direitos dos camponeses

Declarações universais da Organização das Nações Unidas (ONU) têm o propósito de estabelecer direitos fundamentais, orientar países na formulação de suas leis e servir de inspiração e referência em lutas e debates, em todo o planeta, sobre os temas de que tratam.

Em dezembro de 2018, sua Assembleia Geral aprovou, por meio de uma resolução, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses (abreviada como UNDROP, seguindo o nome em inglês). O documento tem 28 artigos que tratam de assuntos essenciais como direito à terra, às sementes, à biodiversidade, à soberania alimentar, à justiça e à água, entre outros.

Infelizmente, as resoluções da Assembleia Geral não são vinculativas, isto é, não têm força imperativa para os Estados membros. Se tudo que está lá afirmado fosse de cumprimento obrigatório pelos países, certamente os camponeses de todo o mundo viveriam uma realidade bem diferente.

Em 2002, durante uma conferência regional, a organização camponesa internacional Via Campesina formulou sua Declaração dos Direitos das Camponesas e Camponeses, a qual foi lançada e adotada oficialmente em 2009. Esse documento mais tarde serviria de inspiração para a UNDROP.

Dentro da ONU, a elaboração iniciou no Conselho de Direitos Humanos, por incidência da Bolívia. Uma primeira versão do documento foi aprovada pelo Conselho em 28 de setembro de 2018, contando com 33 votos a favor, 3 votos contra (Austrália, Hungria e Reino Unido) e 11 abstenções (o Brasil entre elas).

Em seguida, o texto passou pelo Terceiro Comitê da Assembleia Geral, o qual lida com questões sociais e humanitárias. Foi aí aprovado em 19 de novembro do mesmo ano, com 119 votos a favor, 7 votos contra (Austrália, Estados Unidos, Hungria, Israel, Nova Zelândia, Reino Unido e Suécia) e 49 abstenções (o Brasil novamente entre elas).

Finalmente, o texto da Declaração seguiu para a Assembleia Geral, onde foi aprovado, em 17 de dezembro, com 121 votos a favor, 8 votos contra (todos que se opuseram no Terceiro Comitê mais a Guatemala) e 54 abstenções (o Brasil, mais uma vez, neste grupo). Desconhecemos a justificativa do Brasil para as abstenções nas três etapas, mas sabe-se que em contextos como esse a abstenção é uma forma de negar apoio à causa sem que isso represente um grande comprometimento perante a opinião pública. É importante ter em mente o momento político no qual o país se encontrava nessa época.

Esse estilo de declaração começa por elencar os princípios e noções gerais que norteiam sua elaboração. Assim, em seu preâmbulo, a UNDROP reconhece a especial relação dos camponeses com a terra, a água e a natureza, elementos dos quais dependem para sua subsistência. Reconhece também sua contribuição para a conservação da biodiversidade, que constitui a base da produção alimentar e agrícola em todo o mundo, assim como seu papel essencial na garantia dos direitos à alimentação adequada e à segurança alimentar.

Entre os documentos que lhe serviram de embasamento, faz referência à Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979) e à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007), entre muitos outros.

Em seu primeiro artigo, apresenta uma interessante definição de camponês: “qualquer pessoa que se dedique ou pretenda dedicar-se, individualmente, em associação ou como comunidade, à produção agrícola em pequena escala para subsistência ou comércio, que para este efeito dependa em grande parte, embora não necessariamente de forma exclusiva, do trabalho de membros da sua família ou agregado familiar, ou de outras formas não monetárias de organização do trabalho, e que tenha um vínculo especial de dependência ou ligação com a terra” (Artigo 1.1.). Assim, são excluídos da definição os empreendimentos agrícolas baseados exclusivamente em relações de trabalho capitalistas. O termo camponês seria então equivalente ao que chamamos de agricultor familiar.

Imagem: Reprodução de Déclaration des Nations Unies sur les Droits des paysan·ne·s et Autres Personnes Travaillant dans les Zones Rurales – livret d’illustrations. La Via Campesina, 2020.

A partir dessa definição, desenha-se para os camponeses um cenário que, se fosse concretizado, seria um verdadeiro mundo dos sonhos. Seguem alguns destaques e comentários sobre as perspectivas oferecidas pela Declaração. Como não há uma versão em português desse documento no repositório oficial da ONU, os trechos citados aqui são traduções nossas a partir das versões em espanhol e em inglês.

O parágrafo sobre produtos tóxicos, se efetivo, garantiria a camponeses e camponesas não apenas a opção de não utilizarem veneno como também a possibilidade de não estarem sujeitos às suas consequências. “Os camponeses e outras pessoas que trabalham em zonas rurais têm o direito de não utilizar nem de estar expostos a substâncias perigosas ou produtos químicos tóxicos, tais como agrotóxicos ou poluentes agrícolas ou industriais” (Artigo 14.2.).

As correntes de vento transportam substâncias jogadas na atmosfera, podendo trazer o veneno utilizado em fazendas vizinhas para a roça de alguém que optou por não utilizar esses produtos e contaminando sua produção, sua terra e seus trabalhadores. Os agrotóxicos têm também o efeito de dizimar populações de abelhas, comprometendo o sistema natural de polinização das plantas, o que caracteriza séria agressão ao meio ambiente e à biodiversidade, cuja proteção é abordada em outros pontos da Declaração.

Devido ao alcance dos impactos maléficos dessas substâncias, decisões individuais dos produtores não lhes garantem a possibilidade de estarem protegidos delas. Portanto, a menos que o uso de veneno seja proibido em caráter nacional ou ao menos regional, esse direito dificilmente será garantido.

A Declaração entende que o direito à soberania alimentar passa pela possibilidade de se participar das decisões sobre as políticas que afetam a forma como os alimentos são produzidos e distribuídos. “Os camponeses e outros trabalhadores rurais têm o direito de determinar seus próprios sistemas agroalimentares, o que é reconhecido por muitos Estados e regiões como o direito à soberania alimentar. Isso inclui o direito de participar dos processos de tomada de decisão relativos às políticas agroalimentares e o direito a alimentos saudáveis ​​e adequados, produzidos através de métodos ecológicos e sustentáveis que respeitem suas culturas” (Artigo 15.4.).

Para a construção de um sistema alimentar justo e saudável, é essencial a presença da sociedade civil nas instâncias participativas existentes. Ao mesmo tempo, é importante fortalecer iniciativas que representem alternativas concretas ao sistema alimentar vigente, controlado por interesses corporativos.

Há na Declaração um único parágrafo que, sozinho, evitaria conflitos atualmente em curso em diversas partes do mundo, caso fosse efetivo. “Os camponeses e outras pessoas que trabalham em zonas rurais têm o direito de serem protegidos contra qualquer deslocamento arbitrário e ilegal que os remova das suas terras, do seu local de residência habitual ou de outros recursos naturais que utilizam nas suas atividades e de que necessitam para usufruir de condições de vida adequadas. (…) Os Estados devem proibir os despejos arbitrários e ilegais, a destruição de zonas agrícolas e o confisco ou a expropriação de terras e outros recursos naturais, em particular quando usados como medida punitiva ou como meio ou método de guerra” (Artigo 17.4.). Uma rápida olhada para a profusão de conflitos em andamento hoje no mundo mostra como isto está longe de se concretizar.

O parágrafo que trata da reforma agrária é, curiosamente, o único em que a sentença inicia de modo condicional. “Quando apropriado, os Estados devem tomar as medidas adequadas para implementar reformas agrárias a fim de facilitar o acesso amplo e equitativo à terra e a outros recursos naturais necessários para garantir que os camponeses e demais trabalhadores rurais desfrutem de condições de vida adequadas e para limitar a concentração e o controle excessivos da terra, levando em consideração sua função social. Os camponeses sem-terra, os jovens, os pescadores artesanais e outros trabalhadores rurais devem ter prioridade na distribuição de terras públicas, áreas de pesca e florestas” (Artigo 17.6., grifo nosso).

É interessante observar como a Declaração dos Direitos das Camponesas e Camponeses, da Via Campesina, adota uma posição bem mais assertiva sobre o tema. “Grandes propriedades rurais não devem ser permitidas. A terra deve cumprir sua função social. Limites de posse de terra devem ser aplicados quando necessário para garantir o acesso equitativo à terra” (Artigo IV.11., grifo nosso). Por mais que a ONU tenha um papel importante no reconhecimento internacional dos direitos de grupos vulneráveis em todo o mundo, este caso exemplifica como ela é também capaz de barrar afirmações que os grupos dominantes de seus países membros considerem excessivas.

De qualquer forma, o conjunto de direitos apresentado pela Declaração representa um grande avanço em relação às condições objetivas enfrentadas por camponesas e camponeses em todo o mundo. A partir daí, existe o caminho para a efetivação desses direitos, por meio dos processos internos de cada país.

No Brasil, muitos dos direitos afirmados na Declaração já aparecem, de alguma forma, em marcos legais. Porém, a realidade das camponesas e camponeses daqui está muito longe do sonho desenhado pelo documento. Uma das demonstrações mais emblemáticas dessa precariedade é o fato de muitas áreas rurais apresentarem índices de insegurança alimentar maiores que áreas urbanas, mesmo estando seus habitantes diretamente em contato com a terra que produz – ou deveria produzir – alimentos.

A Declaração atribui aos Estados nacionais o papel de implementar e garantir os direitos nela estabelecidos. “Os Estados devem respeitar, proteger e cumprir os direitos dos camponeses e de outras pessoas que trabalham em zonas rurais. Devem prontamente tomar medidas legislativas, administrativas e outras cabíveis para alcançar progressivamente a plena realização dos direitos enunciados na presente Declaração que não possam ser imediatamente garantidos” (Artigo 2.1.). De fato, é ingenuidade esperar que tais iniciativas venham de poderes privados, como latifundiários e corporações, justamente aqueles que vêm historicamente se beneficiando da inexistência, na prática e muitas vezes também na teoria, desses direitos.

Portanto, declarações como esta servem como lembretes da importância de Estados fortes e com amplo apoio popular, capazes de resistir à infiltração dos interesses privados no aparelho estatal, de forma que possam concretizar direitos já reconhecidos como universais.

rede local de Bicicarreto

Manhã fria de agosto, o sol estava nascendo quando chegamos à Nossa Horta Parque Continental, localizada no distrito do Jaguaré, em São Paulo, bem perto da divisa com o município de Osasco. Nossa missão era transportar uma pequena encomenda de verduras produzidas nessa horta até o Ponto de Economia Solidária do Butantã, para serem vendidas na feira de orgânicos que funciona nesse local.

A ação concretiza um esforço de articulação iniciado há vários meses, no qual buscamos conectar produtores e entrepostos da região, construindo uma rede de distribuição de alimentos em bicicletas a partir do produtor.

Foto: Dionizio Bueno

A Nossa Horta tem um grande espaço dividido em lotes. Cada um desses lotes é cuidado por uma família da vizinhança. A lista de produtos foi enviada na véspera a uma das pessoas da Nossa Horta.

Essa produtora fez a comunicação interna entre as várias famílias produtoras de forma a encontrar quem tinha os produtos da lista no ponto de colheita. Os alimentos foram colhidos poucas horas antes de serem embarcados nas bicicletas.

Foto: Dionizio Bueno

No trajeto, de cerca de 8 quilômetros, o trânsito de automóveis estava bem difícil, como ocorre todas as manhãs. Nesses trechos, as bicicletas puderam fluir livremente, e o tempo total de trajeto em bicicleta certamente foi bem próximo do que seria em veículo motorizado, talvez até menor. E só na bicicleta as verduras podem tomar a brisa fresca da manhã enquanto são transportadas!

No destino final, os produtos foram identificados com a etiqueta do Bicicarreto. Um cartaz ao lado dá uma informação importante sobre eles: “Os produtos com esta etiqueta foram plantados em uma horta urbana aqui pertinho e foram transportados até esta loja de bicicleta. Até aqui, nenhuma gota de combustível foi consumida no seu transporte!”.

Foto: Dionizio Bueno

Além de divulgar o conceito, essas etiquetas trazem uma narrativa que funciona indiretamente como “certificação”, chamando atenção para a ideia de alimentação local. Os produtos foram organizados em uma cesta com destaque e ficaram expostos junto aos outros alimentos orgânicos vendidos no Ponto de Economia Solidária.

Os esforços de pesquisa e articulação do Bicicarreto estão atualmente voltados para demonstrar a viabilidade de uma rede de produção, distribuição e comércio de alimentos baseada no transporte em bicicleta, de forma que o modelo possa ser reproduzido em diversos bairros.

Tudo que vem da natureza e nos alimenta é criado a partir da terra, começa no chão de um produtor. É assim também o nosso trabalho.

decrescimento

Dizem que a economia precisa sempre crescer. Esse mantra, repetido constantemente em quase todos os meios de comunicação, criou um consenso tão forte que raramente alguém questiona a afirmação ou pede que se apresentem justificativas para a necessidade de crescimento. Há, porém, um movimento de pessoas tecnicamente muito bem fundamentadas que defende o contrário: as grandes economias de hoje deveriam buscar não o crescimento, mas o decrescimento.

O argumento central é simples: não há crescimento infinito possível em um planeta finito. Portanto, considerando que certos países já cresceram demais e consomem mais de 80% dos recursos naturais do planeta, é preciso abandonar o paradigma tecnocrático, segundo o qual a atividade econômica deve sempre crescer e crescer, e buscar a redução da produção e do consumo, diminuindo o uso de energia e a dilapidação dos recursos naturais do planeta. Dentro dessa proposta, bem-estar social e ecológico passa a ser a prioridade, deixando para trás um sistema que causa exploração humana e destruição ambiental.

Os defensores do decrescimento propõem uma sociedade marcada por autonomia, trabalho partilhado, auto-organização e convivialidade. Nela, o Produto Interno Bruto (PIB) perde o sentido como parâmetro de prosperidade. Indicadores ligados a saúde, vitalidade comunitária, longevidade e felicidade são mais importantes aqui.

A diminuição da atividade econômica e dos conglomerados altamente capitalizados tende a devolver espaço para os negócios de menor tamanho. A economia se reorganiza e passa a operar em uma escala mais humana, na qual as pessoas deixam de ser engrenagens do sistema e podem ter seu trabalho devidamente valorizado. A velocidade da vida volta a ser saudável, os laços comunitários se regeneram, os índices de felicidade aumentam.

Podemos acrescentar que, nessas condições, a saúde geral da população melhora e a venda de remédios cai. Tal efeito, que dentro do pensamento econômico hoje dominante seria considerado um problema – afinal, os remédios e toda a indústria da doença correspondem a parte importante do PIB – não seria motivo de preocupação em um mundo onde o PIB deixou de ser o fetiche dos tecnocratas e governantes.

Foto: Anton Atanasov / Pexels

No sistema alimentar, a atuação de grandes corporações na distribuição de alimentos prejudica os pequenos produtores e também os consumidores, controlando os preços em ambas as pontas. E quanto à produção, os alimentos parecem estar longe do interesse dos latifúndios, que preferem produzir commodities para os mercados interno e externo. Temos aqui um bom exemplo de como o crescimento sem limites chega ao ponto de desviar completamente a finalidade da terra, que no caso do agronegócio já não serve para produzir comida.

Ter na bicicleta um referencial para a estruturação de sistemas alimentares autônomos é uma proposta radical que tem ressonância, em termos teóricos e práticos, com a doutrina do decrescimento. Além de se basear em uma fonte de energia altamente renovável, o alimento, e ser pouquíssimo poluente (zero emissão em seu uso e pouco nociva na produção e no descarte), a bicicleta coloca limites na carga transportada por viagem e na distância viável num sistema produtivo.

A bicicleta oferece autonomia com baixo consumo de energia, em uma escala pequena de operação, podendo dar conta de boa parte da logística de alimentos em uma área geográfica restrita. Dito de outra forma, cria-se uma comunidade de consumidores de alimentos produzidos localmente, um arranjo que contribui para o fortalecimento comunitário.

Trata-se de uma economia localizada e conectada, conforme os princípios do localismo, outra referência importante dentro da teoria do decrescimento. Como proposta de economia política, o localismo coloca-se como resposta aos problemas criados pela globalização, defendendo que cada comunidade deve ser livre para encaminhar seu destino conforme os desejos de seus habitantes. Isso passa pela organização de economias baseadas na autossuficiência local, de forma a minimizar os impactos originados externamente, pelas decisões tecnocráticas de grandes corporações nacionais ou internacionais.

Um aspecto frequentemente destacado pelos defensores do decrescimento é sua oposição a propostas chamadas de “crescimento sustentável” ou qualquer expressão equivalente. Eles nos lembram da importância de estarmos atentos a essas supostas críticas ao crescimento – geralmente criadas e propagadas pelos próprios atores que se beneficiam do crescimento destrutivo sem limites – que, na prática, não almejam reais mudanças.

Na opinião de Serge Latouche, economista francês e um dos mais destacados pensadores da teoria do decrescimento, apenas acrescentar a ideia de “sustentável” ao crescimento faz crer que não há alternativas, nos mantém dentro do pensamento único. A palavra decrescimento, pelo estranhamento que causa, faz parar para pensar, funciona como um slogan provocador, deixando patente a necessidade de sairmos da demagogia produtivista, desenvolvimentista, de superarmos o paradigma do crescimento, que nada mais é que outra forma de dizer “acumulação de capital”.

Costuma ser atribuída ao economista brasileiro Delfim Netto a afirmação “É preciso primeiro fazer crescer o bolo para depois dividi-lo”. A frase é eficaz como recurso de doutrinação, pois remete a uma realidade concreta, que qualquer um consegue enxergar: um bolo maior de fato resulta em pedaços maiores quando dividido. Há nela, porém, uma afirmação implícita: “o bolo ainda não é suficiente grande”. Quando alguém aceita a parte explícita e doce dessa ideia, engole junto a parte implícita, passando a acreditar que o bolo não é grande o suficiente.

Porém, o bolo é bem grande, sim! Se ele for dividido hoje, de forma equânime e justa, as partes serão suficientes para todos. Defender o crescimento é mais uma forma de garantir a concentração de riquezas que existe em praticamente qualquer país, seja ele considerado desenvolvido ou não.

Propor decrescimento em uma cultura obcecada pelo crescimento sem limites soa como heresia. É um ato radical de resistência. Enquanto a ideologia dominante tenta nos convencer que é natural passar nossas vidas trabalhando como escravos, decrescimento é uma provocação para nos lembrar que cada ser está aqui com um propósito maior do que simplesmente trabalhar e produzir sempre mais.

Para além da teoria, o decrescimento é um princípio que pode nortear cada decisão do cotidiano. Precisamos reduzir essa loucura coletiva e reorganizar um projeto de sociedade que sustente as bases naturais da vida.

entrevista: Lucca Pérez

A Cooperativa Terra e Liberdade faz uma importante conexão entre produtores de alimentos do MST da Grande São Paulo e consumidores finais, formando um circuito curto de distribuição. Tivemos a oportunidade de acompanhar uma manhã de trabalho da cooperativa, ajudando na montagem das cestas e percorrendo uma das rotas de distribuição junto com o militante Lucca Pérez, que depois nos concedeu esta entrevista.

Lucca nasceu em São Paulo, é engenheiro ambiental e, durante a graduação, trabalhou com o MST implantando sistemas de irrigação e saneamento ecológico. Atuou também com economia solidária e fez mestrado em engenharia de produção, com foco em organização do trabalho. Atualmente, em seu doutorado, estuda as relações entre saúde mental e trabalho, sobretudo no ambiente do cooperativismo.

Nesta conversa, Lucca fala dos desafios ligados à distribuição dos alimentos produzidos pela reforma agrária e sobretudo daqueles enfrentados pelos produtores e produtoras nos assentamentos. Fala também da construção de relações de consumo menos mercantilizadas, ainda que não deixem de ser relações econômicas, e que sejam focadas “no valor de uso, na política e no afeto, e não na mercadoria”.

***

Quando e como começou o trabalho da Cooperativa Terra e Liberdade? O que motivou essa iniciativa a começar a funcionar?

Todo começo é herdeiro de outras experiências, né? O Cícero já tinha trabalhado com comercialização de uva na década de 2000, levava para igrejas, portas de fábricas, já tinha algum trabalho com logística. Mas a venda de hortifruti em geral era muito focada no mercado institucional, notadamente o PAA [Programa de Aquisição de Alimentos]. Esses alimentos iam para escolas, prisões, quartéis, tinha soldado que comia alface agroecológica do MST.

Tem também o PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar], que é um mercado importantíssimo, uma política pública de fortalecimento da agricultura familiar que garante o escoamento da produção mas, ao mesmo tempo, como tudo tem uma dialética, quem vende só para esses mercados fica acostumado com isso. São contratos de, tipo, cinco mil pés de alface por família, por DAP [Declaração de Aptidão ao Pronaf, documento que habilita uma unidade produtiva para participar do programa].

Aí veio o corte de 2016 com o Temer. O orçamento do PAA saiu de bilhão para coisa de 200 milhões entre 2016 e 2018. Então os agricultores da regional ficaram sem ter para onde vender. Perderam mercado de uma hora para outra. Paralelamente a isso, eu já vinha trabalhando na Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP e era um aliado do MST. Já havia um debate sobre comércio solidário, redes, cadeias, consumo consciente etc.

Então a gente tentou fazer algumas pontes com a cooperativa do [assentamento] Dom Pedro e com a juventude do Dom Pedro, buscando fortalecer hortas da juventude. A ideia era muito mais fortalecer laços dentro desse campo da economia solidária do que dar uma resposta material da produção. Mas com o fim do PAA a gente decidiu ir para o mercado do consumidor final, sair do mercado institucional. Só que a gente não tinha recursos, não tinha experiência nisso.

Outro processo paralelo foi a Feira Nacional da Reforma Agrária. Nós participamos desde a primeira ajudando a organizar. Na segunda e na terceira nós já tocamos o processo.

O ‘nós’ aí nesse caso é quem?

É a [direção] regional Grande São Paulo [do MST]. Então as feiras também foram abrindo um diálogo de mercado com o consumidor final. Nesse processo, um pouco mais tarde, abre o Armazém do Campo. A gente já estava elaborando uma estratégia para acessar o mercado de consumidor final, é importante ter um diálogo com a população da cidade, a gente visibiliza o trabalho. No PAA, não se dá visibilidade ao que está sendo produzido, ele é muito importante para dar vazão à produção, mas não avança nos outros elementos, como construir alianças, redes de cooperação e tudo mais.

Então batemos aqui na porta do SINTUSP, foi o primeiro grupo de consumo, começou ali por 2017. A gente entregava cestas quinzenalmente. Então fornecia para o Armazém do Campo, para o SINTUSP, tentava fornecer uma coisa ou outra para o Instituto Chão.

Aí a gente começou um grupo de consumo lá no ABC, depois a feira no SESC Santana. No fim de 2018 a gente já começa a chamar de cooperativa e começa a pensar no nome. Talvez já tivesse a ideia de ‘Terra e Liberdade’.

Ali pelo fim de 2018 e começo de 2019 já tinha o primeiro site, que era mais simples, e a gente entregava em pontos de retirada, ainda não tinha porta a porta. A gente começou a fazer porta a porta só com a pandemia.

Nesse momento que você relata agora, a origem da produção que vocês distribuíam já era dos três assentamentos, Dom Pedro, Dom Tomás e Irmã Alberta?

Sim. Hoje a gente complementa com o Instituto Terra Viva, de Sorocaba, que comercializa a produção dos assentamentos da região de Sorocaba mas não só, são pequenos produtores em geral. Eles são aliados, um deles era do setor de produção do MST de lá.

A gente também entregou para a CUT de Osasco, para um pessoal da TVT, no ABC, mas não estava dando muito certo. O custo de transação era muito grande, um monte de informação no grupo de Zap. Mesmo depois, com o Google Forms, não era fácil fazer o pedido. Eram muitas horas para processos que hoje são quase automatizados.

Mas o mais determinante, eu acho que é a transição da companheirada, que vendia para o programa. Imagina, cinco mil pés de alface no ano para o PAA. Quarenta agricultores. Essa transição deles para o mercado direto envolve mexer melhor no celular. Eles não tinham Zap ainda, gente ligava para os produtores. Às vezes alguém esquecia algum item que tinha que mandar, aí a gente precisava ligar para cobrar.

Hoje a gente consegue mapear e pedir com uma certa frequência, é um processo consolidado, a companheirada entrega, a qualidade melhorou muito. Antes a qualidade era muito variável.

Atualmente, quantas pessoas estão envolvidas com a Cooperativa Terra e Liberdade?

Hoje a gente tem um núcleo duro de quatro pessoas, incluindo eu, tocando a cooperativa. Tem também mais uma companheira que já esteve mais envolvida e hoje segue apenas cuidando do site. E tem mais uns seis ou sete aliados e aliadas que ajudam na montagem e nas entregas.

Lucca Pérez, de vermelho, durante reunião em assentamento do MST. Foto: arquivo pessoal.

Como se formou a área geográfica de atuação da cooperativa? Seguiu algum critério prévio, foi uma questão de custo operacional, ou de disponibilidade de companheiros?

Na zona norte começou com a feira do SESC Santana. Então começaram a articular um grupo de consumo, que hoje chega na periferia, bem no extremo norte. Eles pegam também a produção das mulheres de lá, que fazem pão, sabonete, tem toda uma rede de economia solidária que foi se criando a partir da feira no SESC, com pessoas engajadas. Então começou a ter rota para a zona norte.

Para a Vila Mariana, foram duas pessoas com história familiar de militância que queriam fortalecer o movimento. Quando começou na Vila Mariana, a gente já tava mais maduro, então a gente construiu de uma forma melhor. Na zona leste tinha um pessoal do teatro, antes de a gente começar a fazer entregas no centro a gente já chegava na zona leste por meio desse pessoal. Tem também uma cooperada em Ermelino Matarazzo que foi se organizando e criou um grupo de consumo. No ABC tem uma galera do PSOL ecossocialista que conhecia o MST, porque lá tem o núcleo urbano do MST Carlos Marighella.

Tem mais dois grupos nascendo. Um no Ipiranga, onde entregamos junto com o de Vila Mariana. E o outro é do SINDEMA, o sindicado dos servidores de Diadema, que tem uns quatro meses. Então são sete agora. Talvez Diadema e Ipiranga ainda não sejam grupos de consumo consolidados. Alguns grupos começaram assim, com uma pessoa puxando e depois constituindo um coletivo.

O preço pago aos produtores é definido por eles mesmos? É muito influenciado pelos preços de mercado? Como vocês pensam esse aspecto?

É influenciado por preços de mercado sim, mas não tão diretamente. A gente não quer cobrar um preço tão caro dos consumidores. Mas a gente tem os custos de gasolina, manutenção de carro, algumas ajudas de custo.

Tem mecanismos de mercado, porque a gente vive numa sociedade da produção do valor, não estamos fora dela. Mas não é um preço de mercado de atravessador, por exemplo. A gente começou pagando um preço negociado e depois foi subindo de forma negociada.

A gente tem uma lista de preços, a gente tenta padronizar. Óbvio que se é um produto muito lindo, a gente abre exceções, mas depois isso dá um trabalho enorme na planilha, porque sai do que a gente conseguiu avançar em termos de automatização da planilha, e ainda pode dar problema.

Mas dá para chegar no consumidor por um preço justo. Tem um monte de gastos no meio, como gasolina, pedágio, manutenção, servidor do site, sacolinha, perdas, etc. Além disso a gente também serve nosso caixa de microcrédito. Muitas vezes emprestamos para a companheirada que precisa, para compra de mudas, por exemplo.

Atualmente, se não existisse esse trabalho feito pela cooperativa, os produtores teriam alguma alternativa de escoamento da sua produção? Nesse meio de tempo mudou alguma coisa nas condições que eles encontram no mercado?

Voltou a ter política pública de compra institucional, então mudou sim. E alguns se profissionalizaram mais e conseguem hoje tocar uma feira direta, se precisar, e a gente tem incentivado muitos a fazerem isso. A gente tem um grupo [de Whatsapp] de feiras com vários produtores, vários assentados e acampados que hoje dividem tarefas nas feiras. Tem mais gente dos territórios nesse grupo, para pensar junto as feiras, dividir tarefas e por vezes fazer a logística.

Por exemplo, tem um casal do [assentamento] Dom Pedro, eles melhoraram muito a qualidade do processo. Fazem beneficiados de mandioca, mandioqueijo, nhoque, carne de jaca. Tem também uma companheira do [assentamento] Dom Tomás que faz pão, carne de jaca. Teve inovação, tem produtos que não havia antes, muito puxados por ter esse mercado. Hoje essa companheira é uma das maiores produtoras, e sem a cooperativa ela não teria esse mercado.

E de que forma a cooperativa ajudou nesse processo de profissionalização desses produtores e produtoras?

O trabalho com a cooperativa ajudou muito, porque a gente vai dando os retornos e falando: “precisa ter rótulo”, “precisa data de validade”, “essa embalagem rasga muito fácil”. E ao mesmo tempo a gente nunca fala “nunca mais vou pegar de você”. Isso não. A gente chega e fala “companheira, a gente quer que isso vá para frente, e para ir para frente precisa melhorar nisso e nisso”. É chato às vezes o trabalho de discutir qualidade, mas a gente faz isso com o carinho e amor que a gente consegue. Nesse mercado dos grupos de consumo tem gente que topa experimentar, que se encontrar um problema em um produto, não vai sair xingando.

Sim, um outro tipo de relação.

Acho que é uma relação que tem margem. Nem todo mundo vai entrar nisso, porque a correria é bruta, mas existe margem para os laços afetivos. Todos os grupos de consumo, tirando esses dois mais recentes, em algum momento já visitaram os territórios. Olharam no olho das pessoas e conheceram, “ah, essa é a Sheila que faz o nhoque!”. É uma relação muito menos mercantilizada e muito mais focada numa troca econômica com sentido de valores de uso, e não de valor por valor. Estou comendo um alimento sem veneno, produzido por pessoas que estão na luta.

Vamos às reuniões dos grupos de consumo e construímos as visitas deles aos espaços, pelo menos uma vez por semestre. É um trabalho de formação, de construção desses laços, desse vínculo menos mercantilizado. Focado no valor de uso, na política e no afeto, e não na mercadoria. É um alimento sem veneno, produzido por uma pessoa. Quando a gente manda a lista no grupo de consumo, está escrito lá, “nhoque da Sheila, do Dom Pedro”, “licor da Rosângela, do Irmã Alberta”, “mel do Severino, do Dom Tomás”. Aí a pessoa um dia vai lá e conhece a Sheila. É uma relação muito diferente.

Também tem um ponto, e é isso que eu tenho tentado estudar um pouco. Para a transição agroecológica, você tem uma margem de manobra muito maior do produtor sobre sua produção, óbvio que dialogando com o consumidor. Não é cliente-rei do mercado tradicional, mas também não é produtor-rei, tipo “você vai pegar o meu almeirão sim, porque eu produzi bem, está bonito e você vai comer almeirão”. Não pode ser assim.

Como é um modelo de cesta fechada e muita gente que compra por ser do movimento, é muito diferente de um contrato, seja de mercado institucional ou de mercado privado. Imagine, “quero trezentos quilos de banana, neste e naquele parâmetro”. A política pública tem critério de qualidade também, tem parâmetros de tamanho. Então neste tipo de relação você também amplia a margem de manobra do produtor sobre o seu trabalho. São graus de desmercantilização.

Porque ele pode produzir para venda, sim, mas é uma venda que não tem que seguir parâmetros a priori, que vão subsumindo o trabalho. A agricultura familiar fornece frango para a Sadia. Mas aí você vai ver o contrato da Sadia, ele pauta ritmo e intensidade de trabalho, insumos, critérios de qualidade, é como se fosse um terceirizado, ou mesmo um contratado. Você está controlando o trabalho daquele produtor familiar. Já no grupo de consumo, é um estágio em que ele controla o próprio trabalho num nível muito alto, frente às possibilidades de uma produção para venda. Isso aparece no desenho do canteiro, na escolha do que vai ser plantado ou não.

Essa ideia de “graus de desmercantilização” é muito interessante!

É uma outra relação com o trabalho. Ele escolhe plantar a acelga dele e sabe que os consumidores dele vão testar. Talvez ninguém goste de acelga e ele tenha que mudar. Mas ele não vai ter que mudar para seguir um contrato só de alface e pagar uma multa. Certo, não pode acelga, mas eu posso plantar trezentas outras coisas, entende? Isso abre possibilidades para um outro tipo de relação com o trabalho, que é o trabalho agroecológico, uma relação do sujeito com o seu fazer e na mediação com a natureza. Um trabalho com possibilidades emancipatórias e muito menos determinações alienantes.

Estou indo para uma discussão abstrata, que é a discussão da minha pesquisa, mas é uma outra relação com o seu fazer e com a árvore que vai dar o fruto para o tucano, com o canteiro e com a formiga que come o canteiro. Esse tipo de consumo abre muito mais margem para avançar na agroecologia.

Existe interesse da cooperativa em aumentar sua operação, seja em volume num mesmo território, seja ampliando sua área de abrangência? Quais seriam as limitações a serem enfrentadas? E até onde vocês avaliam que seria adequado chegar, em termos desse crescimento de abrangência ou de volume?

Existe, sim, o desejo de crescer em escala. Pode envolver o aumento de abrangência, mas não necessariamente. A gente precisa crescer em escala, antes de mais nada. Por que?

Poucos agricultores vivem só da entrega para a cooperativa, talvez no máximo uns vinte, dos sessenta com quem a gente dialoga. Eles vivem de outras coisas também. Muitas vezes, é autoconsumo e aposentadoria. É uma base envelhecida. Às vezes a gente é a única pessoa que comercializa a produção deles. Não é isso que mantém a reprodução da vida deles. Isso também ajuda em graus de desmercantilização dos canteiros.

Mas a gente também quer ser uma alternativa para o pessoal em idade ativa, mais jovem. E aí, quanto mais relevante você se torna para essas pessoas, mais sentido faz. Se a gente for pegar dez alfaces de cada um, a galera vai plantar dez alfaces. Mas se a gente garante, “pode plantar trezentas, que a gente vai pegar trezentas”, muitas pessoas vão plantar trezentas. E algumas famílias mais jovens, que estão em outra condição, outro momento de vida, precisam disso. E a gente não consegue propiciar isso porque nossa escala não é tão grande ainda. A gente quer que todas as famílias possam viver bem nesse tipo de produção.

Então é crescendo que a gente pode crescer. É meio que um círculo virtuoso. A relevância da escala torna factível a gente poder pedir para a galera plantar mais. Porque se a gente é só um complemento de renda, o que eles vão fazer se pedirmos para plantarem mais? Por isso também demorou tanto tempo para a gente chegar onde está. E isso é uma potência e um obstáculo ao mesmo tempo, porque é uma escadinha. Você sobe um degrau na comercialização, você consegue puxar na produção, mas se você não puxa, ele te puxa para baixo de novo. Você tem que subir um degrau aqui e outro ali. E se não sobe rápido o outro, aquele que você não subiu te puxa para baixo.

Então a gente tem esse trabalho de estar nos territórios, ajudar a planejar a produção, se mostrar presente, afetivamente presente. Isso não é fácil, porque é muita coisa. E todos nós temos outros trabalhos além deste. A gente precisaria liberar umas três pessoas, numa estrutura que possa só fazer isso. Senão perde muita qualidade, não dá para ter processos claros, fazer um trabalho de base melhor. Então precisa crescer para poder profissionalizar, para poder crescer mais.

Mas aí tem um limite, não é entrar num jogo de crescer por crescer. Acho que o limite é a produção que companheirada consegue entregar vivendo bem. Passou desse limite, não precisa.

Tem que chegar num ponto em que a gente tenha um capital de giro, tenha salário para pelo menos três pessoas, para que elas tenham quarenta horas por semana para fazer só isso se quiserem e não precisem correr atrás de outras coisas. E para fazer com qualidade, com afeto com a companheirada, sem pressa. Avançamos bastante nisso, mas ainda tem muitos problemas.

Com essa verba, daria para levar a mais lugares a bandeira desse trabalho de base urbano, a ponte campo-cidade. Daria para mostrar a produção do MST, mostrar na maior cidade do Brasil que o MST dá certo. Consolidar mais alianças com os movimentos da cidade também. Precisa crescer para chegar nisso. Crescer para que jovens que estão nos assentamentos possam produzir sua agrofloresta tendo saída certa. Então não é crescer por crescer.

Esses produtores e produtoras têm uma margem de crescimento da produção?

Têm! Eu não falei tanto de obstáculos, mas tem um obstáculo muito complicado, que é a infraestrutura. Água, por exemplo. No Dom Tomás falta muita água. O poço queima, a prefeitura não conserta, aí a gente empresta dinheiro para consertar a bomba do poço. No Dom Pedro falta água também. Menos, porque lá tem o lago, ajuda bem, mas tem lugares em que não chega. No Irmã Alberta nem se fala. No Irmã Alberta falta tudo: água, luz. Então infraestrutura é um obstáculo complicado.

E força de trabalho?

Não é o principal obstáculo agora. Se botar mais força humana sem aumentar a infraestrutura, vai dar mais problema do que resolver. Quando tiver muita água no Dom Tomás e no Irmã Alberta, talvez aí a força de trabalho vire um problema. Mas aí já vai ter vários outros problemas resolvidos. Água é o principal problema.

Outra coisa são os recursos que reduzem a penosidade do trabalho rural, como tratorito, principalmente para o pessoal acima de sessenta, setenta anos. E ter não só água, mas também sistema de irrigação: é bomba, mangueira, cano.

Outro obstáculo é a falta de ATER [assistência técnica e extensão rural]. Já tivemos, por poucos períodos, uma ótima ATER, antes da pandemia. ATER é pensar o todo: o pulgão, a fruta, o comércio. No Irmã Alberta, agora está tendo ATER, a gente tem uns aliados que fazem o processo, mas precisava ter um esquema mais estruturado, um programa estatal. No Dom Tomás o ITESP faz uma coisa ou outra, principalmente para turismo rural, mas nada para produção. No Dom Pedro não tem ATER há muitos anos. No Irmã Alberta começou a ter por um programa do Sampa+Rural há uns três meses.

O movimento tem uma frente ou um setor de captação de recursos, por exemplo para obter recursos governamentais? Para comprar tratorito, por exemplo.

Sim. A gente comprou um tratorito para o Irmã Alberta, coletivo. Foi muito usado. Mas precisaria ter dez, o tratorito é pequeno. O cobertor é sempre curto, e aí a mobilização no estado de São Paulo fica na mão da direção estadual. A gente não acessa verba de emenda para nós, por exemplo. A gente faz baião de dois no Al Janiah para conseguir dinheiro! Trabalham quinze pessoas, por três dias, para conseguir mil reais para a regional. A nossa regional é pobre, sem grana. Base pequena, três comunas da terra minúsculas. A cooperativa dá uma vida para a regional que ela não teria sem a cooperativa.

Esta cooperativa é a única na regional?

Sim.

E no estado, tem mais?

Tem cooperativas fortes no estado. A Coopavi, em Itapeva, tem feijão, soja orgânica, carne de porco, pão. A Cooplantas, das mulheres, com ervas medicinais. A Coapar, em Andradina, produz leite, queijo, manteiga, tem agroindústria. É outro rolê. A regional Grande São Paulo vem de um esquema de pessoas em situação de rua, não camponesa ou ex-camponesa, ou situação urbana favelada. É muito específica a realidade aqui.

nosso sonho

Durante quatro dias, a IV Feira Nacional da Reforma Agrária, organizada pelo MST, concretizou o sonho de muitos dos que lutam pela soberania alimentar no Brasil. Nesse sonho, além do acesso a uma grande abundância de alimentos produzidos sem veneno, está a possibilidade de comprá-los diretamente de seus produtores.

Na compra direta, a quantia paga pelos consumidores servirá integralmente para remunerar de forma digna esse trabalho tão essencial que é produzir alimentos, além de pagar os custos de produção e transporte. Esses valores têm ainda a função de apoiar a importante missão do movimento como um todo, que é ocupar terras improdutivas e lutar pelo direito de plantar para alimentar pessoas.

A abundância material e humana que havia ali traz sensação de acolhimento e segurança. Poder estar perto das pessoas que produzem os alimentos que consumimos é uma experiência enriquecedora, pelas trocas que possibilita. Para os produtores, suponho que o contato direto com aqueles que se beneficiam do resultado de seu trabalho gere semelhante sensação de segurança. Garantir o escoamento da produção é essencial para a sobrevivência de qualquer unidade produtiva, mais ainda quando ela é pouco capitalizada, como é o caso daquelas pequenas propriedades.

Porém, nos dias em que estive na Feira, ao mesmo tempo em que eu olhava todos aqueles alimentos sobre as bancas dos produtores, ficava me perguntando: e quando a feira acabar? Como é possível reproduzir pelo resto do ano toda essa proximidade, que garante aos agricultores o escoamento de sua produção? A resposta também emergiu em meio a toda aquela abundância. Parece se tratar simplesmente de conexões.

Foto: Dionizio Bueno

Redes de distribuição de alimentos são nada mais do que isso: conexões entre produtores, consumidores e, quando não há alternativas, intermediários. O poder das conexões é tão grande que a possibilidade de controlá-las dá a certos agentes altamente capitalizados a possibilidade de determinar o preço de compra do lado da produção e o preço de venda do lado do consumo.

Portanto, construir alternativas a esses esquemas estabelecidos, criando a possibilidade de acesso direto ou quase direto entre produtores e consumidores, é o caminho para a autonomia. Há muitos formatos para se criar essas conexões, e diversas experiências já existem, funcionando muito bem.

cooperativas de militantes | São grupos organizados que coletam a produção de diversos assentamentos regionais e os distribuem aos consumidores na cidade. Realizam a venda através de páginas na internet ou por meio de grupos de consumo e entregam os produtos em domicílio ou em pontos de retirada espalhados em pontos estratégicos, para que os consumidores possam economizar o custo do frete.

lojas do próprio movimento | Com lojas em diversas cidades do país, redes como o Armazém do Campo oferecem produtos da reforma agrária de diversas regionais, utilizando também a estrutura dos esquemas de distribuição mantidos pela própria militância.

pequenos entrepostos | Essas iniciativas, individuais ou de pequenos coletivos, vendem alimentos tanto da reforma agrária como de hortas urbanas e pequenos produtores na cidade e em volta dela. Verdadeiras zonas autônomas, tais espaços possibilitam o acesso a alimentos saudáveis em suas vizinhanças, algumas vezes em situação de fragilidade institucional, necessitando portanto do apoio comunitário em luta de resistência.

cooperativas de consumo | Com um formato bastante inovador no Brasil, uma cooperativa está sendo formada para gerir um mercado no qual os cooperados realizam grande parte das tarefas práticas e administrativas da loja, diminuindo sensivelmente seu custo operacional e, como consequência, o preço final para os consumidores.

grupos de compras coletivas | Há certamente centenas, senão milhares deles. Basta que uma pessoa colete os pedidos de várias famílias e realize o pedido diretamente à unidade produtora, recebendo a encomenda em sua casa, onde as pessoas do grupo poderão retirar suas compras.

Nos próximos meses e anos, veremos iniciativas como estas crescendo e se proliferando. Mas para consolidar o sonho do amplo acesso aos alimentos saudáveis produzidos pela reforma agrária, é preciso que iniciativas como essas entrem nas vidas de cada vez mais pessoas, e isso pode exigir algumas adaptações, nas duas pontas do sistema.

Foto: Dionizio Bueno

Do lado do consumidor, é preciso planejar o abastecimento da casa. No caso das compras coletivas, por exemplo, os pedidos são abertos somente em certas datas. Concentrando aí as quantidades para um período mais longo (o que naturalmente só é possível no caso de produtos menos perecíveis), todos ajudam a compor um pedido de maior volume, facilitando a negociação de preço com o produtor e ajudando a diluir os custos de frete.

Esse planejamento vale também para produtos mais perecíveis, de compra mais frequente. Por enquanto, as lojas que oferecem produtos orgânicos da reforma agrária existem apenas em certos locais da cidade. As compras de produtos in natura podem ser feitas semanalmente ou até quinzenalmente, evitando demandas de última hora que acabam sendo feitas em qualquer mercado mais próximo.

É muito importante também entender que um padrão de alimentação mais saudável estará sempre sujeito a sazonalidades. É natural que certos produtos não estejam disponíveis em todos os lugares durante o ano todo.

Por meio de seus regimes industriais de produção de alimentos, o sistema alimentar baseado em grandes redes de distribuição e varejo cria artificialmente a possibilidade de ter quase tudo durante todo o ano. Os alimentos são produzidos de forma intensiva em fazendas que podem estar a milhares de quilômetros da sua casa, em regiões com outro padrão climático. Crescem por meio de estimulação artificial, utilizando fertilizantes químicos, e são colhidos enquanto estão verdes, conforme seus cronogramas de linha de produção e a quantidade de pedidos recebidos pelo departamento comercial dessas indústrias agrícolas. Por fim, têm o seu amadurecimento forçado através da exposição a gás etileno obtido do petróleo.

É perfeitamente possível ter uma alimentação baseada em produtos da época, tornando desnecessários esses recursos artificiais criados para viabilizar a produção de alimentos em enormes escalas, gerando grandes lucros para uns poucos, além de mimar um consumidor que quer ter de tudo agora.

Imagem: divulgação

Do lado dos produtores, um pequeno esforço de organização pode contribuir muito para o florescimento dessas redes de distribuição. Só eles podem ter a visão de todos os pedidos que estão recebendo, com suas respectivas datas, destinos e quantidades. Uma boa organização das rotas pode fazer o custo do frete ser dividido entre vários pedidos, diminuindo para todos os custos de transporte e fazendo com que os produtos cheguem a um preço mais baixo para os consumidores, beneficiando as vendas.

E com relação às entidades e grupos que organizam essas iniciativas, cabe ter a inteligência coletiva de entender que o espalhamento e a capilarização desse novo sistema alimentar são benéficos para toda a rede. Seria totalmente fora de propósito enxergar novas iniciativas semelhantes como concorrência. Claro que é preciso cuidado para que a atuação de iniciativas mais capitalizadas ou profissionalizadas não resulte na eliminação de outras que já se encontravam em funcionamento. Por isso é essencial manter o contato e o diálogo entre essas organizações, formando uma teia de cooperação.

Se lutamos para construir esse outro mundo com o qual sempre sonhamos, mas não formos capazes de nos libertar do paradigma da competição, em que o ganho de um implica a perda de outro, me parece que não aprendemos nada.

Produtores e consumidores têm muito a ganhar juntos com essas novas conexões. Em seu conjunto elas estão formando uma rede de produção e distribuição de alimentos que passa ao largo dos conglomerados de logística e varejo geridos pelo grande capital, que atualmente dominam o mercado de alimentos no Brasil. Vivemos a era da retomada dos circuitos curtos. Por muito tempo cultivamos nossos sonhos, hoje eles finalmente começam a florescer.

reaprendizagem

A torneira está pingando. Chama o encanador e manda trocar por uma torneira nova? Acordou enjoado ou com dores abdominais. Vai até a farmácia e se enche de comprimidos? Pneu da bicicleta furou. Leva na bicicletaria e manda trocar a câmera? A calça está arrastando no chão. Precisa do serviço de costura do shopping center para ajustar uma barra?

Alguns conhecimentos que eram amplamente difundidos há apenas uma ou duas gerações, hoje são bem mais raros entre as pessoas. Consertar ou até produzir roupas, usar ferramentas manuais para fazer reparos na casa, produzir conservas, fazer pão, aliviar pequenos males com chás ou remédios caseiros, utilizar áreas verdes para produzir alimentos, estas e outras habilidades eram triviais na geração dos nossos pais (ou dos avós dos mais jovens).

Em apenas algumas décadas, a cultura do consumo conseguiu varrer esses conhecimentos de boa parte da população, ao nos acostumar com soluções pensadas para gerar faturamento para grandes empresas e produzir em nós a dependência dos produtos e serviços oferecidos pelo mercado. No caso dos bens de consumo, a mensagem é “vá até o mercado e compre pronto”. Quanto aos chamados bens duráveis, “jogue esse fora e compre um novo”.

Um projeto voltado para a autonomia precisa se contrapor a esse tipo de mensagem, valorizando as soluções que estão ao alcance das pessoas. Por que eu preciso de um novo se eu posso fazer um pequeno reparo ou trocar uma peça daquele que eu já tenho? Além disso, é preciso criar um processo de reaprendizagem, no qual podemos compartilhar e difundir habilidades que permitem resolver pequenos problemas, sem ter que recorrer a serviços profissionais ou à compra de um novo bem.

Dentro do conceito de Cidades em Transição, que propõe um conjunto de ações que cidades ou grupos menores podem adotar para criar um modelo de desenvolvimento mais razoável e autossuficiente, isso recebe o nome de reskilling. O conceito surge no contexto da adaptação às mudanças climáticas e à escassez das fontes energéticas usadas atualmente, sobretudo o petróleo.

De fato, o fim da energia abundante e barata obriga a sociedade a repensar muitos aspectos da vida e da economia, como por exemplo os sistemas de distribuição baseados em redes de transporte de longa distância. A agricultura local ocupa um lugar de destaque como alternativa a esse modelo sem sentido. Se a estupidez da ideia de comer alimentos produzidos a milhares de quilômetros quando é possível produzir bem mais perto não foi suficiente para nos fazer repensar esse arranjo econômico, a escassez de energia finalmente virá para convencer a sociedade a priorizar a produção regional ou local.

Mas não precisamos pensar na reaprendizagem como uma tarefa que precisaremos encarar em vista de um cenário ameaçador de mudança climática e crise energética. Reaprender é interessante simplesmente porque é bom saber as coisas! O conhecimento é libertador e traz autonomia. Além de útil e importante, recuperar habilidades que nos foram tiradas pela cultura de consumo tem um forte sentido político.

O processo de reaprendizagem é uma oportunidade para que possamos compartilhar nossas habilidades, valorizando saberes e criando vínculos fortes e saudáveis entre as pessoas. É possível pensar, por exemplo, em pequenos encontros ou oficinas onde as pessoas troquem esses conhecimentos que permitem resolver pequenos problemas do dia a dia: técnicas de cultivo, costura, marcenaria, mecânica básica, uso de ervas medicinais, técnicas corporais voltadas para a saúde, tarefas simples domésticas como trocar um courinho de torneira ou um interruptor elétrico. Se isso puder acontecer de maneira comunitária, sem monetização dos saberes, será ainda mais incrível.

Essas oficinas têm ainda o efeito de valorizar o conhecimento dos mais velhos, neste mundo que, a bem do consumo, fica nos dizendo que tudo que é velho tem que ser jogado fora e substituído. A reaprendizagem deixa nas pessoas o sentimento de “eu consigo resolver, não dependo dos outros”. A construção da autonomia, inclusive nas pequenas tarefas da vida, é um prazer em si mesma, e fortalece pessoas e comunidades.

confiança à venda

“Estive hoje cedo na horta urbana aqui perto de casa para comprar verduras, temperos e algumas frutas. Trouxe também uma dúzia de ovos das galinhas que vivem ali. Cada ovo de uma cor diferente, coisa linda. Aproveitei para tomar um café com o pessoal lá da horta. Tenho ido lá quase toda semana, é natural que a gente vá fazendo amizade. Gosto muito dos produtos orgânicos que encontro lá. Eles não têm certificado, mas por que eu precisaria disso para confiar neles?”

“Uma amiga, que mora aqui na rua de casa, tem parentes em Minas e viaja sempre. Ela traz um queijo incrível de lá. A família conhece o produtor, que tem um sítio pertinho da cidade, ele cria as próprias vacas. Tenho sempre encomendado duas ou três peças de queijo cada vez que ela vai para lá. Eu e essa amiga temos opiniões parecidas sobre boa alimentação, procuramos sempre que possível evitar comida envenenada, cheia de hormônios e conservantes. Eu nunca estive no sítio desse produtor lá em Minas, mesmo assim tenho sempre um queijo incrível em casa e sei de onde ele vem. Por que eu precisaria que ele fosse certificado?”

“Tenho feito as compras em uma cooperativa de produtores e produtoras. Quem me apresentou esse lugar foi um amigo meu, que é um desses produtores. De tanto encontrar os outros clientes ali, vamos fazendo novas amizades. A maioria ali conhece pelo menos algum desses produtores cooperados, eventualmente já esteve no sítio de onde vêm os produtos. Vamos formando uma rede de confiança e seguimos em diálogo permanente para fortalecer essa rede. Para que precisaríamos de alguém de fora que venha aqui para nos certificar sobre as práticas desses produtores e produtoras?”

Foto: Mael Balland / Pexels

Monoculturas, produção em larga escala, transporte de longa distância, crescimento das cadeias de comercialização, dependência de grandes empresas de distribuição. Essas mudanças surgem na passagem do sistema de produção de alimentos para uma escala industrial, no qual o esquema produtivo vai sendo moldado conforme as preferências do grande capital. Isso afastou a produção do consumo, tornando totalmente inviável que as pessoas conheçam as condições em que os alimentos são produzidos e tudo que acontece com eles até chegarem à mesa. Nesse sistema, para quem busca alimentos saudáveis e livres de veneno e hormônios, a única forma de ter alguma garantia de qualidade é a certificação.

Um certificado nada mais é do que uma narrativa. “Eu, agente certificador com boa reputação perante a sociedade, declaro que este alimento é produzido em condições de acordo com aquilo que você, consumidor consciente, busca ou deveria buscar em um produto como este.” Na outra ponta está o consumidor, destinatário da mensagem. “Eu, consumidor consciente, ao ver nesta embalagem a expressão ‘produto certificado’, dou meu voto de confiança a este produto e, portanto, estou disposto a adquiri-lo, pagando por ele um valor mais elevado que por outro produto equivalente sem certificação.”

O selo de certificação substitui a relação de confiança que deixou de existir no momento em que produtor e consumidor perderam o contato. A confiança, que antes era construída dentro de uma relação humana, pode agora ser adquirida em uma transação econômica.

Há algo de muito interessante na forma que o capital tem de atuar. Primeiro ele molda os sistemas segundo seus interesses, sem qualquer consideração com as necessidades humanas. Isso naturalmente gera problemas. Então o mesmo capital passa a oferecer as soluções para esses problemas, criando novos mercados e beneficiando a si mesmo. Enquanto a sociedade aceitar viver sob a lógica do capital, ele sempre tenderá a se fortalecer.

Para que possam vender confiança junto com seus produtos, os produtores precisam adquiri-la dos fornecedores de confiança, os certificadores. Essa confiança monetizada entra na lista de custos do produto, junto das despesas com insumos, embalagens, salários, impostos. Naturalmente o preço final do produto vai aumentar.

Talvez um fenômeno mais danoso que o aumento do custo seja o fato de a cultura da certificação tornar obsoletas as relações interpessoais de confiança. Muitos leitores provavelmente sorriem diante da ideia de recolocar as relações humanas dentro do sistema produtivo, considerando que isso é coisa de um tempo passado, de relações econômicas primitivas, e que o mundo contemporâneo globalizado não pode mais depender desse tipo de coisa.

Estamos aqui propondo reflexões sobre nosso sistema alimentar e os valores de nossa sociedade que tornam esse sistema possível. Nas situações em que jamais poderia haver possibilidade de contato direto com a produção, como no caso de produtos de biomas distantes, uma narrativa de certificação é de fato melhor que nada para orientar a decisão do consumidor. Não se trata de desvalorizar as certificadoras ou os produtos certificados. Trata-se apenas de ter sempre em mente que, no cenário que sonhamos em ver, e pelo qual lutamos nos campos teórico e prático para construir, restaurando a proximidade e os vínculos entre produtor e consumidor, a certificação é simplesmente desnecessária.

transição para o sonho

A transição de um sistema produtivo dependente do transporte motorizado para um mundo dos sonhos, em que bicicletas transportem alimentos para todos, só pode ser feita de maneira gradativa. Conforme os vários elos dessa rede são substituídos, a rede inteira vai sendo repensada para se compor de distâncias pedaláveis. Em algum momento, passa a ser possível transportar a maioria dos alimentos desde o produtor até o consumidor final sem usar combustíveis fósseis.

Uma mudança como essa vem acontecendo por meio da parceria entre o Bicicarreto e a Ecoz. Parte de sua rede local de produtores na cidade de Osasco é formada pelos Quintais Solidários: amigos e parceiros que têm algum alimento crescendo de sobra em seus quintais e doam à Ecoz para que sejam oferecidos de presente nas cestas.

Maços de ora pro nobis ou ramos de louro, mesmo em quantidade suficiente para mais de sessenta cestas, podem ser transportados em apenas uma viagem, feita por uma única bicicleta.

Mais de sessenta famílias receberam maços de louro daquele pé. Foto: Zeck

A ideia do Quintal Solidário é tão inspiradora que faz até pensar numa rede de vizinhos em que cada um tenha uma fruta ou verdura crescendo em abundância no quintal e, por meio de trocas não monetizadas, distribuam esses produtos entre si, ou seja, todos tenham de tudo! Tão pertinho que talvez nem precise de bicicletas.

A cultura da sociedade de consumo, com toda sua pressa, distâncias desnecessárias e narrativas para produzir desconfiança entre as pessoas, insiste em nos fazer acreditar que isso é apenas sonho.

Sim, é esse o nosso sonho, e sem o apenas. Criando conexões pedaláveis e implementando aos poucos o conceito de Bicicarreto seguimos, em pequenos passos, na direção dessa utopia.