hortas comunitárias e hábitos alimentares

Uma pesquisa publicada em 2008 buscou aferir se existe relação entre o envolvimento das pessoas com hortas comunitárias e seus hábitos de alimentação, especificamente o consumo diário de frutas e verduras. Realizada em Flint, uma cidade estadunidense que em termos populacionais é comparável a Alfenas (MG) ou Vinhedo (SP), a pesquisa mediu o número médio de vezes ao dia que as pessoas consomem frutas e verduras e também a porcentagem de pessoas que consomem ao menos cinco porções desses alimentos in natura por dia, contemplando as recomendações das autoridades de saúde daquele país.

Entre os participantes da pesquisa, aqueles que têm ao menos um membro da família envolvido com horta comunitária consumiam frutas e verduras, em média, 4,4 vezes por dia, enquanto que quem não tem gente da família envolvida com essas iniciativas apresentou um consumo médio desses alimentos de 3,3 vezes por dia. No primeiro grupo, foi bem maior também o número de pessoas que consumiam ao menos cinco porções frutas e verduras por dia: 32,4%, comparado aos 17,8% entre as famílias sem envolvimento com hortas.

Ainda que a pesquisa assuma suas limitações metodológicas, afirmando que não é possível estabelecer relações de causalidade entre o trabalho em hortas comunitárias e os hábitos alimentares, os dados permitem reflexões interessantes sobre a relação das pessoas com os alimentos in natura.

O artigo apresenta uma discussão sobre as barreiras para o consumo de alimentos saudáveis. Há, em primeiro lugar, a questão da disponibilidade de alimentos frescos in natura, que é de fato um fator determinante. Localidades onde é difícil encontrar alimentos saudáveis, pois seus mercados oferecem apenas produtos industrializados, são consideradas desertos alimentares. De acordo com o artigo, esse é o caso da cidade de Flint. Importante lembrar que feiras livres não são comuns naquele país como são aqui no Brasil. Outros obstáculos apontados pelo artigo para o consumo de alimentos saudáveis seriam: os hábitos e a preferência pessoal, a qualidade do que está disponível, o custo de aquisição e o custo do transporte até o local de compra desses alimentos.

Nesses casos todos, uma horta comunitária local ajuda bastante, ao tornar possível obter alimentos naturais, pelo menos quando estão prontos para serem colhidos, a um custo baixo, que seria apenas o dos insumos para se manter a horta e do tempo alocado a esse trabalho.

Foto: Bárbara Zem

Podemos também acrescentar a dimensão relacional que se estabelece entre a pessoa e a planta por meio do envolvimento com o trabalho prático na horta. Essa vivência traz familiaridade e proximidade com esses alimentos, colocando-os dentro do universo cotidiano da pessoa. O trabalho com a horta proporciona um contato físico periódico com plantas alimentícias, o que não é pouca coisa se pensarmos que o contexto urbano oferece limitações tanto pelo cenário de concreto quanto pela rotina de vida que costuma impor. Para quem mora em apartamento, que é uma realidade para boa parte dos habitantes de grandes cidades, o cultivo de plantas alimentícias ou ornamentais é ainda mais difícil.

Para além de todos os aspectos sociais e ambientais associados a uma horta urbana, o envolvimento com iniciativas desse tipo torna possível que a pessoa tenha em sua vida, diariamente se quiser, importantes experiências dos sentidos: o cheiro das plantas, o toque na terra e nas folhas, a visão do campo verde produzindo vida, o som do vento passando pelas folhas e dos pássaros que habitam esses espaços naturais, o sabor da amostra de alimento beliscada do canteiro enquanto se trabalha.

É natural que toda essa relação afetiva com as plantas alimentícias na horta influencie os hábitos alimentares das pessoas. Além dos evidentes efeitos de fortalecimento comunitário, a convivência com vizinhos e colegas de horta reforça ainda mais a relação com os alimentos quando eles se transformam em assunto de conversas, objeto de curiosidade e fascínio, tema de novas pesquisas e explorações.

Segundo fontes citadas no artigo, foi demonstrado que o envolvimento com hortas escolares ajuda a formar nas crianças o gosto por alimentos in natura. Se as crianças forem envolvidas no trabalho nas hortas urbanas comunitárias, o potencial de criar hábitos alimentares saudáveis se multiplica para o futuro.

Hortas comunitárias têm um evidente papel na construção da autonomia e da segurança alimentar, ao mesmo tempo em que reforçam laços e fortalecem a solidariedade. Ao considerarmos seu potencial de influenciar hábitos alimentares, podemos expandir a ideia de cidade educadora também para o campo da saúde. Criam-se, assim, as bases para uma reconfiguração revolucionária dos sistemas alimentares e da própria paisagem urbana.

cresan butantã

Em volta dos canteiros suspensos da horta, as crianças observam e tocam folhas que nunca haviam visto antes. Uma tarde que tinha tudo para ser trivial na rotina da escola de educação infantil transforma-se em uma vivência memorável, que pode mudar a relação da criança com os alimentos.

Estamos em um Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional (Cresan) da Prefeitura de São Paulo, localizado no Butantã, zona oeste da cidade. Aqui acontecem ações de educação alimentar e nutricional voltadas para diversos públicos.

Esta unidade dispõe de uma horta pedagógica, com diversas espécies de plantas comestíveis. Aqui, crianças e adultos podem conhecer um pouco sobre alimentação saudável, agroecologia, compostagem, consumo consciente e outros temas ligados à segurança alimentar e nutricional. O Cresan Butantã também está equipado com uma cozinha escola, onde acontecem treinamentos para manipulação de alimentos, cursos de culinária saudável, gastronomia e receitas tradicionais, entre outros, sempre acompanhados por nutricionistas da prefeitura ou das entidades parceiras.

Na horta suspensa do Cresan Butantã, crianças sentem a textura das folhas de peixinho, uma planta alimentícia ainda pouco conhecida. Foto: Dionizio Bueno.

As ações desenvolvidas no Cresan tem como referência os Guias Alimentares publicados pelo Ministério da Saúde com a finalidade de promover alimentação adequada e saudável entre a população brasileira.

Por meio de parcerias com escolas, CEUs, unidades de saúde e organizações sociais, o Cresan Butantã recebeu, entre abril e outubro de 2022, mais de 1200 pessoas em atividades educativas e formativas.

Durante as visitas de escolas, as crianças são conduzidas em uma vivência que busca trazer não só informações, mas também experiências sensoriais. Elas podem conhecer o cheiro de ervas aromáticas e até de provar verduras e temperos apanhados diretamente da terra. Podem também tocar folhas com texturas diferentes do usual, como boldo ou peixinho. Depois de passar pela horta, as crianças vão para a sala degustar um lanchinho preparado com vegetais que acabaram de ser colhidos, além de cantar e participar de brincadeiras. Ao final, recebem mudinhas de plantas, que vão levar para casa com a proposta de aprenderem a cuidar.

A gestora do Cresan Butantã, Sheyla Sicília, fala do potencial educativo e transformador dessa vivência: “As crianças saem felizes dessa experiência, é algo realmente contagiante. Além disso, a atividade está alinhada aos componentes curriculares que estão sendo trabalhados na escola.”

Se buscamos construir um sistema alimentar no qual as pessoas possam ser protagonistas na escolha de seus alimentos – um sistema em que a soberania alimentar seja genuinamente construída de baixo para cima –, é essencial que as pessoas sejam educadas para a alimentação saudável. Isso se constrói, em primeiro lugar, por meio do conhecimento. A importância do Cresan Butantã é ser um equipamento público que trabalha para a educação alimentar e nutricional com um enfoque comunitário, sendo ainda um laboratório para a construção de políticas públicas que promovam segurança alimentar em grande escala.

Atualmente, existem dois Cresans em São Paulo: este no Butantã e um na Vila Maria, onde funciona o banco de alimentos da cidade.

pnae

Construído ao longo de décadas através de sucessivas melhorias, como resultado de muita mobilização social, o Programa Nacional de Alimentação Escolar é considerado um dos maiores programas no mundo com essa finalidade e, segundo sua página oficial, é o único com atendimento universalizado.

Começou a ser estruturado na década de 1950, na forma de uma campanha de merenda escolar. Inicialmente dependeu de convênios com organismos internacionais, tendo ainda o enfoque do atendimento a populações carentes. A Constituição de 1988 assegurou o direito à alimentação escolar a todos os alunos do ensino fundamental. Em 1994 sua operação (planejamento de cardápios, aquisição dos gêneros, distribuição) foi descentralizada, por meio do envolvimento das secretarias estaduais de educação e de convênios com os municípios.

Em 2001 a legislação introduziu o respeito aos hábitos alimentares regionais e à vocação agrícola de cada município. Além disso, passou a exigir que 70% dos recursos sejam aplicados em produtos básicos. Dois importantes passos em direção à qualidade nutricional e ao respeito às culturas alimentares locais. Em 2009, foi estendido para toda a rede pública de educação básica e, em 2013, para os alunos de EJA (educação de jovens e adultos), AEE (atendimento educacional especializado) e escolas de tempo integral.

A legislação de 2009 é considerada um marco importante na história do PNAE por tornar obrigatório que no mínimo 30% dos recursos repassados sejam utilizados na “aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas” (Lei nº 11.947/2009, Art. 14º). Nesses casos, fica dispensado o processo licitatório, e a aquisição passa a ser encaminhada por meio de chamadas públicas.

Os efeitos desse envolvimento da agricultura familiar podem ser sentidos de diversas formas. Nos refeitórios das escolas, houve sensível melhoria no cardápio das refeições. O feijão enlatado que era servido em muitas escolas, proveniente de locais indefinidos de qualquer canto do planeta e cheio de conservantes químicos, foi substituído por feijão fresco, produzido em pequenas propriedades na própria região. As crianças passaram a receber frutas locais no lugar de biscoitos industrializados. Um simples artigo da lei pode provocar a substituição de produtos ultraprocessados por alimentos in natura na alimentação de milhões de crianças.

Foto: divulgação

Fora da escola as mudanças também são significativas. As compras municipais garantem renda para agricultores e agricultoras locais, que passam a viver em melhores condições e a consumir mais no comércio da cidade, fazendo girar a economia, gerando distribuição de riqueza e aumentando a arrecadação de impostos do município. A justiça social se propaga por toda a cadeia econômica na forma de prosperidade para todos.

A oportunidade dada aos pequenos agricultores pelo programa também estimula o associativismo, a formação de cooperativas e a organização da classe produtora sendo, portanto, um fator de fortalecimento político da agricultura familiar. Quando as escolas foram fechadas em função da pandemia, o programa manteve as compras municipais desses pequenos produtores, garantindo o escoamento da produção. As famílias dos alunos podiam retirar os alimentos nas escolas e, em alguns casos de maior vulnerabilidade, podiam recebê-los em casa.

A concretização desse potencial, no entanto, depende em grande medida das entidades municipais e estaduais que fazem a gestão dos recursos. São elas que decidem sobre quais produtos adquirir, e de quem. Talvez pela própria formulação do texto da lei, ela infelizmente não consegue “garantir”, como muito se diz em matérias sobre o assunto, o percentual mínimo de 30% em compras da agricultura familiar.

O próprio artigo 14 da referida lei já prevê as condições nas quais esse percentual pode ser flexibilizado, oferecendo possibilidades de justificativas que são difíceis de serem verificadas pelos mecanismos de controle social. A página de perguntas frequentes sobre o PNAE informa que, no caso do não cumprimento dos 30%, basta às entidades executoras justificarem posteriormente as razões para isso. De tempos em tempos circulam notícias sobre o descumprimento da exigência por parte das entidades municipais e estaduais (exemplos aqui, aqui e aqui).

Dados sobre as compras da agricultura familiar disponíveis na própria página do governo federal apontam para um quadro pouco animador no que se refere ao cumprimento dos 30% estabelecidos pela lei. As informações mais recentes disponíveis nessa página se referem a 2017 e, ainda que já um pouco antigas, dão uma ideia da situação.

Dos 640 municípios paulistas listados na base de dados disponível, apenas 226 (35,3%) empregaram 30% ou mais da verba do PNAE na compra de produtos da agricultura familiar. No caso de 280 prefeituras (43,8%), o percentual de compras da agricultura familiar fica abaixo do exigido por lei. Há 123 municípios em que o dado referente a compras da agricultura familiar está marcado com um traço, sem esclarecer se isso corresponde a um zero ou a simples ausência de informações. Portanto, o percentual de prefeituras que não atingiram os 30% é provavelmente ainda maior, podendo chegar a 63% caso esse traço seja mesmo um zero em todos os casos.

No município de São Paulo, no ano de 2017, o percentual da verba do PNAE investido em compras da agricultura familiar foi, segundo essa base de dados, de apenas 7,8%, muito distante do mínimo exigido pela legislação.

Ao comprarem produtos em varejistas ou mesmo em grandes distribuidoras, as prefeituras pagam mais caro, pois estão optando por alimentar uma cadeia de distribuição cheia de intermediários. Além disso, estão quase sempre jogando recursos para fora do município. Ao escolherem a agricultura familiar, a verba vai diretamente para os pequenos produtores, promovendo justiça econômica e social. O que está em jogo nesta decisão do gestor público é a escolha entre fortalecer trabalhadores e trabalhadoras da região ou fortalecer ainda mais o grande capital.

Um agricultor familiar que deseje vender sua produção para o PNAE deve, em primeiro lugar, emitir a sua DAP (Declaração de Aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), que é o documento que habilita a unidade produtiva para participar do programa. Precisa então ficar atento, junto à prefeitura de seu município, para as chamadas públicas para aquisição de alimentos. Deverá entregar um projeto de venda de gêneros alimentícios para alimentação escolar e demais documentos exigidos por aquela chamada. Uma vez aprovado o projeto, será elaborado um contrato de aquisição entre a prefeitura e a unidade produtiva.

Ao incluir a agricultura familiar diretamente nas compras públicas, o PNAE cria a oportunidade de reconfigurar os sistemas alimentares a partir das relações locais, com impactos imediatos na saúde da população estudante, nas condições de vida dos pequenos produtores e na economia local. Sendo a prefeitura municipal o único intermediário entre produtor e consumidor, forma-se um circuito curto que leva os alimentos da horta ao refeitório escolar sem dispersão de recursos e com grande qualidade nutricional.

Sua efetividade, porém, depende de constante vigilância e pressão por parte da sociedade civil, que pode fazer isso por meio dos Conselhos de Alimentação Escolar ou através de incidência direta junto a prefeituras, secretarias de educação e câmaras de vereadores. Milhares de municípios brasileiros respeitam a lei, investindo 30% ou mais (em alguns casos, bem mais) em compras diretas da agricultura familiar. Mas há milhares de municípios que ainda estão abaixo ou bem abaixo dessa exigência legal. Existe aqui um imenso campo de oportunidades para o fortalecimento da agricultura familiar.

dicionário de agroecologia

A luta dos movimentos populares pela construção de uma realidade mais justa, baseada em novas relações entre seres humanos e entre estes e a natureza, acaba de ganhar mais uma importante ferramenta. O Dicionário de Agroecologia e Educação foi publicado no final do ano passado e está disponível, nas versões impressa e digital, para educadores, militantes, pesquisadores e pessoas interessadas em se aprofundar em temas importantíssimos na reflexão sobre nossas escolhas como sociedade. O Dicionário foi produzido pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV-Fiocruz), de forma coordenada com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e em parceria com a Editora Expressão Popular.

A obra conta com 106 verbetes, elaborados por uma equipe de 169 autores e autoras, e foi estruturada tendo em vista as necessidades e expectativas dos educadores e educadoras das escolas do campo. Alguns exemplos de verbetes: antropoceno, bens comuns, capitalismo verde, deserto verde, diversidade sexual e de gênero, educação do campo, feminismo camponês e popular, financeirização da economia, homeopatia, medicina tradicional brasileira, metodologias emancipatórias, plantas medicinais e fitoterápicos na saúde pública, política agrária, teia alimentar, território, transição agroecológica. Toda a equipe foi orientada a redigir textos aprofundados e rigorosos quanto aos conceitos, mas ao mesmo tempo escritos em linguagem acessível.

Imagem: divulgação

Os autores advertem que, mesmo tratando-se de um dicionário, ele não pretende ter caráter normativo. O propósito de uma obra como esta vai muito além de simplesmente apresentar definições – ainda que elas estejam presentes em muitos verbetes. Há ali uma rica discussão quanto aos fundamentos de cada um dos temas, além de dados históricos que mostram o processo de formação dos conceitos. Trata-se de um material pensado em uma perspectiva crítica, com a finalidade de fundamentar o diálogo entre todos aqueles que se inserem nesta luta.

Ainda que a agroecologia venha sendo pensada e praticada em todo o mundo, é importante que cada povo possa construir seu próprio entendimento sobre o tema, tendo em vista a sua realidade sócio-histórica e suas práticas locais. O capítulo introdutório chama a atenção para a importância estratégica que a agroecologia tem na “promoção da saúde nos territórios e na elaboração de políticas públicas que visem a estruturação da soberania alimentar”.

O Dicionário de Agroecologia e Educação é um documento riquíssimo tanto para qualificar a discussão política no âmbito da militância como para articular a construção do projeto político pedagógico nas escolas, sobretudo tendo em vista a educação do campo. Os verbetes trazem bibliografia detalhada e sugestões de materiais de apoio para o desenvolvimento do tema, pensando em seu uso em sala de aula.

Informações tão bem sistematizadas inspiram inclusive ações pedagógicas para além da sala de aula. Podemos, por exemplo, pensar na articulação de encontros com rodas de conversa que partem da leitura de verbetes, como forma de enriquecer o debate, manter ideias em movimento e reforçar vínculos nas comunidades.

A transformação social se dá pela construção de alternativas concretas ao modelo de desenvolvimento capitalista. Este dicionário mostra que os fundamentos da agroecologia se articulam com esse projeto em diversos campos de ação.

dúzia de dez

Sabemos que a educação precária é uma grande aliada do capital. Graças às deficiências educacionais em habilidades matemáticas bem simples, que qualquer pessoa com ensino fundamental completo deveria dominar, as empresas podem jogar com preços em seu benefício, sem que o consumidor se dê conta disso. A variação da quantidade de produto nas embalagens é uma estratégia eficaz dos fabricantes e varejistas para mascarar diferenças de preços.

Vejamos o caso real de um sabão em pó oferecido em dois tamanhos diferentes. A embalagem de 800g custa R$ 5,49. Existe também uma embalagem dita econômica, com 2,4kg, vendida a R$ 17,90. Acostumado a pensar que em quantidades maiores os produtos saem mais em conta, e influenciado pela palavra ‘econômica’ impressa na embalagem, o consumidor não hesita. Aproveita para reforçar o estoque da casa e escolhe a embalagem de 2,4kg. Mal sabe ele que está pagando mais caro ao fazer essa opção. Se levasse três embalagens de 800g, pagaria menos pela mesma quantidade de produto.

Foto: Dionizio Bueno, março/2021

Mesmo nesse raro caso em que o peso da embalagem maior é um múltiplo da embalagem menor (geralmente não são, exatamente para dificultar comparações), esse consumidor nem pensou em multiplicar o preço da embalagem menor por três. Se as pessoas fizessem isso, ninguém jamais levaria a embalagem maior com esses preços. Mas levam. O gerente acompanha diariamente as vendas, podendo fazer pequenos reajustes nos preços quando achar necessário. Existe entre os consumidores uma crença segundo a qual “em quantidades maiores os produtos são mais baratos”. O gerente se aproveita da fé do consumidor nessa crença e coloca esses preços de propósito.

A forma mais garantida de comparar preços é calcular o preço por unidade. Sabão em pó é quantificado por peso, portanto a unidade é o quilograma. Para fazer isso, basta dividir o preço de cada embalagem pela quantidade de quilogramas existente nela. Na embalagem menor há 0,8kg, então dividimos seu preço (R$ 5,49) por 0,8 e obtemos R$ 6,86 por quilograma. Dividimos então o preço da embalagem maior (R$ 17,90) pela quantidade de quilogramas que há nela (2,4), obtendo o valor de R$ 7,46 por quilograma. Fica claro que o produto sai mais caro na embalagem maior. Tendo os preços por quilograma, podemos compará-los, e descobriremos que na embalagem maior o sabão fica 8,7% mais caro.

Três fatores facilitam bastante o uso dessas técnicas pelas empresas.

Primeiro, muitas pessoas não têm o conhecimento matemático para fazer essa conta. Apesar de ser uma operação matemática bastante simples para quem dispõe de uma calculadora – e hoje, com os smartphones, qualquer pessoa tem o tempo todo uma calculadora no bolso – essa operação é ignorada por grande parte da população. Não me lembro de problemas matemáticos desse tipo em meu tempo de escola, e me parece que continua não fazendo parte dos conteúdos escolares atualmente.

Segundo, grande parte daqueles que têm tal conhecimento – e uma calculadora no bolso – abre mão de fazer essa conta, seja por pressa, por preguiça, por sua excessiva confiança nas empresas, por acreditar que sabe a resposta sem fazer a conta, ou talvez até por achar que seria mesquinharia, coisa de quem está precisando, e isso não pega bem socialmente. Pare por dez minutos junto à gôndola de algum supermercado e observe quantas pessoas fazem alguma conta na calculadora enquanto comparam os preços. Provavelmente não verá nenhuma.

E o terceiro fator é a falta de efetividade de uma lei que, se estivéssemos em um país sério, poderia compensar os dois fatores anteriores. Já existe uma lei que obriga os estabelecimentos varejistas a exibirem nas gôndolas, além dos preços unitários de cada embalagem, o preço por unidade do produto: preço por quilograma para produtos quantificados por peso, preço por litro para produtos medidos em volume, preço por metro para produtos que variam em comprimento. Porém, como não está regulamentada, essa lei não tem efeito.

Sem essa lei e sem a iniciativa dos consumidores em fazer cálculos e comparar, são vários os truques usados pelos fabricantes e estabelecimentos comerciais, que costumam articular em parceria as políticas de preços ao consumidor. Os truques funcionam muito bem.

Há fabricantes de pão de forma industrializado que colocam todas as opções do produto a um mesmo preço, variando apenas a quantidade na embalagem. As embalagens dos pães mais simples contêm 500g e, conforme aumenta a “sofisticação” do produto, o peso diminui: 450g, 380g e assim por diante. A maioria dos consumidores ignora que, sendo iguais os preços unitários, o pão de 380g sai 31,6% mais caro que o pão de 500g. É evidente que há diferenças qualitativas entre os dois produtos, mas só conhecendo a diferença no preço por quilograma é que o consumidor pode decidir livremente, segundo seus próprios critérios, se a compra do produto mais caro se justifica.

Um varejista oferece manteiga vegana colocando em destaque que o preço do pote é exatamente o mesmo da concorrente convencional ao lado. Manteiga é um produto que costuma ser vendido em potes de 200g (ainda que haja também opções de potes maiores). Isso é tão comum que talvez muitos não percebam que o pote daquela manteiga diferenciada tem apenas 170g.

Foto: Dionizio Bueno, julho/2021

A embalagem é cuidadosamente projetada com dimensões semelhantes às das marcas concorrentes, com o mesmo diâmetro na parte superior e na tampa, apenas ligeiramente reduzida apenas na parte inferior. Quem nota a diferença de quantidade sabe que ela sai mais caro. Porém, quanto mais cara é essa manteiga? Se a lei fosse efetiva, o consumidor veria na etiqueta de gôndola que a manteiga vegana é vendida a R$ 76,35 o quilograma, enquanto a manteiga concorrente custa R$ 64,90 o quilograma. O preço da vegana é 17,6% maior que o da convencional ao lado.

Certos frigoríficos com lojas de varejo próprias dimensionam suas embalagens sempre com 900g do produto. O consumidor está acostumado a comprar carne e linguiça a granel pensando em seu preço por quilo. Ao entrar nessas lojas, tem na memória como referência o preço por quilo dos açougues e mercados que frequenta. Muitos consumidores talvez achem que é pouca diferença, ou talvez nem percebam que ali tem menos de um quilo. Se uma embalagem dessa custar o mesmo preço que um quilo da mesma carne no açougue em frente, o produto estará 11,1% mais caro nesta embalagem.

Ovos são tradicionalmente vendidos em dúzias. Há também opções de embalagens maiores (por exemplo, com 30 ovos) e menores (por exemplo, com meia dúzia), mas a dúzia é, na cultura brasileira, uma quantidade padrão de ovos, praticamente uma unidade de medida para ovos. Ao fazer listas de compras, raramente se especifica a quantidade unitária de ovos, geralmente escrevemos quantas dúzias pretendemos trazer do mercado.

Eis que surgem variedades diferenciadas: ovos caipiras, ovos orgânicos, ovos de galinhas livres. Por serem tidas como de maior qualidade, essas variedades são vendidas a valores mais altos. Se essa diferença de preços puder ser disfarçada, isso tende a reduzir a resistência do consumidor, que tem diversas opções à sua disposição logo ao lado, na gôndola. A solução para evitar um preço ostensivamente maior é diminuir a quantidade de produto por embalagem.

Cria-se a dúzia de dez. As embalagens são cuidadosamente projetadas para terem o mesmo tamanho externo daquelas que trazem doze ovos, para que o consumidor só perceba a diferença de quantidade se ler as letras miúdas ou contar os ovos. E mesmo entre aqueles que só consomem esses ovos diferenciados, quase sempre vendidos em embalagens com dez unidades, muitos continuarão anotando em dúzias as quantidades de ovos em suas listas de compras.

Para resistir contra as artimanhas que o mercado cria para enganar consumidores, é importante conhecer suas táticas. É necessário também compartilhar esse conhecimento. Adote o hábito de calcular o preço por unidade. Usar a calculadora diante da gôndola é um gesto de quem tem domínio das próprias escolhas, não uma vergonha. Ao comparar ostensivamente os preços por unidade de medida, comentando os valores com quem está próximo, você contribui para difundir uma postura crítica entre consumidores.

A conta é simples, muita gente pode adotar esse hábito, principalmente enquanto a lei brasileira não for efetiva para obrigar a exibição do preço por unidade nas gôndolas, como já acontece em muitos países civilizados.

Bicicarreto #04

Toda reflexão sobre as possibilidades de desenvolvimento do Bicicarreto é construída a partir da prática, em movimento. De fato, o pedalar na estrada é propício para arejar o pensamento ao mesmo tempo em que nos empoderamos quanto aos caminhos para transformar ideias em ações concretas.

Foto: Adriana Marmo.

Para que as ações de ativismo sejam sustentáveis como uma prática periódica, precisamos reconhecer que toda ação tem um valor expressivo, além naturalmente de seu valor instrumental. Os efeitos recompensadores de uma ação vêm não apenas dos resultados práticos que ela produz mas também de sua própria execução. Sentindo-se bem durante o processo, a pessoa vai querer fazer de novo.

Foto: Arnaldo Machado.

Nesse aspecto, o Bicicarreto tem sido sempre uma experiência incrível para todos os participantes. Envolve bicicleta, estrada, terra produtiva, amigos, jardins, histórias, hortas, mato e sol. Que mais precisa?

Foto: Dionizio Bueno.

Levar as provocações do Bicicarreto ao ambiente escolar foi o propósito que deu origem a esta ação #04. Neste ano, a Mostra Cultural da escola municipal Théo Dutra, na Brasilândia, iria contar com uma pequena feira agroecológica, articulada pela professora Fernanda Rodrigues. O Bicicarreto entrou na parceria para fazer o transporte de parte desses alimentos.

Foto: Fernanda Rodrigues.

Ver um grupo de bicicletas chegando diretamente da roça, trazendo produtos orgânicos recém colhidos, é um ponto de partida bastante inspirador para muitas reflexões. A escola precisa assumir um papel protagonista na formação de cidadãos críticos e não de consumidores passivos.

Foto: Fernanda Rodrigues.

Temas como produção e distribuição de alimentos, segurança alimentar, reforma agrária, alimentação saudável e agricultura urbana precisam ser regularmente abordados em sala de aula, pois dizem respeito à saúde e à vida de todos nós.

Foto: Ana Fediczko.

Com a prática, vamos acumulando aprendizados sobre as possibilidades das ações de ativismo do Bicicarreto. Trata-se simplesmente de pegar a estrada, chegar cedo a um sítio produtivo na área rural, encontrar pessoas queridas, conversar sobre novas articulações que reforcem nossa luta. Pedalar é (quase) sempre um ato cheio de sentidos políticos.