direitos dos camponeses

Declarações universais da Organização das Nações Unidas (ONU) têm o propósito de estabelecer direitos fundamentais, orientar países na formulação de suas leis e servir de inspiração e referência em lutas e debates, em todo o planeta, sobre os temas de que tratam.

Em dezembro de 2018, sua Assembleia Geral aprovou, por meio de uma resolução, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses (abreviada como UNDROP, seguindo o nome em inglês). O documento tem 28 artigos que tratam de assuntos essenciais como direito à terra, às sementes, à biodiversidade, à soberania alimentar, à justiça e à água, entre outros.

Infelizmente, as resoluções da Assembleia Geral não são vinculativas, isto é, não têm força imperativa para os Estados membros. Se tudo que está lá afirmado fosse de cumprimento obrigatório pelos países, certamente os camponeses de todo o mundo viveriam uma realidade bem diferente.

Em 2002, durante uma conferência regional, a organização camponesa internacional Via Campesina formulou sua Declaração dos Direitos das Camponesas e Camponeses, a qual foi lançada e adotada oficialmente em 2009. Esse documento mais tarde serviria de inspiração para a UNDROP.

Dentro da ONU, a elaboração iniciou no Conselho de Direitos Humanos, por incidência da Bolívia. Uma primeira versão do documento foi aprovada pelo Conselho em 28 de setembro de 2018, contando com 33 votos a favor, 3 votos contra (Austrália, Hungria e Reino Unido) e 11 abstenções (o Brasil entre elas).

Em seguida, o texto passou pelo Terceiro Comitê da Assembleia Geral, o qual lida com questões sociais e humanitárias. Foi aí aprovado em 19 de novembro do mesmo ano, com 119 votos a favor, 7 votos contra (Austrália, Estados Unidos, Hungria, Israel, Nova Zelândia, Reino Unido e Suécia) e 49 abstenções (o Brasil novamente entre elas).

Finalmente, o texto da Declaração seguiu para a Assembleia Geral, onde foi aprovado, em 17 de dezembro, com 121 votos a favor, 8 votos contra (todos que se opuseram no Terceiro Comitê mais a Guatemala) e 54 abstenções (o Brasil, mais uma vez, neste grupo). Desconhecemos a justificativa do Brasil para as abstenções nas três etapas, mas sabe-se que em contextos como esse a abstenção é uma forma de negar apoio à causa sem que isso represente um grande comprometimento perante a opinião pública. É importante ter em mente o momento político no qual o país se encontrava nessa época.

Esse estilo de declaração começa por elencar os princípios e noções gerais que norteiam sua elaboração. Assim, em seu preâmbulo, a UNDROP reconhece a especial relação dos camponeses com a terra, a água e a natureza, elementos dos quais dependem para sua subsistência. Reconhece também sua contribuição para a conservação da biodiversidade, que constitui a base da produção alimentar e agrícola em todo o mundo, assim como seu papel essencial na garantia dos direitos à alimentação adequada e à segurança alimentar.

Entre os documentos que lhe serviram de embasamento, faz referência à Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979) e à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007), entre muitos outros.

Em seu primeiro artigo, apresenta uma interessante definição de camponês: “qualquer pessoa que se dedique ou pretenda dedicar-se, individualmente, em associação ou como comunidade, à produção agrícola em pequena escala para subsistência ou comércio, que para este efeito dependa em grande parte, embora não necessariamente de forma exclusiva, do trabalho de membros da sua família ou agregado familiar, ou de outras formas não monetárias de organização do trabalho, e que tenha um vínculo especial de dependência ou ligação com a terra” (Artigo 1.1.). Assim, são excluídos da definição os empreendimentos agrícolas baseados exclusivamente em relações de trabalho capitalistas. O termo camponês seria então equivalente ao que chamamos de agricultor familiar.

Imagem: Reprodução de Déclaration des Nations Unies sur les Droits des paysan·ne·s et Autres Personnes Travaillant dans les Zones Rurales – livret d’illustrations. La Via Campesina, 2020.

A partir dessa definição, desenha-se para os camponeses um cenário que, se fosse concretizado, seria um verdadeiro mundo dos sonhos. Seguem alguns destaques e comentários sobre as perspectivas oferecidas pela Declaração. Como não há uma versão em português desse documento no repositório oficial da ONU, os trechos citados aqui são traduções nossas a partir das versões em espanhol e em inglês.

O parágrafo sobre produtos tóxicos, se efetivo, garantiria a camponeses e camponesas não apenas a opção de não utilizarem veneno como também a possibilidade de não estarem sujeitos às suas consequências. “Os camponeses e outras pessoas que trabalham em zonas rurais têm o direito de não utilizar nem de estar expostos a substâncias perigosas ou produtos químicos tóxicos, tais como agrotóxicos ou poluentes agrícolas ou industriais” (Artigo 14.2.).

As correntes de vento transportam substâncias jogadas na atmosfera, podendo trazer o veneno utilizado em fazendas vizinhas para a roça de alguém que optou por não utilizar esses produtos e contaminando sua produção, sua terra e seus trabalhadores. Os agrotóxicos têm também o efeito de dizimar populações de abelhas, comprometendo o sistema natural de polinização das plantas, o que caracteriza séria agressão ao meio ambiente e à biodiversidade, cuja proteção é abordada em outros pontos da Declaração.

Devido ao alcance dos impactos maléficos dessas substâncias, decisões individuais dos produtores não lhes garantem a possibilidade de estarem protegidos delas. Portanto, a menos que o uso de veneno seja proibido em caráter nacional ou ao menos regional, esse direito dificilmente será garantido.

A Declaração entende que o direito à soberania alimentar passa pela possibilidade de se participar das decisões sobre as políticas que afetam a forma como os alimentos são produzidos e distribuídos. “Os camponeses e outros trabalhadores rurais têm o direito de determinar seus próprios sistemas agroalimentares, o que é reconhecido por muitos Estados e regiões como o direito à soberania alimentar. Isso inclui o direito de participar dos processos de tomada de decisão relativos às políticas agroalimentares e o direito a alimentos saudáveis ​​e adequados, produzidos através de métodos ecológicos e sustentáveis que respeitem suas culturas” (Artigo 15.4.).

Para a construção de um sistema alimentar justo e saudável, é essencial a presença da sociedade civil nas instâncias participativas existentes. Ao mesmo tempo, é importante fortalecer iniciativas que representem alternativas concretas ao sistema alimentar vigente, controlado por interesses corporativos.

Há na Declaração um único parágrafo que, sozinho, evitaria conflitos atualmente em curso em diversas partes do mundo, caso fosse efetivo. “Os camponeses e outras pessoas que trabalham em zonas rurais têm o direito de serem protegidos contra qualquer deslocamento arbitrário e ilegal que os remova das suas terras, do seu local de residência habitual ou de outros recursos naturais que utilizam nas suas atividades e de que necessitam para usufruir de condições de vida adequadas. (…) Os Estados devem proibir os despejos arbitrários e ilegais, a destruição de zonas agrícolas e o confisco ou a expropriação de terras e outros recursos naturais, em particular quando usados como medida punitiva ou como meio ou método de guerra” (Artigo 17.4.). Uma rápida olhada para a profusão de conflitos em andamento hoje no mundo mostra como isto está longe de se concretizar.

O parágrafo que trata da reforma agrária é, curiosamente, o único em que a sentença inicia de modo condicional. “Quando apropriado, os Estados devem tomar as medidas adequadas para implementar reformas agrárias a fim de facilitar o acesso amplo e equitativo à terra e a outros recursos naturais necessários para garantir que os camponeses e demais trabalhadores rurais desfrutem de condições de vida adequadas e para limitar a concentração e o controle excessivos da terra, levando em consideração sua função social. Os camponeses sem-terra, os jovens, os pescadores artesanais e outros trabalhadores rurais devem ter prioridade na distribuição de terras públicas, áreas de pesca e florestas” (Artigo 17.6., grifo nosso).

É interessante observar como a Declaração dos Direitos das Camponesas e Camponeses, da Via Campesina, adota uma posição bem mais assertiva sobre o tema. “Grandes propriedades rurais não devem ser permitidas. A terra deve cumprir sua função social. Limites de posse de terra devem ser aplicados quando necessário para garantir o acesso equitativo à terra” (Artigo IV.11., grifo nosso). Por mais que a ONU tenha um papel importante no reconhecimento internacional dos direitos de grupos vulneráveis em todo o mundo, este caso exemplifica como ela é também capaz de barrar afirmações que os grupos dominantes de seus países membros considerem excessivas.

De qualquer forma, o conjunto de direitos apresentado pela Declaração representa um grande avanço em relação às condições objetivas enfrentadas por camponesas e camponeses em todo o mundo. A partir daí, existe o caminho para a efetivação desses direitos, por meio dos processos internos de cada país.

No Brasil, muitos dos direitos afirmados na Declaração já aparecem, de alguma forma, em marcos legais. Porém, a realidade das camponesas e camponeses daqui está muito longe do sonho desenhado pelo documento. Uma das demonstrações mais emblemáticas dessa precariedade é o fato de muitas áreas rurais apresentarem índices de insegurança alimentar maiores que áreas urbanas, mesmo estando seus habitantes diretamente em contato com a terra que produz – ou deveria produzir – alimentos.

A Declaração atribui aos Estados nacionais o papel de implementar e garantir os direitos nela estabelecidos. “Os Estados devem respeitar, proteger e cumprir os direitos dos camponeses e de outras pessoas que trabalham em zonas rurais. Devem prontamente tomar medidas legislativas, administrativas e outras cabíveis para alcançar progressivamente a plena realização dos direitos enunciados na presente Declaração que não possam ser imediatamente garantidos” (Artigo 2.1.). De fato, é ingenuidade esperar que tais iniciativas venham de poderes privados, como latifundiários e corporações, justamente aqueles que vêm historicamente se beneficiando da inexistência, na prática e muitas vezes também na teoria, desses direitos.

Portanto, declarações como esta servem como lembretes da importância de Estados fortes e com amplo apoio popular, capazes de resistir à infiltração dos interesses privados no aparelho estatal, de forma que possam concretizar direitos já reconhecidos como universais.

sociobiodiversidade

O termo biodiversidade se refere à diversidade das formas de vida. Diz respeito à diversidade de espécies na natureza e também à variabilidade genética que existe entre os indivíduos de uma mesma espécie. Graças a esta diversidade genética dentro da espécie, por exemplo, alguns indivíduos de uma espécie de planta podem ser resistentes a uma determinada praga que a ataca, e assim acabam evitando a extinção da espécie inteira. Essa situação ilustra a enorme importância que a diversidade tem para a natureza e para a vida.

A padronização de sementes promovida pela associação entre indústria química e agronegócio é uma força de destruição de biodiversidade, colocando produtores de alimentos em condição de dependência dos insumos fornecidos por grandes corporações e comprometendo a soberania alimentar.

A diversidade também existe na cultura. A profusão de diferentes modos de viver observados em todo o mundo é manifestação daquilo que chamamos de diversidade cultural. Há pessoas que gostam de viver em cidades, cercados de máquinas, informação e tecnologia, realizando uma infinidade de atividades em um único dia. Há pessoas que preferem viver em retiro, dedicando-se a estudos, a práticas corporais e espirituais, ao serviço comunitário. Há aqueles que vivem em sítios rurais, cuidando da terra e produzindo alimentos.

Certos povos vivem em regiões muito frias, encontram seu alimento em rios e mares que têm a superfície congelada e são capazes, pela observação dos diferentes tons de banco, de obter indícios sobre o clima, de encontrar locais favoráveis para a pesca, de reconhecer lugares onde é perigoso pisar. Outros povos vivem em florestas onde raramente faz frio, chove bastante e é possível caçar, pescar, cultivar a terra ou simplesmente coletar o alimento na mata.

Além de reconhecer a importância da multiplicidade das culturas, a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural estabelece um interessante paralelo entre essas duas formas de diversidade. Logo em seu primeiro artigo, afirma que “A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em beneficio das gerações presentes e futuras.” (UNESCO 2001, grifo nosso).

Existe também uma interessante conexão objetiva entre essas duas formas de diversidade. Devido às características de seus modos de vida, algumas comunidades de agricultores familiares, pescadores, povos indígenas e outros grupos tradicionais cultivam, de forma cooperativa com o ambiente, espécies que representam a biodiversidade regional.

Surge então o conceito de sociobiodiversidade. A forma de viver de certos grupos humanos contribui para fortalecer as espécies de seu meio, atuando como força de conservação da biodiversidade. Seu modo de vida beneficia não apenas o próprio grupo, mas a sociedade como um todo.

Foto: Sérgio Vale / Secom Acre

Há hoje políticas públicas que reconhecem o serviço de conservação da biodiversidade prestado por esses grupos, e assim fomentam tais cadeias produtivas. Como exemplo disso, dentro do Plano Safra deste ano há uma linha de crédito a juros baixos para o custeio da produção espécies da sociobiodiversidade.

A lista dos produtos incluídos nessa política forma um belo repertório de nomes. Alguns exemplos: abiu, araticum, araçá, aroeira-pimenteira, ariá, arumbeva, bacupari, bacuri, baru, biribá, buriti, butiá, cagaita, cajá, carnaúba, castanha-do-brasil, castanha-de-cutia, chichá, chicória-de-caboclo, copaíba, croá, cubiu, cupuaçu, fisalis, goiaba-serrana, jaborandi, jaracatiá, licuri, macaúba, mapati, murici, patauá, pajurá, peperômia, pitanga, pupunha, puxuri, sapota, sete-capotes, taperebá, tucumã, umari, uvaia, uxi.

Enquanto nos grandes centros urbanos, especialmente sudestinos, esses nomes soam apenas como uma forma de poesia, em algumas regiões do país eles são parte da vida. As crianças dali cresceram comendo essas frutas no pé, as geleias e refeições com essas espécies sempre estiveram no cotidiano dessas famílias. Elas são as guardiãs naturais e honorárias dessas plantas.

Ainda que a produção tenha como finalidade a geração de renda, e não apenas a subsistência, é possível fazer uso da natureza de maneira adequada. Isso obviamente só acontece se esses arranjos puderem garantir o respeito aos saberes tradicionais, a certos princípios e a limites na escala produtiva.

É estranho pensar que esse tipo de relação não predatória com a natureza seja hoje apenas excepcional dentro de nossa realidade econômica. O capitalismo desarticula esquemas que sempre funcionaram bem para impor seus meios técnicos de sugar riqueza. A desagregação de comunidades cria uma fonte inesgotável de problemas, e isso é ótimo para o sistema, que pode então vender suas soluções.

Ao fortalecer sistemas produtivos que valorizam práticas tradicionais, as políticas de apoio à sociobiodiversidade ao mesmo tempo protegem a biodiversidade e fortalecem identidades culturais. Ainda que representem uma parcela ínfima da economia nacional, elas servem para nos lembrar que é possível resistir à tendência de destruição das diversidades promovida pela economia capitalista.

plano safra

O Plano Safra da Agricultura Familiar 2025/2026, lançado há pouco mais de uma semana, prevê R$ 89 bilhões a serem investidos nesse segmento do setor produtivo brasileiro. No dia seguinte, foi anunciado também o Plano Safra geral, que contempla o agronegócio, com um montante de R$ 516,2 bilhões para financiar o setor da agricultura e pecuária empresarial.

O contraste entre os valores, ainda mais considerando que o agronegócio é um setor altamente capitalizado que não necessita de dinheiro público para prosperar, mostra que o uso da agricultura para a produção de mercadorias para os mercados interno e externo ainda é uma prioridade sobre a produção de alimentos no país.

O Plano Safra foi criado em 2002 (denominado inicialmente Plano Agrícola e Pecuário) com o objetivo de fortalecer e estimular a expansão e a modernização da agricultura e da pecuária brasileira. No ano seguinte, sindicatos rurais e movimentos sociais ligados ao campo foram envolvidos na elaboração do Plano, de forma que agricultores familiares e assentados da reforma agrária pudessem melhor contribuir para atender à demanda por alimentos no contexto do programa Fome Zero, existente naquela época. Isso dá origem ao Plano Safra da Agricultura Familiar, editado pela primeira vez em 2003.

Os recursos do Plano Safra da Agricultura Familiar estão divididos em segmentos com finalidades específicas. O maior deles, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) foi contemplado com R$ 78,2 bilhões, o maior valor na série histórica.

Por meio do Pronaf, os pequenos produtores podem financiar tanto as despesas com insumos e mão de obra (custeio) como a aquisição de máquinas e sistemas que aumentem a capacidade produtiva (investimento). O programa oferece crédito para a produção de alimentos da cesta básica a uma taxa de juros de 3% ao ano. Essa taxa cai para 2% se o crédito for destinado ao custeio de produtos orgânicos, agroecológicos ou da sociobiodiversidade.

Há também o Pronaf Mais Alimentos, uma linha de crédito mais ampla que financia o investimento em tratores, colheitadeiras, caminhonetes, motocicletas, equipamentos adaptados a pessoas com deficiência, sistemas de armazenagem, ordenhadeiras, tanques e também a construção ou reforma de moradias rurais.

Parte da verba do Pronaf é voltada especificamente para incentivar a agroecologia. Nesta edição, as famílias com renda anual de até R$ 50 mil podem financiar a implantação de sistemas de base agroecológica ou em transição para sistemas de base agroecológica a uma taxa de juros de 0,5% ao ano.

Os quintais produtivos também são contemplados com suas especificidades. Mulheres rurais com renda de até R$ 50 mil podem custear a produção diversificada de alimentos no espaço ao redor da casa, podendo conciliar a atividade produtiva com a lida familiar.

Além do Pronaf, o Plano Safra da Agricultura Familiar inclui outras formas de incentivo. Por meio das compras públicas, o governo não apenas assegura o abastecimento de certos produtos (sendo também um instrumento no combate à inflação de alimentos) como também garante um preço digno a ser pago aos produtores. Há nesta edição do Plano R$ 3,7 bilhões destinados às compras públicas.

Algumas culturas estão sujeitas a perdas de safra em consequência de condições climáticas. Para proteger esses agricultores, existe a Garantia-Safra, que neste ano conta com R$ 1,1 bilhão.

Entre outros segmentos, há também R$ 240 milhões destinados a Assistência Técnica e Extensão Rural para agricultores familiares e R$ 42,7 milhões para garantir um pagamento fixo para alguns produtos da sociobiodiversidade brasileira.

A forma que o Plano Safra da Agricultura Familiar tem hoje é, em parte, resultado da incidência de movimentos sociais. Exemplo disso é o reconhecimento de quintais como unidades produtivas qualificadas para receber financiamento público, uma conquista da Marcha das Margaridas de 2023.

Somente a pressão da sociedade civil organizada pode fazer com que o incentivo público à agricultura familiar siga crescendo e a distância entre os apoios ao pequeno produtor e ao agronegócio possa diminuir ou mesmo, legítima utopia, ser superada.

agroecologia nas eleições

Das três esferas da política institucional, a municipal é onde são vividos e decididos os assuntos ligados de forma mais imediata à vida cotidiana das pessoas. Isso faz do período de eleições municipais uma época especialmente propícia para se tratar de certos assuntos, como as relações comunitárias, a alimentação, a cultura, a saúde e o meio ambiente. Essas áreas estão diretamente conectadas a políticas públicas locais, cuja execução pode ser acompanhada de perto pelos cidadãos e cidadãs.

Para levantar a discussão sobre esses temas neste momento oportuno, a ANA publicou uma carta política intitulada “Democracia e agroecologia como princípios para a construção de políticas de futuro e para a garantia de soberania e segurança alimentar nos municípios brasileiros – Desafios para as candidaturas nas eleições de 2024”. Trata-se da terceira edição da iniciativa Agroecologia nas Eleições, que nos anos eleitorais desde 2020 tem buscado trazer a pauta da agroecologia para o debate público.

A carta política foi elaborada por organizações, coletivos e movimentos sociais, apresentando um total de 51 propostas, organizadas em 15 áreas temáticas. Todas as propostas são de extrema importância para a construção da soberania alimentar e nutricional, o fortalecimento das relações comunitárias e a garantia da democracia. Destacamos aqui alguns mais diretamente ligados ao campo teórico e prático do Bicicarreto.

Imagem: divulgação

Na seção ‘Comercialização, circuitos curtos e compras institucionais’, o documento chama atenção para a importância da adesão do município ao Programa de Aquisição de Alimentos e, no que se refere ao Programa Nacional de Alimentação Escolar, que as administrações municipais estabeleçam metas progressivas anuais de forma que finalmente possa ser atingida a condição determinada pela Lei nº 11.947/2009, de se destinar no mínimo 30% dos recursos do programa para compras da agricultura familiar.

Também propõe a criação de uma política municipal de apoio a feiras de produtores e a equipamentos públicos de abastecimento alimentar.

No tópico sobre ‘Agricultura urbana’, para que se possa garantir sua efetivação, defende a destinação de áreas públicas e privadas para produção de alimentos e plantas medicinais, com assessoria para produtores e produtoras, apoio a coletivos de mulheres e suporte à implementação de hortas nas escolas.

Chama a atenção ainda para a importância do uso de instrumentos urbanísticos, como planos diretores, para a promoção da agricultura urbana, propondo inclusive a criação de áreas especiais de segurança alimentar.

O documento inclui temas que aparecem com pouca frequência no debate político em nível municipal, como o ‘Controle e restrição de atividades que geram impactos negativos à saúde e ao meio ambiente’. Dentro deste tópico destacamos a efetivação de leis que estabeleçam zonas livres de agrotóxicos no município (proibindo inclusive sua pulverização aérea), a restrição do uso de transgênicos nos programas públicos de abastecimento alimentar e a implementação de ações de educação alimentar, com o estímulo ao consumo dos alimentos in natura e minimamente processados.

Partindo de uma visão ampla da agroecologia, o documento também contempla práticas integrativas, com incentivo ao uso de fitoterápicos e plantas medicinais produzidas pela agricultura familiar ou nas unidades de saúde, o fortalecimento de iniciativas de comunicação popular, como rádios comunitárias, e a inserção de conteúdos relacionados à agroecologia e segurança alimentar nas ações pedagógicas das escolas, em cidades e áreas rurais.

Em sua apresentação, a carta política destaca que “a agroecologia é um dos caminhos mais efetivos não só para a produção de alimentos e territórios saudáveis e sustentáveis, como também para garantir justiça social e climática e construir tecnologias sociais capazes de enfrentar a nova realidade que estamos vivendo”.

Assim, além do propósito central de fornecer uma agenda propositiva para as candidaturas e trazer esses temas sistematizados para pautar uma discussão envolvendo toda a sociedade, a carta política Agroecologia nas Eleições 2024 cumpre também o papel de apresentar a agroecologia a um público mais amplo, mostrando que ela é muito mais que um conjunto de técnicas de cultivo.

entrevista: Lucca Pérez

A Cooperativa Terra e Liberdade faz uma importante conexão entre produtores de alimentos do MST da Grande São Paulo e consumidores finais, formando um circuito curto de distribuição. Tivemos a oportunidade de acompanhar uma manhã de trabalho da cooperativa, ajudando na montagem das cestas e percorrendo uma das rotas de distribuição junto com o militante Lucca Pérez, que depois nos concedeu esta entrevista.

Lucca nasceu em São Paulo, é engenheiro ambiental e, durante a graduação, trabalhou com o MST implantando sistemas de irrigação e saneamento ecológico. Atuou também com economia solidária e fez mestrado em engenharia de produção, com foco em organização do trabalho. Atualmente, em seu doutorado, estuda as relações entre saúde mental e trabalho, sobretudo no ambiente do cooperativismo.

Nesta conversa, Lucca fala dos desafios ligados à distribuição dos alimentos produzidos pela reforma agrária e sobretudo daqueles enfrentados pelos produtores e produtoras nos assentamentos. Fala também da construção de relações de consumo menos mercantilizadas, ainda que não deixem de ser relações econômicas, e que sejam focadas “no valor de uso, na política e no afeto, e não na mercadoria”.

***

Quando e como começou o trabalho da Cooperativa Terra e Liberdade? O que motivou essa iniciativa a começar a funcionar?

Todo começo é herdeiro de outras experiências, né? O Cícero já tinha trabalhado com comercialização de uva na década de 2000, levava para igrejas, portas de fábricas, já tinha algum trabalho com logística. Mas a venda de hortifruti em geral era muito focada no mercado institucional, notadamente o PAA [Programa de Aquisição de Alimentos]. Esses alimentos iam para escolas, prisões, quartéis, tinha soldado que comia alface agroecológica do MST.

Tem também o PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar], que é um mercado importantíssimo, uma política pública de fortalecimento da agricultura familiar que garante o escoamento da produção mas, ao mesmo tempo, como tudo tem uma dialética, quem vende só para esses mercados fica acostumado com isso. São contratos de, tipo, cinco mil pés de alface por família, por DAP [Declaração de Aptidão ao Pronaf, documento que habilita uma unidade produtiva para participar do programa].

Aí veio o corte de 2016 com o Temer. O orçamento do PAA saiu de bilhão para coisa de 200 milhões entre 2016 e 2018. Então os agricultores da regional ficaram sem ter para onde vender. Perderam mercado de uma hora para outra. Paralelamente a isso, eu já vinha trabalhando na Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP e era um aliado do MST. Já havia um debate sobre comércio solidário, redes, cadeias, consumo consciente etc.

Então a gente tentou fazer algumas pontes com a cooperativa do [assentamento] Dom Pedro e com a juventude do Dom Pedro, buscando fortalecer hortas da juventude. A ideia era muito mais fortalecer laços dentro desse campo da economia solidária do que dar uma resposta material da produção. Mas com o fim do PAA a gente decidiu ir para o mercado do consumidor final, sair do mercado institucional. Só que a gente não tinha recursos, não tinha experiência nisso.

Outro processo paralelo foi a Feira Nacional da Reforma Agrária. Nós participamos desde a primeira ajudando a organizar. Na segunda e na terceira nós já tocamos o processo.

O ‘nós’ aí nesse caso é quem?

É a [direção] regional Grande São Paulo [do MST]. Então as feiras também foram abrindo um diálogo de mercado com o consumidor final. Nesse processo, um pouco mais tarde, abre o Armazém do Campo. A gente já estava elaborando uma estratégia para acessar o mercado de consumidor final, é importante ter um diálogo com a população da cidade, a gente visibiliza o trabalho. No PAA, não se dá visibilidade ao que está sendo produzido, ele é muito importante para dar vazão à produção, mas não avança nos outros elementos, como construir alianças, redes de cooperação e tudo mais.

Então batemos aqui na porta do SINTUSP, foi o primeiro grupo de consumo, começou ali por 2017. A gente entregava cestas quinzenalmente. Então fornecia para o Armazém do Campo, para o SINTUSP, tentava fornecer uma coisa ou outra para o Instituto Chão.

Aí a gente começou um grupo de consumo lá no ABC, depois a feira no SESC Santana. No fim de 2018 a gente já começa a chamar de cooperativa e começa a pensar no nome. Talvez já tivesse a ideia de ‘Terra e Liberdade’.

Ali pelo fim de 2018 e começo de 2019 já tinha o primeiro site, que era mais simples, e a gente entregava em pontos de retirada, ainda não tinha porta a porta. A gente começou a fazer porta a porta só com a pandemia.

Nesse momento que você relata agora, a origem da produção que vocês distribuíam já era dos três assentamentos, Dom Pedro, Dom Tomás e Irmã Alberta?

Sim. Hoje a gente complementa com o Instituto Terra Viva, de Sorocaba, que comercializa a produção dos assentamentos da região de Sorocaba mas não só, são pequenos produtores em geral. Eles são aliados, um deles era do setor de produção do MST de lá.

A gente também entregou para a CUT de Osasco, para um pessoal da TVT, no ABC, mas não estava dando muito certo. O custo de transação era muito grande, um monte de informação no grupo de Zap. Mesmo depois, com o Google Forms, não era fácil fazer o pedido. Eram muitas horas para processos que hoje são quase automatizados.

Mas o mais determinante, eu acho que é a transição da companheirada, que vendia para o programa. Imagina, cinco mil pés de alface no ano para o PAA. Quarenta agricultores. Essa transição deles para o mercado direto envolve mexer melhor no celular. Eles não tinham Zap ainda, gente ligava para os produtores. Às vezes alguém esquecia algum item que tinha que mandar, aí a gente precisava ligar para cobrar.

Hoje a gente consegue mapear e pedir com uma certa frequência, é um processo consolidado, a companheirada entrega, a qualidade melhorou muito. Antes a qualidade era muito variável.

Atualmente, quantas pessoas estão envolvidas com a Cooperativa Terra e Liberdade?

Hoje a gente tem um núcleo duro de quatro pessoas, incluindo eu, tocando a cooperativa. Tem também mais uma companheira que já esteve mais envolvida e hoje segue apenas cuidando do site. E tem mais uns seis ou sete aliados e aliadas que ajudam na montagem e nas entregas.

Lucca Pérez, de vermelho, durante reunião em assentamento do MST. Foto: arquivo pessoal.

Como se formou a área geográfica de atuação da cooperativa? Seguiu algum critério prévio, foi uma questão de custo operacional, ou de disponibilidade de companheiros?

Na zona norte começou com a feira do SESC Santana. Então começaram a articular um grupo de consumo, que hoje chega na periferia, bem no extremo norte. Eles pegam também a produção das mulheres de lá, que fazem pão, sabonete, tem toda uma rede de economia solidária que foi se criando a partir da feira no SESC, com pessoas engajadas. Então começou a ter rota para a zona norte.

Para a Vila Mariana, foram duas pessoas com história familiar de militância que queriam fortalecer o movimento. Quando começou na Vila Mariana, a gente já tava mais maduro, então a gente construiu de uma forma melhor. Na zona leste tinha um pessoal do teatro, antes de a gente começar a fazer entregas no centro a gente já chegava na zona leste por meio desse pessoal. Tem também uma cooperada em Ermelino Matarazzo que foi se organizando e criou um grupo de consumo. No ABC tem uma galera do PSOL ecossocialista que conhecia o MST, porque lá tem o núcleo urbano do MST Carlos Marighella.

Tem mais dois grupos nascendo. Um no Ipiranga, onde entregamos junto com o de Vila Mariana. E o outro é do SINDEMA, o sindicado dos servidores de Diadema, que tem uns quatro meses. Então são sete agora. Talvez Diadema e Ipiranga ainda não sejam grupos de consumo consolidados. Alguns grupos começaram assim, com uma pessoa puxando e depois constituindo um coletivo.

O preço pago aos produtores é definido por eles mesmos? É muito influenciado pelos preços de mercado? Como vocês pensam esse aspecto?

É influenciado por preços de mercado sim, mas não tão diretamente. A gente não quer cobrar um preço tão caro dos consumidores. Mas a gente tem os custos de gasolina, manutenção de carro, algumas ajudas de custo.

Tem mecanismos de mercado, porque a gente vive numa sociedade da produção do valor, não estamos fora dela. Mas não é um preço de mercado de atravessador, por exemplo. A gente começou pagando um preço negociado e depois foi subindo de forma negociada.

A gente tem uma lista de preços, a gente tenta padronizar. Óbvio que se é um produto muito lindo, a gente abre exceções, mas depois isso dá um trabalho enorme na planilha, porque sai do que a gente conseguiu avançar em termos de automatização da planilha, e ainda pode dar problema.

Mas dá para chegar no consumidor por um preço justo. Tem um monte de gastos no meio, como gasolina, pedágio, manutenção, servidor do site, sacolinha, perdas, etc. Além disso a gente também serve nosso caixa de microcrédito. Muitas vezes emprestamos para a companheirada que precisa, para compra de mudas, por exemplo.

Atualmente, se não existisse esse trabalho feito pela cooperativa, os produtores teriam alguma alternativa de escoamento da sua produção? Nesse meio de tempo mudou alguma coisa nas condições que eles encontram no mercado?

Voltou a ter política pública de compra institucional, então mudou sim. E alguns se profissionalizaram mais e conseguem hoje tocar uma feira direta, se precisar, e a gente tem incentivado muitos a fazerem isso. A gente tem um grupo [de Whatsapp] de feiras com vários produtores, vários assentados e acampados que hoje dividem tarefas nas feiras. Tem mais gente dos territórios nesse grupo, para pensar junto as feiras, dividir tarefas e por vezes fazer a logística.

Por exemplo, tem um casal do [assentamento] Dom Pedro, eles melhoraram muito a qualidade do processo. Fazem beneficiados de mandioca, mandioqueijo, nhoque, carne de jaca. Tem também uma companheira do [assentamento] Dom Tomás que faz pão, carne de jaca. Teve inovação, tem produtos que não havia antes, muito puxados por ter esse mercado. Hoje essa companheira é uma das maiores produtoras, e sem a cooperativa ela não teria esse mercado.

E de que forma a cooperativa ajudou nesse processo de profissionalização desses produtores e produtoras?

O trabalho com a cooperativa ajudou muito, porque a gente vai dando os retornos e falando: “precisa ter rótulo”, “precisa data de validade”, “essa embalagem rasga muito fácil”. E ao mesmo tempo a gente nunca fala “nunca mais vou pegar de você”. Isso não. A gente chega e fala “companheira, a gente quer que isso vá para frente, e para ir para frente precisa melhorar nisso e nisso”. É chato às vezes o trabalho de discutir qualidade, mas a gente faz isso com o carinho e amor que a gente consegue. Nesse mercado dos grupos de consumo tem gente que topa experimentar, que se encontrar um problema em um produto, não vai sair xingando.

Sim, um outro tipo de relação.

Acho que é uma relação que tem margem. Nem todo mundo vai entrar nisso, porque a correria é bruta, mas existe margem para os laços afetivos. Todos os grupos de consumo, tirando esses dois mais recentes, em algum momento já visitaram os territórios. Olharam no olho das pessoas e conheceram, “ah, essa é a Sheila que faz o nhoque!”. É uma relação muito menos mercantilizada e muito mais focada numa troca econômica com sentido de valores de uso, e não de valor por valor. Estou comendo um alimento sem veneno, produzido por pessoas que estão na luta.

Vamos às reuniões dos grupos de consumo e construímos as visitas deles aos espaços, pelo menos uma vez por semestre. É um trabalho de formação, de construção desses laços, desse vínculo menos mercantilizado. Focado no valor de uso, na política e no afeto, e não na mercadoria. É um alimento sem veneno, produzido por uma pessoa. Quando a gente manda a lista no grupo de consumo, está escrito lá, “nhoque da Sheila, do Dom Pedro”, “licor da Rosângela, do Irmã Alberta”, “mel do Severino, do Dom Tomás”. Aí a pessoa um dia vai lá e conhece a Sheila. É uma relação muito diferente.

Também tem um ponto, e é isso que eu tenho tentado estudar um pouco. Para a transição agroecológica, você tem uma margem de manobra muito maior do produtor sobre sua produção, óbvio que dialogando com o consumidor. Não é cliente-rei do mercado tradicional, mas também não é produtor-rei, tipo “você vai pegar o meu almeirão sim, porque eu produzi bem, está bonito e você vai comer almeirão”. Não pode ser assim.

Como é um modelo de cesta fechada e muita gente que compra por ser do movimento, é muito diferente de um contrato, seja de mercado institucional ou de mercado privado. Imagine, “quero trezentos quilos de banana, neste e naquele parâmetro”. A política pública tem critério de qualidade também, tem parâmetros de tamanho. Então neste tipo de relação você também amplia a margem de manobra do produtor sobre o seu trabalho. São graus de desmercantilização.

Porque ele pode produzir para venda, sim, mas é uma venda que não tem que seguir parâmetros a priori, que vão subsumindo o trabalho. A agricultura familiar fornece frango para a Sadia. Mas aí você vai ver o contrato da Sadia, ele pauta ritmo e intensidade de trabalho, insumos, critérios de qualidade, é como se fosse um terceirizado, ou mesmo um contratado. Você está controlando o trabalho daquele produtor familiar. Já no grupo de consumo, é um estágio em que ele controla o próprio trabalho num nível muito alto, frente às possibilidades de uma produção para venda. Isso aparece no desenho do canteiro, na escolha do que vai ser plantado ou não.

Essa ideia de “graus de desmercantilização” é muito interessante!

É uma outra relação com o trabalho. Ele escolhe plantar a acelga dele e sabe que os consumidores dele vão testar. Talvez ninguém goste de acelga e ele tenha que mudar. Mas ele não vai ter que mudar para seguir um contrato só de alface e pagar uma multa. Certo, não pode acelga, mas eu posso plantar trezentas outras coisas, entende? Isso abre possibilidades para um outro tipo de relação com o trabalho, que é o trabalho agroecológico, uma relação do sujeito com o seu fazer e na mediação com a natureza. Um trabalho com possibilidades emancipatórias e muito menos determinações alienantes.

Estou indo para uma discussão abstrata, que é a discussão da minha pesquisa, mas é uma outra relação com o seu fazer e com a árvore que vai dar o fruto para o tucano, com o canteiro e com a formiga que come o canteiro. Esse tipo de consumo abre muito mais margem para avançar na agroecologia.

Existe interesse da cooperativa em aumentar sua operação, seja em volume num mesmo território, seja ampliando sua área de abrangência? Quais seriam as limitações a serem enfrentadas? E até onde vocês avaliam que seria adequado chegar, em termos desse crescimento de abrangência ou de volume?

Existe, sim, o desejo de crescer em escala. Pode envolver o aumento de abrangência, mas não necessariamente. A gente precisa crescer em escala, antes de mais nada. Por que?

Poucos agricultores vivem só da entrega para a cooperativa, talvez no máximo uns vinte, dos sessenta com quem a gente dialoga. Eles vivem de outras coisas também. Muitas vezes, é autoconsumo e aposentadoria. É uma base envelhecida. Às vezes a gente é a única pessoa que comercializa a produção deles. Não é isso que mantém a reprodução da vida deles. Isso também ajuda em graus de desmercantilização dos canteiros.

Mas a gente também quer ser uma alternativa para o pessoal em idade ativa, mais jovem. E aí, quanto mais relevante você se torna para essas pessoas, mais sentido faz. Se a gente for pegar dez alfaces de cada um, a galera vai plantar dez alfaces. Mas se a gente garante, “pode plantar trezentas, que a gente vai pegar trezentas”, muitas pessoas vão plantar trezentas. E algumas famílias mais jovens, que estão em outra condição, outro momento de vida, precisam disso. E a gente não consegue propiciar isso porque nossa escala não é tão grande ainda. A gente quer que todas as famílias possam viver bem nesse tipo de produção.

Então é crescendo que a gente pode crescer. É meio que um círculo virtuoso. A relevância da escala torna factível a gente poder pedir para a galera plantar mais. Porque se a gente é só um complemento de renda, o que eles vão fazer se pedirmos para plantarem mais? Por isso também demorou tanto tempo para a gente chegar onde está. E isso é uma potência e um obstáculo ao mesmo tempo, porque é uma escadinha. Você sobe um degrau na comercialização, você consegue puxar na produção, mas se você não puxa, ele te puxa para baixo de novo. Você tem que subir um degrau aqui e outro ali. E se não sobe rápido o outro, aquele que você não subiu te puxa para baixo.

Então a gente tem esse trabalho de estar nos territórios, ajudar a planejar a produção, se mostrar presente, afetivamente presente. Isso não é fácil, porque é muita coisa. E todos nós temos outros trabalhos além deste. A gente precisaria liberar umas três pessoas, numa estrutura que possa só fazer isso. Senão perde muita qualidade, não dá para ter processos claros, fazer um trabalho de base melhor. Então precisa crescer para poder profissionalizar, para poder crescer mais.

Mas aí tem um limite, não é entrar num jogo de crescer por crescer. Acho que o limite é a produção que companheirada consegue entregar vivendo bem. Passou desse limite, não precisa.

Tem que chegar num ponto em que a gente tenha um capital de giro, tenha salário para pelo menos três pessoas, para que elas tenham quarenta horas por semana para fazer só isso se quiserem e não precisem correr atrás de outras coisas. E para fazer com qualidade, com afeto com a companheirada, sem pressa. Avançamos bastante nisso, mas ainda tem muitos problemas.

Com essa verba, daria para levar a mais lugares a bandeira desse trabalho de base urbano, a ponte campo-cidade. Daria para mostrar a produção do MST, mostrar na maior cidade do Brasil que o MST dá certo. Consolidar mais alianças com os movimentos da cidade também. Precisa crescer para chegar nisso. Crescer para que jovens que estão nos assentamentos possam produzir sua agrofloresta tendo saída certa. Então não é crescer por crescer.

Esses produtores e produtoras têm uma margem de crescimento da produção?

Têm! Eu não falei tanto de obstáculos, mas tem um obstáculo muito complicado, que é a infraestrutura. Água, por exemplo. No Dom Tomás falta muita água. O poço queima, a prefeitura não conserta, aí a gente empresta dinheiro para consertar a bomba do poço. No Dom Pedro falta água também. Menos, porque lá tem o lago, ajuda bem, mas tem lugares em que não chega. No Irmã Alberta nem se fala. No Irmã Alberta falta tudo: água, luz. Então infraestrutura é um obstáculo complicado.

E força de trabalho?

Não é o principal obstáculo agora. Se botar mais força humana sem aumentar a infraestrutura, vai dar mais problema do que resolver. Quando tiver muita água no Dom Tomás e no Irmã Alberta, talvez aí a força de trabalho vire um problema. Mas aí já vai ter vários outros problemas resolvidos. Água é o principal problema.

Outra coisa são os recursos que reduzem a penosidade do trabalho rural, como tratorito, principalmente para o pessoal acima de sessenta, setenta anos. E ter não só água, mas também sistema de irrigação: é bomba, mangueira, cano.

Outro obstáculo é a falta de ATER [assistência técnica e extensão rural]. Já tivemos, por poucos períodos, uma ótima ATER, antes da pandemia. ATER é pensar o todo: o pulgão, a fruta, o comércio. No Irmã Alberta, agora está tendo ATER, a gente tem uns aliados que fazem o processo, mas precisava ter um esquema mais estruturado, um programa estatal. No Dom Tomás o ITESP faz uma coisa ou outra, principalmente para turismo rural, mas nada para produção. No Dom Pedro não tem ATER há muitos anos. No Irmã Alberta começou a ter por um programa do Sampa+Rural há uns três meses.

O movimento tem uma frente ou um setor de captação de recursos, por exemplo para obter recursos governamentais? Para comprar tratorito, por exemplo.

Sim. A gente comprou um tratorito para o Irmã Alberta, coletivo. Foi muito usado. Mas precisaria ter dez, o tratorito é pequeno. O cobertor é sempre curto, e aí a mobilização no estado de São Paulo fica na mão da direção estadual. A gente não acessa verba de emenda para nós, por exemplo. A gente faz baião de dois no Al Janiah para conseguir dinheiro! Trabalham quinze pessoas, por três dias, para conseguir mil reais para a regional. A nossa regional é pobre, sem grana. Base pequena, três comunas da terra minúsculas. A cooperativa dá uma vida para a regional que ela não teria sem a cooperativa.

Esta cooperativa é a única na regional?

Sim.

E no estado, tem mais?

Tem cooperativas fortes no estado. A Coopavi, em Itapeva, tem feijão, soja orgânica, carne de porco, pão. A Cooplantas, das mulheres, com ervas medicinais. A Coapar, em Andradina, produz leite, queijo, manteiga, tem agroindústria. É outro rolê. A regional Grande São Paulo vem de um esquema de pessoas em situação de rua, não camponesa ou ex-camponesa, ou situação urbana favelada. É muito específica a realidade aqui.

nosso sonho

Durante quatro dias, a IV Feira Nacional da Reforma Agrária, organizada pelo MST, concretizou o sonho de muitos dos que lutam pela soberania alimentar no Brasil. Nesse sonho, além do acesso a uma grande abundância de alimentos produzidos sem veneno, está a possibilidade de comprá-los diretamente de seus produtores.

Na compra direta, a quantia paga pelos consumidores servirá integralmente para remunerar de forma digna esse trabalho tão essencial que é produzir alimentos, além de pagar os custos de produção e transporte. Esses valores têm ainda a função de apoiar a importante missão do movimento como um todo, que é ocupar terras improdutivas e lutar pelo direito de plantar para alimentar pessoas.

A abundância material e humana que havia ali traz sensação de acolhimento e segurança. Poder estar perto das pessoas que produzem os alimentos que consumimos é uma experiência enriquecedora, pelas trocas que possibilita. Para os produtores, suponho que o contato direto com aqueles que se beneficiam do resultado de seu trabalho gere semelhante sensação de segurança. Garantir o escoamento da produção é essencial para a sobrevivência de qualquer unidade produtiva, mais ainda quando ela é pouco capitalizada, como é o caso daquelas pequenas propriedades.

Porém, nos dias em que estive na Feira, ao mesmo tempo em que eu olhava todos aqueles alimentos sobre as bancas dos produtores, ficava me perguntando: e quando a feira acabar? Como é possível reproduzir pelo resto do ano toda essa proximidade, que garante aos agricultores o escoamento de sua produção? A resposta também emergiu em meio a toda aquela abundância. Parece se tratar simplesmente de conexões.

Foto: Dionizio Bueno

Redes de distribuição de alimentos são nada mais do que isso: conexões entre produtores, consumidores e, quando não há alternativas, intermediários. O poder das conexões é tão grande que a possibilidade de controlá-las dá a certos agentes altamente capitalizados a possibilidade de determinar o preço de compra do lado da produção e o preço de venda do lado do consumo.

Portanto, construir alternativas a esses esquemas estabelecidos, criando a possibilidade de acesso direto ou quase direto entre produtores e consumidores, é o caminho para a autonomia. Há muitos formatos para se criar essas conexões, e diversas experiências já existem, funcionando muito bem.

cooperativas de militantes | São grupos organizados que coletam a produção de diversos assentamentos regionais e os distribuem aos consumidores na cidade. Realizam a venda através de páginas na internet ou por meio de grupos de consumo e entregam os produtos em domicílio ou em pontos de retirada espalhados em pontos estratégicos, para que os consumidores possam economizar o custo do frete.

lojas do próprio movimento | Com lojas em diversas cidades do país, redes como o Armazém do Campo oferecem produtos da reforma agrária de diversas regionais, utilizando também a estrutura dos esquemas de distribuição mantidos pela própria militância.

pequenos entrepostos | Essas iniciativas, individuais ou de pequenos coletivos, vendem alimentos tanto da reforma agrária como de hortas urbanas e pequenos produtores na cidade e em volta dela. Verdadeiras zonas autônomas, tais espaços possibilitam o acesso a alimentos saudáveis em suas vizinhanças, algumas vezes em situação de fragilidade institucional, necessitando portanto do apoio comunitário em luta de resistência.

cooperativas de consumo | Com um formato bastante inovador no Brasil, uma cooperativa está sendo formada para gerir um mercado no qual os cooperados realizam grande parte das tarefas práticas e administrativas da loja, diminuindo sensivelmente seu custo operacional e, como consequência, o preço final para os consumidores.

grupos de compras coletivas | Há certamente centenas, senão milhares deles. Basta que uma pessoa colete os pedidos de várias famílias e realize o pedido diretamente à unidade produtora, recebendo a encomenda em sua casa, onde as pessoas do grupo poderão retirar suas compras.

Nos próximos meses e anos, veremos iniciativas como estas crescendo e se proliferando. Mas para consolidar o sonho do amplo acesso aos alimentos saudáveis produzidos pela reforma agrária, é preciso que iniciativas como essas entrem nas vidas de cada vez mais pessoas, e isso pode exigir algumas adaptações, nas duas pontas do sistema.

Foto: Dionizio Bueno

Do lado do consumidor, é preciso planejar o abastecimento da casa. No caso das compras coletivas, por exemplo, os pedidos são abertos somente em certas datas. Concentrando aí as quantidades para um período mais longo (o que naturalmente só é possível no caso de produtos menos perecíveis), todos ajudam a compor um pedido de maior volume, facilitando a negociação de preço com o produtor e ajudando a diluir os custos de frete.

Esse planejamento vale também para produtos mais perecíveis, de compra mais frequente. Por enquanto, as lojas que oferecem produtos orgânicos da reforma agrária existem apenas em certos locais da cidade. As compras de produtos in natura podem ser feitas semanalmente ou até quinzenalmente, evitando demandas de última hora que acabam sendo feitas em qualquer mercado mais próximo.

É muito importante também entender que um padrão de alimentação mais saudável estará sempre sujeito a sazonalidades. É natural que certos produtos não estejam disponíveis em todos os lugares durante o ano todo.

Por meio de seus regimes industriais de produção de alimentos, o sistema alimentar baseado em grandes redes de distribuição e varejo cria artificialmente a possibilidade de ter quase tudo durante todo o ano. Os alimentos são produzidos de forma intensiva em fazendas que podem estar a milhares de quilômetros da sua casa, em regiões com outro padrão climático. Crescem por meio de estimulação artificial, utilizando fertilizantes químicos, e são colhidos enquanto estão verdes, conforme seus cronogramas de linha de produção e a quantidade de pedidos recebidos pelo departamento comercial dessas indústrias agrícolas. Por fim, têm o seu amadurecimento forçado através da exposição a gás etileno obtido do petróleo.

É perfeitamente possível ter uma alimentação baseada em produtos da época, tornando desnecessários esses recursos artificiais criados para viabilizar a produção de alimentos em enormes escalas, gerando grandes lucros para uns poucos, além de mimar um consumidor que quer ter de tudo agora.

Imagem: divulgação

Do lado dos produtores, um pequeno esforço de organização pode contribuir muito para o florescimento dessas redes de distribuição. Só eles podem ter a visão de todos os pedidos que estão recebendo, com suas respectivas datas, destinos e quantidades. Uma boa organização das rotas pode fazer o custo do frete ser dividido entre vários pedidos, diminuindo para todos os custos de transporte e fazendo com que os produtos cheguem a um preço mais baixo para os consumidores, beneficiando as vendas.

E com relação às entidades e grupos que organizam essas iniciativas, cabe ter a inteligência coletiva de entender que o espalhamento e a capilarização desse novo sistema alimentar são benéficos para toda a rede. Seria totalmente fora de propósito enxergar novas iniciativas semelhantes como concorrência. Claro que é preciso cuidado para que a atuação de iniciativas mais capitalizadas ou profissionalizadas não resulte na eliminação de outras que já se encontravam em funcionamento. Por isso é essencial manter o contato e o diálogo entre essas organizações, formando uma teia de cooperação.

Se lutamos para construir esse outro mundo com o qual sempre sonhamos, mas não formos capazes de nos libertar do paradigma da competição, em que o ganho de um implica a perda de outro, me parece que não aprendemos nada.

Produtores e consumidores têm muito a ganhar juntos com essas novas conexões. Em seu conjunto elas estão formando uma rede de produção e distribuição de alimentos que passa ao largo dos conglomerados de logística e varejo geridos pelo grande capital, que atualmente dominam o mercado de alimentos no Brasil. Vivemos a era da retomada dos circuitos curtos. Por muito tempo cultivamos nossos sonhos, hoje eles finalmente começam a florescer.

consea

Espaços institucionais de articulação entre o governo e a sociedade civil são essenciais para a formulação e a implementação de políticas públicas favoráveis aos interesses coletivos da sociedade. No campo da segurança alimentar e nutricional da população brasileira, esse espaço é o Consea – Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Não por acaso, o Consea foi desativado no primeiro dia de governo da pessoa que ocupou o cargo de presidente da república entre 2019 e 2022, cujo nome não merece ser pronunciado nem escrito.

A reinstalação do Consea se efetivou em 28 de fevereiro de 2023 e foi celebrada por movimentos sociais e ativistas em todo o país. Ao conhecer a relevância e a forma de funcionamento desse conselho, compreendemos melhor a importância desse retorno.

O Consea é um órgão de assessoramento imediato à Presidência da República, com competência para apresentar proposições de políticas relacionadas à segurança alimentar e nutricional e também para exercer monitoramento e controle social na execução dessas políticas. Tem caráter consultivo e atualmente integra o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan).

De seus 60 membros, dois terços são representantes da sociedade civil e um terço são ministros de Estado. Trata-se, portanto, de um espaço importantíssimo para movimentos e organizações sociais que atuam pelo aprimoramento das políticas públicas ligadas a soberania e segurança alimentar e nutricional no Brasil, colocando-os em posição de serem ouvidos diretamente pelo presidente do país.

O Consea teve importante papel na construção de diversas políticas públicas. Alguns exemplos: exigência de que 30% das aquisições do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) venha da agricultura familiar, formulação da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, elaboração do Guia Alimentar para a População Brasileira, criação do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), inclusão do direito à alimentação saudável na Constituição Federal, criação do Sisan.

Tais políticas foram determinantes para a sensível redução do número de pessoas em situação de subalimentação, tirando o Brasil do mapa da fome da ONU em 2014. Por sua atuação, o Consea obteve importante reconhecimento fora do país e já recebeu a visita de delegações internacionais que vieram conhecer o seu trabalho.

A cada quatro anos, o Consea organiza a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CNSAN), que é a instância máxima do Sisan e indica as diretrizes e prioridades da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. O encontro é precedido de conferências municipais, regionais e estaduais, nas quais são eleitos delegados e delegadas que irão participar da conferência nacional.

Histórico das CNSANs já realizadas. Adaptado de Relatório final da 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. CLIQUE PARA AMPLIAR

A última conferência que aconteceu até o momento foi a 5ª CNSAN, em novembro de 2015, em Brasília. Apenas para lembrar, em 2015 a Dilma era presidente, o golpe contra ela já estava sendo articulado mas ainda não havia sido consumado, Lula ainda não havia sido preso, o povo brasileiro ainda não tinha escolhido um fascista para presidente da república, não existia pandemia, ainda não havia 33 milhões de pessoas passando fome no país.

Entre os vários resultados da 5ª Conferência está um trabalho coletivo de escolha de prioridades dentro de um conjunto de 331 proposições trazidas das conferências estaduais. As três proposições mais votadas foram: “Garantir, ampliar e fortalecer as ações de assistência técnica e extensão rural (Ater) na promoção da inclusão produtiva das famílias em situação de pobreza extrema no meio rural, respeitando a forma dos saberes culturais dos povos e comunidades tradicionais”; “Promover o papel da agricultura familiar, camponesa e indígena como um dos elementos estruturantes das estratégias nacionais e regionais de soberania e segurança alimentar e nutricional, por meio do estímulo à produção local de alimentos baseada em modelos diversificados e de base agroecológica, em estratégias soberanas de abastecimento alimentar e em articulação com os preceitos de uma alimentação adequada e saudável”; “Implementar planos de proteção de bacias com recursos para a revitalização e renaturalização dos corpos hídricos, considerando o caráter intermunicipal e interestadual das bacias hidrográficas no momento da tomada de decisões relacionadas às políticas de recursos hídricos, sejam elas estaduais ou federais e que as ações de revitalização atuem prioritariamente nas causas de degradação das bacias hidrográficas”.

Em síntese, na avaliação conjunta dos delegados e delegadas presentes na 5ª Conferência, os três temas mais sensíveis naquele momento eram: inclusão produtiva por meio de assistência técnica, estímulo à agricultura familiar com base na agroecologia e proteção aos recursos hídricos.

No intervalo entre as CNSAN, costuma ser organizado um encontro nacional denominado CNSAN+2, com o objetivo de realizar um balanço das proposições da conferência e do estado de implementação das medidas de segurança alimentar e nutricional no país. A 5ª CNSAN+2 aconteceu em março de 2018, também em Brasília. O relatório desse encontro já identificava retrocessos no campo da segurança alimentar e nutricional, os quais, como sabemos, se aprofundariam nos anos seguintes: “a atual conjuntura de retrocessos na democracia impôs um cenário de desconstrução de direitos, precarização das relações de trabalho, aumento do desemprego, esvaziamento de políticas públicas e iminente volta do Brasil ao Mapa da Fome”.

A conferência seguinte deveria acontecer em 2019, e sua convocatória chegou a ser aprovada em novembro de 2018. Com a desativação do Consea, o encontro naturalmente não aconteceu.

Durante o período em que esteve desativado, os integrantes do Consea mantiveram-se mobilizados, junto com os Conseas estaduais e movimentos sociais de combate à fome, monitorando os movimentos do governo em relação à segurança alimentar e nutricional.

A nutricionista, pesquisadora e professora Elisabetta Recine, que presidia o Consea no momento de sua desativação, foi agora reconduzida ao cargo, junto com seus conselheiros. O gesto mostra a expectativa, por parte do atual governo e da sociedade brasileira, de que o conselho retome os trabalhos do ponto em que foram interrompidos, no início de 2019.

feiras de produtores

Feiras são encontros de pessoas para fazerem trocas. Existem desde a antiguidade e, na baixa Idade Média, marcaram a fase histórica de reabertura do comércio. Nelas, os produtores podem vender seus produtos diretamente às pessoas que vão consumi-los. Temos aí o menor circuito de distribuição possível, apenas produtor e consumidor.

Neste contato direto o produtor recebe o valor que considera justo por seus produtos enquanto o consumidor obtém, teoricamente, o melhor preço possível, já que não há intermediários. Porém os benefícios que esse encontro direto trazem ao sistema alimentar vão muito além do fator econômico.

O contato direto promove uma interlocução entre aqueles que produzem os alimentos e aqueles que se nutrem com eles. O produtor pode aprender a partir das informações de seus fregueses, obtém um retorno em relação aos hábitos alimentares, às variedades preferidas, às mudanças de qualidade conforme as técnicas de cultivo que vai experimentando. Os consumidores têm a oportunidade de um contato mais próximo com o fazer produtivo, as sazonalidades, as influências do clima e outros fatores naturais em sua alimentação. Nada pode ser mais humano que um sistema alimentar marcado pela compreensão mútua.

Sobretudo para os consumidores, existe nisso um grande aprendizado. Nossa sociedade busca nos acostumar com a ideia de que é possível ter tudo a qualquer momento. O supermercado se passa por um lugar encantado, sempre pronto a saciar qualquer desejo. Na sociedade de consumo, o alimento sai das fábricas, e o leite é um líquido que nasce dentro de caixinhas.

O contato mais próximo com a produção ajuda a tirar os alimentos desse lugar de meras mercadorias, sujeitas aos caprichos dos consumidores e às artimanhas dos mercadólogos. Nossos alimentos são criações da natureza.

Foto: Barbara Zem / MST

Para os produtores, a venda direta dá sentido e viabilidade às pequenas escalas de produção, liberando-os da ideia de que a única via de sobrevivência é aumentar a escala para ter acesso aos mercados por meio dos sistemas de distribuição. A produção pode se manter em escala compatível com a capacidade da unidade produtiva, qualquer que seja seu tamanho.

Ao viabilizarem as trocas, que podem ser monetárias ou não, as feiras tornam possível um certo grau de especialização da produção, sem entrar no regime industrial, no qual os produtores tendem a abandonar cultivos de subsistência. Alguns sítios concentram esforços em frutas, outros em ovos, outros produzem grãos, outros legumes, hortaliças. Em uma feira de produtores diversificada, aqueles que não produzem (os consumidores) podem ter tudo ou quase tudo que necessitam para a alimentação diária. Na pequena escala, os sítios suprem a demanda de suas regiões. Em cada região, um esquema semelhante, há demanda para todos. Assim, o sistema alimentar tende naturalmente à alimentação local. Tudo tão perto que pode ser transportado até de bicicleta!

Através da ideia de que só grandes escalas são economicamente viáveis, o sistema alimentar da sociedade de consumo cria a dependência dos grandes esquemas de transporte, necessariamente motorizados, abrindo espaço e gerando demanda para mais e mais elos na cadeia de distribuição. Os intermediários passam a ditar as condições e preços tanto na ponta do consumo como na da produção. O sistema cria as mazelas e ainda gera a ilusão de que nada fora dele é possível.

Ao mesmo tempo em que são uma prática muito antiga, as feiras de produtores são revolucionárias. Venda direta, proximidade e pequena escala desfazem os pressupostos desse sistema que aprisiona produtores e consumidores. Por meio do encontro direto entre os dois agentes mais importantes do sistema produtivo, as feiras criam uma insurreição. Seus efeitos são econômicos, relacionais e estruturais.

Feiras de produtores são uma ameaça ao sistema do capital. É preciso que resistam, que floresçam e se multipliquem.

projeções do agronegócio

Para que serve a terra no Brasil? Para produzir alimentos ou para ganhar muito dinheiro?

Um documento produzido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento traz informações desanimadoras para quem acredita que a terra deveria servir para saciar a fome das pessoas. Resumindo: alimentos como arroz, feijão, batata, mandioca, banana e café estão perdendo áreas de cultivo, enquanto commodities como milho, soja, algodão, fumo e cana de açúcar estão ganhando ainda mais território.

Reeditado a cada ano, o relatório Projeções do Agronegócio traz estimativas sobre como ficará a atividade agrícola nos dez anos seguintes à sua publicação. O último relatório disponível neste momento é de 2021, e suas projeções vão até o ano safra 2030/2031.

Os dados mais assustadores se referem à perda da área plantada de alguns alimentos. O arroz deve perder 62% de seu espaço: dos 1.687 mil hectares dedicados ao seu plantio em 2020/2021, devem restar apenas 641 mil hectares em 2030/2031. O feijão, que no ano safra 2020/2021 dispõe de 2.898 mil hectares para seu cultivo, ficará com apenas 1.830 mil hectares em 2030/2031, uma perda de 36,8%.

Enquanto isso, produtos agrícolas que servem principalmente como matérias primas industriais, e não como alimentos saudáveis, estão em expansão. A área plantada de milho deve crescer de 19.841 mil hectares em 2020/2021 para 21.948 mil hectares em 2030/2031, um aumento de 10,6%. O crescimento da soja é ainda maior: de 38.502 mil hectares em 2020/2021, deve subir para 48.851 mil hectares em 2030/2031, aumento de 26,8%.

O relatório fala das possibilidades à disposição do agronegócio para aumentar a área plantada dessas culturas. Um exemplo: “A expansão de área de soja e cana-de-açúcar deverá ocorrer pela incorporação de áreas novas, áreas de pastagens naturais e também pela substituição de outras lavouras que deverão ceder área” (p. 87). Note o uso das expressões ‘incorporação de áreas novas’, que pode servir de eufemismo para ‘desmatamento’, e ‘substituição de outras lavouras que deverão ceder área’, uma referência a cultivos que estão perdendo área plantada, onde se incluem o arroz e o feijão.

Os dados que o relatório apresenta sobre anos anteriores mostram que a redução das áreas plantadas de arroz e de feijão já é um processo em curso há pelo menos dez anos. Entre os anos safra 2009/2010 e 2019/2020, esses cultivos perderam, respectivamente, 39,7% e 18,9% de seus territórios. No mesmo período, houve enorme expansão das commodities: 42,6% no caso do milho e 57,4% no caso da soja.

Área Plantada com 5 principais grãos – Brasil (mil hectares). Fonte: Projeções do Agronegócio 2020/2021 a 2030/2031. CLIQUE PARA AMPLIAR

No momento atual, a diferença entre as áreas plantadas de alimentos e de commodities é gritante. A título de exemplo, em 2020/2021 temos 4.585 mil hectares na soma das áreas de arroz e feijão, contra 58.343 mil hectares no total para milho e soja. A área dedicada a estas duas commodities é 12,7 vezes maior que a área de cultivo de dois dos principais alimentos dos brasileiros.

O estudo avalia que “algumas lavouras, como mandioca, café, arroz, laranja e feijão, devem perder área, mas a redução será compensada por ganhos de produtividade” (p. 86). As estimativas para 2030/2031 são de que, nessas condições, a produção de arroz cresça 3,4% e a produção de feijão caia 1,2%.

Ganhos de produtividade são incertos e, sobretudo para as pequenas propriedades, responsáveis pela maior parte dos cultivos de arroz e feijão, dependem de programas de fomento à produção e de assistência técnica e extensão rural. Por outro lado, os grandes estabelecimentos produtivos do agronegócio, altamente capitalizados, conseguem sem dificuldade comprar ou arrendar propriedades menores que hoje produzem alimentos. Assim, o cenário apontado no relatório é extremamente delicado. Políticas públicas específicas para a produção de alimentos são essenciais para evitar redução nas colheitas, fazendo os preços subirem ainda mais.

Se há mesmo perspectivas de aumento de produtividade nos cultivos de arroz e feijão, melhor seria se isso fosse usado para trazer um sensível crescimento de sua produção, provocando queda nos preços e facilitando o acesso da população a esses alimentos. Infelizmente, no olhar do agronegócio, o esperado ganho de produtividade de arroz e feijão é apenas mais um fator para contribuir na expansão das commodities, mesmo havendo 33,1 milhões de brasileiros passando fome.

Para argumentar que a perda de áreas de cultivo de alimentos não levará a problemas de abastecimento, o relatório apresenta ainda um prognóstico de queda no consumo de arroz e feijão. Os cálculos dizem que, até 2030/2031, o consumo de arroz no Brasil deve cair 2,2% e o de feijão deve cair 0,7%.

Se mesmo com as expectativas de que a população brasileira cresça até 2030 esses prognósticos estiverem corretos, o relatório está anunciando um futuro tenebroso. A queda no consumo desses dois itens básicos na cultura alimentar brasileira só pode significar duas coisas: ou as pessoas vão mesmo comer menos (ou seja, mais fome!) ou passarão a comer outras coisas (provavelmente menos saudáveis). Provavelmente, ambos.

De fato, o Atlas das situações alimentares no Brasil já aponta, com base em dados de 2002 a 2018, uma queda no consumo de alimentos in natura ou minimamente processados, acompanhada de um aumento no consumo dos alimentos processados e ultraprocessados. Estamos diante de um cenário de aumento da fome e queda na qualidade da alimentação.

O relatório Projeções do Agronegócio é escrito na perspectiva daqueles para quem a agricultura é uma atividade para se ganhar muito dinheiro. Ao falar da alta nos preços agrícolas em 2021, apresenta isso como uma boa notícia: “os preços de carnes, bovina e suína, e também de milho e soja sobressaem-se em relação aos demais. São produtos que têm-se beneficiado do comércio internacional favorável, e da taxa de câmbio vigente neste ano” (p. 9, grifos nossos).

Com o dólar em alta, quem exporta ganha mais dinheiro, e isso puxa os preços internos para cima. Numa perspectiva de combate à fome, que definitivamente não é a do agronegócio, boa notícia seria uma queda de preços, pois isso significaria alimentos mais baratos para a população brasileira.

Cabe aqui citar um trecho de um livro do professor José Graziano da Silva, em que ele descreve o latifúndio escravista, principal atividade econômica do Brasil colônia, mais de quatrocentos anos no passado.

“A produção de alimentos do latifúndio variava muito em função do preço do seu produto principal destinado à exportação. Por exemplo, quando o preço do açúcar (e mais tarde do café) subia no mercado mundial, todas as terras e os escravos eram utilizados para expandir a sua produção, diminuindo assim a produção de alimentos. Nesses períodos havia fome na colônia e as autoridades estimulavam os pequenos agricultores a expandirem sua produção, para abastecer não só as vilas e cidades, como às vezes os próprios latifúndios” (O que é Questão Agrária, p. 27).

Perceba como vivemos exatamente no mesmo país que ele descreve.

Apenas dois comentários sobre essa rápida viagem no tempo. A fome, que segue firme aqui na colônia, tem basicamente as mesmas causas estruturais. E quem de fato alimenta este país são e sempre foram os pequenos agricultores.

pnae

Construído ao longo de décadas através de sucessivas melhorias, como resultado de muita mobilização social, o Programa Nacional de Alimentação Escolar é considerado um dos maiores programas no mundo com essa finalidade e, segundo sua página oficial, é o único com atendimento universalizado.

Começou a ser estruturado na década de 1950, na forma de uma campanha de merenda escolar. Inicialmente dependeu de convênios com organismos internacionais, tendo ainda o enfoque do atendimento a populações carentes. A Constituição de 1988 assegurou o direito à alimentação escolar a todos os alunos do ensino fundamental. Em 1994 sua operação (planejamento de cardápios, aquisição dos gêneros, distribuição) foi descentralizada, por meio do envolvimento das secretarias estaduais de educação e de convênios com os municípios.

Em 2001 a legislação introduziu o respeito aos hábitos alimentares regionais e à vocação agrícola de cada município. Além disso, passou a exigir que 70% dos recursos sejam aplicados em produtos básicos. Dois importantes passos em direção à qualidade nutricional e ao respeito às culturas alimentares locais. Em 2009, foi estendido para toda a rede pública de educação básica e, em 2013, para os alunos de EJA (educação de jovens e adultos), AEE (atendimento educacional especializado) e escolas de tempo integral.

A legislação de 2009 é considerada um marco importante na história do PNAE por tornar obrigatório que no mínimo 30% dos recursos repassados sejam utilizados na “aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas” (Lei nº 11.947/2009, Art. 14º). Nesses casos, fica dispensado o processo licitatório, e a aquisição passa a ser encaminhada por meio de chamadas públicas.

Os efeitos desse envolvimento da agricultura familiar podem ser sentidos de diversas formas. Nos refeitórios das escolas, houve sensível melhoria no cardápio das refeições. O feijão enlatado que era servido em muitas escolas, proveniente de locais indefinidos de qualquer canto do planeta e cheio de conservantes químicos, foi substituído por feijão fresco, produzido em pequenas propriedades na própria região. As crianças passaram a receber frutas locais no lugar de biscoitos industrializados. Um simples artigo da lei pode provocar a substituição de produtos ultraprocessados por alimentos in natura na alimentação de milhões de crianças.

Foto: divulgação

Fora da escola as mudanças também são significativas. As compras municipais garantem renda para agricultores e agricultoras locais, que passam a viver em melhores condições e a consumir mais no comércio da cidade, fazendo girar a economia, gerando distribuição de riqueza e aumentando a arrecadação de impostos do município. A justiça social se propaga por toda a cadeia econômica na forma de prosperidade para todos.

A oportunidade dada aos pequenos agricultores pelo programa também estimula o associativismo, a formação de cooperativas e a organização da classe produtora sendo, portanto, um fator de fortalecimento político da agricultura familiar. Quando as escolas foram fechadas em função da pandemia, o programa manteve as compras municipais desses pequenos produtores, garantindo o escoamento da produção. As famílias dos alunos podiam retirar os alimentos nas escolas e, em alguns casos de maior vulnerabilidade, podiam recebê-los em casa.

A concretização desse potencial, no entanto, depende em grande medida das entidades municipais e estaduais que fazem a gestão dos recursos. São elas que decidem sobre quais produtos adquirir, e de quem. Talvez pela própria formulação do texto da lei, ela infelizmente não consegue “garantir”, como muito se diz em matérias sobre o assunto, o percentual mínimo de 30% em compras da agricultura familiar.

O próprio artigo 14 da referida lei já prevê as condições nas quais esse percentual pode ser flexibilizado, oferecendo possibilidades de justificativas que são difíceis de serem verificadas pelos mecanismos de controle social. A página de perguntas frequentes sobre o PNAE informa que, no caso do não cumprimento dos 30%, basta às entidades executoras justificarem posteriormente as razões para isso. De tempos em tempos circulam notícias sobre o descumprimento da exigência por parte das entidades municipais e estaduais (exemplos aqui, aqui e aqui).

Dados sobre as compras da agricultura familiar disponíveis na própria página do governo federal apontam para um quadro pouco animador no que se refere ao cumprimento dos 30% estabelecidos pela lei. As informações mais recentes disponíveis nessa página se referem a 2017 e, ainda que já um pouco antigas, dão uma ideia da situação.

Dos 640 municípios paulistas listados na base de dados disponível, apenas 226 (35,3%) empregaram 30% ou mais da verba do PNAE na compra de produtos da agricultura familiar. No caso de 280 prefeituras (43,8%), o percentual de compras da agricultura familiar fica abaixo do exigido por lei. Há 123 municípios em que o dado referente a compras da agricultura familiar está marcado com um traço, sem esclarecer se isso corresponde a um zero ou a simples ausência de informações. Portanto, o percentual de prefeituras que não atingiram os 30% é provavelmente ainda maior, podendo chegar a 63% caso esse traço seja mesmo um zero em todos os casos.

No município de São Paulo, no ano de 2017, o percentual da verba do PNAE investido em compras da agricultura familiar foi, segundo essa base de dados, de apenas 7,8%, muito distante do mínimo exigido pela legislação.

Ao comprarem produtos em varejistas ou mesmo em grandes distribuidoras, as prefeituras pagam mais caro, pois estão optando por alimentar uma cadeia de distribuição cheia de intermediários. Além disso, estão quase sempre jogando recursos para fora do município. Ao escolherem a agricultura familiar, a verba vai diretamente para os pequenos produtores, promovendo justiça econômica e social. O que está em jogo nesta decisão do gestor público é a escolha entre fortalecer trabalhadores e trabalhadoras da região ou fortalecer ainda mais o grande capital.

Um agricultor familiar que deseje vender sua produção para o PNAE deve, em primeiro lugar, emitir a sua DAP (Declaração de Aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), que é o documento que habilita a unidade produtiva para participar do programa. Precisa então ficar atento, junto à prefeitura de seu município, para as chamadas públicas para aquisição de alimentos. Deverá entregar um projeto de venda de gêneros alimentícios para alimentação escolar e demais documentos exigidos por aquela chamada. Uma vez aprovado o projeto, será elaborado um contrato de aquisição entre a prefeitura e a unidade produtiva.

Ao incluir a agricultura familiar diretamente nas compras públicas, o PNAE cria a oportunidade de reconfigurar os sistemas alimentares a partir das relações locais, com impactos imediatos na saúde da população estudante, nas condições de vida dos pequenos produtores e na economia local. Sendo a prefeitura municipal o único intermediário entre produtor e consumidor, forma-se um circuito curto que leva os alimentos da horta ao refeitório escolar sem dispersão de recursos e com grande qualidade nutricional.

Sua efetividade, porém, depende de constante vigilância e pressão por parte da sociedade civil, que pode fazer isso por meio dos Conselhos de Alimentação Escolar ou através de incidência direta junto a prefeituras, secretarias de educação e câmaras de vereadores. Milhares de municípios brasileiros respeitam a lei, investindo 30% ou mais (em alguns casos, bem mais) em compras diretas da agricultura familiar. Mas há milhares de municípios que ainda estão abaixo ou bem abaixo dessa exigência legal. Existe aqui um imenso campo de oportunidades para o fortalecimento da agricultura familiar.

municípios agroecológicos

Como uma prefeitura municipal pode incentivar a agroecologia em seu território? O levantamento Municípios agroecológicos e políticas de futuro, realizado pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), mostra diversos caminhos que as prefeituras podem seguir para fortalecer a agricultura familiar e a produção agroecológica, beneficiando-se dos efeitos positivos disso para a economia municipal e, sobretudo, a saúde e qualidade de vida de seus cidadãos.

Foi feito um mapeamento preliminar, em todas as unidades da federação, das ações, políticas, programas e leis municipais que, de alguma forma, contribuem para fortalecer a agroecologia. Em seguida, houve um aprofundamento no estudo dessas ações, o que resultou num conjunto com 721 iniciativas das quais o poder público municipal seja executor e/ou financiador, incluindo aquelas que surgiram da sociedade civil mas em que as prefeituras tenham um papel chave. As iniciativas foram categorizadas, formando uma lista com 41 campos temáticos.

A lista abaixo está resumida, incentivamos fortemente a leitura do estudo. Temos aí possibilidades interessantes e concretas de atuação, que estão acontecendo ou já aconteceram em cidades brasileiras.

  • apoio à formação de circuitos curtos de comercialização (cessão de espaço público para realização da feira, construção de pontos fixos de comercialização, compra de barracas, apoio na logística de transportes);
  • promoção das compras institucionais (acesso a políticas como PAA e PNAE, criação de restaurantes populares);
  • fomento à infraestrutura de produção (estruturação de espaços de armazenamento e/ou beneficiamento de alimentos, construção de sistemas ecológicos de saneamento, implantação de sistemas de geração de energia solar);
  • apoio a bancos de sementes comunitários e viveiros de mudas nativas (melhoramento genético participativo);
  • melhoria no acesso à água (recuperação de nascentes e matas ciliares, cisternas, reuso de água);
  • incentivo à produção agrícola em áreas urbanas e periurbanas (hortas comunitárias, hortas escolares, centros municipais e públicos de produção de alimentos);
  • uso de plantas medicinais e práticas integrativas de saúde no âmbito do SUS (intercâmbio entre saberes tradicionais e conhecimentos científicos, indicação de fitoterápicos aos pacientes, implementação de laboratórios de manipulação de plantas medicinais);
  • apoio técnico e extensão rural (convênios com organizações da sociedade civil para incentivar a agroecologia);
  • disponibilização de equipamentos e insumos (uso coletivo de máquinas da prefeitura, programas de ensilagem, distribuição de insumos);
  • fiscalização e restrição de atividades que geram impactos negativos (leis municipais que proíbem a expansão do agronegócio, instituição de zonas livres de agrotóxicos, proibição de monoculturas como eucalipto e cana-de-açúcar, proibição do uso de árvores nativas para produção de carvão vegetal em escala industrial).

Nuvem de temas do levantamento. Fonte: Municípios agroecológicos e políticas de futuro. CLIQUE PARA AMPLIAR

A região Sul do país se destaca com 282 (39%) das iniciativas catalogadas, seguida pela região Nordeste, onde estão 223 (31%) delas. Porém, é a região Nordeste que tem o maior número de municípios com iniciativas (228, ou 43%), enquanto que na região Sul há apenas 170 municípios com iniciativas (32%). Ou seja, há no Nordeste mais municípios onde existe algum apoio à causa, enquanto no Sul as iniciativas estão concentradas em menos municípios. Seria interessante se o estudo indicasse também a porcentagem de municípios com iniciativas sobre o total de municípios (por região e por estado), permitindo medir o avanço dessas iniciativas ao longo do tempo.

Apoio a feiras e circuitos curtos é o tipo de iniciativa que mais aparece em todas as regiões exceto a Sul, onde o predominam iniciativas da categoria Fomento à produção, e é também o tema de maior incidência entre todas as iniciativas catalogadas.

Neste blogue, temos defendido a proximidade entre produtor e consumidor. O apoio às feiras de produtores e à formação de circuitos curtos de comercialização permite, com um investimento relativamente baixo, contribuir para o florescimento da atividade agrícola local, com benefícios para produtores e consumidores, além de permitir o fortalecimento dos vínculos entre eles. No caso da cessão de espaços públicos para a realização de feiras de produtores, por exemplo, o custo é próximo de zero.

Em cidades pequenas, as feiras de produtores têm um papel que vai além da simples função de abastecimento, são locais de encontro entre moradores das áreas rural e urbana. Nas cidades grandes, quando localizadas em regiões periféricas, colocam em contato direto os consumidores dessas regiões com os produtores das áreas periurbanas. Apesar da proximidade geográfica entre elas, é comum que a produção orgânica dos cinturões verdes das grandes cidades seja inteiramente deslocada para regiões centrais e bairros abastados, onde serão comercializadas como produtos diferenciados, mais caros. O desenvolvimento da agroecologia é uma boa oportunidade para superar contradições de nossa organização social.

Além do relatório, está também disponível na página da ANA uma base de dados com todas as 721 experiências que entraram no estudo, trazendo a descrição das iniciativas e outros dados. É uma fonte de informações sobre experiências concretas, que podem ajudar gestores públicos a compor suas visões estratégicas e inspirar a sociedade civil na organização de suas demandas.

O incentivo à agroecologia atinge imediatamente as vidas dos pequenos produtores, que se fortalecem economicamente, e dos consumidores, que passam a ter acesso a mais alimentos saudáveis e a preços menores. Isso tudo se reflete positivamente nos indicadores de saúde das localidades.

É no plano local que se constrói a mudança concreta, e daí vem a importância das prefeituras no desenvolvimento de um sistema alimentar genuinamente voltado para atender as necessidades da população.

agricultura familiar

Desde os primórdios da agricultura, o cultivo da terra normalmente acontece em um grupo de pessoas com vínculos de parentesco, seja uma família nos moldes ocidentais, seja uma parentela extensa ou grupo local nas sociedades diferentes da nossa.

Com o surgimento do sistema de produção capitalista, a atividade no campo ganhou traços industriais. Áreas de cultivo muito maiores, produção em larga escala, trabalho regido por princípios de eficiência. Passa a ser necessário contratar trabalhadores, sejam eles permanentes, para cuidar de tarefas diárias da fazenda, ou temporários, para os picos de demanda de trabalho como as épocas de plantio e colheita.

Sobretudo a partir dos anos 1960, houve um intenso fluxo migratório em direção às áreas urbanas. A mecanização agrícola diminuiu a demanda por trabalhadores no campo, enquanto o desenvolvimento da indústria e as imagens de modernidade passaram a atrair pessoas para as cidades. O processo ficou conhecido como êxodo rural: milhares de famílias migraram para as cidades atrás das promessas de bons salários e melhores condições de vida.

Nesse movimento, muitas famílias trocaram a condição de pequenos proprietários rurais por uma situação de grande vulnerabilidade econômica e social, vivendo nas periferias de áreas urbanas. Passaram a fazer parte do grande exército de reserva de mão de obra, que o capital usa para manter os salários em níveis baixos.

Além disso, essas pessoas deixaram para trás não apenas seus pequenos sítios, que lhes garantiam a sobrevivência e a dignidade. Perderam também vínculos familiares, costumes cotidianos e a possibilidade de uma vida pouco custosa no campo.

Felizmente parece haver também uma força oposta nesse processo, com a recente valorização da agricultura familiar. Esse modelo produtivo vem conquistando reconhecimento institucional nos últimos 25 anos, resultante da criação de políticas públicas, programas governamentais, espaços de participação e naturalmente da promulgação de leis. A mais significativa delas é a Lei da Agricultura Familiar (lei federal nº 11.326/2006) que reconhece oficialmente a atividade como profissão e estabelece diretrizes de uma política nacional.

Foto: Rose dos Santos e Guilherme Martins / MST Paraná

Um produtor é considerado agricultor familiar quando utiliza predominantemente mão de obra de pessoas ligadas a ele por vínculos familiares e não por vínculos patronais.

Segundo informações do Censo Agropecuário 2017, 77% dos estabelecimentos produtores do Brasil são de agricultura familiar. Entretanto, a área ocupada por eles corresponde a apenas 23% de toda área produtiva do país. Tal diferença naturalmente se explica pelo pequeno tamanho dessas propriedades, especialmente se comparadas às enormes fazendas do agronegócio. Além disso, é na agricultura familiar que estão 67% dos trabalhadores do setor agropecuário.

Percentual de estabelecimentos caracterizados como agricultura familiar em relação ao total de estabelecimentos (2006). Fonte: IBGE, Censo Agropecuário 2006. CLIQUE PARA AMPLIAR

Os dados detalhados de produção disponíveis no Censo Agropecuário 2006 mostram mais claramente a participação da agricultura familiar na produção dos itens que compõem a alimentação básica das pessoas. É da agricultura familiar que vem 70% do feijão, 34% do arroz, 87% da mandioca e 58% do leite de vaca. Já o modelo não familiar de agricultura, tipicamente usado no agronegócio, destaca-se na produção de commodities, que são exportados ou vendidos internamente depois de processados: produz 84% da soja, 79% do trigo e 62% do café.

Podemos constatar, portanto, que a agricultura familiar é fonte de parte significativa daquilo que de fato alimenta as pessoas, enquanto que o agronegócio não esconde sua vocação de simplesmente produzir para ganhar dinheiro.

Foto: Gisele David / MST-PR

Programas e projetos que valorizam a agricultura familiar representam um estímulo para o desenvolvimento do pequeno produtor. Um modelo de produção e distribuição de alimentos orientado para a autonomia só é possível se a produção estiver espalhada pelo território, cada um produzindo um pouco em cada lugar. Isso também contribui para que o trabalho esteja espacialmente distribuído, garantindo renda e segurança alimentar para milhões de famílias em todo o território.

Quase tão importante quanto o trabalho é a possibilidade de uma vida que preserve vínculos comunitários, tradições, referências culturais. Sem esses aspectos nutridores da condição humana, as pessoas se transformam em consumidores passivos, reféns das mídias e facilmente manipuláveis, inclusive em seus hábitos alimentares.

Bicicarreto #04

Toda reflexão sobre as possibilidades de desenvolvimento do Bicicarreto é construída a partir da prática, em movimento. De fato, o pedalar na estrada é propício para arejar o pensamento ao mesmo tempo em que nos empoderamos quanto aos caminhos para transformar ideias em ações concretas.

Foto: Adriana Marmo.

Para que as ações de ativismo sejam sustentáveis como uma prática periódica, precisamos reconhecer que toda ação tem um valor expressivo, além naturalmente de seu valor instrumental. Os efeitos recompensadores de uma ação vêm não apenas dos resultados práticos que ela produz mas também de sua própria execução. Sentindo-se bem durante o processo, a pessoa vai querer fazer de novo.

Foto: Arnaldo Machado.

Nesse aspecto, o Bicicarreto tem sido sempre uma experiência incrível para todos os participantes. Envolve bicicleta, estrada, terra produtiva, amigos, jardins, histórias, hortas, mato e sol. Que mais precisa?

Foto: Dionizio Bueno.

Levar as provocações do Bicicarreto ao ambiente escolar foi o propósito que deu origem a esta ação #04. Neste ano, a Mostra Cultural da escola municipal Théo Dutra, na Brasilândia, iria contar com uma pequena feira agroecológica, articulada pela professora Fernanda Rodrigues. O Bicicarreto entrou na parceria para fazer o transporte de parte desses alimentos.

Foto: Fernanda Rodrigues.

Ver um grupo de bicicletas chegando diretamente da roça, trazendo produtos orgânicos recém colhidos, é um ponto de partida bastante inspirador para muitas reflexões. A escola precisa assumir um papel protagonista na formação de cidadãos críticos e não de consumidores passivos.

Foto: Fernanda Rodrigues.

Temas como produção e distribuição de alimentos, segurança alimentar, reforma agrária, alimentação saudável e agricultura urbana precisam ser regularmente abordados em sala de aula, pois dizem respeito à saúde e à vida de todos nós.

Foto: Ana Fediczko.

Com a prática, vamos acumulando aprendizados sobre as possibilidades das ações de ativismo do Bicicarreto. Trata-se simplesmente de pegar a estrada, chegar cedo a um sítio produtivo na área rural, encontrar pessoas queridas, conversar sobre novas articulações que reforcem nossa luta. Pedalar é (quase) sempre um ato cheio de sentidos políticos.

Bicicarreto #03

Domingo de sol e céu azul, perfeito para dar um pulinho na roça, sentir cheiro de terra e abastecer a casa. Caixas agrícolas montadas no bagageiro das bicicletas, fomos para a estrada, rumo à Comuna da Terra Irmã Alberta.

Aqui passa o trópico e passam também bicicletas que transportam alimentos. Foto: Dionizio Bueno.

Comuna cheia de visitantes, diversas atividades, cursos e ações acontecendo ao mesmo tempo por lá. Entre elas, uma vivência em que os participantes aplicam a agroecologia conforme é praticada nos assentamentos do MST.

Na casa da Nice, um cafezinho acompanhou uma rica conversa. Foto: Dionizio Bueno.

Desta vez, nossa ideia era passar o dia na Comuna, sem teto de horário para estar de volta e entregar a encomenda. Logo que chegamos, fomos conhecer o jardim e a horta da Jô, que planta de tudo. Ouvimos suas histórias passeando entre aqueles canteiros cheios de verduras.

A disposição dos canteiros evita encharcamento e perdas na época das chuvas. Foto: Dionizio Bueno.

Quantos tons de verde! Tanta saúde naquelas verduras, totalmente livres de pesticidas, herbicidas ou fertilizantes químicos.

As folhas do repolho também são comestíveis. Como desprezar tamanha abundância? Foto: Adriana Marmo.

Depois do almoço e de muita prosa, organizamos nossa lista de produtos, que até aquele momento ainda estavam na terra. Com exceção da mandioca, tudo que trouxemos foi colhido ali na hora: abacate, rúcula, agrião, alface, mostarda, espinafre, couve.

Um rápido banho nas raízes para tirar o excesso de terra. Foto: Dionizio Bueno.

Da horta diretamente para as bicicletas. Desta vez a viagem de volta foi à noite, com a temperatura bem agradável. Mesmo assim, é bom borrifar as verduras de vez em quando para que continuem viçosas.

Tudo pronto para pegar a estrada. Foto: Dionizio Bueno.

A cultura do consumo transforma alimentos em mercadorias. Nos assentamentos e nas pequenas propriedades, a agricultura familiar trabalha diariamente na resistência, garantindo a disponibilidade de alimentos saudáveis para quem quiser. Transportando um pouco por vez, seguimos na estrada mostrando que tudo isso está ao nosso alcance, sem depender de combustível e veículos caros e altamente poluidores.

veja como foi o Bicicarreto #01

Nossa primeira ação, em julho de 2018, foi documentada do começo ao fim por George Queiroz, um dos ciclistas participantes. O resultado é este vídeo, que está aqui para ser assistido e compartilhado.

Clique na imagem para ver o vídeo.

Na alegria do momento da chegada, a mensagem mais importante que queremos passar: mesmo em uma cidade enorme como esta, o transporte da produção agrícola em bicicletas é possível!

Bicicarreto #02

No último sábado, 3 de novembro, estivemos novamente na Comuna da Terra Irmã Alberta para transportar produtos da agricultura familiar de lá até São Paulo. Tivemos a alegria de acompanhar um pouco do curso de formação em agricultura agroecológica, que estava acontecendo ali desde a véspera.

Foto: Adriana Marmo

Foi possível também conversar um pouco com os participantes do curso, apresentando o Bicicarreto e mostrando as ideias gerais deste projeto, que vem amadurecendo bastante em seus princípios e objetivos.

Foto: Adriana Marmo

Trouxemos banana, cebolinha, alface, alface roxa, chuchu branco e jiló. Mesmo em um grupo reduzido, apenas quatro ciclistas, veio uma boa quantidade de cada um deles.

Foto: Dionizio Bueno

As verduras e temperos vieram em caixas agrícolas abertas para ficarem bem ventiladas. Os itens mais resistentes vieram dentro de mochilas e também em uma caixa de papelão. Durante o trajeto, é fundamental manter úmidas as verduras para preservar sua qualidade e evitar que murchem.

Foto: William Bezerra

Na volta, sem o forte vento contra que pegamos na ida e com o sol já baixando, a viagem foi bem suave tanto para os ciclistas quanto para os produtos. No início da noite, os produtos chegaram ao Armazém do Campo.

Foto: Dionizio Bueno

Nas caixas e prateleiras da loja, uma pequena etiqueta branca agora identifica quais são os alimentos que chegaram desde a roça até ali sem gastar uma única gota de combustível!

Bicicarreto #01

Havia muita gente nos esperando quando chegamos com o primeiro Bicicarreto.

As frutas e verduras chegaram lindas e perfeitas, trazidas por nós de bicicleta, diretamente do produtor. Saíram da roça a 30 quilômetros daqui, pegaram a rodovia, cruzaram o perímetro urbano desta imensa cidade e agora estão nas prateleiras do mercado. Vieram até aqui trazidas pela força ativa de pessoas.

foto: Dionizio Bueno

Na manhã de ontem, 7 de julho, o Bicicarreto esteve na Comuna da Terra Irmã Alberta, um assentamento do MST localizado na divisa de São Paulo com Cajamar. Lá, fomos recebidos pela Sra. Nice, que nos ofereceu um café quentinho e contou um pouco da situação atual do assentamento, enquanto carregávamos as bicicletas.

foto: Aline Os

A produção a ser transportada já estava toda reunida, nos esperando. Trouxemos aproximadamente 70kg de alimentos: abacate, laranja, alface, rúcula, almeirão, coentro, salsa e cebolinha.

Este primeiro Bicicarreto foi feito em 10 ciclistas. Para o transporte das verduras, usamos caixas agrícolas de plástico e de papelão, presas nos bagageiros das bicicletas. De tempos em tempos, regávamos as verduras para evitar que murchassem por conta do sol e da baixa umidade do ar. Funcionou! Os abacates foram distribuídos em alforjes e mochilas. As laranjas vieram todas dentro da saca, que foi acomodada no compartimento de carga de uma das bicicletas.

foto: Eduardo Magrão

O dia estava ótimo e a viagem foi muito tranquila: céu azul, temperatura amena, sol não tão forte. Na volta, o vento estava ao nosso favor, deixando o pedal num nível de esforço confortável para todos.

foto: Aline Os

Mas a maior alegria foi o momento da chegada ao Armazém do Campo, na tarde do sábado. Estavam todos ansiosos para ver as bicicletas carregadas de alimentos que vieram da roça até a Barra Funda sem consumir uma única gota de gasolina ou diesel.

No lugar de combustíveis poluentes, movimentamos energia humana, gerando alegria e confraternização! Foi uma experiência muito rica para todos nós.

foto: Aline Os

Transportar alimentos em bicicletas é uma ação política que reúne e integra diversos aspectos importantes do nosso ativismo: autonomia por meio da bicicleta, segurança alimentar, apoio à pequena propriedade e à reforma agrária, reapropriação das vias públicas pelos modais ativos, fortalecimento das comunidades de produtores e de ciclistas, contato com a terra.

O Bicicarreto tá na estrada!