoa, o amor em pessoa, ela era uma ameaça. Gente, as pessoas às vezes viram ameaça mesmo, né?

Ela caminhou muito junto do nosso lado, fazendo a sua tarefa, cumprindo a sua missão de freira que está numa pastoral como a Pastoral da Terra. Em todos os momentos que a Comuna da Terra Irmã Alberta precisou se mobilizar, se manifestar, Irmã Alberta estava junto conosco. Ela era de visitar as famílias, era de conversar com as famílias, era de estar sempre trazendo a mensagem. A gente precisa nunca esquecer dessa força, desse legado, desse exemplo de mulher religiosa, porém com posições políticas muito acertadas, nos momentos certos, naquilo que a gente precisava. A gente tem aqui uma satisfação imensa de ter tido ela caminhando com a gente.

No momento em que ela já estava bastante debilitada, com a saúde precária, ela teve todo o apoio, todo o conforto, toda a assistência que a gente podia dar, e que demos. Ela morreu com 97 anos, de uma vida inteira de muito trabalho, de muita resistência também. Viveu longe dos seus familiares, longe do seu país.

E eu sempre digo: vida merecida, de 97 anos. Ela viveu para servir! Ela esteve aqui para nos ajudar. E ela vai continuar influenciando sempre na nossa luta, abençoando sempre a nossa luta.

(Relato registrado em 16 de setembro de 2023, com informações complementares da própria autora.)

entrevista: Lucca Pérez

A Cooperativa Terra e Liberdade faz uma importante conexão entre produtores de alimentos do MST da Grande São Paulo e consumidores finais, formando um circuito curto de distribuição. Tivemos a oportunidade de acompanhar uma manhã de trabalho da cooperativa, ajudando na montagem das cestas e percorrendo uma das rotas de distribuição junto com o militante Lucca Pérez, que depois nos concedeu esta entrevista.

Lucca nasceu em São Paulo, é engenheiro ambiental e, durante a graduação, trabalhou com o MST implantando sistemas de irrigação e saneamento ecológico. Atuou também com economia solidária e fez mestrado em engenharia de produção, com foco em organização do trabalho. Atualmente, em seu doutorado, estuda as relações entre saúde mental e trabalho, sobretudo no ambiente do cooperativismo.

Nesta conversa, Lucca fala dos desafios ligados à distribuição dos alimentos produzidos pela reforma agrária e sobretudo daqueles enfrentados pelos produtores e produtoras nos assentamentos. Fala também da construção de relações de consumo menos mercantilizadas, ainda que não deixem de ser relações econômicas, e que sejam focadas “no valor de uso, na política e no afeto, e não na mercadoria”.

***

Quando e como começou o trabalho da Cooperativa Terra e Liberdade? O que motivou essa iniciativa a começar a funcionar?

Todo começo é herdeiro de outras experiências, né? O Cícero já tinha trabalhado com comercialização de uva na década de 2000, levava para igrejas, portas de fábricas, já tinha algum trabalho com logística. Mas a venda de hortifruti em geral era muito focada no mercado institucional, notadamente o PAA [Programa de Aquisição de Alimentos]. Esses alimentos iam para escolas, prisões, quartéis, tinha soldado que comia alface agroecológica do MST.

Tem também o PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar], que é um mercado importantíssimo, uma política pública de fortalecimento da agricultura familiar que garante o escoamento da produção mas, ao mesmo tempo, como tudo tem uma dialética, quem vende só para esses mercados fica acostumado com isso. São contratos de, tipo, cinco mil pés de alface por família, por DAP [Declaração de Aptidão ao Pronaf, documento que habilita uma unidade produtiva para participar do programa].

Aí veio o corte de 2016 com o Temer. O orçamento do PAA saiu de bilhão para coisa de 200 milhões entre 2016 e 2018. Então os agricultores da regional ficaram sem ter para onde vender. Perderam mercado de uma hora para outra. Paralelamente a isso, eu já vinha trabalhando na Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP e era um aliado do MST. Já havia um debate sobre comércio solidário, redes, cadeias, consumo consciente etc.

Então a gente tentou fazer algumas pontes com a cooperativa do [assentamento] Dom Pedro e com a juventude do Dom Pedro, buscando fortalecer hortas da juventude. A ideia era muito mais fortalecer laços dentro desse campo da economia solidária do que dar uma resposta material da produção. Mas com o fim do PAA a gente decidiu ir para o mercado do consumidor final, sair do mercado institucional. Só que a gente não tinha recursos, não tinha experiência nisso.

Outro processo paralelo foi a Feira Nacional da Reforma Agrária. Nós participamos desde a primeira ajudando a organizar. Na segunda e na terceira nós já tocamos o processo.

O ‘nós’ aí nesse caso é quem?

É a [direção] regional Grande São Paulo [do MST]. Então as feiras também foram abrindo um diálogo de mercado com o consumidor final. Nesse processo, um pouco mais tarde, abre o Armazém do Campo. A gente já estava elaborando uma estratégia para acessar o mercado de consumidor final, é importante ter um diálogo com a população da cidade, a gente visibiliza o trabalho. No PAA, não se dá visibilidade ao que está sendo produzido, ele é muito importante para dar vazão à produção, mas não avança nos outros elementos, como construir alianças, redes de cooperação e tudo mais.

Então batemos aqui na porta do SINTUSP, foi o primeiro grupo de consumo, começou ali por 2017. A gente entregava cestas quinzenalmente. Então fornecia para o Armazém do Campo, para o SINTUSP, tentava fornecer uma coisa ou outra para o Instituto Chão.

Aí a gente começou um grupo de consumo lá no ABC, depois a feira no SESC Santana. No fim de 2018 a gente já começa a chamar de cooperativa e começa a pensar no nome. Talvez já tivesse a ideia de ‘Terra e Liberdade’.

Ali pelo fim de 2018 e começo de 2019 já tinha o primeiro site, que era mais simples, e a gente entregava em pontos de retirada, ainda não tinha porta a porta. A gente começou a fazer porta a porta só com a pandemia.

Nesse momento que você relata agora, a origem da produção que vocês distribuíam já era dos três assentamentos, Dom Pedro, Dom Tomás e Irmã Alberta?

Sim. Hoje a gente complementa com o Instituto Terra Viva, de Sorocaba, que comercializa a produção dos assentamentos da região de Sorocaba mas não só, são pequenos produtores em geral. Eles são aliados, um deles era do setor de produção do MST de lá.

A gente também entregou para a CUT de Osasco, para um pessoal da TVT, no ABC, mas não estava dando muito certo. O custo de transação era muito grande, um monte de informação no grupo de Zap. Mesmo depois, com o Google Forms, não era fácil fazer o pedido. Eram muitas horas para processos que hoje são quase automatizados.

Mas o mais determinante, eu acho que é a transição da companheirada, que vendia para o programa. Imagina, cinco mil pés de alface no ano para o PAA. Quarenta agricultores. Essa transição deles para o mercado direto envolve mexer melhor no celular. Eles não tinham Zap ainda, gente ligava para os produtores. Às vezes alguém esquecia algum item que tinha que mandar, aí a gente precisava ligar para cobrar.

Hoje a gente consegue mapear e pedir com uma certa frequência, é um processo consolidado, a companheirada entrega, a qualidade melhorou muito. Antes a qualidade era muito variável.

Atualmente, quantas pessoas estão envolvidas com a Cooperativa Terra e Liberdade?

Hoje a gente tem um núcleo duro de quatro pessoas, incluindo eu, tocando a cooperativa. Tem também mais uma companheira que já esteve mais envolvida e hoje segue apenas cuidando do site. E tem mais uns seis ou sete aliados e aliadas que ajudam na montagem e nas entregas.

Lucca Pérez, de vermelho, durante reunião em assentamento do MST. Foto: arquivo pessoal.

Como se formou a área geográfica de atuação da cooperativa? Seguiu algum critério prévio, foi uma questão de custo operacional, ou de disponibilidade de companheiros?

Na zona norte começou com a feira do SESC Santana. Então começaram a articular um grupo de consumo, que hoje chega na periferia, bem no extremo norte. Eles pegam também a produção das mulheres de lá, que fazem pão, sabonete, tem toda uma rede de economia solidária que foi se criando a partir da feira no SESC, com pessoas engajadas. Então começou a ter rota para a zona norte.

Para a Vila Mariana, foram duas pessoas com história familiar de militância que queriam fortalecer o movimento. Quando começou na Vila Mariana, a gente já tava mais maduro, então a gente construiu de uma forma melhor. Na zona leste tinha um pessoal do teatro, antes de a gente começar a fazer entregas no centro a gente já chegava na zona leste por meio desse pessoal. Tem também uma cooperada em Ermelino Matarazzo que foi se organizando e criou um grupo de consumo. No ABC tem uma galera do PSOL ecossocialista que conhecia o MST, porque lá tem o núcleo urbano do MST Carlos Marighella.

Tem mais dois grupos nascendo. Um no Ipiranga, onde entregamos junto com o de Vila Mariana. E o outro é do SINDEMA, o sindicado dos servidores de Diadema, que tem uns quatro meses. Então são sete agora. Talvez Diadema e Ipiranga ainda não sejam grupos de consumo consolidados. Alguns grupos começaram assim, com uma pessoa puxando e depois constituindo um coletivo.

O preço pago aos produtores é definido por eles mesmos? É muito influenciado pelos preços de mercado? Como vocês pensam esse aspecto?

É influenciado por preços de mercado sim, mas não tão diretamente. A gente não quer cobrar um preço tão caro dos consumidores. Mas a gente tem os custos de gasolina, manutenção de carro, algumas ajudas de custo.

Tem mecanismos de mercado, porque a gente vive numa sociedade da produção do valor, não estamos fora dela. Mas não é um preço de mercado de atravessador, por exemplo. A gente começou pagando um preço negociado e depois foi subindo de forma negociada.

A gente tem uma lista de preços, a gente tenta padronizar. Óbvio que se é um produto muito lindo, a gente abre exceções, mas depois isso dá um trabalho enorme na planilha, porque sai do que a gente conseguiu avançar em termos de automatização da planilha, e ainda pode dar problema.

Mas dá para chegar no consumidor por um preço justo. Tem um monte de gastos no meio, como gasolina, pedágio, manutenção, servidor do site, sacolinha, perdas, etc. Além disso a gente também serve nosso caixa de microcrédito. Muitas vezes emprestamos para a companheirada que precisa, para compra de mudas, por exemplo.

Atualmente, se não existisse esse trabalho feito pela cooperativa, os produtores teriam alguma alternativa de escoamento da sua produção? Nesse meio de tempo mudou alguma coisa nas condições que eles encontram no mercado?

Voltou a ter política pública de compra institucional, então mudou sim. E alguns se profissionalizaram mais e conseguem hoje tocar uma feira direta, se precisar, e a gente tem incentivado muitos a fazerem isso. A gente tem um grupo [de Whatsapp] de feiras com vários produtores, vários assentados e acampados que hoje dividem tarefas nas feiras. Tem mais gente dos territórios nesse grupo, para pensar junto as feiras, dividir tarefas e por vezes fazer a logística.

Por exemplo, tem um casal do [assentamento] Dom Pedro, eles melhoraram muito a qualidade do processo. Fazem beneficiados de mandioca, mandioqueijo, nhoque, carne de jaca. Tem também uma companheira do [assentamento] Dom Tomás que faz pão, carne de jaca. Teve inovação, tem produtos que não havia antes, muito puxados por ter esse mercado. Hoje essa companheira é uma das maiores produtoras, e sem a cooperativa ela não teria esse mercado.

E de que forma a cooperativa ajudou nesse processo de profissionalização desses produtores e produtoras?

O trabalho com a cooperativa ajudou muito, porque a gente vai dando os retornos e falando: “precisa ter rótulo”, “precisa data de validade”, “essa embalagem rasga muito fácil”. E ao mesmo tempo a gente nunca fala “nunca mais vou pegar de você”. Isso não. A gente chega e fala “companheira, a gente quer que isso vá para frente, e para ir para frente precisa melhorar nisso e nisso”. É chato às vezes o trabalho de discutir qualidade, mas a gente faz isso com o carinho e amor que a gente consegue. Nesse mercado dos grupos de consumo tem gente que topa experimentar, que se encontrar um problema em um produto, não vai sair xingando.

Sim, um outro tipo de relação.

Acho que é uma relação que tem margem. Nem todo mundo vai entrar nisso, porque a correria é bruta, mas existe margem para os laços afetivos. Todos os grupos de consumo, tirando esses dois mais recentes, em algum momento já visitaram os territórios. Olharam no olho das pessoas e conheceram, “ah, essa é a Sheila que faz o nhoque!”. É uma relação muito menos mercantilizada e muito mais focada numa troca econômica com sentido de valores de uso, e não de valor por valor. Estou comendo um alimento sem veneno, produzido por pessoas que estão na luta.

Vamos às reuniões dos grupos de consumo e construímos as visitas deles aos espaços, pelo menos uma vez por semestre. É um trabalho de formação, de construção desses laços, desse vínculo menos mercantilizado. Focado no valor de uso, na política e no afeto, e não na mercadoria. É um alimento sem veneno, produzido por uma pessoa. Quando a gente manda a lista no grupo de consumo, está escrito lá, “nhoque da Sheila, do Dom Pedro”, “licor da Rosângela, do Irmã Alberta”, “mel do Severino, do Dom Tomás”. Aí a pessoa um dia vai lá e conhece a Sheila. É uma relação muito diferente.

Também tem um ponto, e é isso que eu tenho tentado estudar um pouco. Para a transição agroecológica, você tem uma margem de manobra muito maior do produtor sobre sua produção, óbvio que dialogando com o consumidor. Não é cliente-rei do mercado tradicional, mas também não é produtor-rei, tipo “você vai pegar o meu almeirão sim, porque eu produzi bem, está bonito e você vai comer almeirão”. Não pode ser assim.

Como é um modelo de cesta fechada e muita gente que compra por ser do movimento, é muito diferente de um contrato, seja de mercado institucional ou de mercado privado. Imagine, “quero trezentos quilos de banana, neste e naquele parâmetro”. A política pública tem critério de qualidade também, tem parâmetros de tamanho. Então neste tipo de relação você também amplia a margem de manobra do produtor sobre o seu trabalho. São graus de desmercantilização.

Porque ele pode produzir para venda, sim, mas é uma venda que não tem que seguir parâmetros a priori, que vão subsumindo o trabalho. A agricultura familiar fornece frango para a Sadia. Mas aí você vai ver o contrato da Sadia, ele pauta ritmo e intensidade de trabalho, insumos, critérios de qualidade, é como se fosse um terceirizado, ou mesmo um contratado. Você está controlando o trabalho daquele produtor familiar. Já no grupo de consumo, é um estágio em que ele controla o próprio trabalho num nível muito alto, frente às possibilidades de uma produção para venda. Isso aparece no desenho do canteiro, na escolha do que vai ser plantado ou não.

Essa ideia de “graus de desmercantilização” é muito interessante!

É uma outra relação com o trabalho. Ele escolhe plantar a acelga dele e sabe que os consumidores dele vão testar. Talvez ninguém goste de acelga e ele tenha que mudar. Mas ele não vai ter que mudar para seguir um contrato só de alface e pagar uma multa. Certo, não pode acelga, mas eu posso plantar trezentas outras coisas, entende? Isso abre possibilidades para um outro tipo de relação com o trabalho, que é o trabalho agroecológico, uma relação do sujeito com o seu fazer e na mediação com a natureza. Um trabalho com possibilidades emancipatórias e muito menos determinações alienantes.

Estou indo para uma discussão abstrata, que é a discussão da minha pesquisa, mas é uma outra relação com o seu fazer e com a árvore que vai dar o fruto para o tucano, com o canteiro e com a formiga que come o canteiro. Esse tipo de consumo abre muito mais margem para avançar na agroecologia.

Existe interesse da cooperativa em aumentar sua operação, seja em volume num mesmo território, seja ampliando sua área de abrangência? Quais seriam as limitações a serem enfrentadas? E até onde vocês avaliam que seria adequado chegar, em termos desse crescimento de abrangência ou de volume?

Existe, sim, o desejo de crescer em escala. Pode envolver o aumento de abrangência, mas não necessariamente. A gente precisa crescer em escala, antes de mais nada. Por que?

Poucos agricultores vivem só da entrega para a cooperativa, talvez no máximo uns vinte, dos sessenta com quem a gente dialoga. Eles vivem de outras coisas também. Muitas vezes, é autoconsumo e aposentadoria. É uma base envelhecida. Às vezes a gente é a única pessoa que comercializa a produção deles. Não é isso que mantém a reprodução da vida deles. Isso também ajuda em graus de desmercantilização dos canteiros.

Mas a gente também quer ser uma alternativa para o pessoal em idade ativa, mais jovem. E aí, quanto mais relevante você se torna para essas pessoas, mais sentido faz. Se a gente for pegar dez alfaces de cada um, a galera vai plantar dez alfaces. Mas se a gente garante, “pode plantar trezentas, que a gente vai pegar trezentas”, muitas pessoas vão plantar trezentas. E algumas famílias mais jovens, que estão em outra condição, outro momento de vida, precisam disso. E a gente não consegue propiciar isso porque nossa escala não é tão grande ainda. A gente quer que todas as famílias possam viver bem nesse tipo de produção.

Então é crescendo que a gente pode crescer. É meio que um círculo virtuoso. A relevância da escala torna factível a gente poder pedir para a galera plantar mais. Porque se a gente é só um complemento de renda, o que eles vão fazer se pedirmos para plantarem mais? Por isso também demorou tanto tempo para a gente chegar onde está. E isso é uma potência e um obstáculo ao mesmo tempo, porque é uma escadinha. Você sobe um degrau na comercialização, você consegue puxar na produção, mas se você não puxa, ele te puxa para baixo de novo. Você tem que subir um degrau aqui e outro ali. E se não sobe rápido o outro, aquele que você não subiu te puxa para baixo.

Então a gente tem esse trabalho de estar nos territórios, ajudar a planejar a produção, se mostrar presente, afetivamente presente. Isso não é fácil, porque é muita coisa. E todos nós temos outros trabalhos além deste. A gente precisaria liberar umas três pessoas, numa estrutura que possa só fazer isso. Senão perde muita qualidade, não dá para ter processos claros, fazer um trabalho de base melhor. Então precisa crescer para poder profissionalizar, para poder crescer mais.

Mas aí tem um limite, não é entrar num jogo de crescer por crescer. Acho que o limite é a produção que companheirada consegue entregar vivendo bem. Passou desse limite, não precisa.

Tem que chegar num ponto em que a gente tenha um capital de giro, tenha salário para pelo menos três pessoas, para que elas tenham quarenta horas por semana para fazer só isso se quiserem e não precisem correr atrás de outras coisas. E para fazer com qualidade, com afeto com a companheirada, sem pressa. Avançamos bastante nisso, mas ainda tem muitos problemas.

Com essa verba, daria para levar a mais lugares a bandeira desse trabalho de base urbano, a ponte campo-cidade. Daria para mostrar a produção do MST, mostrar na maior cidade do Brasil que o MST dá certo. Consolidar mais alianças com os movimentos da cidade também. Precisa crescer para chegar nisso. Crescer para que jovens que estão nos assentamentos possam produzir sua agrofloresta tendo saída certa. Então não é crescer por crescer.

Esses produtores e produtoras têm uma margem de crescimento da produção?

Têm! Eu não falei tanto de obstáculos, mas tem um obstáculo muito complicado, que é a infraestrutura. Água, por exemplo. No Dom Tomás falta muita água. O poço queima, a prefeitura não conserta, aí a gente empresta dinheiro para consertar a bomba do poço. No Dom Pedro falta água também. Menos, porque lá tem o lago, ajuda bem, mas tem lugares em que não chega. No Irmã Alberta nem se fala. No Irmã Alberta falta tudo: água, luz. Então infraestrutura é um obstáculo complicado.

E força de trabalho?

Não é o principal obstáculo agora. Se botar mais força humana sem aumentar a infraestrutura, vai dar mais problema do que resolver. Quando tiver muita água no Dom Tomás e no Irmã Alberta, talvez aí a força de trabalho vire um problema. Mas aí já vai ter vários outros problemas resolvidos. Água é o principal problema.

Outra coisa são os recursos que reduzem a penosidade do trabalho rural, como tratorito, principalmente para o pessoal acima de sessenta, setenta anos. E ter não só água, mas também sistema de irrigação: é bomba, mangueira, cano.

Outro obstáculo é a falta de ATER [assistência técnica e extensão rural]. Já tivemos, por poucos períodos, uma ótima ATER, antes da pandemia. ATER é pensar o todo: o pulgão, a fruta, o comércio. No Irmã Alberta, agora está tendo ATER, a gente tem uns aliados que fazem o processo, mas precisava ter um esquema mais estruturado, um programa estatal. No Dom Tomás o ITESP faz uma coisa ou outra, principalmente para turismo rural, mas nada para produção. No Dom Pedro não tem ATER há muitos anos. No Irmã Alberta começou a ter por um programa do Sampa+Rural há uns três meses.

O movimento tem uma frente ou um setor de captação de recursos, por exemplo para obter recursos governamentais? Para comprar tratorito, por exemplo.

Sim. A gente comprou um tratorito para o Irmã Alberta, coletivo. Foi muito usado. Mas precisaria ter dez, o tratorito é pequeno. O cobertor é sempre curto, e aí a mobilização no estado de São Paulo fica na mão da direção estadual. A gente não acessa verba de emenda para nós, por exemplo. A gente faz baião de dois no Al Janiah para conseguir dinheiro! Trabalham quinze pessoas, por três dias, para conseguir mil reais para a regional. A nossa regional é pobre, sem grana. Base pequena, três comunas da terra minúsculas. A cooperativa dá uma vida para a regional que ela não teria sem a cooperativa.

Esta cooperativa é a única na regional?

Sim.

E no estado, tem mais?

Tem cooperativas fortes no estado. A Coopavi, em Itapeva, tem feijão, soja orgânica, carne de porco, pão. A Cooplantas, das mulheres, com ervas medicinais. A Coapar, em Andradina, produz leite, queijo, manteiga, tem agroindústria. É outro rolê. A regional Grande São Paulo vem de um esquema de pessoas em situação de rua, não camponesa ou ex-camponesa, ou situação urbana favelada. É muito específica a realidade aqui.

classificação NOVA

Quando se buscam critérios racionais para escolher alimentos, é comum que consumidores consultem as informações nutricionais. Por muitos anos, a população tem sido orientada a fazer isso, tanto na educação formal quanto em veículos de comunicação que falam do assunto. O modelo da pirâmide alimentar, por exemplo, ensina a priorizar certos tipos de nutrientes e evitar outros.

Acontece que na época em que essas orientações começaram a ser difundidas, no início do século XX, era comum preparar as refeições com alimentos naturais. A partir dos anos 1980, com o rápido desenvolvimento da indústria de alimentos, uma enorme variedade de produtos alimentícios embalados começou a ser oferecida às pessoas, com o apoio de propaganda que apresenta esses produtos como práticos, saborosos e divertidos. Muitos desses produtos são ultraprocessados. O resultado é que hoje vivemos uma pandemia de doenças não transmissíveis relacionadas aos padrões alimentares adotados em muitas sociedades industrializadas.

Segundo o critério das informações nutricionais, os produtos ultraprocessados podem muitas vezes parecer interessantes. Por meio de aditivos químicos colocados nas composições, a indústria define as quantidades de nutrientes que vão aparecer nas embalagens, levando o consumidor a achar que está diante de um produto saudável.

Há pouco mais de dez anos, um grupo de pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo tem chamado a atenção para um outro fator que precisa ser levado em conta na hora de escolher os alimentos: o nível de processamento. Surge assim a classificação NOVA.

Essa classificação permite distinguir entre um alimento natural, preparado com ingredientes frescos e técnicas simples, e um produto comestível criado a partir de matérias primas industriais e aditivos químicos, ainda que este alegue ser saudável e apresente uma tabela nutricional que parece adequada do ponto de vista quantitativo.

Foto: Tânia Rêgo – EBC / Fotos Públicas

A proposta foi publicada pela primeira vez em 2009, em um artigo na revista científica Public Health Nutrition. Esse modelo inicial recebeu aperfeiçoamentos e ficou consolidado com quatro categorias, sendo amplamente adotado hoje como referência em publicações e orientações relacionadas à alimentação saudável. Apresentamos a seguir as descrições e exemplos dos quatro grupos de alimentos da classificação NOVA.

1 – Alimentos in natura ou minimamente processados

No primeiro grupo da NOVA estão as partes comestíveis de plantas, animais, fungos, algas e também a água. Como o nome diz, esta categoria tolera técnicas simples de processamento, como fervura, pasteurização, secagem, congelamento, torrefação, trituração, moagem, embalagem a vácuo, fermentação não alcoólica. Estes processos não adicionam sal, açúcar e gorduras aos alimentos, tendo a simples finalidade de facilitar ou diversificar o preparo, melhorar a estocagem ou estender a durabilidade dos produtos.

Exemplos de produtos do grupo 1: frutas, verduras, legumes, raízes frescas, ervas e especiarias; grãos como arroz, feijão, lentilha e milho; cogumelos, carnes, aves, peixes e frutos do mar; ovos e leite; farinha, sêmola ou flocos de trigo, milho, aveia ou mandioca; sementes oleaginosas (sem adição de sal ou açúcar); iogurte natural (sem adição de açúcar ou adoçantes); chá e café.

Esta categoria tolera também alguns aditivos, usados para preservar as propriedades originais dos alimentos (antioxidantes em legumes embalados a vácuo) ou repor nutrientes perdidos durante o processamento mínimo (ácido fólico em farinhas).

2 – Ingredientes culinários processados

Em um segundo grupo da classificação NOVA ficam produtos obtidos da natureza ou extraídos diretamente de alimentos in natura por processos como refino, prensagem, trituração, moagem e secagem por pulverização. São produtos usados nas preparações culinárias e raramente são consumidos sozinhos.

Alguns exemplos: sal, açúcar, mel, melaço, amidos, óleos vegetais, azeite, vinagre, manteiga, banha. Estes produtos podem conter aditivos como antioxidantes, anti-umectantes e conservantes, de forma a preservar suas propriedades originais e evitar a proliferação de microorganismos.

3 – Alimentos processados

Neste terceiro grupo estão os alimentos obtidos pela adição de substâncias do grupo 2 aos alimentos do grupo 1. Os processos aqui incluem diversos métodos de cozimento, embalagem, preservação e fermentação, com a finalidade de modificar as qualidades sensoriais dos alimentos e aumentar sua durabilidade.

No grupo 3 estão nozes e sementes salgadas ou açucaradas; queijos e pães frescos não embalados industrialmente; frutas em calda e geleias; carnes salgadas, curadas ou defumadas; peixes enlatados; legumes enlatados ou engarrafados. Entre as bebidas, inclui aquelas produzidas pela fermentação de alimentos do grupo 1, como vinho, cerveja e cidra.

4 – Alimentos ultraprocessados

E no quarto grupo estão produtos preparados a partir de vários ingredientes, muitos deles de uso exclusivamente industrial, sendo que poucos ou mesmo nenhum de seus componentes são alimentos do grupo 1. Alguns ingredientes são extraídos diretamente de alimentos, como lactose, soro de leite, glúten e caseína. Outros são obtidos a partir de um processamento posterior de constituintes de alimentos: óleos hidrogenados, xarope de milho rico em frutose, proteínas hidrolisadas, proteína isolada de soja, maltodextrina, açúcar invertido.

Produtos deste grupo usam aditivos que buscam imitar as qualidades sensoriais (sabor, cheiro, cor, etc.) de alimentos do grupo 1 ou têm a finalidade de disfarçar certas qualidades sensoriais indesejáveis dessas formulações, resultando em algo que as pessoas consigam consumir. Exemplos de aditivos encontrados apenas em ultraprocessados: pigmentos e corantes, estabilizadores de cor, aromatizantes, realçadores de sabor, adoçantes químicos, emulsificantes, sequestrantes, umectantes, espessantes, antiaglomerantes, agentes antiespuma. A fabricação dos produtos do grupo 4 envolve diversas técnicas de processamento, algumas delas sem equivalentes caseiros e possíveis apenas com equipamentos industriais.

Ultraprocessados estão disponíveis trivialmente nos mercados. A lista é grande: pães industrializados; bolachas ou salgadinhos “de pacote”; cereais matinais; chocolates e sorvetes; barras e bebidas energéticas; margarinas e pastas para passar no pão; salsichas, hambúrgueres e outros produtos de carne reconstituída; nuggets de aves e peixes; extratos de carne e frango; sopas e massas instantâneas; refeições prontas para aquecer; produtos “para emagrecimento”, como certos preparados em pó oferecidos como substitutos de refeições; leites de transição, fórmulas infantis e outros produtos para bebês; bebidas carbonatadas; bebidas ou iogurtes com sabor de fruta; achocolatados e bebidas lácteas ou a base de soja; misturas para bolo.

Estes alimentos apresentam algumas características marcantes: têm sabor acentuado, de forma a aumentar o prazer da degustação; suas embalagens são elaboradas para chamar a atenção do consumidor e favorecer a compra por impulso, sobretudo quando está com fome; são apoiados por campanhas publicitárias agressivas, que influenciam as decisões de compra atuando por fora do campo racional. Além de tudo isso, é preciso também lembrar que muitos desses fabricantes pertencem a corporações transnacionais, que obtêm lucros enormes com sua produção e comercialização.

Por suas características, os produtos desta categoria induzem hábitos de alimentação bem pouco saudáveis, como ficar beliscando entre as refeições ou mesmo substituí-las inteiramente. Nas condições da vida urbana de nosso tempo, esses comestíveis acabam parecendo opções interessantes, pois as pessoas podem consumi-los enquanto trabalham, se locomovem ou assistem alguma coisa, seja em telas grandes ou pequenas. Comer passa a ser um gesto mecânico, meramente funcional, muitas vezes em resposta automática a estímulos externos, como um anúncio ou alguém comendo perto. Com isso, além de serem pouco nutritivos e fazerem mal, esses produtos criam ou reforçam o hábito de comer solitariamente. O caráter de sociabilidade do momento das refeições, componente importante da saúde mental das pessoas, acaba completamente abandonado.

A partir das definições propostas pela classificação NOVA, o grau de processamento dos alimentos passa a ser uma importante referência na escolha das formas de se nutrir. O Guia Alimentar para a População Brasileira orienta que se dê preferência a alimentos in natura, insistindo para que as pessoas evitem ou, se possível, eliminem os produtos ultraprocessados de suas dietas.

Essa classificação permite também observar padrões de alimentação em populações, usando critérios qualitativos. Exemplo disso é o Atlas das situações alimentares no Brasil, que mostra, ao longo dos últimos anos, uma preocupante diminuição dos alimentos in natura e o aumento dos ultraprocessados no consumo das famílias.

A classificação NOVA tem servido como base para diversos estudos científicos no Brasil e em países como Chile, Canadá, EUA, Reino Unido, Nova Zelândia e Suécia, correlacionando o consumo de ultraprocessados ao aumento de diversas doenças não transmissíveis. O mesmo grupo de cientistas que propôs a NOVA lançou recentemente no Brasil um estudo que compila grande quantidade de pesquisas acadêmicas demonstrando os males que os ultraprocessados causam à saúde humana e ao meio ambiente.

Quando avaliamos os alimentos conforme seu grau de processamento, fica mais fácil distinguir entre comida de verdade e esses comestíveis que a indústria nos oferece, produtos que muitas vezes nem merecem ser chamados de alimentos. Comer esse tipo de produto, seja de forma esporádica ou, muito pior, diariamente, é um hábito artificial, que foi naturalizado por meio de propaganda constante.

Com a percepção voltada ao paladar e ao tipo de sensação corporal que os alimentos trazem, podemos recuperar nossa preferência natural pela comida de verdade. Só ela pode trazer a energia vital que nutre e fortalece nossos corpos. Alimentar-se é, sim, um ato político e, antes disso, é uma prática diária de saúde.

ultraprocessados

Certos itens vendidos nos mercados deveriam usar a expressão “produto comestível” em suas embalagens, em vez da palavra “alimento”. Esses materiais podem ser mastigados e engolidos, têm aroma e sabor que tentam imitar comida, mas não são exatamente alimentos. Estamos falando dos ultraprocessados.

Muita gente já evita o consumo desses produtos, por saber o quanto eles fazem mal. Mas a grande maioria das pessoas ainda consome isso normalmente, sem fazer ideia do que estão comendo.

No início do século XX, as doenças infecciosas eram a maior causa de morte na população mundial. Atualmente, são as doenças crônicas não transmissíveis que mais matam gente. Esse tipo de doença muitas vezes está relacionado ao modo de vida. Enquanto a melhoria das condições sanitárias e o desenvolvimento das tecnologias de imunização afastaram a ameaça das doenças infecciosas, hoje são nossas escolhas como sociedade que estão nos matando.

Para ajudar a nortear essas escolhas, o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde – NUPENS e a Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis, ambos ligados à Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, produziram o Diálogo sobre Ultraprocessados: soluções para sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis. O documento reúne uma enorme quantidade de evidências científicas que demonstram os males que os ultraprocessados causam à saúde.

As evidências apresentadas são estudos realizados por cientistas de diversos países. O documento traz uma longa seção de referencias, com as pesquisas que demonstraram os danos causados pelos ultraprocessados, para que o público leitor possa conhecê-las diretamente, se quiser. Bom lembrar que a seleção desses artigos foi feita por pesquisadores de uma faculdade de saúde pública, que sabem distinguir pesquisas bem fundamentadas daquelas menos válidas devido a problemas metodológicos.

Imagem: divulgação

Alguns dos males causados pelos ultraprocessados são velhos conhecidos: ganho de peso, obesidade, síndrome metabólica, diabetes, hipertensão e outras doenças cardiovasculares. O documento alerta também para uma série de doenças cuja relação com o consumo de ultraprocessados é bem menos trivial: depressão, câncer de mama, cânceres em geral, asma em crianças, dislipidemias, disfunções renais e mortes prematuras.

Mas por que os ultraprocessados fazem tão mal?

É preciso entender que os problemas dos ultraprocessados vão muito além do excesso de açúcar, sódio ou gorduras saturadas. Além desses excessos e da presença de outras substâncias nocivas, como certos conservantes, existe o fato de haver muito pouco ou nada de nutritivo ali. É aqui que aparece o sentido do termo ‘ultraprocessado’. As técnicas usadas em sua produção desconfiguram completamente as matérias-primas, destruindo sua matriz alimentar. Ou seja, mesmo que um refresco de caixinha alegue que tem certa porcentagem de suco natural de laranja, nada resta ali dos nutrientes da fruta.

É muito comum também que esses comestíveis não tenham absolutamente nada daquilo que dizem ser. Por exemplo, em um doce sabor chocolate (note a sutileza no uso da palavra ‘sabor’, de forma a não comprometer a empresa com as leis de proteção do consumidor), é bem provável que não haja ali nenhuma molécula que já fez parte de um pé de cacau.

Os aditivos alimentares usados para compor o aroma, o sabor, a textura e a aparência desses produtos prejudicam a biota intestinal, desregulando o sistema digestório e afetando a absorção de nutrientes e a saúde dos tecidos. Os ultraprocessados têm também compostos químicos que desregulam o sistema endócrino, provocando mudanças metabólicas no organismo.

As altas quantidades de açúcar, saborizantes e gorduras saturadas fazem com que esses produtos tenham sabor muito acentuado, estimulando seu consumo excessivo. O desenho das embalagens, a publicidade (ainda mais grave no caso daquela voltada para crianças) e as técnicas promocionais de ponto de venda atuam no nível emocional, de forma muitas vezes inconsciente, estimulando o consumo desses produtos e fazendo o consumidor esquecer daquilo que realmente alimenta.

E é sempre bom lembrar: as alegações nutricionais presentes nas embalagens costumam ser completamente enganosas, iludindo o consumidor, fazendo-o pensar que está se alimentando quando, na verdade, está apenas enchendo a barriga.

As conclusões podem ser resumidas numa frase que aparece com destaque no documento: “Não há uma quantidade segura para a ingestão de produtos alimentícios ultraprocessados”. Ou seja, aquela ideia de que ‘só um pouquinho não vai fazer mal’ não se aplica a esses produtos. Exatamente igual ao cigarro.

Como se isso tudo não bastasse, os ultraprocessados também fazem mal ao meio ambiente. Para além das consequências estritamente individuais do consumo desse tipo de produto, entramos em um campo que diz respeito aos impactos coletivos de um sistema alimentar no qual esses comestíveis têm grande presença. O documento aponta três impactos principais: mudanças na forma de uso da terra e diminuição da biodiversidade; aumento no uso de embalagens e geração de resíduos sólidos; aumento nas emissões de gases do efeito estufa.

No sistema produtivo dos ultraprocessados, a função da terra não é gerar alimentos, mas matérias-primas para a produção de comestíveis. Glucose, maltose, maltodextrina, frutose e dextrose são alguns exemplos de derivados do milho amplamente utilizados nessa indústria. A produção em larga escala do milho e de outras commodities agrícolas prioriza variedades de alta produtividade, geralmente com modificações genéticas. Isso leva ao abandono de outras variedades, que podem até mesmo acabar extintas. A monocultura intensiva é peça essencial de um sistema alimentar em que os ultraprocessados são amplamente consumidos.

O aumento do uso de embalagens associado ao consumo desses produtos dispensa maiores explicações. Pense, por exemplo, naquelas bolachas que vêm agrupadas em pacotinhos de plástico que, por sua vez, vêm dentro de outras embalagens de plástico. Ou naquele lanche que sai da chapa e é colocado dentro de uma embalagem elaborada que, poucos segundos depois, será aberta, amassada e jogada no lixo. É preciso também lembrar dos resíduos químicos gerados pela indústria durante a produção dos materiais dessas embalagens.

O documento aponta estudos de diversos países que associam partes consideráveis das emissões de gases do efeito estufa à produção, armazenamento e transporte dos ultraprocessados. No Brasil, vem sendo observado um preocupante incremento na pegada de carbono relacionada a esses produtos, cuja participação na dieta dos brasileiros aumentou em 340% nos últimos 30 anos.

Para lidar com essa tendência mórbida, o documento propõe diversas soluções, entre as quais: ampla utilização de guias alimentares (área na qual o Brasil é pioneiro), regulação da rotulagem e publicidade desses produtos, restrição da oferta em ambientes escolares, aumento da tributação (para aumentar o preço e diminuir o consumo) aliado ao incentivo à escolha de produtos saudáveis (in natura ou minimamente processados).

A produção e o consumo de ultraprocessados estão totalmente integrados a um sistema alimentar baseado em concentração de capital, agricultura de larga escala, uso intensivo de pesticidas e fertilizantes químicos, grandes distâncias entre produção e consumo, domínio de grandes redes de distribuição, desatenção com o ato de se alimentar. As corporações que monopolizam a distribuição e o varejo conseguem controlar a disponibilidade e o preço desse tipo de produto, fazendo-os estarem em todos os lugares e muitas vezes a um preço aparentemente baixo se comparados a alternativas mais saudáveis.

A demanda por ultraprocessados é mantida artificialmente por efeito da publicidade e da convivência com pessoas que os consomem, dando a impressão de que é normal consumi-los. Em uma época já passada, esses comestíveis foram muito associados a praticidade e modernidade. Hoje, vai ficando cada vez mais evidente a sua relação com as doenças que mais matam pessoas. Felizmente temos alternativas. Ao fazermos melhores escolhas, estamos nutrindo nosso corpo e fortalecendo sistemas alimentares mais saudáveis, justos e humanos.

nosso sonho

Durante quatro dias, a IV Feira Nacional da Reforma Agrária, organizada pelo MST, concretizou o sonho de muitos dos que lutam pela soberania alimentar no Brasil. Nesse sonho, além do acesso a uma grande abundância de alimentos produzidos sem veneno, está a possibilidade de comprá-los diretamente de seus produtores.

Na compra direta, a quantia paga pelos consumidores servirá integralmente para remunerar de forma digna esse trabalho tão essencial que é produzir alimentos, além de pagar os custos de produção e transporte. Esses valores têm ainda a função de apoiar a importante missão do movimento como um todo, que é ocupar terras improdutivas e lutar pelo direito de plantar para alimentar pessoas.

A abundância material e humana que havia ali traz sensação de acolhimento e segurança. Poder estar perto das pessoas que produzem os alimentos que consumimos é uma experiência enriquecedora, pelas trocas que possibilita. Para os produtores, suponho que o contato direto com aqueles que se beneficiam do resultado de seu trabalho gere semelhante sensação de segurança. Garantir o escoamento da produção é essencial para a sobrevivência de qualquer unidade produtiva, mais ainda quando ela é pouco capitalizada, como é o caso daquelas pequenas propriedades.

Porém, nos dias em que estive na Feira, ao mesmo tempo em que eu olhava todos aqueles alimentos sobre as bancas dos produtores, ficava me perguntando: e quando a feira acabar? Como é possível reproduzir pelo resto do ano toda essa proximidade, que garante aos agricultores o escoamento de sua produção? A resposta também emergiu em meio a toda aquela abundância. Parece se tratar simplesmente de conexões.

Foto: Dionizio Bueno

Redes de distribuição de alimentos são nada mais do que isso: conexões entre produtores, consumidores e, quando não há alternativas, intermediários. O poder das conexões é tão grande que a possibilidade de controlá-las dá a certos agentes altamente capitalizados a possibilidade de determinar o preço de compra do lado da produção e o preço de venda do lado do consumo.

Portanto, construir alternativas a esses esquemas estabelecidos, criando a possibilidade de acesso direto ou quase direto entre produtores e consumidores, é o caminho para a autonomia. Há muitos formatos para se criar essas conexões, e diversas experiências já existem, funcionando muito bem.

cooperativas de militantes | São grupos organizados que coletam a produção de diversos assentamentos regionais e os distribuem aos consumidores na cidade. Realizam a venda através de páginas na internet ou por meio de grupos de consumo e entregam os produtos em domicílio ou em pontos de retirada espalhados em pontos estratégicos, para que os consumidores possam economizar o custo do frete.

lojas do próprio movimento | Com lojas em diversas cidades do país, redes como o Armazém do Campo oferecem produtos da reforma agrária de diversas regionais, utilizando também a estrutura dos esquemas de distribuição mantidos pela própria militância.

pequenos entrepostos | Essas iniciativas, individuais ou de pequenos coletivos, vendem alimentos tanto da reforma agrária como de hortas urbanas e pequenos produtores na cidade e em volta dela. Verdadeiras zonas autônomas, tais espaços possibilitam o acesso a alimentos saudáveis em suas vizinhanças, algumas vezes em situação de fragilidade institucional, necessitando portanto do apoio comunitário em luta de resistência.

cooperativas de consumo | Com um formato bastante inovador no Brasil, uma cooperativa está sendo formada para gerir um mercado no qual os cooperados realizam grande parte das tarefas práticas e administrativas da loja, diminuindo sensivelmente seu custo operacional e, como consequência, o preço final para os consumidores.

grupos de compras coletivas | Há certamente centenas, senão milhares deles. Basta que uma pessoa colete os pedidos de várias famílias e realize o pedido diretamente à unidade produtora, recebendo a encomenda em sua casa, onde as pessoas do grupo poderão retirar suas compras.

Nos próximos meses e anos, veremos iniciativas como estas crescendo e se proliferando. Mas para consolidar o sonho do amplo acesso aos alimentos saudáveis produzidos pela reforma agrária, é preciso que iniciativas como essas entrem nas vidas de cada vez mais pessoas, e isso pode exigir algumas adaptações, nas duas pontas do sistema.

Foto: Dionizio Bueno

Do lado do consumidor, é preciso planejar o abastecimento da casa. No caso das compras coletivas, por exemplo, os pedidos são abertos somente em certas datas. Concentrando aí as quantidades para um período mais longo (o que naturalmente só é possível no caso de produtos menos perecíveis), todos ajudam a compor um pedido de maior volume, facilitando a negociação de preço com o produtor e ajudando a diluir os custos de frete.

Esse planejamento vale também para produtos mais perecíveis, de compra mais frequente. Por enquanto, as lojas que oferecem produtos orgânicos da reforma agrária existem apenas em certos locais da cidade. As compras de produtos in natura podem ser feitas semanalmente ou até quinzenalmente, evitando demandas de última hora que acabam sendo feitas em qualquer mercado mais próximo.

É muito importante também entender que um padrão de alimentação mais saudável estará sempre sujeito a sazonalidades. É natural que certos produtos não estejam disponíveis em todos os lugares durante o ano todo.

Por meio de seus regimes industriais de produção de alimentos, o sistema alimentar baseado em grandes redes de distribuição e varejo cria artificialmente a possibilidade de ter quase tudo durante todo o ano. Os alimentos são produzidos de forma intensiva em fazendas que podem estar a milhares de quilômetros da sua casa, em regiões com outro padrão climático. Crescem por meio de estimulação artificial, utilizando fertilizantes químicos, e são colhidos enquanto estão verdes, conforme seus cronogramas de linha de produção e a quantidade de pedidos recebidos pelo departamento comercial dessas indústrias agrícolas. Por fim, têm o seu amadurecimento forçado através da exposição a gás etileno obtido do petróleo.

É perfeitamente possível ter uma alimentação baseada em produtos da época, tornando desnecessários esses recursos artificiais criados para viabilizar a produção de alimentos em enormes escalas, gerando grandes lucros para uns poucos, além de mimar um consumidor que quer ter de tudo agora.

Imagem: divulgação

Do lado dos produtores, um pequeno esforço de organização pode contribuir muito para o florescimento dessas redes de distribuição. Só eles podem ter a visão de todos os pedidos que estão recebendo, com suas respectivas datas, destinos e quantidades. Uma boa organização das rotas pode fazer o custo do frete ser dividido entre vários pedidos, diminuindo para todos os custos de transporte e fazendo com que os produtos cheguem a um preço mais baixo para os consumidores, beneficiando as vendas.

E com relação às entidades e grupos que organizam essas iniciativas, cabe ter a inteligência coletiva de entender que o espalhamento e a capilarização desse novo sistema alimentar são benéficos para toda a rede. Seria totalmente fora de propósito enxergar novas iniciativas semelhantes como concorrência. Claro que é preciso cuidado para que a atuação de iniciativas mais capitalizadas ou profissionalizadas não resulte na eliminação de outras que já se encontravam em funcionamento. Por isso é essencial manter o contato e o diálogo entre essas organizações, formando uma teia de cooperação.

Se lutamos para construir esse outro mundo com o qual sempre sonhamos, mas não formos capazes de nos libertar do paradigma da competição, em que o ganho de um implica a perda de outro, me parece que não aprendemos nada.

Produtores e consumidores têm muito a ganhar juntos com essas novas conexões. Em seu conjunto elas estão formando uma rede de produção e distribuição de alimentos que passa ao largo dos conglomerados de logística e varejo geridos pelo grande capital, que atualmente dominam o mercado de alimentos no Brasil. Vivemos a era da retomada dos circuitos curtos. Por muito tempo cultivamos nossos sonhos, hoje eles finalmente começam a florescer.

hortas comunitárias e hábitos alimentares

Uma pesquisa publicada em 2008 buscou aferir se existe relação entre o envolvimento das pessoas com hortas comunitárias e seus hábitos de alimentação, especificamente o consumo diário de frutas e verduras. Realizada em Flint, uma cidade estadunidense que em termos populacionais é comparável a Alfenas (MG) ou Vinhedo (SP), a pesquisa mediu o número médio de vezes ao dia que as pessoas consomem frutas e verduras e também a porcentagem de pessoas que consomem ao menos cinco porções desses alimentos in natura por dia, contemplando as recomendações das autoridades de saúde daquele país.

Entre os participantes da pesquisa, aqueles que têm ao menos um membro da família envolvido com horta comunitária consumiam frutas e verduras, em média, 4,4 vezes por dia, enquanto que quem não tem gente da família envolvida com essas iniciativas apresentou um consumo médio desses alimentos de 3,3 vezes por dia. No primeiro grupo, foi bem maior também o número de pessoas que consumiam ao menos cinco porções frutas e verduras por dia: 32,4%, comparado aos 17,8% entre as famílias sem envolvimento com hortas.

Ainda que a pesquisa assuma suas limitações metodológicas, afirmando que não é possível estabelecer relações de causalidade entre o trabalho em hortas comunitárias e os hábitos alimentares, os dados permitem reflexões interessantes sobre a relação das pessoas com os alimentos in natura.

O artigo apresenta uma discussão sobre as barreiras para o consumo de alimentos saudáveis. Há, em primeiro lugar, a questão da disponibilidade de alimentos frescos in natura, que é de fato um fator determinante. Localidades onde é difícil encontrar alimentos saudáveis, pois seus mercados oferecem apenas produtos industrializados, são consideradas desertos alimentares. De acordo com o artigo, esse é o caso da cidade de Flint. Importante lembrar que feiras livres não são comuns naquele país como são aqui no Brasil. Outros obstáculos apontados pelo artigo para o consumo de alimentos saudáveis seriam: os hábitos e a preferência pessoal, a qualidade do que está disponível, o custo de aquisição e o custo do transporte até o local de compra desses alimentos.

Nesses casos todos, uma horta comunitária local ajuda bastante, ao tornar possível obter alimentos naturais, pelo menos quando estão prontos para serem colhidos, a um custo baixo, que seria apenas o dos insumos para se manter a horta e do tempo alocado a esse trabalho.

Foto: Bárbara Zem

Podemos também acrescentar a dimensão relacional que se estabelece entre a pessoa e a planta por meio do envolvimento com o trabalho prático na horta. Essa vivência traz familiaridade e proximidade com esses alimentos, colocando-os dentro do universo cotidiano da pessoa. O trabalho com a horta proporciona um contato físico periódico com plantas alimentícias, o que não é pouca coisa se pensarmos que o contexto urbano oferece limitações tanto pelo cenário de concreto quanto pela rotina de vida que costuma impor. Para quem mora em apartamento, que é uma realidade para boa parte dos habitantes de grandes cidades, o cultivo de plantas alimentícias ou ornamentais é ainda mais difícil.

Para além de todos os aspectos sociais e ambientais associados a uma horta urbana, o envolvimento com iniciativas desse tipo torna possível que a pessoa tenha em sua vida, diariamente se quiser, importantes experiências dos sentidos: o cheiro das plantas, o toque na terra e nas folhas, a visão do campo verde produzindo vida, o som do vento passando pelas folhas e dos pássaros que habitam esses espaços naturais, o sabor da amostra de alimento beliscada do canteiro enquanto se trabalha.

É natural que toda essa relação afetiva com as plantas alimentícias na horta influencie os hábitos alimentares das pessoas. Além dos evidentes efeitos de fortalecimento comunitário, a convivência com vizinhos e colegas de horta reforça ainda mais a relação com os alimentos quando eles se transformam em assunto de conversas, objeto de curiosidade e fascínio, tema de novas pesquisas e explorações.

Segundo fontes citadas no artigo, foi demonstrado que o envolvimento com hortas escolares ajuda a formar nas crianças o gosto por alimentos in natura. Se as crianças forem envolvidas no trabalho nas hortas urbanas comunitárias, o potencial de criar hábitos alimentares saudáveis se multiplica para o futuro.

Hortas comunitárias têm um evidente papel na construção da autonomia e da segurança alimentar, ao mesmo tempo em que reforçam laços e fortalecem a solidariedade. Ao considerarmos seu potencial de influenciar hábitos alimentares, podemos expandir a ideia de cidade educadora também para o campo da saúde. Criam-se, assim, as bases para uma reconfiguração revolucionária dos sistemas alimentares e da própria paisagem urbana.

consea

Espaços institucionais de articulação entre o governo e a sociedade civil são essenciais para a formulação e a implementação de políticas públicas favoráveis aos interesses coletivos da sociedade. No campo da segurança alimentar e nutricional da população brasileira, esse espaço é o Consea – Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Não por acaso, o Consea foi desativado no primeiro dia de governo da pessoa que ocupou o cargo de presidente da república entre 2019 e 2022, cujo nome não merece ser pronunciado nem escrito.

A reinstalação do Consea se efetivou em 28 de fevereiro de 2023 e foi celebrada por movimentos sociais e ativistas em todo o país. Ao conhecer a relevância e a forma de funcionamento desse conselho, compreendemos melhor a importância desse retorno.

O Consea é um órgão de assessoramento imediato à Presidência da República, com competência para apresentar proposições de políticas relacionadas à segurança alimentar e nutricional e também para exercer monitoramento e controle social na execução dessas políticas. Tem caráter consultivo e atualmente integra o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan).

De seus 60 membros, dois terços são representantes da sociedade civil e um terço são ministros de Estado. Trata-se, portanto, de um espaço importantíssimo para movimentos e organizações sociais que atuam pelo aprimoramento das políticas públicas ligadas a soberania e segurança alimentar e nutricional no Brasil, colocando-os em posição de serem ouvidos diretamente pelo presidente do país.

O Consea teve importante papel na construção de diversas políticas públicas. Alguns exemplos: exigência de que 30% das aquisições do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) venha da agricultura familiar, formulação da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, elaboração do Guia Alimentar para a População Brasileira, criação do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), inclusão do direito à alimentação saudável na Constituição Federal, criação do Sisan.

Tais políticas foram determinantes para a sensível redução do número de pessoas em situação de subalimentação, tirando o Brasil do mapa da fome da ONU em 2014. Por sua atuação, o Consea obteve importante reconhecimento fora do país e já recebeu a visita de delegações internacionais que vieram conhecer o seu trabalho.

A cada quatro anos, o Consea organiza a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CNSAN), que é a instância máxima do Sisan e indica as diretrizes e prioridades da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. O encontro é precedido de conferências municipais, regionais e estaduais, nas quais são eleitos delegados e delegadas que irão participar da conferência nacional.

Histórico das CNSANs já realizadas. Adaptado de Relatório final da 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. CLIQUE PARA AMPLIAR

A última conferência que aconteceu até o momento foi a 5ª CNSAN, em novembro de 2015, em Brasília. Apenas para lembrar, em 2015 a Dilma era presidente, o golpe contra ela já estava sendo articulado mas ainda não havia sido consumado, Lula ainda não havia sido preso, o povo brasileiro ainda não tinha escolhido um fascista para presidente da república, não existia pandemia, ainda não havia 33 milhões de pessoas passando fome no país.

Entre os vários resultados da 5ª Conferência está um trabalho coletivo de escolha de prioridades dentro de um conjunto de 331 proposições trazidas das conferências estaduais. As três proposições mais votadas foram: “Garantir, ampliar e fortalecer as ações de assistência técnica e extensão rural (Ater) na promoção da inclusão produtiva das famílias em situação de pobreza extrema no meio rural, respeitando a forma dos saberes culturais dos povos e comunidades tradicionais”; “Promover o papel da agricultura familiar, camponesa e indígena como um dos elementos estruturantes das estratégias nacionais e regionais de soberania e segurança alimentar e nutricional, por meio do estímulo à produção local de alimentos baseada em modelos diversificados e de base agroecológica, em estratégias soberanas de abastecimento alimentar e em articulação com os preceitos de uma alimentação adequada e saudável”; “Implementar planos de proteção de bacias com recursos para a revitalização e renaturalização dos corpos hídricos, considerando o caráter intermunicipal e interestadual das bacias hidrográficas no momento da tomada de decisões relacionadas às políticas de recursos hídricos, sejam elas estaduais ou federais e que as ações de revitalização atuem prioritariamente nas causas de degradação das bacias hidrográficas”.

Em síntese, na avaliação conjunta dos delegados e delegadas presentes na 5ª Conferência, os três temas mais sensíveis naquele momento eram: inclusão produtiva por meio de assistência técnica, estímulo à agricultura familiar com base na agroecologia e proteção aos recursos hídricos.

No intervalo entre as CNSAN, costuma ser organizado um encontro nacional denominado CNSAN+2, com o objetivo de realizar um balanço das proposições da conferência e do estado de implementação das medidas de segurança alimentar e nutricional no país. A 5ª CNSAN+2 aconteceu em março de 2018, também em Brasília. O relatório desse encontro já identificava retrocessos no campo da segurança alimentar e nutricional, os quais, como sabemos, se aprofundariam nos anos seguintes: “a atual conjuntura de retrocessos na democracia impôs um cenário de desconstrução de direitos, precarização das relações de trabalho, aumento do desemprego, esvaziamento de políticas públicas e iminente volta do Brasil ao Mapa da Fome”.

A conferência seguinte deveria acontecer em 2019, e sua convocatória chegou a ser aprovada em novembro de 2018. Com a desativação do Consea, o encontro naturalmente não aconteceu.

Durante o período em que esteve desativado, os integrantes do Consea mantiveram-se mobilizados, junto com os Conseas estaduais e movimentos sociais de combate à fome, monitorando os movimentos do governo em relação à segurança alimentar e nutricional.

A nutricionista, pesquisadora e professora Elisabetta Recine, que presidia o Consea no momento de sua desativação, foi agora reconduzida ao cargo, junto com seus conselheiros. O gesto mostra a expectativa, por parte do atual governo e da sociedade brasileira, de que o conselho retome os trabalhos do ponto em que foram interrompidos, no início de 2019.

comensalidade

Na língua latina, o verbo ‘comer’ se expressava pela forma edere (uma palavra proparoxítona, com o acento na antepenúltima sílaba). Esse verbo era usualmente acompanhado da preposição cum, que deu origem à nossa preposição ‘com’ e traz sentidos como estar junto, simultaneidade, acompanhamento, inclusão, concomitância, suporte, vínculo, estar entre, fazer parte.

Para se referir ao ato de comer, dizia-se cum edere: ‘comer com’, ‘comer acompanhado de’, ‘estar com [alguém] enquanto se come’, já que as pessoas geralmente faziam suas refeições acompanhadas de outras. A preposição era tão frequente no uso do verbo que, ao longo dos séculos, esse uso foi se cristalizando e a preposição passou a ser percebida como parte dessa forma linguística.

Primeiramente, a forma perde a sílaba pós-tônica, passando de cume(de)re a cumere. Ocorre então a perda da vogal final, e cumer(e) vira cumer. A primeira vogal se modifica e isso leva à forma portuguesa atual ‘comer’.

Foto: Kaboompics / Pexels

Portanto, na origem latina, o nosso verbo ‘comer’ traz, de maneira implícita porém inseparável, a ideia de uma ação que se dá em coletividade. O ato de comer é um momento propício ao compartilhamento. É naturalmente uma celebração do fato de estarmos vivos, juntos e termos uma boa colheita que nos permite reproduzir a vida. Aqueles com quem dividimos a mesa são nossos comensais, são pessoas que ocupam um lugar importante em nosso dia a dia.

A ideia latina de ‘comer com’ faz parte de nossa herança linguística, muitas vezes sem que nos demos conta disso. Conhecer esse pequeno detalhe talvez nos ajude a lembrar de como o momento da refeição é tão essencial para a saúde de nossas relações como é para a saúde de nosso corpo. Em nossa língua, comer é, por definição, um ato de celebração da vida coletiva.

tratado sobre recursos fitogenéticos

O Tratado Internacional sobre os Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura é um acordo que reconhece um conjunto de espécies vegetais alimentícias como patrimônio da humanidade. Trata-se de um importante mecanismo de proteção da biodiversidade agrícola.

Dos milhares de cultivos já desenvolvidos pelas sociedades ao longo de sua história, mais de três quartos foram perdidos nos últimos cem anos. Em nome do aumento da produtividade, a agricultura intensiva, mecanizada e baseada em pacotes tecnológicos prefere cultivos únicos e sementes modificadas em laboratórios. Como consequência, muitas variedades são abandonadas, rompendo a continuidade do processo reprodutivo da vida. Isso se chama extinção. Diante desse processo de desaparecimento de espécies comestíveis, proteger a diversidade torna-se um requisito para garantir a segurança da alimentação dos povos.

Construído no âmbito da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o documento foi assinado em 2001 e entrou em vigor em 2004. Atualmente, conta com 149 nações e organizações signatárias. Entre seus objetivos estão “a conservação e a utilização sustentável dos recursos fitogenéticos para a alimentação e a agricultura e a partilha justa e equitativa dos benefícios resultantes da sua utilização”.

Foto: Min An / Pexels

O texto do tratado destaca a importância dos agricultores para a diversidade de cultivares que alimentam as pessoas de todo o mundo. As comunidades locais de agricultores são as guardiãs da biodiversidade. Dispondo conhecimento acumulado através de muitas gerações, conhecem soluções testadas e aperfeiçoadas ao longo de séculos de prática das técnicas tradicionais. É por isso que o Tratado inclui, entre as diretrizes a serem seguidas pelos países signatários, o apoio aos agricultores e às comunidades locais para a manutenção desses cultivos.

Cada país contratante deve também inventariar os recursos fitogenéticos para a alimentação e a agricultura, promover a conservação in situ das espécies através do apoio às comunidades locais, proteger as variedades que se encontrem ameaçadas, entre outras ações. Para fomentar projetos de fortalecimento, o Tratado prevê um Fundo de Distribuição de Benefícios, que concede subvenções a projetos inovadores e escaláveis, especialmente nos chamados países em desenvolvimento. A mais recente chamada para projetos foi em maio de 2022.

Desde 2002, o Brasil é signatário do Tratado. Em 2008, o Decreto nº 6.476 promulga o Tratado no Brasil. A partir daí, diversos marcos legais foram surgindo e têm servido para, entre outras finalidades, apoiar sua implementação. Alguns exemplos são a Lei da Biodiversidade, a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica e o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica.

guia alimentar

Produzido com a participação de especialistas de várias áreas, o Guia Alimentar para a População Brasileira, editado pelo Ministério da Saúde em 2014, é uma importante obra de referência para a educação alimentar num sentido amplo, voltada para a população em geral. Oferece uma oportunidade para que cada um possa refletir sobre suas práticas alimentares e compreender a amplitude de aspectos que estão relacionados à alimentação, muitas vezes sem nos darmos conta disso.

Trata-se de um esforço para melhorar as condições de saúde da população por meio da alimentação adequada e saudável, diante do aumento nos índices de obesidade e de diversas doenças, relacionado a um processo contínuo de substituição de alimentos in natura por alimentos ultraprocessados, observado em todas as regiões do país e todas as camadas da população.

É preciso enfatizar que o Guia Alimentar não é nem um livro de receitas nem um manual de dieta alimentar, com tabelas nutricionais de cada prato ou refeição. O Guia aborda o tema da alimentação de forma abrangente, desde a escolha e aquisição dos alimentos, passando pelo seu preparo, até o momento da refeição propriamente dito, com todos os aspectos relacionais e sociais envolvidos. Além disso, se propõe a ser referência para a população brasileira, com toda sua diversidade física e cultural.

Há sim sugestões de cardápios. Mas em vez de elas virem da fala de autoridade de profissionais, amparados em complexos cálculos nutricionais, vêm da mesa de brasileiros reais, das diferentes regiões do país, que consomem esses cardápios em seu dia a dia, seguindo suas referências culturais e tradições familiares. Para cada uma das três grandes refeições diárias (café da manhã, almoço e janta), são apresentados, a título de exemplo, oito cardápios compostos exclusivamente de alimentos in natura ou minimamente processados.

Imagem: divulgação

Ao longo de todo seu texto, o Guia enfatiza que alimentar-se é também um ato político e comunitário, já que muitas das escolhas têm efeitos que vão muito além do aspecto fisiológico individual. Ao escolher meus alimentos, que pessoas ou corporações eu estou remunerando com o pagamento da minha compra? Que sistema alimentar eu estou fortalecendo? Quais agentes econômicos se beneficiam quando escolho comprar em uma grande rede varejista sem fazer ideia sobre quem produziu esta comida e quantos quilômetros ela percorreu até chegar aqui?

Depois de escolher, adquirir e preparar os alimentos, chegamos ao ato de alimentar-se propriamente dito. Quem está comigo neste momento? Que pessoas estão próximas em meu cotidiano a ponto de compartilharem comigo este ato tão importante para o corpo, a mente e o grupo comunitário? Que relações entre semelhantes eu estou fortalecendo durante esses minutos tão importantes à saúde? Com quem estou compartilhando minhas opiniões sobre saúde, nutrição, comunidade, projeto de vida?

Interessante lembrar que a importância da comensalidade foi mais uma vez demonstrada durante a pandemia. O trabalho remoto tirou a hora do almoço da rotina diária dos trabalhadores. Especialistas da área da saúde mental apontam a perda desse importante momento de convivência e compartilhamento entre colegas de trabalho como um fator, entre tantos outros, para o aumento de ansiedade e depressão entre as pessoas que passaram a trabalhar isoladas em suas casas.

Outro aspecto importante do ato de alimentar-se é a experiência consciente dos aromas e sabores da refeição. Observe um restaurante que as pessoas frequentam diariamente em seu horário de almoço e procure contar quantas não estão mexendo no telefone enquanto mastigam. Com a atenção totalmente tomada pela sedução digital, mal percebem o sabor do que estão ingerindo, o ato de comer torna-se um gesto mecânico e meramente funcional, excluindo do cotidiano o prazer de comer!

Em diversas passagens, o Guia Alimentar enfatiza a importância de se separar o ato de alimentar-se das praticas de consumo ou da exposição à publicidade comercial. Em locais como praças de alimentação, a refeição se confunde com um gesto de consumo. Também sugere que as pessoas evitem comer enquanto se expõem a mensagens publicitárias, que trazem imagens que afetam profundamente, ainda que de maneira inconsciente, não apenas a escolha dos alimentos como a satisfação – ou frustração – proporcionada por aquilo que se está comendo.

Detalhes como esses mostram o interesse público da obra, pois ela orienta os cidadãos a se resguardarem dos interesses corporativos da indústria da alimentação.

Foto: Fauxels / Pexels

A edição de 2014 do Guia Alimentar para a População Brasileira tem atualizações significativas em relação a sua primeira edição, de 2006, não somente em seus conteúdos, mas também na linguagem e na forma como foi elaborado. Especialistas das áreas da saúde, educação, agricultura, professores de universidades e membros de organizações de defesa do consumidor foram reunidos em uma oficina de escuta. Uma versão preliminar ficou então por três meses em consulta pública na página do Ministério da Saúde e foi objeto de novas oficinas, em todos os estados do Brasil, para acolher as diferentes percepções do público em geral, incorporando à obra a imensa diversidade regional do país.

Escrito em um estilo de texto leve, trazendo recomendações sem tom impositivo, o Guia se destaca em meio a tantas mensagens sobre alimentação disponíveis atualmente na mídia, seja da publicidade, seja dos especialistas de plantão, que nos dizem o tempo todo, em tom muitas vezes taxativo e autoritário, como devemos e como não devemos comer. Estilisticamente, soa como uma refeição suave e caseira para quem está acostumado com comida industrializada cheia de realçador de sabor.

Todos esses aspectos do Guia convidam a uma degustação lenta, prolongando o prazer e a profundidade da reflexão. É perfeito como tema de aulas, rodas de conversa, oficinas e estudos dirigidos, um ótimo material para ser lido e estudado por professores, terapeutas, cuidadores, gastrônomos, profissionais da saúde. Além de estimular mudanças positivas nos hábitos alimentares, tem a importante missão de formar e informar cidadãos para que possam exigir o cumprimento do direito humano a uma alimentação decente e saudável.

cresan butantã

Em volta dos canteiros suspensos da horta, as crianças observam e tocam folhas que nunca haviam visto antes. Uma tarde que tinha tudo para ser trivial na rotina da escola de educação infantil transforma-se em uma vivência memorável, que pode mudar a relação da criança com os alimentos.

Estamos em um Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional (Cresan) da Prefeitura de São Paulo, localizado no Butantã, zona oeste da cidade. Aqui acontecem ações de educação alimentar e nutricional voltadas para diversos públicos.

Esta unidade dispõe de uma horta pedagógica, com diversas espécies de plantas comestíveis. Aqui, crianças e adultos podem conhecer um pouco sobre alimentação saudável, agroecologia, compostagem, consumo consciente e outros temas ligados à segurança alimentar e nutricional. O Cresan Butantã também está equipado com uma cozinha escola, onde acontecem treinamentos para manipulação de alimentos, cursos de culinária saudável, gastronomia e receitas tradicionais, entre outros, sempre acompanhados por nutricionistas da prefeitura ou das entidades parceiras.

Na horta suspensa do Cresan Butantã, crianças sentem a textura das folhas de peixinho, uma planta alimentícia ainda pouco conhecida. Foto: Dionizio Bueno.

As ações desenvolvidas no Cresan tem como referência os Guias Alimentares publicados pelo Ministério da Saúde com a finalidade de promover alimentação adequada e saudável entre a população brasileira.

Por meio de parcerias com escolas, CEUs, unidades de saúde e organizações sociais, o Cresan Butantã recebeu, entre abril e outubro de 2022, mais de 1200 pessoas em atividades educativas e formativas.

Durante as visitas de escolas, as crianças são conduzidas em uma vivência que busca trazer não só informações, mas também experiências sensoriais. Elas podem conhecer o cheiro de ervas aromáticas e até de provar verduras e temperos apanhados diretamente da terra. Podem também tocar folhas com texturas diferentes do usual, como boldo ou peixinho. Depois de passar pela horta, as crianças vão para a sala degustar um lanchinho preparado com vegetais que acabaram de ser colhidos, além de cantar e participar de brincadeiras. Ao final, recebem mudinhas de plantas, que vão levar para casa com a proposta de aprenderem a cuidar.

A gestora do Cresan Butantã, Sheyla Sicília, fala do potencial educativo e transformador dessa vivência: “As crianças saem felizes dessa experiência, é algo realmente contagiante. Além disso, a atividade está alinhada aos componentes curriculares que estão sendo trabalhados na escola.”

Se buscamos construir um sistema alimentar no qual as pessoas possam ser protagonistas na escolha de seus alimentos – um sistema em que a soberania alimentar seja genuinamente construída de baixo para cima –, é essencial que as pessoas sejam educadas para a alimentação saudável. Isso se constrói, em primeiro lugar, por meio do conhecimento. A importância do Cresan Butantã é ser um equipamento público que trabalha para a educação alimentar e nutricional com um enfoque comunitário, sendo ainda um laboratório para a construção de políticas públicas que promovam segurança alimentar em grande escala.

Atualmente, existem dois Cresans em São Paulo: este no Butantã e um na Vila Maria, onde funciona o banco de alimentos da cidade.