obesidade supera subnutrição

Quando se fala em crianças desnutridas, a imagem que vem à mente é de uma criança magra, esquálida, só pele e osso. Com o avanço das estratégias mercadológicas da indústria de ultraprocessados, essa imagem precisa ser atualizada. Agora, a imagem da desnutrição é uma criança obesa.

De acordo com o relatório Feeding Profit – how food environments are failing children (Alimentando o Lucro – como os ambientes alimentares estão falhando com as crianças), publicado pela UNICEF em setembro, o número de crianças obesas no mundo já supera o de crianças subnutridas. O documento trabalha com os dados consolidados mais recentes disponíveis, que são de 2024 para uma das faixas etárias e de 2022 para as outras.

O relatório mostra que a prevalência global de obesidade entre crianças e adolescentes dos 5 aos 19 anos em 2022 foi de 9,4% e apresenta padrão de aumento. O índice supera o de prevalência de subpeso nessa mesma faixa etária, que vem caindo nos últimos anos e em 2022 foi de 9,2%.

Outro dado preocupante é que, entre os casos de sobrepeso, a obesidade vem ganhando participação. No ano 2000, 30% das crianças e adolescentes entre 5 e 19 anos com sobrepeso eram obesas. Em 2022, esse índice já estava em 42%, ou seja, 163 milhões de crianças e adolescentes obesos no mundo. Além de ser mais difícil de reverter, a obesidade, que é a forma severa do sobrepeso, representa um risco maior de problemas graves de saúde.

De acordo com o relatório, muitas crianças vivem inseridas em ambientes alimentares insalubres, onde ficam expostas às práticas mercadológicas agressivas da indústria de ultraprocessados. Esses produtos comestíveis se proliferam nas lojas de varejo e conseguem se infiltrar em escolas. As crianças vivem cercadas.

Imagem: divulgação

Em alguns países observou-se que a presença de produtos açucarados em locais frequentados por crianças é maior nos bairros economicamente desfavorecidos do que em áreas mais ricas, e o Brasil é mencionado como exemplo de país onde isso acontece. Dados de outros estudos citados mostram a agressividade da indústria de ultraprocessados em suas práticas mercadológicas, com destaque para a propaganda em meios digitais. Crianças e adolescentes relatam sentimentos de tentação, pressão e impotência diante da onipresença desses produtos e de sua publicidade.

O relatório chama a atenção para as práticas antiéticas dessas corporações, que se aproveitam de desastres humanitários e situações emergenciais de saúde pública, como a recente pandemia, para expandir seu alcance e pressionar pelo enfraquecimento das políticas de proteção dos consumidores.

Diante da gravidade dos fatos, o relatório apresenta propostas para conter o avanço desse quadro e garantir o direito das crianças à nutrição adequada. Entre as sugestões: um código internacional para disciplinar a comercialização de substitutos do leite materno e promover a amamentação natural; políticas abrangentes para aumentar a disponibilidade de alimentos saudáveis produzidos localmente; regras de cumprimento obrigatório para transformar os ambientes alimentares de crianças e adolescentes, incluindo restrições nas escolas; medidas robustas capazes de proteger as políticas públicas contra a interferência da indústria de ultraprocessados; sistemas de vigilância padronizados, nacionais e globais, para monitorar os ambientes alimentares, as dietas e os dados referentes à saúde alimentar de crianças e adolescentes.

O documento aponta o papel dos diversos atores da sociedade no combate a isso que podemos considerar uma pandemia fabricada de desnutrição. Destaca-se aqui o nosso papel, como membros da sociedade civil, em promover o amplo debate sobre os danos causados pelos produtos ultraprocessados, construindo uma demanda pública por políticas que melhorem os ambientes alimentares, para todos nós.

direitos dos camponeses

Declarações universais da Organização das Nações Unidas (ONU) têm o propósito de estabelecer direitos fundamentais, orientar países na formulação de suas leis e servir de inspiração e referência em lutas e debates, em todo o planeta, sobre os temas de que tratam.

Em dezembro de 2018, sua Assembleia Geral aprovou, por meio de uma resolução, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses (abreviada como UNDROP, seguindo o nome em inglês). O documento tem 28 artigos que tratam de assuntos essenciais como direito à terra, às sementes, à biodiversidade, à soberania alimentar, à justiça e à água, entre outros.

Infelizmente, as resoluções da Assembleia Geral não são vinculativas, isto é, não têm força imperativa para os Estados membros. Se tudo que está lá afirmado fosse de cumprimento obrigatório pelos países, certamente os camponeses de todo o mundo viveriam uma realidade bem diferente.

Em 2002, durante uma conferência regional, a organização camponesa internacional Via Campesina formulou sua Declaração dos Direitos das Camponesas e Camponeses, a qual foi lançada e adotada oficialmente em 2009. Esse documento mais tarde serviria de inspiração para a UNDROP.

Dentro da ONU, a elaboração iniciou no Conselho de Direitos Humanos, por incidência da Bolívia. Uma primeira versão do documento foi aprovada pelo Conselho em 28 de setembro de 2018, contando com 33 votos a favor, 3 votos contra (Austrália, Hungria e Reino Unido) e 11 abstenções (o Brasil entre elas).

Em seguida, o texto passou pelo Terceiro Comitê da Assembleia Geral, o qual lida com questões sociais e humanitárias. Foi aí aprovado em 19 de novembro do mesmo ano, com 119 votos a favor, 7 votos contra (Austrália, Estados Unidos, Hungria, Israel, Nova Zelândia, Reino Unido e Suécia) e 49 abstenções (o Brasil novamente entre elas).

Finalmente, o texto da Declaração seguiu para a Assembleia Geral, onde foi aprovado, em 17 de dezembro, com 121 votos a favor, 8 votos contra (todos que se opuseram no Terceiro Comitê mais a Guatemala) e 54 abstenções (o Brasil, mais uma vez, neste grupo). Desconhecemos a justificativa do Brasil para as abstenções nas três etapas, mas sabe-se que em contextos como esse a abstenção é uma forma de negar apoio à causa sem que isso represente um grande comprometimento perante a opinião pública. É importante ter em mente o momento político no qual o país se encontrava nessa época.

Esse estilo de declaração começa por elencar os princípios e noções gerais que norteiam sua elaboração. Assim, em seu preâmbulo, a UNDROP reconhece a especial relação dos camponeses com a terra, a água e a natureza, elementos dos quais dependem para sua subsistência. Reconhece também sua contribuição para a conservação da biodiversidade, que constitui a base da produção alimentar e agrícola em todo o mundo, assim como seu papel essencial na garantia dos direitos à alimentação adequada e à segurança alimentar.

Entre os documentos que lhe serviram de embasamento, faz referência à Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979) e à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007), entre muitos outros.

Em seu primeiro artigo, apresenta uma interessante definição de camponês: “qualquer pessoa que se dedique ou pretenda dedicar-se, individualmente, em associação ou como comunidade, à produção agrícola em pequena escala para subsistência ou comércio, que para este efeito dependa em grande parte, embora não necessariamente de forma exclusiva, do trabalho de membros da sua família ou agregado familiar, ou de outras formas não monetárias de organização do trabalho, e que tenha um vínculo especial de dependência ou ligação com a terra” (Artigo 1.1.). Assim, são excluídos da definição os empreendimentos agrícolas baseados exclusivamente em relações de trabalho capitalistas. O termo camponês seria então equivalente ao que chamamos de agricultor familiar.

Imagem: Reprodução de Déclaration des Nations Unies sur les Droits des paysan·ne·s et Autres Personnes Travaillant dans les Zones Rurales – livret d’illustrations. La Via Campesina, 2020.

A partir dessa definição, desenha-se para os camponeses um cenário que, se fosse concretizado, seria um verdadeiro mundo dos sonhos. Seguem alguns destaques e comentários sobre as perspectivas oferecidas pela Declaração. Como não há uma versão em português desse documento no repositório oficial da ONU, os trechos citados aqui são traduções nossas a partir das versões em espanhol e em inglês.

O parágrafo sobre produtos tóxicos, se efetivo, garantiria a camponeses e camponesas não apenas a opção de não utilizarem veneno como também a possibilidade de não estarem sujeitos às suas consequências. “Os camponeses e outras pessoas que trabalham em zonas rurais têm o direito de não utilizar nem de estar expostos a substâncias perigosas ou produtos químicos tóxicos, tais como agrotóxicos ou poluentes agrícolas ou industriais” (Artigo 14.2.).

As correntes de vento transportam substâncias jogadas na atmosfera, podendo trazer o veneno utilizado em fazendas vizinhas para a roça de alguém que optou por não utilizar esses produtos e contaminando sua produção, sua terra e seus trabalhadores. Os agrotóxicos têm também o efeito de dizimar populações de abelhas, comprometendo o sistema natural de polinização das plantas, o que caracteriza séria agressão ao meio ambiente e à biodiversidade, cuja proteção é abordada em outros pontos da Declaração.

Devido ao alcance dos impactos maléficos dessas substâncias, decisões individuais dos produtores não lhes garantem a possibilidade de estarem protegidos delas. Portanto, a menos que o uso de veneno seja proibido em caráter nacional ou ao menos regional, esse direito dificilmente será garantido.

A Declaração entende que o direito à soberania alimentar passa pela possibilidade de se participar das decisões sobre as políticas que afetam a forma como os alimentos são produzidos e distribuídos. “Os camponeses e outros trabalhadores rurais têm o direito de determinar seus próprios sistemas agroalimentares, o que é reconhecido por muitos Estados e regiões como o direito à soberania alimentar. Isso inclui o direito de participar dos processos de tomada de decisão relativos às políticas agroalimentares e o direito a alimentos saudáveis ​​e adequados, produzidos através de métodos ecológicos e sustentáveis que respeitem suas culturas” (Artigo 15.4.).

Para a construção de um sistema alimentar justo e saudável, é essencial a presença da sociedade civil nas instâncias participativas existentes. Ao mesmo tempo, é importante fortalecer iniciativas que representem alternativas concretas ao sistema alimentar vigente, controlado por interesses corporativos.

Há na Declaração um único parágrafo que, sozinho, evitaria conflitos atualmente em curso em diversas partes do mundo, caso fosse efetivo. “Os camponeses e outras pessoas que trabalham em zonas rurais têm o direito de serem protegidos contra qualquer deslocamento arbitrário e ilegal que os remova das suas terras, do seu local de residência habitual ou de outros recursos naturais que utilizam nas suas atividades e de que necessitam para usufruir de condições de vida adequadas. (…) Os Estados devem proibir os despejos arbitrários e ilegais, a destruição de zonas agrícolas e o confisco ou a expropriação de terras e outros recursos naturais, em particular quando usados como medida punitiva ou como meio ou método de guerra” (Artigo 17.4.). Uma rápida olhada para a profusão de conflitos em andamento hoje no mundo mostra como isto está longe de se concretizar.

O parágrafo que trata da reforma agrária é, curiosamente, o único em que a sentença inicia de modo condicional. “Quando apropriado, os Estados devem tomar as medidas adequadas para implementar reformas agrárias a fim de facilitar o acesso amplo e equitativo à terra e a outros recursos naturais necessários para garantir que os camponeses e demais trabalhadores rurais desfrutem de condições de vida adequadas e para limitar a concentração e o controle excessivos da terra, levando em consideração sua função social. Os camponeses sem-terra, os jovens, os pescadores artesanais e outros trabalhadores rurais devem ter prioridade na distribuição de terras públicas, áreas de pesca e florestas” (Artigo 17.6., grifo nosso).

É interessante observar como a Declaração dos Direitos das Camponesas e Camponeses, da Via Campesina, adota uma posição bem mais assertiva sobre o tema. “Grandes propriedades rurais não devem ser permitidas. A terra deve cumprir sua função social. Limites de posse de terra devem ser aplicados quando necessário para garantir o acesso equitativo à terra” (Artigo IV.11., grifo nosso). Por mais que a ONU tenha um papel importante no reconhecimento internacional dos direitos de grupos vulneráveis em todo o mundo, este caso exemplifica como ela é também capaz de barrar afirmações que os grupos dominantes de seus países membros considerem excessivas.

De qualquer forma, o conjunto de direitos apresentado pela Declaração representa um grande avanço em relação às condições objetivas enfrentadas por camponesas e camponeses em todo o mundo. A partir daí, existe o caminho para a efetivação desses direitos, por meio dos processos internos de cada país.

No Brasil, muitos dos direitos afirmados na Declaração já aparecem, de alguma forma, em marcos legais. Porém, a realidade das camponesas e camponeses daqui está muito longe do sonho desenhado pelo documento. Uma das demonstrações mais emblemáticas dessa precariedade é o fato de muitas áreas rurais apresentarem índices de insegurança alimentar maiores que áreas urbanas, mesmo estando seus habitantes diretamente em contato com a terra que produz – ou deveria produzir – alimentos.

A Declaração atribui aos Estados nacionais o papel de implementar e garantir os direitos nela estabelecidos. “Os Estados devem respeitar, proteger e cumprir os direitos dos camponeses e de outras pessoas que trabalham em zonas rurais. Devem prontamente tomar medidas legislativas, administrativas e outras cabíveis para alcançar progressivamente a plena realização dos direitos enunciados na presente Declaração que não possam ser imediatamente garantidos” (Artigo 2.1.). De fato, é ingenuidade esperar que tais iniciativas venham de poderes privados, como latifundiários e corporações, justamente aqueles que vêm historicamente se beneficiando da inexistência, na prática e muitas vezes também na teoria, desses direitos.

Portanto, declarações como esta servem como lembretes da importância de Estados fortes e com amplo apoio popular, capazes de resistir à infiltração dos interesses privados no aparelho estatal, de forma que possam concretizar direitos já reconhecidos como universais.

uma ameaça às corporações

Neste mês de novembro completam-se dez anos desde o lançamento do Guia Alimentar para a População Brasileira. A edição de guias alimentares é uma prática recomendada e apoiada pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, do inglês Food and Agriculture Organization). Atualmente, mais de 100 países têm seus guias alimentares, com recomendações de acordo com as culturas alimentares locais, a disponibilidade de alimentos e a situação nutricional de sua população.

Conforme anunciado à época do lançamento pelo então ministro da saúde, Arthur Chioro, um dos principais objetivos do Guia é “combater a obesidade e o avanço das doenças crônicas no país”. A principal referência conceitual do Guia é a classificação NOVA, que organiza os alimentos em quatro categorias e define o que são os ultraprocessados. Estes produtos comestíveis, com qualidades nutricionais bastante questionáveis, estão altamente associados às doenças crônicas não transmissíveis, que representam uma importante questão de saúde pública para o país.

Acontece que, enquanto os ultraprocessados são uma ameaça para as pessoas e as populações, guias alimentares são uma ameaça para as corporações que fabricam esses ultraprocessados. O caso mais emblemático disso talvez seja o do relatório SRA Top Policy Issues (Principais questões de políticas referentes a assuntos científicos e regulatórios), produzido pela consultoria Sancroft para a Coca-Cola. Aproveitamos aqui a efeméride dos dez anos do Guia para falar um pouco desse relatório, que vê nosso Guia Alimentar como ameaça para os negócios da Coca-Cola.

Trata-se de um documento que apresenta um panorama das pressões regulatórias e políticas globais relacionadas a seis tópicos que podem afetar a produção e as vendas da empresa no mundo todo. Os tópicos são: uso de Bisfenol A (BPA) em embalagens, defensivos agrícolas, rotulagem, organismos geneticamente modificados, restrições a ingredientes específicos (cafeína, caramelo, corantes, aromatizantes, conservantes) e adoçantes (açúcar, produtos não calóricos e teor de doçura).

Imagem: reprodução

Cada capítulo traz um mapa de calor que classifica os países conforme as pressões que apresentam à empresa no tópico tratado. Em seguida vem uma análise das situações e tendências globais e locais referentes à regulação naquela área. O relatório também inclui informações sobre o cenário competitivo no qual a empresa atua e sobre outros atores que podem afetar o mercado da empresa. É interessante observar a forma como os danos à saúde humana causados por ultraprocessados são abordados pelo ponto de vista da corporação que os produz.

O Guia Alimentar para a População Brasileira é mencionado diretamente no capítulo sobre açúcar, adoçantes e teor de doçura. Em seu resumo executivo, esse capítulo começa reconhecendo o aumento nas taxas de obesidade, sobrepeso e doenças não transmissíveis e como isso trouxe a atenção do público ao conteúdo calórico dos alimentos e bebidas. Em seguida, observa que “há uma crescente aversão a ingredientes considerados artificiais ou sintéticos, bem como a alimentos processados em geral” (grifo nosso). É curioso o uso da palavra ‘considerados’, como se o fato de um ingrediente ser natural ou artificial/sintético fosse uma questão de opinião. De qualquer forma, essas constatações iniciais se referem, ao menos do ponto de vista de quem atua em defesa da saúde, a um avanço na consciência do público em relação às características nocivas de certos produtos.

Porém, a perspectiva fica clara quando os interesses corporativos passam ao primeiro plano. Ao mencionar as medidas adotadas por governos, o relatório observa que “Muitas das políticas e regulações propostas são discriminatórias ou punitivas” (grifos nossos) e acrescenta que “Muitas [dessas medidas] afetam negativamente o portifólio da Coca-Cola”. Afetar negativamente, nesse caso, significa diminuir as vendas e a reputação dos produtos da empresa.

Mais adiante, observa que “tem havido uma proliferação de estudos focados no açúcar e seu papel não apenas na obesidade, mas também em sua contribuição para doenças não transmissíveis” (grifo nosso) e afirma, ainda que indiretamente, que isso seria uma forma de demonização desse ingrediente dentro do debate sobre obesidade.

Então vem o mapa de calor, no qual os países do mundo são classificados conforme as ameaças que apresentam à empresa em questões relacionadas a açúcar, adoçantes e teor de doçura. A legenda deste mapa define duas categorias de ameaças: “em vigor” (enacted) e “potenciais” (potential).

O Brasil aparece como um país em que a ameaça está em vigor. O destaque no mapa especifica brevemente a situação aqui: “National negative dietary guidelines. Mixture of LNCS and sugar allowed”. A tradução literal seria: “Diretrizes alimentares nacionais negativas. Mistura de adoçantes e açúcar permitida”. ‘Dietary guidelines’ é equivalente em inglês a ‘guia alimentar’, e está no nome da versão em inglês do nosso Guia (Dietary Guidelines for the Brazilian Population). Na língua inglesa ocorre essa construção ‘diretrizes negativas’, fazendo referência ao fato de o Guia recomendar que se evite o consumo dos produtos da empresa.

Na seção que apresenta as situações regionais, o relatório da Sancroft se refere ao nosso Guia Alimentar afirmando que o Brasil publicou diretrizes alimentares “que são punitivas com relação ao açúcar às nossas bebidas, classificando-as como alimentos ‘ultraprocessados’” (grifo nosso). A frase passa a impressão de que os editores do Guia resolveram punir os refrigerantes, e para isso decidiram atribuir-lhes a avaliação de ultraprocessados, da mesma forma que um aluno mal avaliado alega que a professora lhe deu nota baixa porque assim quis, e não porque seguiu um critério de avaliação.

A definição de alimento ultraprocessado é clara, objetiva e de conhecimento público. Basta aplicar o critério para perceber que um refrigerante industrializado se encaixa, de maneira inequívoca e com bastante folga, dentro dessa categoria. Pelo menos neste caso, a professora não está sendo injusta com o aluno desleixado, a avaliação foi bem merecida.

Parece bastante honroso para o nosso Guia Alimentar ter sido nominalmente citado como ameaça por uma empresa que oferece produtos tão nocivos. Torcemos bastante para que a ameaça se concretize e cada vez mais gente diminua ou abandone o consumo dessas bebidas e demais ultraprocessados, que o mercado entrega às pessoas para que elas encham suas barrigas.

Outra ameaça brasileira mencionada no relatório é o Pacto Nacional para Alimentação Saudável, instituído em 2015, que visa estimular o consumo de alimentos in natura e minimamente processados e regular a propaganda de bebidas e alimentos ultraprocessados em escolas.

Em qualquer luta, é importante conhecer bem os adversários: como atuam, como expressam seus interesses, que recursos têm à sua disposição. Em seus esforços para ganhar dinheiro e dominar mercados, é isso que a Coca-Cola faz ao encomendar à Sancroft uma análise do contexto regulatório nos países em que atua. Em nossos esforços para promover a alimentação saudável, é isso que fazemos ao olhar com atenção para esse tipo de relatório.

O Guia Alimentar para a População Brasileira foi identificado por nosso adversário como uma ameaça, e isso é mais um ótimo indício de sua qualidade e relevância. Parabéns ao Guia pelos seus dez anos!

alimento no prato

Foi lançado no último dia 16, data em que se celebra o Dia Internacional de Luta pela Soberania Alimentar, o Plano Nacional de Abastecimento Alimentar 2025-2028, também chamado de Plano Alimento no Prato. O documento apresenta 29 iniciativas e 92 ações estratégicas, que se encontram estruturadas em seis eixos de atuação.

O Plano Nacional de Abastecimento Alimentar foi concebido pelo Decreto nº 11.820, assinado pelo presidente Lula em dezembro de 2023, que instituiu a Política Nacional de Abastecimento Alimentar (PNAAB). O Plano é o principal instrumento de planejamento e execução da PNAAB, trazendo propostas de políticas públicas com o objetivo de “estabelecer um sistema de abastecimento alimentar sustentável, inclusivo e justo, que assegure o acesso a alimentos saudáveis e amplie a disponibilidade dos itens que compõem a Cesta Básica”.

Entre os seis eixos de atuação que estruturam as iniciativas e ações do Plano, destacamos o Eixo 1: Distribuição e Comercialização de Alimentos Saudáveis. Seu objetivo é estabelecer um sistema de abastecimento alimentar que viabilize o acesso a alimentos saudáveis de maneira sustentável, inclusiva e justa.

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Para que um sistema de abastecimento seja genuinamente inovador e autônomo, é importante garantir que as decisões sobre o que plantar e o que consumir sejam tomadas pelos seus atores mais importantes, ou seja, aqueles que plantam e aqueles que se alimentam. Se a distribuição for dependente de estruturas altamente capitalizadas, capazes de cobrir grandes distâncias transportando quantidades enormes para baratear custos, interesses alheios à cultura alimentar local atuarão sobre o sistema, e tanto produtores quanto consumidores acabam ficando sujeitos à lógica do capital.

Com a aproximação entre produtores e consumidores, torna-se possível a troca de informações entre eles. E aqui é importante entender aproximação não apenas no sentido geográfico, de estar fisicamente perto, mas também no de proximidade dentro da rede de distribuição, com o menor número possível de intermediários entre quem produz e quem consome. Que alimentos os consumidores gostariam de ter em suas mesas, mas não encontram nos mercados convencionais? Quais alimentos sazonais podem ser produzidos pelos agricultores nesta época, podendo ser oferecidos com alto valor nutritivo e a baixo custo, devido à alta produtividade da estação?

Em um sistema alimentar com essas características, torna-se tendência natural o acesso aos alimentos acontecer “de maneira sustentável, inclusiva e justa”, conforme apontado na descrição desse Eixo. Coerentemente a isso, o Plano propõe a criação de centros de abastecimento e comercialização de alimentos produzidos pela agricultura familiar, comunidades tradicionais e estabelecimentos produtivos pautados pelos princípios da economia solidária.

O Plano Alimento no Prato foi construído com a participação do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), de outros órgãos federais ligados ao desenvolvimento rural sustentável e de organizações da sociedade civil envolvidas com a defesa da segurança e da soberania alimentar no país. As ações e iniciativas foram definidas com base em escuta social e em um diagnóstico abrangente, levando em conta experiências consolidadas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

Agora o desafio é garantir sua implementação de fato. É importante que as organizações e movimentos sociais que formam a teia de produção e distribuição de alimentos saudáveis tomem conhecimento do Plano, compreendam em profundidade o potencial das iniciativas e ações propostas e organizem-se para ter acesso às oportunidades concretas que devem surgir a partir desse importante documento.

agroecologia nas eleições

Das três esferas da política institucional, a municipal é onde são vividos e decididos os assuntos ligados de forma mais imediata à vida cotidiana das pessoas. Isso faz do período de eleições municipais uma época especialmente propícia para se tratar de certos assuntos, como as relações comunitárias, a alimentação, a cultura, a saúde e o meio ambiente. Essas áreas estão diretamente conectadas a políticas públicas locais, cuja execução pode ser acompanhada de perto pelos cidadãos e cidadãs.

Para levantar a discussão sobre esses temas neste momento oportuno, a ANA publicou uma carta política intitulada “Democracia e agroecologia como princípios para a construção de políticas de futuro e para a garantia de soberania e segurança alimentar nos municípios brasileiros – Desafios para as candidaturas nas eleições de 2024”. Trata-se da terceira edição da iniciativa Agroecologia nas Eleições, que nos anos eleitorais desde 2020 tem buscado trazer a pauta da agroecologia para o debate público.

A carta política foi elaborada por organizações, coletivos e movimentos sociais, apresentando um total de 51 propostas, organizadas em 15 áreas temáticas. Todas as propostas são de extrema importância para a construção da soberania alimentar e nutricional, o fortalecimento das relações comunitárias e a garantia da democracia. Destacamos aqui alguns mais diretamente ligados ao campo teórico e prático do Bicicarreto.

Imagem: divulgação

Na seção ‘Comercialização, circuitos curtos e compras institucionais’, o documento chama atenção para a importância da adesão do município ao Programa de Aquisição de Alimentos e, no que se refere ao Programa Nacional de Alimentação Escolar, que as administrações municipais estabeleçam metas progressivas anuais de forma que finalmente possa ser atingida a condição determinada pela Lei nº 11.947/2009, de se destinar no mínimo 30% dos recursos do programa para compras da agricultura familiar.

Também propõe a criação de uma política municipal de apoio a feiras de produtores e a equipamentos públicos de abastecimento alimentar.

No tópico sobre ‘Agricultura urbana’, para que se possa garantir sua efetivação, defende a destinação de áreas públicas e privadas para produção de alimentos e plantas medicinais, com assessoria para produtores e produtoras, apoio a coletivos de mulheres e suporte à implementação de hortas nas escolas.

Chama a atenção ainda para a importância do uso de instrumentos urbanísticos, como planos diretores, para a promoção da agricultura urbana, propondo inclusive a criação de áreas especiais de segurança alimentar.

O documento inclui temas que aparecem com pouca frequência no debate político em nível municipal, como o ‘Controle e restrição de atividades que geram impactos negativos à saúde e ao meio ambiente’. Dentro deste tópico destacamos a efetivação de leis que estabeleçam zonas livres de agrotóxicos no município (proibindo inclusive sua pulverização aérea), a restrição do uso de transgênicos nos programas públicos de abastecimento alimentar e a implementação de ações de educação alimentar, com o estímulo ao consumo dos alimentos in natura e minimamente processados.

Partindo de uma visão ampla da agroecologia, o documento também contempla práticas integrativas, com incentivo ao uso de fitoterápicos e plantas medicinais produzidas pela agricultura familiar ou nas unidades de saúde, o fortalecimento de iniciativas de comunicação popular, como rádios comunitárias, e a inserção de conteúdos relacionados à agroecologia e segurança alimentar nas ações pedagógicas das escolas, em cidades e áreas rurais.

Em sua apresentação, a carta política destaca que “a agroecologia é um dos caminhos mais efetivos não só para a produção de alimentos e territórios saudáveis e sustentáveis, como também para garantir justiça social e climática e construir tecnologias sociais capazes de enfrentar a nova realidade que estamos vivendo”.

Assim, além do propósito central de fornecer uma agenda propositiva para as candidaturas e trazer esses temas sistematizados para pautar uma discussão envolvendo toda a sociedade, a carta política Agroecologia nas Eleições 2024 cumpre também o papel de apresentar a agroecologia a um público mais amplo, mostrando que ela é muito mais que um conjunto de técnicas de cultivo.

desperdício de comida

Todos os dias, no mundo inteiro, alimentos são jogados no lixo. A gente já sabe disso mas, mesmo assim, ver números pode ser perturbador.

Um relatório divulgado no fim de março pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) estimou que, em 2022, a quantidade de comida desperdiçada nos domicílios, comércio varejista e estabelecimentos de alimentação totalizou 1,05 bilhão de toneladas.

Os domicílios respondem, nesses cálculos, por 631 milhões de toneladas, o varejo por 131 milhões e os estabelecimentos de alimentação por 290 milhões de toneladas de comida jogada fora. No cálculo médio per capita, seriam 79 kg de alimentos desperdiçados por pessoa no ano.

Por mais que esses números sejam estimativas, são dados assustadores, sobretudo se considerarmos os 783 milhões de pessoas que passam fome atualmente no mundo.

A edição 2024 do Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos trabalhou com dados de 93 países na categoria desperdício domiciliar, um aumento significativo em relação aos 52 países cobertos pela primeira edição do Relatório, publicada em 2021.

É preciso entender bem o que o documento define como desperdício de comida: todos os alimentos, incluindo as partes não comestíveis associadas, que chegam até o varejo ou o consumidor final mas que, em vez de servirem para alimentação, acabam em outros destinos, como lixo, compostagem, esgoto, apodrecimento, aterro, incineração. Um conceito próximo mas diferente é o de perda de comida: tudo aquilo que, na cadeia de produção e distribuição de alimentos, em qualquer uma das etapas antes do varejo (excluindo este), é descartado não retorna de nenhuma outra forma à cadeia de suprimento, e portanto não serve a nenhuma outra utilização. Estimativas da perda de comida no mundo são objeto de outro estudo, também ligado às Nações Unidas. O relatório apresentado aqui diz respeito somente ao desperdício nos domicílios, estabelecimentos comerciais e restaurantes.

E por que as partes não comestíveis são também incluídas na conta? O relatório observa que a definição do que é ou não comestível muitas vezes é cultural. Pés de galinha e miúdos de animais são aproveitados na culinária de algumas residências ou regiões, mas são desprezados como não comestíveis em outras. Em algumas culturas, somente as flores dos brócolis são utilizadas, enquanto em outras as folhas e caules também fazem parte da refeição. Cascas de laranja são usualmente retiradas e jogadas fora, mas em muitas famílias elas são transformadas em deliciosos doces ou geleias.

O estudo encontrou uma pequena correlação entre a temperatura média do país e a quantidade de comida desperdiçada nos domicílios: em países mais quentes o desperdício estimado tende a ser maior. Algumas hipóteses são levantadas como possíveis explicações dessa relação: maior uso de alimentos in natura (portanto maior proporção de partes não comestíveis, que contam como desperdício), maior quantidade de alimentos com casca grossa (resultando em maior peso das partes não utilizadas) e a própria ação do calor (fazendo os alimentos estragarem em menor tempo).

Apontam também a possibilidade de eventos de calor extremo, secas e a falta de refrigeração adequada na cadeia de distribuição nesses países (impactando o estado em que os alimentos chegam aos consumidores finais) terem relação com essa tendência. De qualquer forma, o próprio relatório faz ressalvas quanto a isso, observando que não há relação entre o desperdício e o nível de desenvolvimento econômico do país e que, de um modo geral, há um considerável grau de incerteza em parte dos dados, portanto é preciso cuidado na interpretação dessas conclusões.

Imagem: Food Waste Index Report 2024

Outra correlação encontrada, mas que também deve ser interpretada com cuidado, é entre o local de residência, urbano ou rural, e o desperdício: foi observado que em áreas rurais o desperdício tende a ser menor.

Segundo o próprio relatório, isso pode estar relacionado ao aproveitamento de cascas e outras partes usualmente descartadas dos vegetais para a alimentação tanto dos animais de criação quanto dos domésticos. Além disso, a falta de coleta de resíduos sólidos em muitas dessas áreas faz com que partes rejeitadas dos alimentos sejam habitualmente jogadas nos canteiros, e isso não foi considerado nos dados como desperdício.

O Brasil está entre os países cujos dados foram utilizados nesta edição do Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos. As informações se referem à cidade do Rio de Janeiro, por meio de um estudo feito em 2023, envolvendo 102 domicílios. Essa cidade produz 4.800 toneladas de resíduos alimentares residenciais por dia. Isso corresponde a 77 quilos por pessoa por ano (bem próximo à média mundial, acima), ou 212 gramas por pessoa por dia.

Cada um dos domicílios que participaram do estudo separou seus resíduos sólidos em três categorias: resíduos alimentares, materiais secos de embalagem e demais resíduos. Os resíduos alimentares constituem 62% do total descartado. Esse material é composto de frutas, verduras e legumes (62% dos resíduos alimentares), carne (11%), padaria (16%) e laticínios (11%). Um dado curioso é que o estudo afirma não haver correlação entre a faixa de renda da família e o desperdício de comida gerado por ela.

Ainda que o Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos considere apenas o que é jogado fora nas etapas finais da cadeia de distribuição, é importante compreendermos a relação disso com o sistema alimentar em que estamos inseridos, especialmente as grandes distâncias percorridas entre produtores e consumidores e a quantidade de intermediários entre eles.

Será que as longas horas que frutas e hortaliças passam chacoalhando dentro de um caminhão na estrada não afetariam o estado em que esses alimentos chegam nas gôndolas do varejo e nas residências dos consumidores? E além do tempo e das distâncias, é preciso também levar em conta o efeito do repetido manuseio que os produtos sofrem, nas diversas operações de carga e descarga feitas pelos coletores regionais de produção, transportadoras intermunicipais e interestaduais, centrais de abastecimento nas cidades de destino, distribuidoras locais e outros possíveis intermediários, ainda que, na melhor das hipóteses, haja sistemas frigoríficos adequados tanto nos transportes quanto nos estoques.

Dessa forma, no momento em que chegam ao consumidor final, parte do tempo de vida útil desses alimentos já foi consumido ou reduzido. Eles poderão estragar mais rapidamente nas geladeiras dos domicílios.

Basta observar a durabilidade na geladeira dos alimentos adquiridos por meio de esquemas alternativos de distribuição, como feiras de produtores, compras coletivas e grupos de consumo de produtores regionais ou locais: além de mais saudáveis, esses produtos resistem mais tempo antes de começarem a estragar. Está aí mais uma evidência da relação entre o atual sistema alimentar e o desperdício.

Um caminho para diminuir o desperdício são os bancos de alimentos. Estabelecimentos de varejo podem encaminhar a eles os produtos que já estão fora dos padrões para comercialização mas ainda em condições de consumo, de forma que eles sirvam para alimentar pessoas em vez de acabar em aterros.

O Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos é publicado por uma entidade das Nações Unidas como forma de monitoramento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, especificamente o objetivo 12.3: “Até 2030, reduzir pela metade o desperdício de alimentos per capita mundial, nos níveis de varejo e do consumidor, e reduzir as perdas de alimentos ao longo das cadeias de produção e abastecimento, incluindo as perdas pós-colheita”.

De qualquer forma, para quem tem fome, não é possível esperar até 2030. Repensar aspectos do nosso sistema alimentar é tarefa urgente, e a mudança pode se dar em todos os níveis, inclusive o mais corriqueiro, a cada vez que escolhemos, adquirimos e consumimos os alimentos.

cadeia de alimentos no Brasil

Dados bastante abrangentes sobre o sistema alimentar no Brasil podem ser encontrados no Estudo sobre a Cadeia de Alimentos, organizado por Walter Belik, professor titular aposentado do Instituto de Economia da UNICAMP, publicado em 2020, com apoio do Instituto Ibirapitanga e do Instituto Clima e Sociedade.

O documento traz informações sobre hábitos de consumo e compra, a composição da dieta nacional, os gastos com alimentação por faixas socioeconômicas, tendências evolutivas que impactam o cardápio nacional, entre outras. A principal fonte de dados do são as estatísticas agregadas à Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), organizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, disponíveis no momento da publicação.

Destacamos aqui alguns aspectos particularmente interessantes e mais diretamente ligados à investigação sobre sistemas alimentares pelo ponto de vista do Bicicarreto.

Os dados sobre consumo revelam que habitação é a maior despesa em todas as faixas socioeconômicas, representando 42,4% do orçamento das famílias que ganham até 2 salários mínimos e 34% dos gastos das famílias com renda mensal de 25 salários mínimos ou mais. Alimentação vem logo atrás no caso das famílias mais pobres, representando 23,8% das despesas, mas aparece somente em terceiro lugar no caso das famílias mais abastadas, correspondendo a 11,4% do orçamento familiar. No caso deste grupo socioeconômico, é educação que vem em segundo lugar, representando 23% do orçamento.

O gasto mensal médio com alimentação é de R$ 328,74 no caso das famílias de até 2 salários mínimos e de R$ 2.061,34 entre as famílias de 25 ou mais salários mínimos. Portanto, o gasto com alimentação das famílias mais ricas é mais de seis vezes maior que o das famílias mais pobres.

Imagem: divulgação

O Estudo mostra a participação de cada grupo de alimentos, segundo a classificação NOVA, no total de calorias na dieta da população brasileira, comparando os dados ao longo de três edições da POF (2002-3, 2008-9 e 2017-18). Isso mostra como evolui o consumo desses tipos de alimentos ao longo desse período.

O consumo de alimentos in natura ou minimamente processados caiu 7%, passando de 53,3% do total de calorias em 2002-3 para 49,5% em 2017-18. Ao mesmo tempo, observa-se um substancial aumento de 46% na participação dos ultraprocessados na dieta brasileira: esse tipo de produto comestível, que correspondia a 12,6% das calorias em 2002-3 passou a 18,4% em 2017-18. Os alimentos processados subiram de 8,3% em 2002-3 para 9,8% em 2017-18 (aumento de 18%) e os ingredientes culinários processados passaram de 25,8% em 2002-3 para 22,3% em 2017-18 (diminuição de 14%).

Quanto à distribuição de alimentos, o Estudo faz algumas observações gerais sobre um processo de reorganização que esse componente do sistema alimentar vem sofrendo nos últimos anos. O que mais chama a atenção é o avanço do setor de supermercados, que passam a comprar diretamente da indústria de alimentos e dos produtores agropecuários, contribuindo assim para a eliminação da figura do atacadista. Ao mesmo tempo, surge um novo tipo de estabelecimento, o “atacarejo”, que, segundo a pesquisa, se desenvolve de forma coordenada pelos supermercados.

Trata-se daquelas lojas de grande porte, com o leiaute tosco dos antigos atacadistas, porém sem qualquer restrição quanto ao tipo de comprador ou ao tamanho das aquisições. Oferecem duas possibilidades de preço: um é o chamado valor unitário e o outro, denominado “atacado”, só vale a partir de um certo número de unidades, geralmente não muito grande. Conforme nossa observação, essa diferença de preços costuma ser surpreendentemente baixa.

Esse tipo de estabelecimento vem ganhando espaço no fornecimento de alimentos frescos e produtos industrializados, tanto para restaurantes, cozinhas industriais e pequenos varejistas como para consumidores finais.

Observa-se também na população uma tendência de mudança de hábitos quanto à escolha dos locais de compra. Os dados das POFs mostram que as aquisições em supermercados representavam 32,6% das idas a estabelecimentos comerciais em 2002-3 e passaram a representar 41,1% em 2008-9 (dados se referem ao número de compras e não ao montante gasto; não há esses dados para POF 2017-18). Enquanto isso, as idas a todos os outros tipos de estabelecimentos diminuíram. As compras em mercearias e armazéns caíram de 17,4% em 2002-3 para 17,0% em 2008-9; as compras em feiras livres caíram de 4,8% em 2002-3 para 4,5% em 2008-9. Há portanto uma tendência de as pessoas substituírem compras em feiras e pequenos estabelecimentos por compras em supermercados.

O setor atacadista de produtos frescos é composto pelas Ceasas (centrais estaduais de abastecimento). São 74 Ceasas em todo o Brasil, sendo 22 em capitais. Segundo o documento, o entreposto da capital paulista concentra 25% de todo o movimento de produtos frescos no país.

A proporção da produção que passa pelas Ceasas, entretanto, varia bastante conforme o produto. Por exemplo, 62% da produção de alho passa por alguma dessas centrais em algum momento de sua distribuição. O mesmo acontece com 42,4% da produção de maçã, 70,9% do mamão, 71,1% da cenoura e 76,6% do tomate de mesa. Por outro lado, apenas 13,2% da produção de alface, 12,4% da banana e 1% do coentro passam por Ceasas. É possível que isso se deva ao fato de estes produtos serem mais frágeis e perecíveis, e assim sua comercialização acabe encontrando esquemas alternativos.

Junto com o Estudo, foi publicado também um documento síntese, onde se encontram suas principais conclusões e também algumas reflexões e informações que não fazem parte do documento principal.

Mesmo passados já alguns anos desde sua publicação, as informações apresentadas no Estudo sobre a Cadeia de Alimentos continuam válidas por mostrarem características marcantes do sistema alimentar brasileiro e algumas tendências de modificação – muitas das quais, infelizmente, são aspectos negativos se aprofundando.

Declaração de Quito

Em abril de 2000, a poucos meses do fim do século XX, representantes de diversas cidades latino-americanas estiveram juntos na capital equatoriana, durante o seminário internacional “Agricultura Urbana en las Ciudades del Siglo XXI”. O encontro foi organizado por diversas entidades de importância mundial ou regional, como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Programa de Gestão Urbana para a América Latina e o Caribe (PGU-ALC), a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o Centro Internacional de Pesquisa para o Desenvolvimento (IDRC), o Centro das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (Hábitat) e a Coordenação Regional para América Latina e Caribe.

Um dos resultados desse encontro foi a Declaração de Quito, um documento firmado por mais de 30 cidades latino-americanas que convida governos e demais atores públicos e privados a comprometerem-se com a prática da agricultura urbana e com o apoio ativo ao seu desenvolvimento.

A Declaração de Quito é tida como o primeiro documento internacional diretamente voltado à promoção da agricultura urbana, reconhecendo a atividade como central em diversas áreas e propondo caminhos para que seja tratada como política pública. O texto da Declaração faz um chamado aos “governos estaduais e nacionais para que considerem a Agricultura Urbana em seus programas de combate à pobreza, segurança alimentar, promoção do desenvolvimento local e melhoria do ambiente e da saúde”.

Um dos destaques do documento é a ênfase que ele dá ao papel proativo que as administrações municipais podem ter na integração da atividade ao desenvolvimento das cidades. Hoje é comum que a agricultura urbana ocupe espaços vazios, como terrenos, cantos de praças, áreas de servidão. É preciso ir muito além disso. A Declaração sugere, por exemplo, que as prefeituras poderiam “promover a coleta de informações sobre as atividades da Agricultura Urbana em seus processos de planejamento territorial” e, com isso, antecipar o ordenamento urbano de forma a prever espaços para o crescimento das áreas cultiváveis nas cidades.

Horta urbana no Jaguaré, zona oeste de São Paulo. Foto: Dionizio Bueno.

Alguns municípios brasileiros participaram do seminário e tornaram-se signatários da Declaração: Brasilia (DF), Curacá (BA), Maranguape (CE), Teresina (PI) e Fortaleza (CE). Durante os trabalhos do encontro, as cidades presentes apresentaram suas políticas municipais relacionadas à agricultura urbana.

Brasília, por exemplo, compartilhou a experiência de um programa, vigente entre 1995 e 1998, de apoio a produtores com poucos recursos, oferecendo-lhes crédito, assistência técnica e apoio à formação de microempresas. O programa também desenvolveu uma marca comercial para os produtos e criou pontos de venda na cidade para o escoamento da produção. Posteriormente, o projeto foi estendido aos estados de Minas Gerais e Mato Grosso do Sul.

Teresina trouxe o relato de um programa da prefeitura que deu suporte a hortas comunitárias para 2500 famílias, convertendo 120 hectares de terrenos vazios em terras produtivas. Além disso, fornecia irrigação, insumos básicos e assistência técnica aos produtores.

Durante o seminário, formou-se também o “Grupo de Trabalho de Cidades sobre Agricultura Urbana e Segurança Alimentar”. Entre outras ações, o GT encaminhou a produção e divulgação, com apoio de entidades internacionais, de ferramentas metodológicas, guias e mecanismos que coletem experiências regionais e informem a formulação e execução de políticas públicas, principalmente relacionadas a planejamento urbano e ordenamento territorial, reutilização de água e resíduos sólidos orgânicos e linhas de crédito para a agricultura urbana.

Importante legado desse seminário, a Declaração de Quito é ainda hoje uma referência fundamental para o devido posicionamento da agricultura urbana dentro da gestão municipal. Sendo uma atividade com impactos tão evidentes em diversas esferas da vida nas cidades, a agricultura urbana precisa urgentemente ser pensada de forma mais ampla, como uma estratégia essencial para um desenvolvimento urbano sustentável.

novas projeções do agronegócio

Já falamos neste blogue sobre o relatório Projeções do Agronegócio, publicado anualmente pelo Ministério da Agricultura e Pecuária. Trata-se de um entre muitos estudos que olham para a agricultura quase que exclusivamente sob a perspectiva dos negócios e do mercado. Em certos trechos do documento, a produção de alimentos parece ser abordada como um mero subproduto desejável da atividade agrícola.

Voltamos agora a esse documento com uma perspectiva comparativa entre o último relatório publicado até a presente data (Projeções do Agronegócio 2022/23 a 2032/33) e o relatório anteriormente analisado aqui (Projeções do Agronegócio 2020/21 a 2030/31). A partir daqui, vamos nos referir ao documento de 2020/2021 como ‘relatório anterior’, ainda que ele não seja o imediatamente anterior (houve também relatório em 2021/2022).

Daqui a dez anos, o arroz terá menos da metade da área de cultivo que tem hoje: passa dos 1.469 mil hectares no ano safra 2022/2023 para 489 mil hectares em 2032/2033, uma perda de 66,7%. No caso do feijão, a perda estimada é menor mas, ainda assim, é de mais de um terço: dos 2.742 mil hectares dedicados a essa cultura em 2022/2023, passará a ter 1.749 mil hectares em 2032/2033, portanto perdendo 36,2% da área que tem hoje.

No relatório anterior, as perdas de áreas de cultivo de arroz e feijão projetadas para os dez anos seguintes eram, respectivamente, de 62% e 36,9%. Assim, no caso do arroz, o relatório 2022/2023 aponta para um aumento de velocidade na perda de território. No caso do feijão, a velocidade da perda de território projetada agora é ligeiramente menor do que aquela projetada no relatório de dois anos atrás.

Enquanto isso, os produtos agrícolas para o mercado devem seguir crescendo. Dos 21.975 mil hectares de cultivo que tem hoje, o milho deve expandir sua área em 17,1%, atingindo uma área de 25.732 mil hectares em 2032/2033. E a soja passará em dez anos de 43.834 mil hectares hoje para 55.881 mil hectares, um crescimento de 27,5% ou, em valor absoluto, de 12 milhões de hectares, a lavoura que mais deve expandir sua área nesse período.

O relatório 2020/2021 projetava ganhos menores: 10,6% e 26,9% para as áreas de cultivo de milho e soja, respectivamente. Portanto, os dados levados em consideração nos cálculos mais recentes apontam para esse aumento de velocidade na expansão desses dois cultivos. O aumento é proporcionalmente maior no caso do milho.

Área Plantada com 5 principais grãos – Brasil (mil hectares). Fonte: Projeções do Agronegócio 2022/2023 a 2032/2033. CLIQUE PARA AMPLIAR

A desigualdade entre as áreas de cultivo de alimentos e de commodities projetadas para 2032/2033 é também assustadora. Daqui dez anos, a soma das áreas dedicadas apenas às duas commodities aqui analisadas será de 81.613 mil hectares, um valor 36 vezes maior que a soma das áreas de cultivo dos dois principais alimentos dos brasileiros, que será de 2.238 mil hectares.

A visão dos dois relatórios também permite comparar as projeções de área cultivada apresentadas há dois anos para o ano safra 2022/2023 com aquilo que efetivamente se concretizou.

O arroz tinha, no relatório anterior, uma projeção de 1.419 mil hectares para o ano safra 2022/2023, sendo que tivemos de fato 1.469 mil hectares, uma área 3,5% maior do que a projetada. Para o feijão, estavam projetados 2.640 mil hectares em 2022/2023, sendo que a área neste ano safra foi de 2.742 mil hectares, portanto 3,9% maior do que a projetada. No caso do milho, tivemos em 2022/2023 uma área de 21.975 mil hectares, 8,5% maior que a projeção de 20.262 mil hectares do relatório anterior. E a soja teve uma área de 43.834 mil hectares contra os 40.789 mil hectares projetados: área realizada 7,5% maior do que a área estimada na projeção.

Essas comparações mostram dois fatos evidentes. Primeiro, as projeções do documento de 2020/2021 estavam subestimadas para os quatro cultivos analisados. E segundo, a diferença para mais do realizado em relação às projeções foi maior no caso das commodities do que no caso dos alimentos. Se esta tendência se manifestar também nos dez anos contados a partir de agora, podemos esperar que a desigualdade entre as áreas dedicadas aos cultivos de commodities e de alimentos será, lá na frente, ainda maior do que os números agora projetados para 2032/2033 antecipam.

O relatório Projeções do Agronegócio traz também dados, projeções e análises referentes a produção, consumo e exportação dos principais produtos agrícolas brasileiros. Nesta matéria, focamos na área plantada pois este é o indicador mais diretamente conectado à luta pela terra em nosso país. Sigamos firmes.

classificação NOVA

Quando se buscam critérios racionais para escolher alimentos, é comum que consumidores consultem as informações nutricionais. Por muitos anos, a população tem sido orientada a fazer isso, tanto na educação formal quanto em veículos de comunicação que falam do assunto. O modelo da pirâmide alimentar, por exemplo, ensina a priorizar certos tipos de nutrientes e evitar outros.

Acontece que na época em que essas orientações começaram a ser difundidas, no início do século XX, era comum preparar as refeições com alimentos naturais. A partir dos anos 1980, com o rápido desenvolvimento da indústria de alimentos, uma enorme variedade de produtos alimentícios embalados começou a ser oferecida às pessoas, com o apoio de propaganda que apresenta esses produtos como práticos, saborosos e divertidos. Muitos desses produtos são ultraprocessados. O resultado é que hoje vivemos uma pandemia de doenças não transmissíveis relacionadas aos padrões alimentares adotados em muitas sociedades industrializadas.

Segundo o critério das informações nutricionais, os produtos ultraprocessados podem muitas vezes parecer interessantes. Por meio de aditivos químicos colocados nas composições, a indústria define as quantidades de nutrientes que vão aparecer nas embalagens, levando o consumidor a achar que está diante de um produto saudável.

Há pouco mais de dez anos, um grupo de pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo tem chamado a atenção para um outro fator que precisa ser levado em conta na hora de escolher os alimentos: o nível de processamento. Surge assim a classificação NOVA.

Essa classificação permite distinguir entre um alimento natural, preparado com ingredientes frescos e técnicas simples, e um produto comestível criado a partir de matérias primas industriais e aditivos químicos, ainda que este alegue ser saudável e apresente uma tabela nutricional que parece adequada do ponto de vista quantitativo.

Foto: Tânia Rêgo – EBC / Fotos Públicas

A proposta foi publicada pela primeira vez em 2009, em um artigo na revista científica Public Health Nutrition. Esse modelo inicial recebeu aperfeiçoamentos e ficou consolidado com quatro categorias, sendo amplamente adotado hoje como referência em publicações e orientações relacionadas à alimentação saudável. Apresentamos a seguir as descrições e exemplos dos quatro grupos de alimentos da classificação NOVA.

1 – Alimentos in natura ou minimamente processados

No primeiro grupo da NOVA estão as partes comestíveis de plantas, animais, fungos, algas e também a água. Como o nome diz, esta categoria tolera técnicas simples de processamento, como fervura, pasteurização, secagem, congelamento, torrefação, trituração, moagem, embalagem a vácuo, fermentação não alcoólica. Estes processos não adicionam sal, açúcar e gorduras aos alimentos, tendo a simples finalidade de facilitar ou diversificar o preparo, melhorar a estocagem ou estender a durabilidade dos produtos.

Exemplos de produtos do grupo 1: frutas, verduras, legumes, raízes frescas, ervas e especiarias; grãos como arroz, feijão, lentilha e milho; cogumelos, carnes, aves, peixes e frutos do mar; ovos e leite; farinha, sêmola ou flocos de trigo, milho, aveia ou mandioca; sementes oleaginosas (sem adição de sal ou açúcar); iogurte natural (sem adição de açúcar ou adoçantes); chá e café.

Esta categoria tolera também alguns aditivos, usados para preservar as propriedades originais dos alimentos (antioxidantes em legumes embalados a vácuo) ou repor nutrientes perdidos durante o processamento mínimo (ácido fólico em farinhas).

2 – Ingredientes culinários processados

Em um segundo grupo da classificação NOVA ficam produtos obtidos da natureza ou extraídos diretamente de alimentos in natura por processos como refino, prensagem, trituração, moagem e secagem por pulverização. São produtos usados nas preparações culinárias e raramente são consumidos sozinhos.

Alguns exemplos: sal, açúcar, mel, melaço, amidos, óleos vegetais, azeite, vinagre, manteiga, banha. Estes produtos podem conter aditivos como antioxidantes, anti-umectantes e conservantes, de forma a preservar suas propriedades originais e evitar a proliferação de microorganismos.

3 – Alimentos processados

Neste terceiro grupo estão os alimentos obtidos pela adição de substâncias do grupo 2 aos alimentos do grupo 1. Os processos aqui incluem diversos métodos de cozimento, embalagem, preservação e fermentação, com a finalidade de modificar as qualidades sensoriais dos alimentos e aumentar sua durabilidade.

No grupo 3 estão nozes e sementes salgadas ou açucaradas; queijos e pães frescos não embalados industrialmente; frutas em calda e geleias; carnes salgadas, curadas ou defumadas; peixes enlatados; legumes enlatados ou engarrafados. Entre as bebidas, inclui aquelas produzidas pela fermentação de alimentos do grupo 1, como vinho, cerveja e cidra.

4 – Alimentos ultraprocessados

E no quarto grupo estão produtos preparados a partir de vários ingredientes, muitos deles de uso exclusivamente industrial, sendo que poucos ou mesmo nenhum de seus componentes são alimentos do grupo 1. Alguns ingredientes são extraídos diretamente de alimentos, como lactose, soro de leite, glúten e caseína. Outros são obtidos a partir de um processamento posterior de constituintes de alimentos: óleos hidrogenados, xarope de milho rico em frutose, proteínas hidrolisadas, proteína isolada de soja, maltodextrina, açúcar invertido.

Produtos deste grupo usam aditivos que buscam imitar as qualidades sensoriais (sabor, cheiro, cor, etc.) de alimentos do grupo 1 ou têm a finalidade de disfarçar certas qualidades sensoriais indesejáveis dessas formulações, resultando em algo que as pessoas consigam consumir. Exemplos de aditivos encontrados apenas em ultraprocessados: pigmentos e corantes, estabilizadores de cor, aromatizantes, realçadores de sabor, adoçantes químicos, emulsificantes, sequestrantes, umectantes, espessantes, antiaglomerantes, agentes antiespuma. A fabricação dos produtos do grupo 4 envolve diversas técnicas de processamento, algumas delas sem equivalentes caseiros e possíveis apenas com equipamentos industriais.

Ultraprocessados estão disponíveis trivialmente nos mercados. A lista é grande: pães industrializados; bolachas ou salgadinhos “de pacote”; cereais matinais; chocolates e sorvetes; barras e bebidas energéticas; margarinas e pastas para passar no pão; salsichas, hambúrgueres e outros produtos de carne reconstituída; nuggets de aves e peixes; extratos de carne e frango; sopas e massas instantâneas; refeições prontas para aquecer; produtos “para emagrecimento”, como certos preparados em pó oferecidos como substitutos de refeições; leites de transição, fórmulas infantis e outros produtos para bebês; bebidas carbonatadas; bebidas ou iogurtes com sabor de fruta; achocolatados e bebidas lácteas ou a base de soja; misturas para bolo.

Estes alimentos apresentam algumas características marcantes: têm sabor acentuado, de forma a aumentar o prazer da degustação; suas embalagens são elaboradas para chamar a atenção do consumidor e favorecer a compra por impulso, sobretudo quando está com fome; são apoiados por campanhas publicitárias agressivas, que influenciam as decisões de compra atuando por fora do campo racional. Além de tudo isso, é preciso também lembrar que muitos desses fabricantes pertencem a corporações transnacionais, que obtêm lucros enormes com sua produção e comercialização.

Por suas características, os produtos desta categoria induzem hábitos de alimentação bem pouco saudáveis, como ficar beliscando entre as refeições ou mesmo substituí-las inteiramente. Nas condições da vida urbana de nosso tempo, esses comestíveis acabam parecendo opções interessantes, pois as pessoas podem consumi-los enquanto trabalham, se locomovem ou assistem alguma coisa, seja em telas grandes ou pequenas. Comer passa a ser um gesto mecânico, meramente funcional, muitas vezes em resposta automática a estímulos externos, como um anúncio ou alguém comendo perto. Com isso, além de serem pouco nutritivos e fazerem mal, esses produtos criam ou reforçam o hábito de comer solitariamente. O caráter de sociabilidade do momento das refeições, componente importante da saúde mental das pessoas, acaba completamente abandonado.

A partir das definições propostas pela classificação NOVA, o grau de processamento dos alimentos passa a ser uma importante referência na escolha das formas de se nutrir. O Guia Alimentar para a População Brasileira orienta que se dê preferência a alimentos in natura, insistindo para que as pessoas evitem ou, se possível, eliminem os produtos ultraprocessados de suas dietas.

Essa classificação permite também observar padrões de alimentação em populações, usando critérios qualitativos. Exemplo disso é o Atlas das situações alimentares no Brasil, que mostra, ao longo dos últimos anos, uma preocupante diminuição dos alimentos in natura e o aumento dos ultraprocessados no consumo das famílias.

A classificação NOVA tem servido como base para diversos estudos científicos no Brasil e em países como Chile, Canadá, EUA, Reino Unido, Nova Zelândia e Suécia, correlacionando o consumo de ultraprocessados ao aumento de diversas doenças não transmissíveis. O mesmo grupo de cientistas que propôs a NOVA lançou recentemente no Brasil um estudo que compila grande quantidade de pesquisas acadêmicas demonstrando os males que os ultraprocessados causam à saúde humana e ao meio ambiente.

Quando avaliamos os alimentos conforme seu grau de processamento, fica mais fácil distinguir entre comida de verdade e esses comestíveis que a indústria nos oferece, produtos que muitas vezes nem merecem ser chamados de alimentos. Comer esse tipo de produto, seja de forma esporádica ou, muito pior, diariamente, é um hábito artificial, que foi naturalizado por meio de propaganda constante.

Com a percepção voltada ao paladar e ao tipo de sensação corporal que os alimentos trazem, podemos recuperar nossa preferência natural pela comida de verdade. Só ela pode trazer a energia vital que nutre e fortalece nossos corpos. Alimentar-se é, sim, um ato político e, antes disso, é uma prática diária de saúde.

ultraprocessados

Certos itens vendidos nos mercados deveriam usar a expressão “produto comestível” em suas embalagens, em vez da palavra “alimento”. Esses materiais podem ser mastigados e engolidos, têm aroma e sabor que tentam imitar comida, mas não são exatamente alimentos. Estamos falando dos ultraprocessados.

Muita gente já evita o consumo desses produtos, por saber o quanto eles fazem mal. Mas a grande maioria das pessoas ainda consome isso normalmente, sem fazer ideia do que estão comendo.

No início do século XX, as doenças infecciosas eram a maior causa de morte na população mundial. Atualmente, são as doenças crônicas não transmissíveis que mais matam gente. Esse tipo de doença muitas vezes está relacionado ao modo de vida. Enquanto a melhoria das condições sanitárias e o desenvolvimento das tecnologias de imunização afastaram a ameaça das doenças infecciosas, hoje são nossas escolhas como sociedade que estão nos matando.

Para ajudar a nortear essas escolhas, o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde – NUPENS e a Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis, ambos ligados à Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, produziram o Diálogo sobre Ultraprocessados: soluções para sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis. O documento reúne uma enorme quantidade de evidências científicas que demonstram os males que os ultraprocessados causam à saúde.

As evidências apresentadas são estudos realizados por cientistas de diversos países. O documento traz uma longa seção de referencias, com as pesquisas que demonstraram os danos causados pelos ultraprocessados, para que o público leitor possa conhecê-las diretamente, se quiser. Bom lembrar que a seleção desses artigos foi feita por pesquisadores de uma faculdade de saúde pública, que sabem distinguir pesquisas bem fundamentadas daquelas menos válidas devido a problemas metodológicos.

Imagem: divulgação

Alguns dos males causados pelos ultraprocessados são velhos conhecidos: ganho de peso, obesidade, síndrome metabólica, diabetes, hipertensão e outras doenças cardiovasculares. O documento alerta também para uma série de doenças cuja relação com o consumo de ultraprocessados é bem menos trivial: depressão, câncer de mama, cânceres em geral, asma em crianças, dislipidemias, disfunções renais e mortes prematuras.

Mas por que os ultraprocessados fazem tão mal?

É preciso entender que os problemas dos ultraprocessados vão muito além do excesso de açúcar, sódio ou gorduras saturadas. Além desses excessos e da presença de outras substâncias nocivas, como certos conservantes, existe o fato de haver muito pouco ou nada de nutritivo ali. É aqui que aparece o sentido do termo ‘ultraprocessado’. As técnicas usadas em sua produção desconfiguram completamente as matérias-primas, destruindo sua matriz alimentar. Ou seja, mesmo que um refresco de caixinha alegue que tem certa porcentagem de suco natural de laranja, nada resta ali dos nutrientes da fruta.

É muito comum também que esses comestíveis não tenham absolutamente nada daquilo que dizem ser. Por exemplo, em um doce sabor chocolate (note a sutileza no uso da palavra ‘sabor’, de forma a não comprometer a empresa com as leis de proteção do consumidor), é bem provável que não haja ali nenhuma molécula que já fez parte de um pé de cacau.

Os aditivos alimentares usados para compor o aroma, o sabor, a textura e a aparência desses produtos prejudicam a biota intestinal, desregulando o sistema digestório e afetando a absorção de nutrientes e a saúde dos tecidos. Os ultraprocessados têm também compostos químicos que desregulam o sistema endócrino, provocando mudanças metabólicas no organismo.

As altas quantidades de açúcar, saborizantes e gorduras saturadas fazem com que esses produtos tenham sabor muito acentuado, estimulando seu consumo excessivo. O desenho das embalagens, a publicidade (ainda mais grave no caso daquela voltada para crianças) e as técnicas promocionais de ponto de venda atuam no nível emocional, de forma muitas vezes inconsciente, estimulando o consumo desses produtos e fazendo o consumidor esquecer daquilo que realmente alimenta.

E é sempre bom lembrar: as alegações nutricionais presentes nas embalagens costumam ser completamente enganosas, iludindo o consumidor, fazendo-o pensar que está se alimentando quando, na verdade, está apenas enchendo a barriga.

As conclusões podem ser resumidas numa frase que aparece com destaque no documento: “Não há uma quantidade segura para a ingestão de produtos alimentícios ultraprocessados”. Ou seja, aquela ideia de que ‘só um pouquinho não vai fazer mal’ não se aplica a esses produtos. Exatamente igual ao cigarro.

Como se isso tudo não bastasse, os ultraprocessados também fazem mal ao meio ambiente. Para além das consequências estritamente individuais do consumo desse tipo de produto, entramos em um campo que diz respeito aos impactos coletivos de um sistema alimentar no qual esses comestíveis têm grande presença. O documento aponta três impactos principais: mudanças na forma de uso da terra e diminuição da biodiversidade; aumento no uso de embalagens e geração de resíduos sólidos; aumento nas emissões de gases do efeito estufa.

No sistema produtivo dos ultraprocessados, a função da terra não é gerar alimentos, mas matérias-primas para a produção de comestíveis. Glucose, maltose, maltodextrina, frutose e dextrose são alguns exemplos de derivados do milho amplamente utilizados nessa indústria. A produção em larga escala do milho e de outras commodities agrícolas prioriza variedades de alta produtividade, geralmente com modificações genéticas. Isso leva ao abandono de outras variedades, que podem até mesmo acabar extintas. A monocultura intensiva é peça essencial de um sistema alimentar em que os ultraprocessados são amplamente consumidos.

O aumento do uso de embalagens associado ao consumo desses produtos dispensa maiores explicações. Pense, por exemplo, naquelas bolachas que vêm agrupadas em pacotinhos de plástico que, por sua vez, vêm dentro de outras embalagens de plástico. Ou naquele lanche que sai da chapa e é colocado dentro de uma embalagem elaborada que, poucos segundos depois, será aberta, amassada e jogada no lixo. É preciso também lembrar dos resíduos químicos gerados pela indústria durante a produção dos materiais dessas embalagens.

O documento aponta estudos de diversos países que associam partes consideráveis das emissões de gases do efeito estufa à produção, armazenamento e transporte dos ultraprocessados. No Brasil, vem sendo observado um preocupante incremento na pegada de carbono relacionada a esses produtos, cuja participação na dieta dos brasileiros aumentou em 340% nos últimos 30 anos.

Para lidar com essa tendência mórbida, o documento propõe diversas soluções, entre as quais: ampla utilização de guias alimentares (área na qual o Brasil é pioneiro), regulação da rotulagem e publicidade desses produtos, restrição da oferta em ambientes escolares, aumento da tributação (para aumentar o preço e diminuir o consumo) aliado ao incentivo à escolha de produtos saudáveis (in natura ou minimamente processados).

A produção e o consumo de ultraprocessados estão totalmente integrados a um sistema alimentar baseado em concentração de capital, agricultura de larga escala, uso intensivo de pesticidas e fertilizantes químicos, grandes distâncias entre produção e consumo, domínio de grandes redes de distribuição, desatenção com o ato de se alimentar. As corporações que monopolizam a distribuição e o varejo conseguem controlar a disponibilidade e o preço desse tipo de produto, fazendo-os estarem em todos os lugares e muitas vezes a um preço aparentemente baixo se comparados a alternativas mais saudáveis.

A demanda por ultraprocessados é mantida artificialmente por efeito da publicidade e da convivência com pessoas que os consomem, dando a impressão de que é normal consumi-los. Em uma época já passada, esses comestíveis foram muito associados a praticidade e modernidade. Hoje, vai ficando cada vez mais evidente a sua relação com as doenças que mais matam pessoas. Felizmente temos alternativas. Ao fazermos melhores escolhas, estamos nutrindo nosso corpo e fortalecendo sistemas alimentares mais saudáveis, justos e humanos.

tratado sobre recursos fitogenéticos

O Tratado Internacional sobre os Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura é um acordo que reconhece um conjunto de espécies vegetais alimentícias como patrimônio da humanidade. Trata-se de um importante mecanismo de proteção da biodiversidade agrícola.

Dos milhares de cultivos já desenvolvidos pelas sociedades ao longo de sua história, mais de três quartos foram perdidos nos últimos cem anos. Em nome do aumento da produtividade, a agricultura intensiva, mecanizada e baseada em pacotes tecnológicos prefere cultivos únicos e sementes modificadas em laboratórios. Como consequência, muitas variedades são abandonadas, rompendo a continuidade do processo reprodutivo da vida. Isso se chama extinção. Diante desse processo de desaparecimento de espécies comestíveis, proteger a diversidade torna-se um requisito para garantir a segurança da alimentação dos povos.

Construído no âmbito da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o documento foi assinado em 2001 e entrou em vigor em 2004. Atualmente, conta com 149 nações e organizações signatárias. Entre seus objetivos estão “a conservação e a utilização sustentável dos recursos fitogenéticos para a alimentação e a agricultura e a partilha justa e equitativa dos benefícios resultantes da sua utilização”.

Foto: Min An / Pexels

O texto do tratado destaca a importância dos agricultores para a diversidade de cultivares que alimentam as pessoas de todo o mundo. As comunidades locais de agricultores são as guardiãs da biodiversidade. Dispondo conhecimento acumulado através de muitas gerações, conhecem soluções testadas e aperfeiçoadas ao longo de séculos de prática das técnicas tradicionais. É por isso que o Tratado inclui, entre as diretrizes a serem seguidas pelos países signatários, o apoio aos agricultores e às comunidades locais para a manutenção desses cultivos.

Cada país contratante deve também inventariar os recursos fitogenéticos para a alimentação e a agricultura, promover a conservação in situ das espécies através do apoio às comunidades locais, proteger as variedades que se encontrem ameaçadas, entre outras ações. Para fomentar projetos de fortalecimento, o Tratado prevê um Fundo de Distribuição de Benefícios, que concede subvenções a projetos inovadores e escaláveis, especialmente nos chamados países em desenvolvimento. A mais recente chamada para projetos foi em maio de 2022.

Desde 2002, o Brasil é signatário do Tratado. Em 2008, o Decreto nº 6.476 promulga o Tratado no Brasil. A partir daí, diversos marcos legais foram surgindo e têm servido para, entre outras finalidades, apoiar sua implementação. Alguns exemplos são a Lei da Biodiversidade, a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica e o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica.

guia alimentar

Produzido com a participação de especialistas de várias áreas, o Guia Alimentar para a População Brasileira, editado pelo Ministério da Saúde em 2014, é uma importante obra de referência para a educação alimentar num sentido amplo, voltada para a população em geral. Oferece uma oportunidade para que cada um possa refletir sobre suas práticas alimentares e compreender a amplitude de aspectos que estão relacionados à alimentação, muitas vezes sem nos darmos conta disso.

Trata-se de um esforço para melhorar as condições de saúde da população por meio da alimentação adequada e saudável, diante do aumento nos índices de obesidade e de diversas doenças, relacionado a um processo contínuo de substituição de alimentos in natura por alimentos ultraprocessados, observado em todas as regiões do país e todas as camadas da população.

É preciso enfatizar que o Guia Alimentar não é nem um livro de receitas nem um manual de dieta alimentar, com tabelas nutricionais de cada prato ou refeição. O Guia aborda o tema da alimentação de forma abrangente, desde a escolha e aquisição dos alimentos, passando pelo seu preparo, até o momento da refeição propriamente dito, com todos os aspectos relacionais e sociais envolvidos. Além disso, se propõe a ser referência para a população brasileira, com toda sua diversidade física e cultural.

Há sim sugestões de cardápios. Mas em vez de elas virem da fala de autoridade de profissionais, amparados em complexos cálculos nutricionais, vêm da mesa de brasileiros reais, das diferentes regiões do país, que consomem esses cardápios em seu dia a dia, seguindo suas referências culturais e tradições familiares. Para cada uma das três grandes refeições diárias (café da manhã, almoço e janta), são apresentados, a título de exemplo, oito cardápios compostos exclusivamente de alimentos in natura ou minimamente processados.

Imagem: divulgação

Ao longo de todo seu texto, o Guia enfatiza que alimentar-se é também um ato político e comunitário, já que muitas das escolhas têm efeitos que vão muito além do aspecto fisiológico individual. Ao escolher meus alimentos, que pessoas ou corporações eu estou remunerando com o pagamento da minha compra? Que sistema alimentar eu estou fortalecendo? Quais agentes econômicos se beneficiam quando escolho comprar em uma grande rede varejista sem fazer ideia sobre quem produziu esta comida e quantos quilômetros ela percorreu até chegar aqui?

Depois de escolher, adquirir e preparar os alimentos, chegamos ao ato de alimentar-se propriamente dito. Quem está comigo neste momento? Que pessoas estão próximas em meu cotidiano a ponto de compartilharem comigo este ato tão importante para o corpo, a mente e o grupo comunitário? Que relações entre semelhantes eu estou fortalecendo durante esses minutos tão importantes à saúde? Com quem estou compartilhando minhas opiniões sobre saúde, nutrição, comunidade, projeto de vida?

Interessante lembrar que a importância da comensalidade foi mais uma vez demonstrada durante a pandemia. O trabalho remoto tirou a hora do almoço da rotina diária dos trabalhadores. Especialistas da área da saúde mental apontam a perda desse importante momento de convivência e compartilhamento entre colegas de trabalho como um fator, entre tantos outros, para o aumento de ansiedade e depressão entre as pessoas que passaram a trabalhar isoladas em suas casas.

Outro aspecto importante do ato de alimentar-se é a experiência consciente dos aromas e sabores da refeição. Observe um restaurante que as pessoas frequentam diariamente em seu horário de almoço e procure contar quantas não estão mexendo no telefone enquanto mastigam. Com a atenção totalmente tomada pela sedução digital, mal percebem o sabor do que estão ingerindo, o ato de comer torna-se um gesto mecânico e meramente funcional, excluindo do cotidiano o prazer de comer!

Em diversas passagens, o Guia Alimentar enfatiza a importância de se separar o ato de alimentar-se das praticas de consumo ou da exposição à publicidade comercial. Em locais como praças de alimentação, a refeição se confunde com um gesto de consumo. Também sugere que as pessoas evitem comer enquanto se expõem a mensagens publicitárias, que trazem imagens que afetam profundamente, ainda que de maneira inconsciente, não apenas a escolha dos alimentos como a satisfação – ou frustração – proporcionada por aquilo que se está comendo.

Detalhes como esses mostram o interesse público da obra, pois ela orienta os cidadãos a se resguardarem dos interesses corporativos da indústria da alimentação.

Foto: Fauxels / Pexels

A edição de 2014 do Guia Alimentar para a População Brasileira tem atualizações significativas em relação a sua primeira edição, de 2006, não somente em seus conteúdos, mas também na linguagem e na forma como foi elaborado. Especialistas das áreas da saúde, educação, agricultura, professores de universidades e membros de organizações de defesa do consumidor foram reunidos em uma oficina de escuta. Uma versão preliminar ficou então por três meses em consulta pública na página do Ministério da Saúde e foi objeto de novas oficinas, em todos os estados do Brasil, para acolher as diferentes percepções do público em geral, incorporando à obra a imensa diversidade regional do país.

Escrito em um estilo de texto leve, trazendo recomendações sem tom impositivo, o Guia se destaca em meio a tantas mensagens sobre alimentação disponíveis atualmente na mídia, seja da publicidade, seja dos especialistas de plantão, que nos dizem o tempo todo, em tom muitas vezes taxativo e autoritário, como devemos e como não devemos comer. Estilisticamente, soa como uma refeição suave e caseira para quem está acostumado com comida industrializada cheia de realçador de sabor.

Todos esses aspectos do Guia convidam a uma degustação lenta, prolongando o prazer e a profundidade da reflexão. É perfeito como tema de aulas, rodas de conversa, oficinas e estudos dirigidos, um ótimo material para ser lido e estudado por professores, terapeutas, cuidadores, gastrônomos, profissionais da saúde. Além de estimular mudanças positivas nos hábitos alimentares, tem a importante missão de formar e informar cidadãos para que possam exigir o cumprimento do direito humano a uma alimentação decente e saudável.

municípios agroecológicos

Como uma prefeitura municipal pode incentivar a agroecologia em seu território? O levantamento Municípios agroecológicos e políticas de futuro, realizado pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), mostra diversos caminhos que as prefeituras podem seguir para fortalecer a agricultura familiar e a produção agroecológica, beneficiando-se dos efeitos positivos disso para a economia municipal e, sobretudo, a saúde e qualidade de vida de seus cidadãos.

Foi feito um mapeamento preliminar, em todas as unidades da federação, das ações, políticas, programas e leis municipais que, de alguma forma, contribuem para fortalecer a agroecologia. Em seguida, houve um aprofundamento no estudo dessas ações, o que resultou num conjunto com 721 iniciativas das quais o poder público municipal seja executor e/ou financiador, incluindo aquelas que surgiram da sociedade civil mas em que as prefeituras tenham um papel chave. As iniciativas foram categorizadas, formando uma lista com 41 campos temáticos.

A lista abaixo está resumida, incentivamos fortemente a leitura do estudo. Temos aí possibilidades interessantes e concretas de atuação, que estão acontecendo ou já aconteceram em cidades brasileiras.

  • apoio à formação de circuitos curtos de comercialização (cessão de espaço público para realização da feira, construção de pontos fixos de comercialização, compra de barracas, apoio na logística de transportes);
  • promoção das compras institucionais (acesso a políticas como PAA e PNAE, criação de restaurantes populares);
  • fomento à infraestrutura de produção (estruturação de espaços de armazenamento e/ou beneficiamento de alimentos, construção de sistemas ecológicos de saneamento, implantação de sistemas de geração de energia solar);
  • apoio a bancos de sementes comunitários e viveiros de mudas nativas (melhoramento genético participativo);
  • melhoria no acesso à água (recuperação de nascentes e matas ciliares, cisternas, reuso de água);
  • incentivo à produção agrícola em áreas urbanas e periurbanas (hortas comunitárias, hortas escolares, centros municipais e públicos de produção de alimentos);
  • uso de plantas medicinais e práticas integrativas de saúde no âmbito do SUS (intercâmbio entre saberes tradicionais e conhecimentos científicos, indicação de fitoterápicos aos pacientes, implementação de laboratórios de manipulação de plantas medicinais);
  • apoio técnico e extensão rural (convênios com organizações da sociedade civil para incentivar a agroecologia);
  • disponibilização de equipamentos e insumos (uso coletivo de máquinas da prefeitura, programas de ensilagem, distribuição de insumos);
  • fiscalização e restrição de atividades que geram impactos negativos (leis municipais que proíbem a expansão do agronegócio, instituição de zonas livres de agrotóxicos, proibição de monoculturas como eucalipto e cana-de-açúcar, proibição do uso de árvores nativas para produção de carvão vegetal em escala industrial).

Nuvem de temas do levantamento. Fonte: Municípios agroecológicos e políticas de futuro. CLIQUE PARA AMPLIAR

A região Sul do país se destaca com 282 (39%) das iniciativas catalogadas, seguida pela região Nordeste, onde estão 223 (31%) delas. Porém, é a região Nordeste que tem o maior número de municípios com iniciativas (228, ou 43%), enquanto que na região Sul há apenas 170 municípios com iniciativas (32%). Ou seja, há no Nordeste mais municípios onde existe algum apoio à causa, enquanto no Sul as iniciativas estão concentradas em menos municípios. Seria interessante se o estudo indicasse também a porcentagem de municípios com iniciativas sobre o total de municípios (por região e por estado), permitindo medir o avanço dessas iniciativas ao longo do tempo.

Apoio a feiras e circuitos curtos é o tipo de iniciativa que mais aparece em todas as regiões exceto a Sul, onde o predominam iniciativas da categoria Fomento à produção, e é também o tema de maior incidência entre todas as iniciativas catalogadas.

Neste blogue, temos defendido a proximidade entre produtor e consumidor. O apoio às feiras de produtores e à formação de circuitos curtos de comercialização permite, com um investimento relativamente baixo, contribuir para o florescimento da atividade agrícola local, com benefícios para produtores e consumidores, além de permitir o fortalecimento dos vínculos entre eles. No caso da cessão de espaços públicos para a realização de feiras de produtores, por exemplo, o custo é próximo de zero.

Em cidades pequenas, as feiras de produtores têm um papel que vai além da simples função de abastecimento, são locais de encontro entre moradores das áreas rural e urbana. Nas cidades grandes, quando localizadas em regiões periféricas, colocam em contato direto os consumidores dessas regiões com os produtores das áreas periurbanas. Apesar da proximidade geográfica entre elas, é comum que a produção orgânica dos cinturões verdes das grandes cidades seja inteiramente deslocada para regiões centrais e bairros abastados, onde serão comercializadas como produtos diferenciados, mais caros. O desenvolvimento da agroecologia é uma boa oportunidade para superar contradições de nossa organização social.

Além do relatório, está também disponível na página da ANA uma base de dados com todas as 721 experiências que entraram no estudo, trazendo a descrição das iniciativas e outros dados. É uma fonte de informações sobre experiências concretas, que podem ajudar gestores públicos a compor suas visões estratégicas e inspirar a sociedade civil na organização de suas demandas.

O incentivo à agroecologia atinge imediatamente as vidas dos pequenos produtores, que se fortalecem economicamente, e dos consumidores, que passam a ter acesso a mais alimentos saudáveis e a preços menores. Isso tudo se reflete positivamente nos indicadores de saúde das localidades.

É no plano local que se constrói a mudança concreta, e daí vem a importância das prefeituras no desenvolvimento de um sistema alimentar genuinamente voltado para atender as necessidades da população.

dicionário de agroecologia

A luta dos movimentos populares pela construção de uma realidade mais justa, baseada em novas relações entre seres humanos e entre estes e a natureza, acaba de ganhar mais uma importante ferramenta. O Dicionário de Agroecologia e Educação foi publicado no final do ano passado e está disponível, nas versões impressa e digital, para educadores, militantes, pesquisadores e pessoas interessadas em se aprofundar em temas importantíssimos na reflexão sobre nossas escolhas como sociedade. O Dicionário foi produzido pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV-Fiocruz), de forma coordenada com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e em parceria com a Editora Expressão Popular.

A obra conta com 106 verbetes, elaborados por uma equipe de 169 autores e autoras, e foi estruturada tendo em vista as necessidades e expectativas dos educadores e educadoras das escolas do campo. Alguns exemplos de verbetes: antropoceno, bens comuns, capitalismo verde, deserto verde, diversidade sexual e de gênero, educação do campo, feminismo camponês e popular, financeirização da economia, homeopatia, medicina tradicional brasileira, metodologias emancipatórias, plantas medicinais e fitoterápicos na saúde pública, política agrária, teia alimentar, território, transição agroecológica. Toda a equipe foi orientada a redigir textos aprofundados e rigorosos quanto aos conceitos, mas ao mesmo tempo escritos em linguagem acessível.

Imagem: divulgação

Os autores advertem que, mesmo tratando-se de um dicionário, ele não pretende ter caráter normativo. O propósito de uma obra como esta vai muito além de simplesmente apresentar definições – ainda que elas estejam presentes em muitos verbetes. Há ali uma rica discussão quanto aos fundamentos de cada um dos temas, além de dados históricos que mostram o processo de formação dos conceitos. Trata-se de um material pensado em uma perspectiva crítica, com a finalidade de fundamentar o diálogo entre todos aqueles que se inserem nesta luta.

Ainda que a agroecologia venha sendo pensada e praticada em todo o mundo, é importante que cada povo possa construir seu próprio entendimento sobre o tema, tendo em vista a sua realidade sócio-histórica e suas práticas locais. O capítulo introdutório chama a atenção para a importância estratégica que a agroecologia tem na “promoção da saúde nos territórios e na elaboração de políticas públicas que visem a estruturação da soberania alimentar”.

O Dicionário de Agroecologia e Educação é um documento riquíssimo tanto para qualificar a discussão política no âmbito da militância como para articular a construção do projeto político pedagógico nas escolas, sobretudo tendo em vista a educação do campo. Os verbetes trazem bibliografia detalhada e sugestões de materiais de apoio para o desenvolvimento do tema, pensando em seu uso em sala de aula.

Informações tão bem sistematizadas inspiram inclusive ações pedagógicas para além da sala de aula. Podemos, por exemplo, pensar na articulação de encontros com rodas de conversa que partem da leitura de verbetes, como forma de enriquecer o debate, manter ideias em movimento e reforçar vínculos nas comunidades.

A transformação social se dá pela construção de alternativas concretas ao modelo de desenvolvimento capitalista. Este dicionário mostra que os fundamentos da agroecologia se articulam com esse projeto em diversos campos de ação.

semente

Quando resolveu invadir a Índia com suas sementes geneticamente modificadas, a indústria do pesticida fez campanhas agressivas nos pequenos vilarejos, exibindo filmes que mostravam seus produtos junto a deidades do hinduísmo, como forma de quebrar a resistência e ganhar a simpatia dos agricultores. Eles gostaram da proposta, aceitaram converter suas plantações para a transgenia e compraram sacas de sementes patenteadas. A estratégia funcionou. Até aqui, apenas uma velha e manjada ferramenta da publicidade.

Acontece que os agricultores naturalmente tinham o hábito de estocar as sementes de suas culturas, pois eram elas que reiniciavam o ciclo de cultivo no ano seguinte. Essas sementes nativas ameaçavam o interesse da indústria: se não gostassem da nova experiência, os agricultores poderiam voltar a plantar suas próprias sementes e a indústria perderia aquele mercado. Era preciso garantir a dependência perpétua. Era preciso eliminar qualquer outra alternativa dos agricultores, destruir as chances de sobrevivência das formas tradicionais de cultivo. Como aquele tiro que o assassino dá na cabeça do morto caído no chão, para garantir que ele está mesmo bem morto.

Foi simples fazer isso. Os agentes da indústria ofereceram uma quantia em dinheiro em troca de quaisquer sementes antigas que os agricultores pudessem ter guardadas nas fazendas. Parecia um bom negócio, afinal eles agora tinham as novas sementes, cheias de promessas, e nenhum motivo para supor que poderiam precisar das antigas. Alguns trocados a mais fariam diferença no orçamento daquelas famílias simples. Entregaram tudo. Quando começaram a se dar conta da armadilha em que haviam caído, houve uma onda de suicídios de agricultores. Um deles se matou bebendo o próprio pesticida.

O filme Semente: a história nunca contada (Seed: The Untold Story) apresenta apenas um ou outro caso sinistro como esse. É importante conhecer o adversário, saber com quem estamos lidando para jamais duvidar da sua absoluta falta de escrúpulos. Porém, o que vale o filme são as belas histórias de resistência, iniciativas de ativistas de diversos lugares do mundo que estão contribuindo para preservar a diversidade. Ao longo do século XX, 94% das variedades de sementes desapareceram.

Um banco de sementes em Iowa, EUA.

Você conhecerá colecionadores de sementes, bibliotecas de sementes, bancos comunitários de sementes, caçadores de sementes raras que só restaram em poucos lugares do mundo. Verá soluções que os agricultores e agricultoras estão encontrando para ajudarem uns aos outros e resistirem contra as investidas dessa indústria de destruição da vida. Como as feiras de trocas de sementes nativas, por exemplo.

Foi durante a I Feira de Trocas de Sementes e Mudas da Reforma Agrária, realizada na Comuna da Terra Irmã Alberta em setembro de 2017, que saiu da terra o primeiro broto de ideia do BiciCarreto.

Belo tributo a esses pedaços de matéria que carregam a vida inteira dentro deles, Semente: a história nunca contada é perfeito como primeira sugestão de filme publicada neste blogue.