obesidade supera subnutrição

Quando se fala em crianças desnutridas, a imagem que vem à mente é de uma criança magra, esquálida, só pele e osso. Com o avanço das estratégias mercadológicas da indústria de ultraprocessados, essa imagem precisa ser atualizada. Agora, a imagem da desnutrição é uma criança obesa.

De acordo com o relatório Feeding Profit – how food environments are failing children (Alimentando o Lucro – como os ambientes alimentares estão falhando com as crianças), publicado pela UNICEF em setembro, o número de crianças obesas no mundo já supera o de crianças subnutridas. O documento trabalha com os dados consolidados mais recentes disponíveis, que são de 2024 para uma das faixas etárias e de 2022 para as outras.

O relatório mostra que a prevalência global de obesidade entre crianças e adolescentes dos 5 aos 19 anos em 2022 foi de 9,4% e apresenta padrão de aumento. O índice supera o de prevalência de subpeso nessa mesma faixa etária, que vem caindo nos últimos anos e em 2022 foi de 9,2%.

Outro dado preocupante é que, entre os casos de sobrepeso, a obesidade vem ganhando participação. No ano 2000, 30% das crianças e adolescentes entre 5 e 19 anos com sobrepeso eram obesas. Em 2022, esse índice já estava em 42%, ou seja, 163 milhões de crianças e adolescentes obesos no mundo. Além de ser mais difícil de reverter, a obesidade, que é a forma severa do sobrepeso, representa um risco maior de problemas graves de saúde.

De acordo com o relatório, muitas crianças vivem inseridas em ambientes alimentares insalubres, onde ficam expostas às práticas mercadológicas agressivas da indústria de ultraprocessados. Esses produtos comestíveis se proliferam nas lojas de varejo e conseguem se infiltrar em escolas. As crianças vivem cercadas.

Imagem: divulgação

Em alguns países observou-se que a presença de produtos açucarados em locais frequentados por crianças é maior nos bairros economicamente desfavorecidos do que em áreas mais ricas, e o Brasil é mencionado como exemplo de país onde isso acontece. Dados de outros estudos citados mostram a agressividade da indústria de ultraprocessados em suas práticas mercadológicas, com destaque para a propaganda em meios digitais. Crianças e adolescentes relatam sentimentos de tentação, pressão e impotência diante da onipresença desses produtos e de sua publicidade.

O relatório chama a atenção para as práticas antiéticas dessas corporações, que se aproveitam de desastres humanitários e situações emergenciais de saúde pública, como a recente pandemia, para expandir seu alcance e pressionar pelo enfraquecimento das políticas de proteção dos consumidores.

Diante da gravidade dos fatos, o relatório apresenta propostas para conter o avanço desse quadro e garantir o direito das crianças à nutrição adequada. Entre as sugestões: um código internacional para disciplinar a comercialização de substitutos do leite materno e promover a amamentação natural; políticas abrangentes para aumentar a disponibilidade de alimentos saudáveis produzidos localmente; regras de cumprimento obrigatório para transformar os ambientes alimentares de crianças e adolescentes, incluindo restrições nas escolas; medidas robustas capazes de proteger as políticas públicas contra a interferência da indústria de ultraprocessados; sistemas de vigilância padronizados, nacionais e globais, para monitorar os ambientes alimentares, as dietas e os dados referentes à saúde alimentar de crianças e adolescentes.

O documento aponta o papel dos diversos atores da sociedade no combate a isso que podemos considerar uma pandemia fabricada de desnutrição. Destaca-se aqui o nosso papel, como membros da sociedade civil, em promover o amplo debate sobre os danos causados pelos produtos ultraprocessados, construindo uma demanda pública por políticas que melhorem os ambientes alimentares, para todos nós.

gosto

Pessoas com paladar acostumado a produtos ultraprocessados podem não se satisfazer com o sabor de uma comida caseira, temperada naturalmente e sem exagero. Temperos ultraprocessados são uma mistura de saborizantes diversos e quase sempre usam um agente realçador de sabor, como o glutamato monossódico – e quando esse ingrediente não é mencionado no rótulo, costuma ser difícil de acreditar.

Da primeira vez que vi colocarem aquele tempero em cubinhos no arroz – eu era criança – fiquei impressionado (positivamente, naquela época) com o sabor chegando da cozinha até meu quarto. Fui ver o que era, o arroz estava verde (o que também achei divertido). E então, quando senti o paladar daquilo, vi brilharem aqueles fogos de artifício que reluzem em círculos sobre as torres do castelo do mundo encantado de Disney. Senti que queria mais.

O arroz branco, com tempero da casa e sem exagero de sal, perdeu a graça por algum tempo. Passado aquele período, felizmente curto e apenas experimental em que minha mãe e minha avó usaram esse tipo de produto para fazer arroz, tudo voltou ao normal.

Faz sentido usar tempero artificial para fazer um arroz? Fico pensando como se forma o gosto de uma pessoa que, sem a mesma sorte que eu tive, nunca mais consegue largar o prazer do sabor artificial. Se a pessoa não vê gosto em alimentos menos temperados, não se contentará com menos, terá dificuldade de trocar um doritos por um preparado caseiro equivalente, feito de flocão de milho.

Assim como o prazer do sabor artificial influencia as escolhas alimentícias, as preferências estéticas sobre produtos cinematográficos também se formam a partir daquilo que a pessoa costuma ingerir quando vai ao cinema ou se recolhe a um netflix.

Observe como são os roteiros e o estilo cênico dessas séries documentais de produção recente. Para contar qualquer história, seja a vida na savana, a tomada de Constantinopla, a última inovação da medicina ou um episódio envolvendo gente famosa – além, obviamente, de qualquer produto de ficção –, as produções desse conhecido serviço de streaming invariavelmente recorrem a altos níveis de tensão narrativa para atender os desejos de consumidores que querem mais e mais em suas maratonas televisivas. Afinal, a última coisa que pode acontecer é os espectadores ficarem entediados e trocarem de programa.

Assim, quando resolvemos conhecer um pouco mais sobre, por exemplo, a tomada de Constantinopla, somos obrigados a ver guerreiros tendo o peito varado pela espada e o sangue espirrando no teto, precisamos ouvir uma narração em que tanto o texto como a prosódia geram uma descarga de adenalina que nos coloca em estado fisiológico de lutar ou fugir. Como tudo é emoção, temos até que engolir uma história de amor absolutamente irrelevante para o conhecimento dos fatos supostamente históricos que estão sendo apresentados.

São esses os produtos audiovisuais ultraprocessados. Feitos para consumidores que já são incapazes de sentir gosto se não houver todo esse exagero e não verão graça em qualquer coisa aquém isso.

A escolha das produtoras dessas séries ultraprocessadas, assim como a da indústria que fabrica produtos comestíveis ultraprocessados, é compreensível, considerando que elas têm como principal objetivo ganhar dinheiro – e sempre querem sempre mais. Mas as escolhas dos consumidores poderiam ser diferentes.

O paralelo poderia ser estendido também aos jogos digitais. Ao contrário de jogos antigos, em que o sujeito jogador era uma navinha protegendo o planeta da invasão de extraterrestres ou um homenzinho tosco atravessando a selva e correndo risco de cair na boca de um jacaré, hoje temos jogos cada vez mais realistas graficamente, contextualizados em situações da vida e muitas vezes envolvendo violência. Verdadeiros simuladores de relações interpessoais, oferecem ao jogador uma infinidade de opções e recursos para ajudá-lo a alcançar seu objetivo. Adultos e crianças hoje passam horas imersos nessas realidades ultraprocessadas. Poderão essas pessoas um dia perder o gosto pela vida cotidiana e natural que acontece aqui fora no mundo físico?

O termo ultraprocessado pode ser entendido em muitas esferas, para além dos produtos comestíveis. A indústria sabe bem como criar desejos insaciáveis para em seguida oferecer sua satisfação temporária. Do outro lado, aqui na ponta do consumo tanto de produtos alimentícios quanto de produtos audiovisuais e eletrônicos, ainda temos, em boa parte das situações, a possibilidade de escolher o que consumir. E essa escolha cabe somente a nós, pois quem produz esse tipo de coisa jamais fará diferente.

Se o estabelecimento – físico ou digital – onde vamos para nutrir nossos corpos e mentes não oferece opções que não sejam ultraprocessadas, é preciso pensar em mudar de estabelecimento.

uma ameaça às corporações

Neste mês de novembro completam-se dez anos desde o lançamento do Guia Alimentar para a População Brasileira. A edição de guias alimentares é uma prática recomendada e apoiada pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, do inglês Food and Agriculture Organization). Atualmente, mais de 100 países têm seus guias alimentares, com recomendações de acordo com as culturas alimentares locais, a disponibilidade de alimentos e a situação nutricional de sua população.

Conforme anunciado à época do lançamento pelo então ministro da saúde, Arthur Chioro, um dos principais objetivos do Guia é “combater a obesidade e o avanço das doenças crônicas no país”. A principal referência conceitual do Guia é a classificação NOVA, que organiza os alimentos em quatro categorias e define o que são os ultraprocessados. Estes produtos comestíveis, com qualidades nutricionais bastante questionáveis, estão altamente associados às doenças crônicas não transmissíveis, que representam uma importante questão de saúde pública para o país.

Acontece que, enquanto os ultraprocessados são uma ameaça para as pessoas e as populações, guias alimentares são uma ameaça para as corporações que fabricam esses ultraprocessados. O caso mais emblemático disso talvez seja o do relatório SRA Top Policy Issues (Principais questões de políticas referentes a assuntos científicos e regulatórios), produzido pela consultoria Sancroft para a Coca-Cola. Aproveitamos aqui a efeméride dos dez anos do Guia para falar um pouco desse relatório, que vê nosso Guia Alimentar como ameaça para os negócios da Coca-Cola.

Trata-se de um documento que apresenta um panorama das pressões regulatórias e políticas globais relacionadas a seis tópicos que podem afetar a produção e as vendas da empresa no mundo todo. Os tópicos são: uso de Bisfenol A (BPA) em embalagens, defensivos agrícolas, rotulagem, organismos geneticamente modificados, restrições a ingredientes específicos (cafeína, caramelo, corantes, aromatizantes, conservantes) e adoçantes (açúcar, produtos não calóricos e teor de doçura).

Imagem: reprodução

Cada capítulo traz um mapa de calor que classifica os países conforme as pressões que apresentam à empresa no tópico tratado. Em seguida vem uma análise das situações e tendências globais e locais referentes à regulação naquela área. O relatório também inclui informações sobre o cenário competitivo no qual a empresa atua e sobre outros atores que podem afetar o mercado da empresa. É interessante observar a forma como os danos à saúde humana causados por ultraprocessados são abordados pelo ponto de vista da corporação que os produz.

O Guia Alimentar para a População Brasileira é mencionado diretamente no capítulo sobre açúcar, adoçantes e teor de doçura. Em seu resumo executivo, esse capítulo começa reconhecendo o aumento nas taxas de obesidade, sobrepeso e doenças não transmissíveis e como isso trouxe a atenção do público ao conteúdo calórico dos alimentos e bebidas. Em seguida, observa que “há uma crescente aversão a ingredientes considerados artificiais ou sintéticos, bem como a alimentos processados em geral” (grifo nosso). É curioso o uso da palavra ‘considerados’, como se o fato de um ingrediente ser natural ou artificial/sintético fosse uma questão de opinião. De qualquer forma, essas constatações iniciais se referem, ao menos do ponto de vista de quem atua em defesa da saúde, a um avanço na consciência do público em relação às características nocivas de certos produtos.

Porém, a perspectiva fica clara quando os interesses corporativos passam ao primeiro plano. Ao mencionar as medidas adotadas por governos, o relatório observa que “Muitas das políticas e regulações propostas são discriminatórias ou punitivas” (grifos nossos) e acrescenta que “Muitas [dessas medidas] afetam negativamente o portifólio da Coca-Cola”. Afetar negativamente, nesse caso, significa diminuir as vendas e a reputação dos produtos da empresa.

Mais adiante, observa que “tem havido uma proliferação de estudos focados no açúcar e seu papel não apenas na obesidade, mas também em sua contribuição para doenças não transmissíveis” (grifo nosso) e afirma, ainda que indiretamente, que isso seria uma forma de demonização desse ingrediente dentro do debate sobre obesidade.

Então vem o mapa de calor, no qual os países do mundo são classificados conforme as ameaças que apresentam à empresa em questões relacionadas a açúcar, adoçantes e teor de doçura. A legenda deste mapa define duas categorias de ameaças: “em vigor” (enacted) e “potenciais” (potential).

O Brasil aparece como um país em que a ameaça está em vigor. O destaque no mapa especifica brevemente a situação aqui: “National negative dietary guidelines. Mixture of LNCS and sugar allowed”. A tradução literal seria: “Diretrizes alimentares nacionais negativas. Mistura de adoçantes e açúcar permitida”. ‘Dietary guidelines’ é equivalente em inglês a ‘guia alimentar’, e está no nome da versão em inglês do nosso Guia (Dietary Guidelines for the Brazilian Population). Na língua inglesa ocorre essa construção ‘diretrizes negativas’, fazendo referência ao fato de o Guia recomendar que se evite o consumo dos produtos da empresa.

Na seção que apresenta as situações regionais, o relatório da Sancroft se refere ao nosso Guia Alimentar afirmando que o Brasil publicou diretrizes alimentares “que são punitivas com relação ao açúcar às nossas bebidas, classificando-as como alimentos ‘ultraprocessados’” (grifo nosso). A frase passa a impressão de que os editores do Guia resolveram punir os refrigerantes, e para isso decidiram atribuir-lhes a avaliação de ultraprocessados, da mesma forma que um aluno mal avaliado alega que a professora lhe deu nota baixa porque assim quis, e não porque seguiu um critério de avaliação.

A definição de alimento ultraprocessado é clara, objetiva e de conhecimento público. Basta aplicar o critério para perceber que um refrigerante industrializado se encaixa, de maneira inequívoca e com bastante folga, dentro dessa categoria. Pelo menos neste caso, a professora não está sendo injusta com o aluno desleixado, a avaliação foi bem merecida.

Parece bastante honroso para o nosso Guia Alimentar ter sido nominalmente citado como ameaça por uma empresa que oferece produtos tão nocivos. Torcemos bastante para que a ameaça se concretize e cada vez mais gente diminua ou abandone o consumo dessas bebidas e demais ultraprocessados, que o mercado entrega às pessoas para que elas encham suas barrigas.

Outra ameaça brasileira mencionada no relatório é o Pacto Nacional para Alimentação Saudável, instituído em 2015, que visa estimular o consumo de alimentos in natura e minimamente processados e regular a propaganda de bebidas e alimentos ultraprocessados em escolas.

Em qualquer luta, é importante conhecer bem os adversários: como atuam, como expressam seus interesses, que recursos têm à sua disposição. Em seus esforços para ganhar dinheiro e dominar mercados, é isso que a Coca-Cola faz ao encomendar à Sancroft uma análise do contexto regulatório nos países em que atua. Em nossos esforços para promover a alimentação saudável, é isso que fazemos ao olhar com atenção para esse tipo de relatório.

O Guia Alimentar para a População Brasileira foi identificado por nosso adversário como uma ameaça, e isso é mais um ótimo indício de sua qualidade e relevância. Parabéns ao Guia pelos seus dez anos!

cadeia de alimentos no Brasil

Dados bastante abrangentes sobre o sistema alimentar no Brasil podem ser encontrados no Estudo sobre a Cadeia de Alimentos, organizado por Walter Belik, professor titular aposentado do Instituto de Economia da UNICAMP, publicado em 2020, com apoio do Instituto Ibirapitanga e do Instituto Clima e Sociedade.

O documento traz informações sobre hábitos de consumo e compra, a composição da dieta nacional, os gastos com alimentação por faixas socioeconômicas, tendências evolutivas que impactam o cardápio nacional, entre outras. A principal fonte de dados do são as estatísticas agregadas à Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), organizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, disponíveis no momento da publicação.

Destacamos aqui alguns aspectos particularmente interessantes e mais diretamente ligados à investigação sobre sistemas alimentares pelo ponto de vista do Bicicarreto.

Os dados sobre consumo revelam que habitação é a maior despesa em todas as faixas socioeconômicas, representando 42,4% do orçamento das famílias que ganham até 2 salários mínimos e 34% dos gastos das famílias com renda mensal de 25 salários mínimos ou mais. Alimentação vem logo atrás no caso das famílias mais pobres, representando 23,8% das despesas, mas aparece somente em terceiro lugar no caso das famílias mais abastadas, correspondendo a 11,4% do orçamento familiar. No caso deste grupo socioeconômico, é educação que vem em segundo lugar, representando 23% do orçamento.

O gasto mensal médio com alimentação é de R$ 328,74 no caso das famílias de até 2 salários mínimos e de R$ 2.061,34 entre as famílias de 25 ou mais salários mínimos. Portanto, o gasto com alimentação das famílias mais ricas é mais de seis vezes maior que o das famílias mais pobres.

Imagem: divulgação

O Estudo mostra a participação de cada grupo de alimentos, segundo a classificação NOVA, no total de calorias na dieta da população brasileira, comparando os dados ao longo de três edições da POF (2002-3, 2008-9 e 2017-18). Isso mostra como evolui o consumo desses tipos de alimentos ao longo desse período.

O consumo de alimentos in natura ou minimamente processados caiu 7%, passando de 53,3% do total de calorias em 2002-3 para 49,5% em 2017-18. Ao mesmo tempo, observa-se um substancial aumento de 46% na participação dos ultraprocessados na dieta brasileira: esse tipo de produto comestível, que correspondia a 12,6% das calorias em 2002-3 passou a 18,4% em 2017-18. Os alimentos processados subiram de 8,3% em 2002-3 para 9,8% em 2017-18 (aumento de 18%) e os ingredientes culinários processados passaram de 25,8% em 2002-3 para 22,3% em 2017-18 (diminuição de 14%).

Quanto à distribuição de alimentos, o Estudo faz algumas observações gerais sobre um processo de reorganização que esse componente do sistema alimentar vem sofrendo nos últimos anos. O que mais chama a atenção é o avanço do setor de supermercados, que passam a comprar diretamente da indústria de alimentos e dos produtores agropecuários, contribuindo assim para a eliminação da figura do atacadista. Ao mesmo tempo, surge um novo tipo de estabelecimento, o “atacarejo”, que, segundo a pesquisa, se desenvolve de forma coordenada pelos supermercados.

Trata-se daquelas lojas de grande porte, com o leiaute tosco dos antigos atacadistas, porém sem qualquer restrição quanto ao tipo de comprador ou ao tamanho das aquisições. Oferecem duas possibilidades de preço: um é o chamado valor unitário e o outro, denominado “atacado”, só vale a partir de um certo número de unidades, geralmente não muito grande. Conforme nossa observação, essa diferença de preços costuma ser surpreendentemente baixa.

Esse tipo de estabelecimento vem ganhando espaço no fornecimento de alimentos frescos e produtos industrializados, tanto para restaurantes, cozinhas industriais e pequenos varejistas como para consumidores finais.

Observa-se também na população uma tendência de mudança de hábitos quanto à escolha dos locais de compra. Os dados das POFs mostram que as aquisições em supermercados representavam 32,6% das idas a estabelecimentos comerciais em 2002-3 e passaram a representar 41,1% em 2008-9 (dados se referem ao número de compras e não ao montante gasto; não há esses dados para POF 2017-18). Enquanto isso, as idas a todos os outros tipos de estabelecimentos diminuíram. As compras em mercearias e armazéns caíram de 17,4% em 2002-3 para 17,0% em 2008-9; as compras em feiras livres caíram de 4,8% em 2002-3 para 4,5% em 2008-9. Há portanto uma tendência de as pessoas substituírem compras em feiras e pequenos estabelecimentos por compras em supermercados.

O setor atacadista de produtos frescos é composto pelas Ceasas (centrais estaduais de abastecimento). São 74 Ceasas em todo o Brasil, sendo 22 em capitais. Segundo o documento, o entreposto da capital paulista concentra 25% de todo o movimento de produtos frescos no país.

A proporção da produção que passa pelas Ceasas, entretanto, varia bastante conforme o produto. Por exemplo, 62% da produção de alho passa por alguma dessas centrais em algum momento de sua distribuição. O mesmo acontece com 42,4% da produção de maçã, 70,9% do mamão, 71,1% da cenoura e 76,6% do tomate de mesa. Por outro lado, apenas 13,2% da produção de alface, 12,4% da banana e 1% do coentro passam por Ceasas. É possível que isso se deva ao fato de estes produtos serem mais frágeis e perecíveis, e assim sua comercialização acabe encontrando esquemas alternativos.

Junto com o Estudo, foi publicado também um documento síntese, onde se encontram suas principais conclusões e também algumas reflexões e informações que não fazem parte do documento principal.

Mesmo passados já alguns anos desde sua publicação, as informações apresentadas no Estudo sobre a Cadeia de Alimentos continuam válidas por mostrarem características marcantes do sistema alimentar brasileiro e algumas tendências de modificação – muitas das quais, infelizmente, são aspectos negativos se aprofundando.

comer mal, comer caro

“Comer bem custa mais caro do que comer mal”.

O que dá sentido a essa afirmação é o fato de vivermos em uma sociedade de consumo, que tem como um de seus dogmas a ideia de que maior qualidade implica maior preço. Em muitos casos essa afirmação é, de fato, verdadeira.

Um levantamento apresentado no Atlas de los Sistemas Alimentarios del Cono Sur (lançado em 2022 pela Fundación Rosa Luxemburgo de Buenos Aires e prestes a ter uma edição brasileira) traz dados sobre valor da alimentação nos cinco países do Cone Sul.

Comparação dos valores de refeições precárias e saudáveis nos países do Cone Sul; percentuais das populações sem acesso a dietas saudáveis nesses países. Imagem: Atlas de los Sistemas Alimentarios del Cono Sur. CLIQUE PARA AMPLIAR

De acordo com essas informações, uma dieta saudável no Brasil é 3,9 vezes mais cara do que uma dieta precária. Interessante observar que, dos cinco países, o Brasil é aquele com a menor relação entre a dieta saudável e a dieta precária. Essa relação é de 5,3 vezes na Argentina, 5 vezes no Chile e 4,3 vezes tanto no Paraguai como no Uruguai.

O estudo nos deixa curiosos para saber o que se entende, nessa comparação, por “dieta de mínimas calorías” e por “dieta saludable”, pois infelizmente não traz detalhes sobre os tipos de refeição cujos custos estão sendo comparados. Diz no subtítulo do infográfico que a dieta mais barata na comparação é baseada em ultraprocessados. Sabe-se que esse tipo de produto não costuma ser baixo em calorias, e isso levanta a dúvida sobre o que está sendo considerado na dieta menos saudável.

Algo que chama atenção é o fato de os valores das dietas nos cinco países, apresentados em dólares, serem próximos. Isso mostra como, apesar de esses cinco povos viverem realidades sociais e políticas bastante específicas, estão todos sujeitos às condições de um mesmo sistema alimentar. É ele que determina os valores de troca dos alimentos e a exploração que acontece em ambas as pontas, produtores e consumidores.

Podemos também observar nos infográficos a proporção de pessoas, em cada país, que não têm acesso a dietas saudáveis. O país onde essa proporção é maior, o Paraguai, é também aquele onde as dietas, tanto a precária como a saudável, são as mais caras entre os cinco comparados, e isso provavelmente não é um acaso.

Os dados são um importante alerta sobre as condições impostas às populações por esse sistema alimentar predatório e insalubre. Escassez e fome são consequências naturais de um sistema no qual comida é mercadoria.

Porém, é preciso observar que o dogma maior qualidade implica maior preço nem sempre se comprova, pelo menos quando os ultraprocessados estão envolvidos na comparação. Além de serem a opção de pior qualidade, os ultraprocessados podem também ser mais caros. Isso se confirma não apenas em exemplos extremos e aberrantes, como no caso nada raro em que um quilo de salgadinho industrializado, com valor nutritivo praticamente nulo, custa mais caro que um quilo de contrafilé.

Pense em uma refeição pronta encontrada em supermercados, uma sobremesa industrializada, ou mesmo um simples lanche embalado de fábrica. Esses produtos não são mais baratos que as versões preparadas em casa com ingredientes in natura ou minimamente processados. Seu grande apelo é o fato de estarem já prontos ou quase prontos para o consumo.

É importante o consumidor perceber isto: ao oferecerem praticidade e recorrerem agressivamente a táticas que atuam de forma irracional na decisão de compra, como propaganda e embalagens altamente atrativas, eles não precisam ser mais baratos para que sejam escolhidos. Um produto que necessitou de várias etapas de processamento, transporte e estocagem, aditivos e condições especiais de conservação, além dos custos de embalagem e publicidade, não tem como ser mais barato do que os ingredientes necessários mais a energia e o gás usados para preparar um equivalente caseiro.

Há outro fato interessante sobre valor dos ultraprocessados. Pelo menos no Brasil, os dados mostram que os ultraprocessados estão mais presentes entre as famílias mais abastadas. Segundo o Atlas das situações alimentares no Brasil, publicado em 2021, o consumo de ultraprocessados é maior entre os mais ricos, enquanto as famílias de menor poder aquisitivo têm proporcionalmente mais alimentos in natura em sua alimentação.

O consumo de ultraprocessados existe, sim, nos grupos economicamente menos favorecidos, mas, em muitos casos, essa opção parece ser muito mais uma questão cultural ou de falta de tempo – o qual é sugado até a última gota por este sistema produtivo que transforma pessoas em máquinas – do que uma escolha racional, baseada em fatores objetivos, como o preço.

A ideia de que produtos orgânicos sempre custam mais caro também é problemática. Uma coisa é comparar o preço de verduras orgânicas e convencionais em supermercados, especialmente aqueles caros, frequentados por gente feliz. Independentemente dos custos, os orgânicos nesses lugares serão sempre precificados de forma a serem mais caros que os convencionais, aplicando o dogma acima, de forma a serem percebidos pelos consumidores como melhores. Outra coisa é considerar os preços de orgânicos em redes de consumo alternativas, onde é possível encontrá-los a preços equivalentes aos de convencionais.

Tecnologias como os sistemas agroflorestais, a biodinâmica e a agricultura sintrópica criam ambientes produtivos tão equilibrados e fortalecidos que dispensam defensivos agrícolas e fertilizantes químicos, eliminando importantes custos de produção.

Ao olhar para as relações entre qualidade e preço na alimentação, é preciso ir além de simplesmente constatar que um pacote de miojo é, de fato, mais barato que uma refeição feita em casa ou um PF no restaurante.

Se aceitamos como natural e repetimos passivamente a ideia de que maior qualidade implica maior preço, trabalhamos para reforçar um dos dogmas centrais desse sistema que atribui aos alimentos um valor de troca desvinculado da realidade objetiva. Pior que isso, deixamos de enxergar alternativas de alimentação que estão ao nosso alcance e podem ser ampliadas para que beneficiem cada vez mais pessoas.

classificação NOVA

Quando se buscam critérios racionais para escolher alimentos, é comum que consumidores consultem as informações nutricionais. Por muitos anos, a população tem sido orientada a fazer isso, tanto na educação formal quanto em veículos de comunicação que falam do assunto. O modelo da pirâmide alimentar, por exemplo, ensina a priorizar certos tipos de nutrientes e evitar outros.

Acontece que na época em que essas orientações começaram a ser difundidas, no início do século XX, era comum preparar as refeições com alimentos naturais. A partir dos anos 1980, com o rápido desenvolvimento da indústria de alimentos, uma enorme variedade de produtos alimentícios embalados começou a ser oferecida às pessoas, com o apoio de propaganda que apresenta esses produtos como práticos, saborosos e divertidos. Muitos desses produtos são ultraprocessados. O resultado é que hoje vivemos uma pandemia de doenças não transmissíveis relacionadas aos padrões alimentares adotados em muitas sociedades industrializadas.

Segundo o critério das informações nutricionais, os produtos ultraprocessados podem muitas vezes parecer interessantes. Por meio de aditivos químicos colocados nas composições, a indústria define as quantidades de nutrientes que vão aparecer nas embalagens, levando o consumidor a achar que está diante de um produto saudável.

Há pouco mais de dez anos, um grupo de pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo tem chamado a atenção para um outro fator que precisa ser levado em conta na hora de escolher os alimentos: o nível de processamento. Surge assim a classificação NOVA.

Essa classificação permite distinguir entre um alimento natural, preparado com ingredientes frescos e técnicas simples, e um produto comestível criado a partir de matérias primas industriais e aditivos químicos, ainda que este alegue ser saudável e apresente uma tabela nutricional que parece adequada do ponto de vista quantitativo.

Foto: Tânia Rêgo – EBC / Fotos Públicas

A proposta foi publicada pela primeira vez em 2009, em um artigo na revista científica Public Health Nutrition. Esse modelo inicial recebeu aperfeiçoamentos e ficou consolidado com quatro categorias, sendo amplamente adotado hoje como referência em publicações e orientações relacionadas à alimentação saudável. Apresentamos a seguir as descrições e exemplos dos quatro grupos de alimentos da classificação NOVA.

1 – Alimentos in natura ou minimamente processados

No primeiro grupo da NOVA estão as partes comestíveis de plantas, animais, fungos, algas e também a água. Como o nome diz, esta categoria tolera técnicas simples de processamento, como fervura, pasteurização, secagem, congelamento, torrefação, trituração, moagem, embalagem a vácuo, fermentação não alcoólica. Estes processos não adicionam sal, açúcar e gorduras aos alimentos, tendo a simples finalidade de facilitar ou diversificar o preparo, melhorar a estocagem ou estender a durabilidade dos produtos.

Exemplos de produtos do grupo 1: frutas, verduras, legumes, raízes frescas, ervas e especiarias; grãos como arroz, feijão, lentilha e milho; cogumelos, carnes, aves, peixes e frutos do mar; ovos e leite; farinha, sêmola ou flocos de trigo, milho, aveia ou mandioca; sementes oleaginosas (sem adição de sal ou açúcar); iogurte natural (sem adição de açúcar ou adoçantes); chá e café.

Esta categoria tolera também alguns aditivos, usados para preservar as propriedades originais dos alimentos (antioxidantes em legumes embalados a vácuo) ou repor nutrientes perdidos durante o processamento mínimo (ácido fólico em farinhas).

2 – Ingredientes culinários processados

Em um segundo grupo da classificação NOVA ficam produtos obtidos da natureza ou extraídos diretamente de alimentos in natura por processos como refino, prensagem, trituração, moagem e secagem por pulverização. São produtos usados nas preparações culinárias e raramente são consumidos sozinhos.

Alguns exemplos: sal, açúcar, mel, melaço, amidos, óleos vegetais, azeite, vinagre, manteiga, banha. Estes produtos podem conter aditivos como antioxidantes, anti-umectantes e conservantes, de forma a preservar suas propriedades originais e evitar a proliferação de microorganismos.

3 – Alimentos processados

Neste terceiro grupo estão os alimentos obtidos pela adição de substâncias do grupo 2 aos alimentos do grupo 1. Os processos aqui incluem diversos métodos de cozimento, embalagem, preservação e fermentação, com a finalidade de modificar as qualidades sensoriais dos alimentos e aumentar sua durabilidade.

No grupo 3 estão nozes e sementes salgadas ou açucaradas; queijos e pães frescos não embalados industrialmente; frutas em calda e geleias; carnes salgadas, curadas ou defumadas; peixes enlatados; legumes enlatados ou engarrafados. Entre as bebidas, inclui aquelas produzidas pela fermentação de alimentos do grupo 1, como vinho, cerveja e cidra.

4 – Alimentos ultraprocessados

E no quarto grupo estão produtos preparados a partir de vários ingredientes, muitos deles de uso exclusivamente industrial, sendo que poucos ou mesmo nenhum de seus componentes são alimentos do grupo 1. Alguns ingredientes são extraídos diretamente de alimentos, como lactose, soro de leite, glúten e caseína. Outros são obtidos a partir de um processamento posterior de constituintes de alimentos: óleos hidrogenados, xarope de milho rico em frutose, proteínas hidrolisadas, proteína isolada de soja, maltodextrina, açúcar invertido.

Produtos deste grupo usam aditivos que buscam imitar as qualidades sensoriais (sabor, cheiro, cor, etc.) de alimentos do grupo 1 ou têm a finalidade de disfarçar certas qualidades sensoriais indesejáveis dessas formulações, resultando em algo que as pessoas consigam consumir. Exemplos de aditivos encontrados apenas em ultraprocessados: pigmentos e corantes, estabilizadores de cor, aromatizantes, realçadores de sabor, adoçantes químicos, emulsificantes, sequestrantes, umectantes, espessantes, antiaglomerantes, agentes antiespuma. A fabricação dos produtos do grupo 4 envolve diversas técnicas de processamento, algumas delas sem equivalentes caseiros e possíveis apenas com equipamentos industriais.

Ultraprocessados estão disponíveis trivialmente nos mercados. A lista é grande: pães industrializados; bolachas ou salgadinhos “de pacote”; cereais matinais; chocolates e sorvetes; barras e bebidas energéticas; margarinas e pastas para passar no pão; salsichas, hambúrgueres e outros produtos de carne reconstituída; nuggets de aves e peixes; extratos de carne e frango; sopas e massas instantâneas; refeições prontas para aquecer; produtos “para emagrecimento”, como certos preparados em pó oferecidos como substitutos de refeições; leites de transição, fórmulas infantis e outros produtos para bebês; bebidas carbonatadas; bebidas ou iogurtes com sabor de fruta; achocolatados e bebidas lácteas ou a base de soja; misturas para bolo.

Estes alimentos apresentam algumas características marcantes: têm sabor acentuado, de forma a aumentar o prazer da degustação; suas embalagens são elaboradas para chamar a atenção do consumidor e favorecer a compra por impulso, sobretudo quando está com fome; são apoiados por campanhas publicitárias agressivas, que influenciam as decisões de compra atuando por fora do campo racional. Além de tudo isso, é preciso também lembrar que muitos desses fabricantes pertencem a corporações transnacionais, que obtêm lucros enormes com sua produção e comercialização.

Por suas características, os produtos desta categoria induzem hábitos de alimentação bem pouco saudáveis, como ficar beliscando entre as refeições ou mesmo substituí-las inteiramente. Nas condições da vida urbana de nosso tempo, esses comestíveis acabam parecendo opções interessantes, pois as pessoas podem consumi-los enquanto trabalham, se locomovem ou assistem alguma coisa, seja em telas grandes ou pequenas. Comer passa a ser um gesto mecânico, meramente funcional, muitas vezes em resposta automática a estímulos externos, como um anúncio ou alguém comendo perto. Com isso, além de serem pouco nutritivos e fazerem mal, esses produtos criam ou reforçam o hábito de comer solitariamente. O caráter de sociabilidade do momento das refeições, componente importante da saúde mental das pessoas, acaba completamente abandonado.

A partir das definições propostas pela classificação NOVA, o grau de processamento dos alimentos passa a ser uma importante referência na escolha das formas de se nutrir. O Guia Alimentar para a População Brasileira orienta que se dê preferência a alimentos in natura, insistindo para que as pessoas evitem ou, se possível, eliminem os produtos ultraprocessados de suas dietas.

Essa classificação permite também observar padrões de alimentação em populações, usando critérios qualitativos. Exemplo disso é o Atlas das situações alimentares no Brasil, que mostra, ao longo dos últimos anos, uma preocupante diminuição dos alimentos in natura e o aumento dos ultraprocessados no consumo das famílias.

A classificação NOVA tem servido como base para diversos estudos científicos no Brasil e em países como Chile, Canadá, EUA, Reino Unido, Nova Zelândia e Suécia, correlacionando o consumo de ultraprocessados ao aumento de diversas doenças não transmissíveis. O mesmo grupo de cientistas que propôs a NOVA lançou recentemente no Brasil um estudo que compila grande quantidade de pesquisas acadêmicas demonstrando os males que os ultraprocessados causam à saúde humana e ao meio ambiente.

Quando avaliamos os alimentos conforme seu grau de processamento, fica mais fácil distinguir entre comida de verdade e esses comestíveis que a indústria nos oferece, produtos que muitas vezes nem merecem ser chamados de alimentos. Comer esse tipo de produto, seja de forma esporádica ou, muito pior, diariamente, é um hábito artificial, que foi naturalizado por meio de propaganda constante.

Com a percepção voltada ao paladar e ao tipo de sensação corporal que os alimentos trazem, podemos recuperar nossa preferência natural pela comida de verdade. Só ela pode trazer a energia vital que nutre e fortalece nossos corpos. Alimentar-se é, sim, um ato político e, antes disso, é uma prática diária de saúde.

ultraprocessados

Certos itens vendidos nos mercados deveriam usar a expressão “produto comestível” em suas embalagens, em vez da palavra “alimento”. Esses materiais podem ser mastigados e engolidos, têm aroma e sabor que tentam imitar comida, mas não são exatamente alimentos. Estamos falando dos ultraprocessados.

Muita gente já evita o consumo desses produtos, por saber o quanto eles fazem mal. Mas a grande maioria das pessoas ainda consome isso normalmente, sem fazer ideia do que estão comendo.

No início do século XX, as doenças infecciosas eram a maior causa de morte na população mundial. Atualmente, são as doenças crônicas não transmissíveis que mais matam gente. Esse tipo de doença muitas vezes está relacionado ao modo de vida. Enquanto a melhoria das condições sanitárias e o desenvolvimento das tecnologias de imunização afastaram a ameaça das doenças infecciosas, hoje são nossas escolhas como sociedade que estão nos matando.

Para ajudar a nortear essas escolhas, o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde – NUPENS e a Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis, ambos ligados à Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, produziram o Diálogo sobre Ultraprocessados: soluções para sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis. O documento reúne uma enorme quantidade de evidências científicas que demonstram os males que os ultraprocessados causam à saúde.

As evidências apresentadas são estudos realizados por cientistas de diversos países. O documento traz uma longa seção de referencias, com as pesquisas que demonstraram os danos causados pelos ultraprocessados, para que o público leitor possa conhecê-las diretamente, se quiser. Bom lembrar que a seleção desses artigos foi feita por pesquisadores de uma faculdade de saúde pública, que sabem distinguir pesquisas bem fundamentadas daquelas menos válidas devido a problemas metodológicos.

Imagem: divulgação

Alguns dos males causados pelos ultraprocessados são velhos conhecidos: ganho de peso, obesidade, síndrome metabólica, diabetes, hipertensão e outras doenças cardiovasculares. O documento alerta também para uma série de doenças cuja relação com o consumo de ultraprocessados é bem menos trivial: depressão, câncer de mama, cânceres em geral, asma em crianças, dislipidemias, disfunções renais e mortes prematuras.

Mas por que os ultraprocessados fazem tão mal?

É preciso entender que os problemas dos ultraprocessados vão muito além do excesso de açúcar, sódio ou gorduras saturadas. Além desses excessos e da presença de outras substâncias nocivas, como certos conservantes, existe o fato de haver muito pouco ou nada de nutritivo ali. É aqui que aparece o sentido do termo ‘ultraprocessado’. As técnicas usadas em sua produção desconfiguram completamente as matérias-primas, destruindo sua matriz alimentar. Ou seja, mesmo que um refresco de caixinha alegue que tem certa porcentagem de suco natural de laranja, nada resta ali dos nutrientes da fruta.

É muito comum também que esses comestíveis não tenham absolutamente nada daquilo que dizem ser. Por exemplo, em um doce sabor chocolate (note a sutileza no uso da palavra ‘sabor’, de forma a não comprometer a empresa com as leis de proteção do consumidor), é bem provável que não haja ali nenhuma molécula que já fez parte de um pé de cacau.

Os aditivos alimentares usados para compor o aroma, o sabor, a textura e a aparência desses produtos prejudicam a biota intestinal, desregulando o sistema digestório e afetando a absorção de nutrientes e a saúde dos tecidos. Os ultraprocessados têm também compostos químicos que desregulam o sistema endócrino, provocando mudanças metabólicas no organismo.

As altas quantidades de açúcar, saborizantes e gorduras saturadas fazem com que esses produtos tenham sabor muito acentuado, estimulando seu consumo excessivo. O desenho das embalagens, a publicidade (ainda mais grave no caso daquela voltada para crianças) e as técnicas promocionais de ponto de venda atuam no nível emocional, de forma muitas vezes inconsciente, estimulando o consumo desses produtos e fazendo o consumidor esquecer daquilo que realmente alimenta.

E é sempre bom lembrar: as alegações nutricionais presentes nas embalagens costumam ser completamente enganosas, iludindo o consumidor, fazendo-o pensar que está se alimentando quando, na verdade, está apenas enchendo a barriga.

As conclusões podem ser resumidas numa frase que aparece com destaque no documento: “Não há uma quantidade segura para a ingestão de produtos alimentícios ultraprocessados”. Ou seja, aquela ideia de que ‘só um pouquinho não vai fazer mal’ não se aplica a esses produtos. Exatamente igual ao cigarro.

Como se isso tudo não bastasse, os ultraprocessados também fazem mal ao meio ambiente. Para além das consequências estritamente individuais do consumo desse tipo de produto, entramos em um campo que diz respeito aos impactos coletivos de um sistema alimentar no qual esses comestíveis têm grande presença. O documento aponta três impactos principais: mudanças na forma de uso da terra e diminuição da biodiversidade; aumento no uso de embalagens e geração de resíduos sólidos; aumento nas emissões de gases do efeito estufa.

No sistema produtivo dos ultraprocessados, a função da terra não é gerar alimentos, mas matérias-primas para a produção de comestíveis. Glucose, maltose, maltodextrina, frutose e dextrose são alguns exemplos de derivados do milho amplamente utilizados nessa indústria. A produção em larga escala do milho e de outras commodities agrícolas prioriza variedades de alta produtividade, geralmente com modificações genéticas. Isso leva ao abandono de outras variedades, que podem até mesmo acabar extintas. A monocultura intensiva é peça essencial de um sistema alimentar em que os ultraprocessados são amplamente consumidos.

O aumento do uso de embalagens associado ao consumo desses produtos dispensa maiores explicações. Pense, por exemplo, naquelas bolachas que vêm agrupadas em pacotinhos de plástico que, por sua vez, vêm dentro de outras embalagens de plástico. Ou naquele lanche que sai da chapa e é colocado dentro de uma embalagem elaborada que, poucos segundos depois, será aberta, amassada e jogada no lixo. É preciso também lembrar dos resíduos químicos gerados pela indústria durante a produção dos materiais dessas embalagens.

O documento aponta estudos de diversos países que associam partes consideráveis das emissões de gases do efeito estufa à produção, armazenamento e transporte dos ultraprocessados. No Brasil, vem sendo observado um preocupante incremento na pegada de carbono relacionada a esses produtos, cuja participação na dieta dos brasileiros aumentou em 340% nos últimos 30 anos.

Para lidar com essa tendência mórbida, o documento propõe diversas soluções, entre as quais: ampla utilização de guias alimentares (área na qual o Brasil é pioneiro), regulação da rotulagem e publicidade desses produtos, restrição da oferta em ambientes escolares, aumento da tributação (para aumentar o preço e diminuir o consumo) aliado ao incentivo à escolha de produtos saudáveis (in natura ou minimamente processados).

A produção e o consumo de ultraprocessados estão totalmente integrados a um sistema alimentar baseado em concentração de capital, agricultura de larga escala, uso intensivo de pesticidas e fertilizantes químicos, grandes distâncias entre produção e consumo, domínio de grandes redes de distribuição, desatenção com o ato de se alimentar. As corporações que monopolizam a distribuição e o varejo conseguem controlar a disponibilidade e o preço desse tipo de produto, fazendo-os estarem em todos os lugares e muitas vezes a um preço aparentemente baixo se comparados a alternativas mais saudáveis.

A demanda por ultraprocessados é mantida artificialmente por efeito da publicidade e da convivência com pessoas que os consomem, dando a impressão de que é normal consumi-los. Em uma época já passada, esses comestíveis foram muito associados a praticidade e modernidade. Hoje, vai ficando cada vez mais evidente a sua relação com as doenças que mais matam pessoas. Felizmente temos alternativas. Ao fazermos melhores escolhas, estamos nutrindo nosso corpo e fortalecendo sistemas alimentares mais saudáveis, justos e humanos.

guia alimentar

Produzido com a participação de especialistas de várias áreas, o Guia Alimentar para a População Brasileira, editado pelo Ministério da Saúde em 2014, é uma importante obra de referência para a educação alimentar num sentido amplo, voltada para a população em geral. Oferece uma oportunidade para que cada um possa refletir sobre suas práticas alimentares e compreender a amplitude de aspectos que estão relacionados à alimentação, muitas vezes sem nos darmos conta disso.

Trata-se de um esforço para melhorar as condições de saúde da população por meio da alimentação adequada e saudável, diante do aumento nos índices de obesidade e de diversas doenças, relacionado a um processo contínuo de substituição de alimentos in natura por alimentos ultraprocessados, observado em todas as regiões do país e todas as camadas da população.

É preciso enfatizar que o Guia Alimentar não é nem um livro de receitas nem um manual de dieta alimentar, com tabelas nutricionais de cada prato ou refeição. O Guia aborda o tema da alimentação de forma abrangente, desde a escolha e aquisição dos alimentos, passando pelo seu preparo, até o momento da refeição propriamente dito, com todos os aspectos relacionais e sociais envolvidos. Além disso, se propõe a ser referência para a população brasileira, com toda sua diversidade física e cultural.

Há sim sugestões de cardápios. Mas em vez de elas virem da fala de autoridade de profissionais, amparados em complexos cálculos nutricionais, vêm da mesa de brasileiros reais, das diferentes regiões do país, que consomem esses cardápios em seu dia a dia, seguindo suas referências culturais e tradições familiares. Para cada uma das três grandes refeições diárias (café da manhã, almoço e janta), são apresentados, a título de exemplo, oito cardápios compostos exclusivamente de alimentos in natura ou minimamente processados.

Imagem: divulgação

Ao longo de todo seu texto, o Guia enfatiza que alimentar-se é também um ato político e comunitário, já que muitas das escolhas têm efeitos que vão muito além do aspecto fisiológico individual. Ao escolher meus alimentos, que pessoas ou corporações eu estou remunerando com o pagamento da minha compra? Que sistema alimentar eu estou fortalecendo? Quais agentes econômicos se beneficiam quando escolho comprar em uma grande rede varejista sem fazer ideia sobre quem produziu esta comida e quantos quilômetros ela percorreu até chegar aqui?

Depois de escolher, adquirir e preparar os alimentos, chegamos ao ato de alimentar-se propriamente dito. Quem está comigo neste momento? Que pessoas estão próximas em meu cotidiano a ponto de compartilharem comigo este ato tão importante para o corpo, a mente e o grupo comunitário? Que relações entre semelhantes eu estou fortalecendo durante esses minutos tão importantes à saúde? Com quem estou compartilhando minhas opiniões sobre saúde, nutrição, comunidade, projeto de vida?

Interessante lembrar que a importância da comensalidade foi mais uma vez demonstrada durante a pandemia. O trabalho remoto tirou a hora do almoço da rotina diária dos trabalhadores. Especialistas da área da saúde mental apontam a perda desse importante momento de convivência e compartilhamento entre colegas de trabalho como um fator, entre tantos outros, para o aumento de ansiedade e depressão entre as pessoas que passaram a trabalhar isoladas em suas casas.

Outro aspecto importante do ato de alimentar-se é a experiência consciente dos aromas e sabores da refeição. Observe um restaurante que as pessoas frequentam diariamente em seu horário de almoço e procure contar quantas não estão mexendo no telefone enquanto mastigam. Com a atenção totalmente tomada pela sedução digital, mal percebem o sabor do que estão ingerindo, o ato de comer torna-se um gesto mecânico e meramente funcional, excluindo do cotidiano o prazer de comer!

Em diversas passagens, o Guia Alimentar enfatiza a importância de se separar o ato de alimentar-se das praticas de consumo ou da exposição à publicidade comercial. Em locais como praças de alimentação, a refeição se confunde com um gesto de consumo. Também sugere que as pessoas evitem comer enquanto se expõem a mensagens publicitárias, que trazem imagens que afetam profundamente, ainda que de maneira inconsciente, não apenas a escolha dos alimentos como a satisfação – ou frustração – proporcionada por aquilo que se está comendo.

Detalhes como esses mostram o interesse público da obra, pois ela orienta os cidadãos a se resguardarem dos interesses corporativos da indústria da alimentação.

Foto: Fauxels / Pexels

A edição de 2014 do Guia Alimentar para a População Brasileira tem atualizações significativas em relação a sua primeira edição, de 2006, não somente em seus conteúdos, mas também na linguagem e na forma como foi elaborado. Especialistas das áreas da saúde, educação, agricultura, professores de universidades e membros de organizações de defesa do consumidor foram reunidos em uma oficina de escuta. Uma versão preliminar ficou então por três meses em consulta pública na página do Ministério da Saúde e foi objeto de novas oficinas, em todos os estados do Brasil, para acolher as diferentes percepções do público em geral, incorporando à obra a imensa diversidade regional do país.

Escrito em um estilo de texto leve, trazendo recomendações sem tom impositivo, o Guia se destaca em meio a tantas mensagens sobre alimentação disponíveis atualmente na mídia, seja da publicidade, seja dos especialistas de plantão, que nos dizem o tempo todo, em tom muitas vezes taxativo e autoritário, como devemos e como não devemos comer. Estilisticamente, soa como uma refeição suave e caseira para quem está acostumado com comida industrializada cheia de realçador de sabor.

Todos esses aspectos do Guia convidam a uma degustação lenta, prolongando o prazer e a profundidade da reflexão. É perfeito como tema de aulas, rodas de conversa, oficinas e estudos dirigidos, um ótimo material para ser lido e estudado por professores, terapeutas, cuidadores, gastrônomos, profissionais da saúde. Além de estimular mudanças positivas nos hábitos alimentares, tem a importante missão de formar e informar cidadãos para que possam exigir o cumprimento do direito humano a uma alimentação decente e saudável.

projeções do agronegócio

Para que serve a terra no Brasil? Para produzir alimentos ou para ganhar muito dinheiro?

Um documento produzido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento traz informações desanimadoras para quem acredita que a terra deveria servir para saciar a fome das pessoas. Resumindo: alimentos como arroz, feijão, batata, mandioca, banana e café estão perdendo áreas de cultivo, enquanto commodities como milho, soja, algodão, fumo e cana de açúcar estão ganhando ainda mais território.

Reeditado a cada ano, o relatório Projeções do Agronegócio traz estimativas sobre como ficará a atividade agrícola nos dez anos seguintes à sua publicação. O último relatório disponível neste momento é de 2021, e suas projeções vão até o ano safra 2030/2031.

Os dados mais assustadores se referem à perda da área plantada de alguns alimentos. O arroz deve perder 62% de seu espaço: dos 1.687 mil hectares dedicados ao seu plantio em 2020/2021, devem restar apenas 641 mil hectares em 2030/2031. O feijão, que no ano safra 2020/2021 dispõe de 2.898 mil hectares para seu cultivo, ficará com apenas 1.830 mil hectares em 2030/2031, uma perda de 36,8%.

Enquanto isso, produtos agrícolas que servem principalmente como matérias primas industriais, e não como alimentos saudáveis, estão em expansão. A área plantada de milho deve crescer de 19.841 mil hectares em 2020/2021 para 21.948 mil hectares em 2030/2031, um aumento de 10,6%. O crescimento da soja é ainda maior: de 38.502 mil hectares em 2020/2021, deve subir para 48.851 mil hectares em 2030/2031, aumento de 26,8%.

O relatório fala das possibilidades à disposição do agronegócio para aumentar a área plantada dessas culturas. Um exemplo: “A expansão de área de soja e cana-de-açúcar deverá ocorrer pela incorporação de áreas novas, áreas de pastagens naturais e também pela substituição de outras lavouras que deverão ceder área” (p. 87). Note o uso das expressões ‘incorporação de áreas novas’, que pode servir de eufemismo para ‘desmatamento’, e ‘substituição de outras lavouras que deverão ceder área’, uma referência a cultivos que estão perdendo área plantada, onde se incluem o arroz e o feijão.

Os dados que o relatório apresenta sobre anos anteriores mostram que a redução das áreas plantadas de arroz e de feijão já é um processo em curso há pelo menos dez anos. Entre os anos safra 2009/2010 e 2019/2020, esses cultivos perderam, respectivamente, 39,7% e 18,9% de seus territórios. No mesmo período, houve enorme expansão das commodities: 42,6% no caso do milho e 57,4% no caso da soja.

Área Plantada com 5 principais grãos – Brasil (mil hectares). Fonte: Projeções do Agronegócio 2020/2021 a 2030/2031. CLIQUE PARA AMPLIAR

No momento atual, a diferença entre as áreas plantadas de alimentos e de commodities é gritante. A título de exemplo, em 2020/2021 temos 4.585 mil hectares na soma das áreas de arroz e feijão, contra 58.343 mil hectares no total para milho e soja. A área dedicada a estas duas commodities é 12,7 vezes maior que a área de cultivo de dois dos principais alimentos dos brasileiros.

O estudo avalia que “algumas lavouras, como mandioca, café, arroz, laranja e feijão, devem perder área, mas a redução será compensada por ganhos de produtividade” (p. 86). As estimativas para 2030/2031 são de que, nessas condições, a produção de arroz cresça 3,4% e a produção de feijão caia 1,2%.

Ganhos de produtividade são incertos e, sobretudo para as pequenas propriedades, responsáveis pela maior parte dos cultivos de arroz e feijão, dependem de programas de fomento à produção e de assistência técnica e extensão rural. Por outro lado, os grandes estabelecimentos produtivos do agronegócio, altamente capitalizados, conseguem sem dificuldade comprar ou arrendar propriedades menores que hoje produzem alimentos. Assim, o cenário apontado no relatório é extremamente delicado. Políticas públicas específicas para a produção de alimentos são essenciais para evitar redução nas colheitas, fazendo os preços subirem ainda mais.

Se há mesmo perspectivas de aumento de produtividade nos cultivos de arroz e feijão, melhor seria se isso fosse usado para trazer um sensível crescimento de sua produção, provocando queda nos preços e facilitando o acesso da população a esses alimentos. Infelizmente, no olhar do agronegócio, o esperado ganho de produtividade de arroz e feijão é apenas mais um fator para contribuir na expansão das commodities, mesmo havendo 33,1 milhões de brasileiros passando fome.

Para argumentar que a perda de áreas de cultivo de alimentos não levará a problemas de abastecimento, o relatório apresenta ainda um prognóstico de queda no consumo de arroz e feijão. Os cálculos dizem que, até 2030/2031, o consumo de arroz no Brasil deve cair 2,2% e o de feijão deve cair 0,7%.

Se mesmo com as expectativas de que a população brasileira cresça até 2030 esses prognósticos estiverem corretos, o relatório está anunciando um futuro tenebroso. A queda no consumo desses dois itens básicos na cultura alimentar brasileira só pode significar duas coisas: ou as pessoas vão mesmo comer menos (ou seja, mais fome!) ou passarão a comer outras coisas (provavelmente menos saudáveis). Provavelmente, ambos.

De fato, o Atlas das situações alimentares no Brasil já aponta, com base em dados de 2002 a 2018, uma queda no consumo de alimentos in natura ou minimamente processados, acompanhada de um aumento no consumo dos alimentos processados e ultraprocessados. Estamos diante de um cenário de aumento da fome e queda na qualidade da alimentação.

O relatório Projeções do Agronegócio é escrito na perspectiva daqueles para quem a agricultura é uma atividade para se ganhar muito dinheiro. Ao falar da alta nos preços agrícolas em 2021, apresenta isso como uma boa notícia: “os preços de carnes, bovina e suína, e também de milho e soja sobressaem-se em relação aos demais. São produtos que têm-se beneficiado do comércio internacional favorável, e da taxa de câmbio vigente neste ano” (p. 9, grifos nossos).

Com o dólar em alta, quem exporta ganha mais dinheiro, e isso puxa os preços internos para cima. Numa perspectiva de combate à fome, que definitivamente não é a do agronegócio, boa notícia seria uma queda de preços, pois isso significaria alimentos mais baratos para a população brasileira.

Cabe aqui citar um trecho de um livro do professor José Graziano da Silva, em que ele descreve o latifúndio escravista, principal atividade econômica do Brasil colônia, mais de quatrocentos anos no passado.

“A produção de alimentos do latifúndio variava muito em função do preço do seu produto principal destinado à exportação. Por exemplo, quando o preço do açúcar (e mais tarde do café) subia no mercado mundial, todas as terras e os escravos eram utilizados para expandir a sua produção, diminuindo assim a produção de alimentos. Nesses períodos havia fome na colônia e as autoridades estimulavam os pequenos agricultores a expandirem sua produção, para abastecer não só as vilas e cidades, como às vezes os próprios latifúndios” (O que é Questão Agrária, p. 27).

Perceba como vivemos exatamente no mesmo país que ele descreve.

Apenas dois comentários sobre essa rápida viagem no tempo. A fome, que segue firme aqui na colônia, tem basicamente as mesmas causas estruturais. E quem de fato alimenta este país são e sempre foram os pequenos agricultores.

aquisição de alimentos

Uma forma de se caracterizar as situações alimentares existentes no país é através dos dados sobre a aquisição de alimentos. Aqui temos em vista a alimentação que as pessoas fazem em seus domicílios, desconsiderando aquilo que elas comem fora de casa. Por outro lado, neste tipo de pesquisa o IBGE computa as informações tanto daquilo que as famílias compram (aquisições monetárias) quanto dos alimentos obtidos de outras formas (aquisições não monetárias), como através de produção própria, coleta em hortas, pomares e canteiros, pesca, caça e doações recebidas.

O Atlas das situações alimentares no Brasil: a disponibilidade domiciliar de alimentos e a fome no Brasil contemporâneo, publicado em 2021, traz informações interessantes referentes à aquisição de alimentos pelos brasileiros. O estudo utilizou dados de diversas edições da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), elaboradas pelo IBGE. O Atlas apresenta os dados de maneira um tanto restrita, omitindo informações que poderiam ser do interesse de alguns leitores, mas ainda assim permite observações interessantes.

Foram computados os dados de aquisição de alimentos per capita em quilogramas, organizando em grupos alimentares os itens adquiridos pelas famílias. Porém apenas alguns dados relativos são apresentados. A aquisição alimentar da classe de maior rendimento (mais de 15 salários-mínimos) é, como se poderia supor, acima da média geral em vários grupos alimentares. A aquisição de frutas dessa classe, por exemplo, é 124,9% superior à média geral. Essa classe também se destaca em outros grupos alimentares: hortaliças folhosas e florais (114,3% acima da média), hortaliças frutosas, tuberosas e outras (83,6% acima da média) e laticínios (74,5% acima da média geral).

Diferença na aquisição alimentar per capita anual em relação à média nacional (2017-2018). Dados: IBGE. Adaptado de Atlas das situações alimentares no Brasil. CLIQUE PARA AMPLIAR

Porém o grupo alimentar em que há o maior destaque dessa classe econômica são os alimentos preparados e misturas industriais, no qual o consumo dessa classe é 187% acima da média geral. Nesse grupo encontram-se produtos como alimentos congelados, refeições prontas, frango empanado, batata frita, salgadinhos e misturas para bolo. São produtos de maior valor agregado (ainda que alguns deles sejam de baixíssimo valor nutricional), o que pode explicar o fato de aparecerem com destaque nessa classe econômica.

A classe de menor rendimento (até 2 salários-mínimos) se destaca da média geral na aquisição de alguns grupos alimentares: farinhas e féculas (17,4% acima da média), feijão (12,1% acima da média) e arroz (11,9% acima da média).

In natura e ultraprocessados

O estudo também apresenta uma avaliação da disponibilidade domiciliar de alimentos com base em uma classificação diferente proposta pelo IBGE, a qual agrupa os produtos alimentares com base na extensão de seu processamento industrial. Essa classificação resulta em quatro grupos alimentares: alimentos in natura (ou minimamente processados), ingredientes culinários (processados), alimentos processados e alimentos ultraprocessados.

As regiões sul e sudeste são aquelas onde a aquisição de ultraprocessados é maior entre as famílias (22% e 21,4%, respectivamente). É nessas duas regiões também que se observam os menores percentuais na aquisição de alimentos in natura: 47,3% na região sul e 44,9% na região sudeste. A região norte é a que apresenta, ao mesmo tempo, a menor participação de alimentos ultraprocessados (11,4%) e a maior participação de alimentos in natura (58,2%) na aquisição de alimentos pelas famílias.

Participação dos grupos de alimentos no total de calorias a partir da aquisição domiciliar (2017-2018). Dados: IBGE. Adaptado de Atlas das situações alimentares no Brasil. CLIQUE PARA AMPLIAR

A situação do domicílio (urbano ou rural) também influencia na participação dos ultraprocessados. Nos domicílios urbanos, a aquisição de ultraprocessados representa 19,8% da aquisição das famílias, contra apenas 11,3% nos domicílios rurais. Inversamente, os alimentos in natura representam 47,7% da aquisição alimentar dos domicílios urbanos, número que sobe para 57,9% nos domicílios rurais.

A aquisição de alimentos in natura e ultraprocessados varia de maneira bem marcada conforme a renda. Entre os 20% mais pobres, os alimentos in natura representam 55,6% da aquisição dos domicílios e os ultraprocessados representam 12,5%. Ao longo dos outros grupos de renda, os alimentos in natura vão diminuindo e os ultraprocessados vão aumentando com regularidade, até chegarmos aos 20% mais ricos, onde a participação dos alimentos in natura cai para 44,2% e a dos alimentos ultraprocessados sobe para 24,7%, praticamente um quarto da aquisição de produtos alimentícios nesses domicílios.

Percebe-se como existe aqui uma questão de cultura alimentar. Os 20% mais ricos, que teriam condições de fazer melhores escolhas, inclusive com alimentos orgânicos, tidos como caros, optam mais por produtos comestíveis de baixíssimo valor nutricional.

Um olhar ao longo dos anos também mostra a diminuição gradual dos alimentos in natura e o aumento dos ultraprocessados na aquisição das famílias. Os alimentos in natura caem de 53,3% em 2002/2003 para 49,5% em 2017/2018. Ao mesmo tempo, os ultraprocessados crescem de 12,6% em 2002/2003 para 18,4% em 2017/2018.

Vemos, assim, dados que associam o avanço da chamada vida urbana moderna a hábitos alimentares de menor qualidade.

preço por unidade de medida

Na gôndola do mercado, você encontra diversas opções de biscoitos industrializados. Um deles é um biscoito quadrado dito integral, de uma marca bem conceituada, em uma embalagem de 200 gramas, ao preço unitário de R$ 2,76. Outro é um biscoito tipo água e sal comum, de uma marca considerada mais popular, com 160 gramas, por R$ 2,39. Qual desses dois produtos, vendidos em quantidades diferentes, é o mais barato?

Muitos consumidores apostarão na segunda opção. Mesmo com a diferença de peso, seu valor unitário parece bem menor. E além de não ser integral, é de uma marca menos conceituada. Porém, uma conta simples vai surpreender. Dividindo o preço do primeiro por seu peso em quilogramas (0,2), temos o valor de R$ 13,80 o quilo. Fazemos a mesma conta para o segundo, seu preço unitário deve ser dividido por 0,16 quilos (outra forma de dizer 160 gramas), e chegaremos no valor de R$ 14,94 o quilo. Apesar das aparências, o segundo biscoito é o mais caro!

Outro bom exemplo de armadilha é o sabão em pó oferecido em embalagem de 800 gramas por R$ 5,49 e em embalagem chamada de ‘econômica’, com 2,4 quilogramas, por R$ 17,90. Se você fizer as contas (apresentadas no texto anterior deste blogue), verá que é mais barato levar três embalagens menores do que uma ‘econômica’.

A política de preços aliada à escolha do tamanho das embalagens é um instrumento à disposição de fabricantes e comerciantes para atingir seus principais (e muitas vezes únicos) objetivos: aumentar as vendas e maximizar os ganhos. Ao jogarem com preços e quantidades nas embalagens, lançam mão de um artifício que tem a finalidade de fazer o consumidor pagar mais caro enquanto pensa que está pagando mais barato.

Há duas possibilidades de defesa contra essas armadilhas. Uma delas depende da iniciativa individual do consumidor: usar a calculadora do telefone celular (que hoje a maioria das pessoas carrega sempre no bolso) e converter os preços para uma unidade em comum, como fizemos acima, para fazer a comparação.

A outra forma de defesa seria, visto que temos aqui uma questão de interesse coletivo, uma lei que obrigasse os estabelecimentos comerciais a exibir nas gôndolas os preços por unidade de medida dos produtos. Essa obrigatoriedade existe há anos em diversos países. Há no Brasil, pelo menos na cidade de São Paulo, alguns raros mercados que espontaneamente já exibem os preços por unidade nas etiquetas de gôndola. Porém, por não se tratar de uma obrigação, eles podem abandonar essa prática a qualquer momento, conforme suas decisões gerenciais. Isso deveria estar em todos os lugares.

Houve em 2015 um primeiro esforço no sentido de regulamentar e generalizar essa prática. A lei nº 13.175/2015 determina a exibição do preço por unidade de medida no comércio de varejo, porém apenas na venda de produtos fracionados em pequenas quantidades. Por ser um caso específico demais, ela não se aplica aos milhares de produtos que chegam já embalados de fábrica. Assim, não ajuda em nada.

Alguns anos mais tarde, um projeto de lei propõe estender a obrigatoriedade a todos os produtos embalados à venda no varejo. O projeto de lei nº 4.355, apresentado em agosto de 2019, determina a exibição do preço por unidade de medida com a finalidade expressa de possibilitar que o consumidor efetue a comparação de preços entre produtos iguais ou similares, oferecidos em embalagens com quantidades diferentes entre si. Porém, até o momento, este projeto de lei encontra-se ainda em tramitação e, ao que tudo indica, está parado em alguma gaveta. Por ser uma interessante amostra de como um projeto de interesse público pode ser tratado de forma a dificultar sua aprovação, segue um breve resumo de como ele tramitou desde sua proposição até agora.

Ao receber o projeto de lei, a mesa diretora da câmara dos deputados determinou que ele passasse por algumas comissões, procedimento de praxe para avaliar seus aspectos técnicos específicos. São elas: Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços (CDEICS), Defesa do Consumidor (CDC) e Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). O projeto chega à primeira delas, a CDEICS, ainda no mês de agosto. É designado um relator, que vai conduzir a análise do projeto pela comissão. Em setembro, encerra-se o prazo para emendas ao projeto, sem que nenhuma tenha sido apresentada. Em novembro o relator apresenta seu parecer, no qual considera o projeto meritório e vota por sua aprovação.

Em dezembro de 2019 o projeto vai para reunião deliberativa. A sessão foi registrada em vídeo, que se encontra disponível no portal da câmara dos deputados (a avaliação deste PL começa no ponto 1:35’07” da gravação). Após fala inicial do relator, na qual ele se declara favorável, o projeto passa a ser discutido por outros membros da comissão.

Quatro deputados manifestam-se contrários ao projeto, sendo que alguns dos argumentos apresentados são falsos ou completamente sem sentido. Três desses deputados vão na linha de dizer que “isso já acontece” ou “o Código de Defesa do Consumidor já pede esse padrão”. Além de isso não ser verdade, esses argumentos têm a evidente finalidade de criar a impressão de que o projeto é desnecessário por ser redundante. Há também argumentos relacionados aos custos gerados pela medida. Um deles classifica isso como “barreiras ao empreendedor” e alega que “ninguém é obrigado a comprar nada, ninguém põe um revolver na cabeça [do consumidor] obrigando-o a comprar”. Um intrigante desafio à inteligência humana.

O último deputado a se manifestar, após chamar o projeto de “controverso”, pede vista ao relatório. O pedido de vista é um ritual de tramitação que dá à parte interessada mais tempo para reunir informações e formar opiniões sobre o assunto, o que tem o efeito de tirar o projeto, por um período determinado de tempo, da pauta da comissão. O presidente da sessão responde afirmativamente ao pedido de vista antes mesmo do término da frase do deputado. Enquanto o presidente encaminha a continuidade da sessão para o próximo assunto em pauta, a câmera ainda mostra, por alguns segundos, esse deputado que pediu vista. É possível vê-lo lançando uma expressão facial cheia de cumplicidade, com piscadinha e tudo, a algum outro membro que não dá para identificar pelo vídeo.

No ano de 2020, primeiro da pandemia, não há tramitação. O único fato mencionado é que, em fevereiro desse ano, o relator (aquela única pessoa a se manifestar favoravelmente na discussão) deixa de ser membro da comissão. Em março de 2021 encerra-se o prazo do pedido de vista concedido a um dos deputados. Em abril do mesmo ano é designado um novo relator. Desde então, não há no portal da câmara dos deputados nenhum outro registro de tramitação desse projeto de lei. Uma vez aprovado na câmara, o projeto precisaria ainda passar pelo senado e então seguir para sanção presidencial.

Paralelamente a esse projeto de lei federal, há também algumas iniciativas isoladas em nível estadual. Este blogue teve conhecimento de duas delas. Uma é a lei nº 7.834/2016 do estado de Alagoas, originada por um projeto de lei de 2015. Esta lei está, teoricamente, em vigor no estado. Buscaremos informações complementares sobre a efetividade concreta dessa lei nos supermercados de lá. A outra iniciativa é o projeto de lei nº 3.859/2018, em tramitação na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O último registro de tramitação desse projeto disponível no portal dessa casa legislativa data do início deste mês, agosto de 2021. Na prática, o projeto ainda não está aprovado.

Se, por um lado, os estabelecimentos comerciais poderiam ter o interesse de prestar um bom serviço a seus fregueses, fornecendo informações transparentes que facilitem suas escolhas, por outro, eles têm negócios milionários com seus parceiros fornecedores. Tendem, portanto, a se alinhar com os interesses destes últimos. Ao não informar o preço por unidade de medida, podem beneficiar-se de promoções enganosas, nas quais vendem mais caro produtos que deveriam ser mais baratos. Podem também usar as diferenças de quantidade para mascarar diferenças de preço dos produtos de qualidades diferentes.

Na ponta da cadeia econômica encontra-se o consumidor, aparentemente sozinho. Enquanto não temos leis efetivas a esse respeito, parece que a única alternativa para se defender desse tipo de armadilha é perder a resistência em lidar com números e jamais ter vergonha de usar a calculadora na frente da gôndola ao escolher as compras.

dúzia de dez

Sabemos que a educação precária é uma grande aliada do capital. Graças às deficiências educacionais em habilidades matemáticas bem simples, que qualquer pessoa com ensino fundamental completo deveria dominar, as empresas podem jogar com preços em seu benefício, sem que o consumidor se dê conta disso. A variação da quantidade de produto nas embalagens é uma estratégia eficaz dos fabricantes e varejistas para mascarar diferenças de preços.

Vejamos o caso real de um sabão em pó oferecido em dois tamanhos diferentes. A embalagem de 800g custa R$ 5,49. Existe também uma embalagem dita econômica, com 2,4kg, vendida a R$ 17,90. Acostumado a pensar que em quantidades maiores os produtos saem mais em conta, e influenciado pela palavra ‘econômica’ impressa na embalagem, o consumidor não hesita. Aproveita para reforçar o estoque da casa e escolhe a embalagem de 2,4kg. Mal sabe ele que está pagando mais caro ao fazer essa opção. Se levasse três embalagens de 800g, pagaria menos pela mesma quantidade de produto.

Foto: Dionizio Bueno, março/2021

Mesmo nesse raro caso em que o peso da embalagem maior é um múltiplo da embalagem menor (geralmente não são, exatamente para dificultar comparações), esse consumidor nem pensou em multiplicar o preço da embalagem menor por três. Se as pessoas fizessem isso, ninguém jamais levaria a embalagem maior com esses preços. Mas levam. O gerente acompanha diariamente as vendas, podendo fazer pequenos reajustes nos preços quando achar necessário. Existe entre os consumidores uma crença segundo a qual “em quantidades maiores os produtos são mais baratos”. O gerente se aproveita da fé do consumidor nessa crença e coloca esses preços de propósito.

A forma mais garantida de comparar preços é calcular o preço por unidade. Sabão em pó é quantificado por peso, portanto a unidade é o quilograma. Para fazer isso, basta dividir o preço de cada embalagem pela quantidade de quilogramas existente nela. Na embalagem menor há 0,8kg, então dividimos seu preço (R$ 5,49) por 0,8 e obtemos R$ 6,86 por quilograma. Dividimos então o preço da embalagem maior (R$ 17,90) pela quantidade de quilogramas que há nela (2,4), obtendo o valor de R$ 7,46 por quilograma. Fica claro que o produto sai mais caro na embalagem maior. Tendo os preços por quilograma, podemos compará-los, e descobriremos que na embalagem maior o sabão fica 8,7% mais caro.

Três fatores facilitam bastante o uso dessas técnicas pelas empresas.

Primeiro, muitas pessoas não têm o conhecimento matemático para fazer essa conta. Apesar de ser uma operação matemática bastante simples para quem dispõe de uma calculadora – e hoje, com os smartphones, qualquer pessoa tem o tempo todo uma calculadora no bolso – essa operação é ignorada por grande parte da população. Não me lembro de problemas matemáticos desse tipo em meu tempo de escola, e me parece que continua não fazendo parte dos conteúdos escolares atualmente.

Segundo, grande parte daqueles que têm tal conhecimento – e uma calculadora no bolso – abre mão de fazer essa conta, seja por pressa, por preguiça, por sua excessiva confiança nas empresas, por acreditar que sabe a resposta sem fazer a conta, ou talvez até por achar que seria mesquinharia, coisa de quem está precisando, e isso não pega bem socialmente. Pare por dez minutos junto à gôndola de algum supermercado e observe quantas pessoas fazem alguma conta na calculadora enquanto comparam os preços. Provavelmente não verá nenhuma.

E o terceiro fator é a falta de efetividade de uma lei que, se estivéssemos em um país sério, poderia compensar os dois fatores anteriores. Já existe uma lei que obriga os estabelecimentos varejistas a exibirem nas gôndolas, além dos preços unitários de cada embalagem, o preço por unidade do produto: preço por quilograma para produtos quantificados por peso, preço por litro para produtos medidos em volume, preço por metro para produtos que variam em comprimento. Porém, como não está regulamentada, essa lei não tem efeito.

Sem essa lei e sem a iniciativa dos consumidores em fazer cálculos e comparar, são vários os truques usados pelos fabricantes e estabelecimentos comerciais, que costumam articular em parceria as políticas de preços ao consumidor. Os truques funcionam muito bem.

Há fabricantes de pão de forma industrializado que colocam todas as opções do produto a um mesmo preço, variando apenas a quantidade na embalagem. As embalagens dos pães mais simples contêm 500g e, conforme aumenta a “sofisticação” do produto, o peso diminui: 450g, 380g e assim por diante. A maioria dos consumidores ignora que, sendo iguais os preços unitários, o pão de 380g sai 31,6% mais caro que o pão de 500g. É evidente que há diferenças qualitativas entre os dois produtos, mas só conhecendo a diferença no preço por quilograma é que o consumidor pode decidir livremente, segundo seus próprios critérios, se a compra do produto mais caro se justifica.

Um varejista oferece manteiga vegana colocando em destaque que o preço do pote é exatamente o mesmo da concorrente convencional ao lado. Manteiga é um produto que costuma ser vendido em potes de 200g (ainda que haja também opções de potes maiores). Isso é tão comum que talvez muitos não percebam que o pote daquela manteiga diferenciada tem apenas 170g.

Foto: Dionizio Bueno, julho/2021

A embalagem é cuidadosamente projetada com dimensões semelhantes às das marcas concorrentes, com o mesmo diâmetro na parte superior e na tampa, apenas ligeiramente reduzida apenas na parte inferior. Quem nota a diferença de quantidade sabe que ela sai mais caro. Porém, quanto mais cara é essa manteiga? Se a lei fosse efetiva, o consumidor veria na etiqueta de gôndola que a manteiga vegana é vendida a R$ 76,35 o quilograma, enquanto a manteiga concorrente custa R$ 64,90 o quilograma. O preço da vegana é 17,6% maior que o da convencional ao lado.

Certos frigoríficos com lojas de varejo próprias dimensionam suas embalagens sempre com 900g do produto. O consumidor está acostumado a comprar carne e linguiça a granel pensando em seu preço por quilo. Ao entrar nessas lojas, tem na memória como referência o preço por quilo dos açougues e mercados que frequenta. Muitos consumidores talvez achem que é pouca diferença, ou talvez nem percebam que ali tem menos de um quilo. Se uma embalagem dessa custar o mesmo preço que um quilo da mesma carne no açougue em frente, o produto estará 11,1% mais caro nesta embalagem.

Ovos são tradicionalmente vendidos em dúzias. Há também opções de embalagens maiores (por exemplo, com 30 ovos) e menores (por exemplo, com meia dúzia), mas a dúzia é, na cultura brasileira, uma quantidade padrão de ovos, praticamente uma unidade de medida para ovos. Ao fazer listas de compras, raramente se especifica a quantidade unitária de ovos, geralmente escrevemos quantas dúzias pretendemos trazer do mercado.

Eis que surgem variedades diferenciadas: ovos caipiras, ovos orgânicos, ovos de galinhas livres. Por serem tidas como de maior qualidade, essas variedades são vendidas a valores mais altos. Se essa diferença de preços puder ser disfarçada, isso tende a reduzir a resistência do consumidor, que tem diversas opções à sua disposição logo ao lado, na gôndola. A solução para evitar um preço ostensivamente maior é diminuir a quantidade de produto por embalagem.

Cria-se a dúzia de dez. As embalagens são cuidadosamente projetadas para terem o mesmo tamanho externo daquelas que trazem doze ovos, para que o consumidor só perceba a diferença de quantidade se ler as letras miúdas ou contar os ovos. E mesmo entre aqueles que só consomem esses ovos diferenciados, quase sempre vendidos em embalagens com dez unidades, muitos continuarão anotando em dúzias as quantidades de ovos em suas listas de compras.

Para resistir contra as artimanhas que o mercado cria para enganar consumidores, é importante conhecer suas táticas. É necessário também compartilhar esse conhecimento. Adote o hábito de calcular o preço por unidade. Usar a calculadora diante da gôndola é um gesto de quem tem domínio das próprias escolhas, não uma vergonha. Ao comparar ostensivamente os preços por unidade de medida, comentando os valores com quem está próximo, você contribui para difundir uma postura crítica entre consumidores.

A conta é simples, muita gente pode adotar esse hábito, principalmente enquanto a lei brasileira não for efetiva para obrigar a exibição do preço por unidade nas gôndolas, como já acontece em muitos países civilizados.

preços incompletos

Um comerciante seleciona e reúne uma linha de produtos em sua loja, fazendo com que estejam disponíveis em um lugar conveniente para o consumidor. É essa a natureza do trabalho do comerciante, e é por isso que ele é remunerado. Ele oferece ao consumidor a facilidade de não ter que ir até cada produtor para fazer suas compras. A infraestrutura da loja tem um custo, que inclui o trabalho do próprio comerciante. Isso tudo naturalmente é repassado no preço do produto. Quando o preço final em determinado comércio é justo, vale a pena comprar nesse local.

Alimentos orgânicos podem ter um custo de produção maior que aqueles produzidos em larga escala, com uso de máquinas e aditivos químicos que aumentam a produtividade. Mesmo que a qualidade (produtos sem veneno, mais frescos e saudáveis) justifique o preço mais elevado, a comparação com os preços de equivalentes não orgânicos pode gerar resistência no consumidor. Sabendo disso, produtores e comerciantes buscam formas de tornar essa diferença de preços menos evidente, de forma a vencer essa resistência. Bom exemplo disso é a estratégia de usar embalagens com quantidade menor, para que possam ser expostas na gôndola com preços mais próximos de seus equivalentes não orgânicos.

A busca de estratégias para exibir preços mais baixos acaba gerando soluções inovadoras e, às vezes, um tanto polêmicas. Uma prática que tem sido adotada em alguns mercados de orgânicos é exibir preços incompletos dos produtos. Conforme informado em cartazes nesses locais, os valores exibidos nas gôndolas são os preços pagos aos produtores. A margem referente às despesas do ponto comercial é adicionada somente depois, sobre o total da compra.

Matematicamente, você deve saber, tanto faz se uma determinada porcentagem é incorporada ao preço individual de cada produto ou é acrescentada somente ao passar no caixa, sobre a soma total. O resultado é exatamente o mesmo. Porém, a estratégia de exibir valores incompletos permite que os produtos apareçam para o consumidor com preços mais baixos do que eles de fato custarão.

É realmente prazeroso estar nesses mercados. Você se vê cercado de alimentos frescos e exuberantes, a preços que parecem baratos, ainda mais sabendo que tudo ali é orgânico. É fácil se deixar levar pelas aparências. É preciso, porém, fazer um esforço constante para se lembrar que aqueles preços estão incompletos e vão aumentar bem na hora de passar pelo caixa.

Esses estabelecimentos alegam que essa seria uma política de transparência, ao exibir para o consumidor final o valor que os produtores, em sua maioria pequenas propriedades de agricultura familiar, receberam por aqueles produtos. Eles então “convidam” o consumidor a acrescentar uma “contribuição” para ajudar a pagar a infraestrutura do local, sugerindo que essa “contribuição” seja igual a 35% do valor total da compra.

Do ponto de vista econômico, a margem de 35% para um comércio desse tipo é bastante razoável. Um ponto de venda gera despesas como aluguel do espaço, pagamento de funcionários, água, energia e impostos. Esse percentual sobre o preço de custo dos produtos é realista e justificável. O intrigante nessa história é: se essa margem é justa e necessária para o funcionamento do ponto comercial, por que exibir os preços sem ela?

Pode ser interessante para o consumidor saber quanto o produtor recebeu por aquele alimento, mas por que não exibir também o preço final a ser pago pelo consumidor, para que ele possa tomar conscientemente sua decisão de compra? Ao insistirem em omitir o preço completo de cada produto, fica parecendo ser mais uma estratégia para exibir valores menores, de forma que uma comparação pareça vantajosa, seja em relação aos produtos convencionais, seja em relação a produtos também orgânicos em outros estabelecimentos.

E tudo indica que funciona. Já ouvi pessoas dizendo que compram orgânicos nesses mercados porque têm preços iguais ou mesmo menores que produtos não orgânicos. Certa vez perguntei se a pessoa estava levando em conta nessa comparação o adicional de 35%, e ela respondeu: “É verdade, teria que considerar isso também, mas mesmo assim não é tão caro”. Ou seja, o valor que fica é o que está lá escrito, por mais que a pessoa saiba que está incompleto. A menos que você fique o tempo todo com uma calculadora na mão, multiplicando tudo por 1,35 conforme circula na loja, estará usando informações distorcidas ao avaliar os preços.

Foto: Sergey Ryzhov

Infelizmente, muitos produtos são vendidos nesses lugares a preços ainda mais altos do que naquelas conhecidas redes de supermercados e empórios voltados para público de alto poder aquisitivo. É inevitável que acabem se tornando boutiques de alimentos, reforçando sentidos sociais segundo os quais comprar orgânicos é um estilo de vida, de forma perfeitamente integrada à cultura do consumo. Essa proposta é bastante distante da reflexão política, proposta neste blogue e em vários outros ambientes, sobre a maneira como os alimentos são produzidos, distribuídos e escolhidos.

Um desses estabelecimentos chega a afirmar em sua comunicação que, caso optasse por exibir preços já com a margem, estaria praticando “especulação”. Além do erro conceitual no uso desse termo da economia, a afirmação acaba sendo uma ofensa a qualquer comerciante, honesto ou não. Será que, no entender dos gestores do estabelecimento que afirma isso, todos os comerciantes que exibem nas gôndolas o preço de venda completo, com margem, são especuladores?

O que indica se o comércio é justo ou injusto não o fato de exibir na gôndola o preço de custo ou o preço de venda, mas a margem praticada pelo estabelecimento. Se a margem de 35% adotada nesses mercados é mesmo justa, não há motivo para escondê-la. Na prática, esses estabelecimentos não abrem mão de sua margem, apenas contam uma história diferente sobre ela. O que eles fazem é retirar artificialmente dos preços um de seus componentes, fingindo estarem fora da cadeia produtiva, e reaparecem magicamente na hora de fechar a conta.

Eles costumam alegar que os 35% são apenas uma “sugestão”, e que com esse sistema o consumidor pode pagar um percentual abaixo disso, se quiser. Há, porém, diversos relatos de pessoas que escolheram pagar um percentual menor e receberam em troca uma cara bem feia, ou mesmo um pequeno sermão dirigido à sua consciência, questionando sua ética. É possível oferecer flexibilidade de preços, tornando os produtos mais acessíveis, sem distorcer as informações.

Alimentos orgânicos são mais saudáveis do que aqueles produzidos com fertilizantes químicos e venenos contra pragas, e isso pode afetar seus preços. Alimentos produzidos em sítios próximos chegam à mesa mais frescos do que aqueles produzidos em latifúndios a centenas de quilômetros e que, por serem cultivados em larga escala, com agricultura intensiva, podem até ser mais baratos. Trata-se de sistemas produtivos diferentes, cada um com profundas implicações políticas, econômicas e sociais. É importante que as pessoas reflitam sobre o valor dos alimentos e façam suas escolhas conscientemente, conhecendo o preço real dos produtos. Ressignificar o trabalho do comerciante de forma a mascarar os preços dos alimentos acaba parecendo apenas mais uma estratégia de varejo.

confiança à venda

“Estive hoje cedo na horta urbana aqui perto de casa para comprar verduras, temperos e algumas frutas. Trouxe também uma dúzia de ovos das galinhas que vivem ali. Cada ovo de uma cor diferente, coisa linda. Aproveitei para tomar um café com o pessoal lá da horta. Tenho ido lá quase toda semana, é natural que a gente vá fazendo amizade. Gosto muito dos produtos orgânicos que encontro lá. Eles não têm certificado, mas por que eu precisaria disso para confiar neles?”

“Uma amiga, que mora aqui na rua de casa, tem parentes em Minas e viaja sempre. Ela traz um queijo incrível de lá. A família conhece o produtor, que tem um sítio pertinho da cidade, ele cria as próprias vacas. Tenho sempre encomendado duas ou três peças de queijo cada vez que ela vai para lá. Eu e essa amiga temos opiniões parecidas sobre boa alimentação, procuramos sempre que possível evitar comida envenenada, cheia de hormônios e conservantes. Eu nunca estive no sítio desse produtor lá em Minas, mesmo assim tenho sempre um queijo incrível em casa e sei de onde ele vem. Por que eu precisaria que ele fosse certificado?”

“Tenho feito as compras em uma cooperativa de produtores e produtoras. Quem me apresentou esse lugar foi um amigo meu, que é um desses produtores. De tanto encontrar os outros clientes ali, vamos fazendo novas amizades. A maioria ali conhece pelo menos algum desses produtores cooperados, eventualmente já esteve no sítio de onde vêm os produtos. Vamos formando uma rede de confiança e seguimos em diálogo permanente para fortalecer essa rede. Para que precisaríamos de alguém de fora que venha aqui para nos certificar sobre as práticas desses produtores e produtoras?”

Foto: Mael Balland / Pexels

Monoculturas, produção em larga escala, transporte de longa distância, crescimento das cadeias de comercialização, dependência de grandes empresas de distribuição. Essas mudanças surgem na passagem do sistema de produção de alimentos para uma escala industrial, no qual o esquema produtivo vai sendo moldado conforme as preferências do grande capital. Isso afastou a produção do consumo, tornando totalmente inviável que as pessoas conheçam as condições em que os alimentos são produzidos e tudo que acontece com eles até chegarem à mesa. Nesse sistema, para quem busca alimentos saudáveis e livres de veneno e hormônios, a única forma de ter alguma garantia de qualidade é a certificação.

Um certificado nada mais é do que uma narrativa. “Eu, agente certificador com boa reputação perante a sociedade, declaro que este alimento é produzido em condições de acordo com aquilo que você, consumidor consciente, busca ou deveria buscar em um produto como este.” Na outra ponta está o consumidor, destinatário da mensagem. “Eu, consumidor consciente, ao ver nesta embalagem a expressão ‘produto certificado’, dou meu voto de confiança a este produto e, portanto, estou disposto a adquiri-lo, pagando por ele um valor mais elevado que por outro produto equivalente sem certificação.”

O selo de certificação substitui a relação de confiança que deixou de existir no momento em que produtor e consumidor perderam o contato. A confiança, que antes era construída dentro de uma relação humana, pode agora ser adquirida em uma transação econômica.

Há algo de muito interessante na forma que o capital tem de atuar. Primeiro ele molda os sistemas segundo seus interesses, sem qualquer consideração com as necessidades humanas. Isso naturalmente gera problemas. Então o mesmo capital passa a oferecer as soluções para esses problemas, criando novos mercados e beneficiando a si mesmo. Enquanto a sociedade aceitar viver sob a lógica do capital, ele sempre tenderá a se fortalecer.

Para que possam vender confiança junto com seus produtos, os produtores precisam adquiri-la dos fornecedores de confiança, os certificadores. Essa confiança monetizada entra na lista de custos do produto, junto das despesas com insumos, embalagens, salários, impostos. Naturalmente o preço final do produto vai aumentar.

Talvez um fenômeno mais danoso que o aumento do custo seja o fato de a cultura da certificação tornar obsoletas as relações interpessoais de confiança. Muitos leitores provavelmente sorriem diante da ideia de recolocar as relações humanas dentro do sistema produtivo, considerando que isso é coisa de um tempo passado, de relações econômicas primitivas, e que o mundo contemporâneo globalizado não pode mais depender desse tipo de coisa.

Estamos aqui propondo reflexões sobre nosso sistema alimentar e os valores de nossa sociedade que tornam esse sistema possível. Nas situações em que jamais poderia haver possibilidade de contato direto com a produção, como no caso de produtos de biomas distantes, uma narrativa de certificação é de fato melhor que nada para orientar a decisão do consumidor. Não se trata de desvalorizar as certificadoras ou os produtos certificados. Trata-se apenas de ter sempre em mente que, no cenário que sonhamos em ver, e pelo qual lutamos nos campos teórico e prático para construir, restaurando a proximidade e os vínculos entre produtor e consumidor, a certificação é simplesmente desnecessária.