Produzido com a participação de especialistas de várias áreas, o Guia Alimentar para a População Brasileira, editado pelo Ministério da Saúde em 2014, é uma importante obra de referência para a educação alimentar num sentido amplo, voltada para a população em geral. Oferece uma oportunidade para que cada um possa refletir sobre suas práticas alimentares e compreender a amplitude de aspectos que estão relacionados à alimentação, muitas vezes sem nos darmos conta disso.
Trata-se de um esforço para melhorar as condições de saúde da população por meio da alimentação adequada e saudável, diante do aumento nos índices de obesidade e de diversas doenças, relacionado a um processo contínuo de substituição de alimentos in natura por alimentos ultraprocessados, observado em todas as regiões do país e todas as camadas da população.
É preciso enfatizar que o Guia Alimentar não é nem um livro de receitas nem um manual de dieta alimentar, com tabelas nutricionais de cada prato ou refeição. O Guia aborda o tema da alimentação de forma abrangente, desde a escolha e aquisição dos alimentos, passando pelo seu preparo, até o momento da refeição propriamente dito, com todos os aspectos relacionais e sociais envolvidos. Além disso, se propõe a ser referência para a população brasileira, com toda sua diversidade física e cultural.
Há sim sugestões de cardápios. Mas em vez de elas virem da fala de autoridade de profissionais, amparados em complexos cálculos nutricionais, vêm da mesa de brasileiros reais, das diferentes regiões do país, que consomem esses cardápios em seu dia a dia, seguindo suas referências culturais e tradições familiares. Para cada uma das três grandes refeições diárias (café da manhã, almoço e janta), são apresentados, a título de exemplo, oito cardápios compostos exclusivamente de alimentos in natura ou minimamente processados.

Imagem: divulgação
Ao longo de todo seu texto, o Guia enfatiza que alimentar-se é também um ato político e comunitário, já que muitas das escolhas têm efeitos que vão muito além do aspecto fisiológico individual. Ao escolher meus alimentos, que pessoas ou corporações eu estou remunerando com o pagamento da minha compra? Que sistema alimentar eu estou fortalecendo? Quais agentes econômicos se beneficiam quando escolho comprar em uma grande rede varejista sem fazer ideia sobre quem produziu esta comida e quantos quilômetros ela percorreu até chegar aqui?
Depois de escolher, adquirir e preparar os alimentos, chegamos ao ato de alimentar-se propriamente dito. Quem está comigo neste momento? Que pessoas estão próximas em meu cotidiano a ponto de compartilharem comigo este ato tão importante para o corpo, a mente e o grupo comunitário? Que relações entre semelhantes eu estou fortalecendo durante esses minutos tão importantes à saúde? Com quem estou compartilhando minhas opiniões sobre saúde, nutrição, comunidade, projeto de vida?
Interessante lembrar que a importância da comensalidade foi mais uma vez demonstrada durante a pandemia. O trabalho remoto tirou a hora do almoço da rotina diária dos trabalhadores. Especialistas da área da saúde mental apontam a perda desse importante momento de convivência e compartilhamento entre colegas de trabalho como um fator, entre tantos outros, para o aumento de ansiedade e depressão entre as pessoas que passaram a trabalhar isoladas em suas casas.
Outro aspecto importante do ato de alimentar-se é a experiência consciente dos aromas e sabores da refeição. Observe um restaurante que as pessoas frequentam diariamente em seu horário de almoço e procure contar quantas não estão mexendo no telefone enquanto mastigam. Com a atenção totalmente tomada pela sedução digital, mal percebem o sabor do que estão ingerindo, o ato de comer torna-se um gesto mecânico e meramente funcional, excluindo do cotidiano o prazer de comer!
Em diversas passagens, o Guia Alimentar enfatiza a importância de se separar o ato de alimentar-se das praticas de consumo ou da exposição à publicidade comercial. Em locais como praças de alimentação, a refeição se confunde com um gesto de consumo. Também sugere que as pessoas evitem comer enquanto se expõem a mensagens publicitárias, que trazem imagens que afetam profundamente, ainda que de maneira inconsciente, não apenas a escolha dos alimentos como a satisfação – ou frustração – proporcionada por aquilo que se está comendo.
Detalhes como esses mostram o interesse público da obra, pois ela orienta os cidadãos a se resguardarem dos interesses corporativos da indústria da alimentação.

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A edição de 2014 do Guia Alimentar para a População Brasileira tem atualizações significativas em relação a sua primeira edição, de 2006, não somente em seus conteúdos, mas também na linguagem e na forma como foi elaborado. Especialistas das áreas da saúde, educação, agricultura, professores de universidades e membros de organizações de defesa do consumidor foram reunidos em uma oficina de escuta. Uma versão preliminar ficou então por três meses em consulta pública na página do Ministério da Saúde e foi objeto de novas oficinas, em todos os estados do Brasil, para acolher as diferentes percepções do público em geral, incorporando à obra a imensa diversidade regional do país.
Escrito em um estilo de texto leve, trazendo recomendações sem tom impositivo, o Guia se destaca em meio a tantas mensagens sobre alimentação disponíveis atualmente na mídia, seja da publicidade, seja dos especialistas de plantão, que nos dizem o tempo todo, em tom muitas vezes taxativo e autoritário, como devemos e como não devemos comer. Estilisticamente, soa como uma refeição suave e caseira para quem está acostumado com comida industrializada cheia de realçador de sabor.
Todos esses aspectos do Guia convidam a uma degustação lenta, prolongando o prazer e a profundidade da reflexão. É perfeito como tema de aulas, rodas de conversa, oficinas e estudos dirigidos, um ótimo material para ser lido e estudado por professores, terapeutas, cuidadores, gastrônomos, profissionais da saúde. Além de estimular mudanças positivas nos hábitos alimentares, tem a importante missão de formar e informar cidadãos para que possam exigir o cumprimento do direito humano a uma alimentação decente e saudável.