Quando se buscam critérios racionais para escolher alimentos, é comum que consumidores consultem as informações nutricionais. Por muitos anos, a população tem sido orientada a fazer isso, tanto na educação formal quanto em veículos de comunicação que falam do assunto. O modelo da pirâmide alimentar, por exemplo, ensina a priorizar certos tipos de nutrientes e evitar outros.
Acontece que na época em que essas orientações começaram a ser difundidas, no início do século XX, era comum preparar as refeições com alimentos naturais. A partir dos anos 1980, com o rápido desenvolvimento da indústria de alimentos, uma enorme variedade de produtos alimentícios embalados começou a ser oferecida às pessoas, com o apoio de propaganda que apresenta esses produtos como práticos, saborosos e divertidos. Muitos desses produtos são ultraprocessados. O resultado é que hoje vivemos uma pandemia de doenças não transmissíveis relacionadas aos padrões alimentares adotados em muitas sociedades industrializadas.
Segundo o critério das informações nutricionais, os produtos ultraprocessados podem muitas vezes parecer interessantes. Por meio de aditivos químicos colocados nas composições, a indústria define as quantidades de nutrientes que vão aparecer nas embalagens, levando o consumidor a achar que está diante de um produto saudável.
Há pouco mais de dez anos, um grupo de pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo tem chamado a atenção para um outro fator que precisa ser levado em conta na hora de escolher os alimentos: o nível de processamento. Surge assim a classificação NOVA.
Essa classificação permite distinguir entre um alimento natural, preparado com ingredientes frescos e técnicas simples, e um produto comestível criado a partir de matérias primas industriais e aditivos químicos, ainda que este alegue ser saudável e apresente uma tabela nutricional que parece adequada do ponto de vista quantitativo.

Foto: Tânia Rêgo – EBC / Fotos Públicas
A proposta foi publicada pela primeira vez em 2009, em um artigo na revista científica Public Health Nutrition. Esse modelo inicial recebeu aperfeiçoamentos e ficou consolidado com quatro categorias, sendo amplamente adotado hoje como referência em publicações e orientações relacionadas à alimentação saudável. Apresentamos a seguir as descrições e exemplos dos quatro grupos de alimentos da classificação NOVA.
1 – Alimentos in natura ou minimamente processados
No primeiro grupo da NOVA estão as partes comestíveis de plantas, animais, fungos, algas e também a água. Como o nome diz, esta categoria tolera técnicas simples de processamento, como fervura, pasteurização, secagem, congelamento, torrefação, trituração, moagem, embalagem a vácuo, fermentação não alcoólica. Estes processos não adicionam sal, açúcar e gorduras aos alimentos, tendo a simples finalidade de facilitar ou diversificar o preparo, melhorar a estocagem ou estender a durabilidade dos produtos.
Exemplos de produtos do grupo 1: frutas, verduras, legumes, raízes frescas, ervas e especiarias; grãos como arroz, feijão, lentilha e milho; cogumelos, carnes, aves, peixes e frutos do mar; ovos e leite; farinha, sêmola ou flocos de trigo, milho, aveia ou mandioca; sementes oleaginosas (sem adição de sal ou açúcar); iogurte natural (sem adição de açúcar ou adoçantes); chá e café.
Esta categoria tolera também alguns aditivos, usados para preservar as propriedades originais dos alimentos (antioxidantes em legumes embalados a vácuo) ou repor nutrientes perdidos durante o processamento mínimo (ácido fólico em farinhas).
2 – Ingredientes culinários processados
Em um segundo grupo da classificação NOVA ficam produtos obtidos da natureza ou extraídos diretamente de alimentos in natura por processos como refino, prensagem, trituração, moagem e secagem por pulverização. São produtos usados nas preparações culinárias e raramente são consumidos sozinhos.
Alguns exemplos: sal, açúcar, mel, melaço, amidos, óleos vegetais, azeite, vinagre, manteiga, banha. Estes produtos podem conter aditivos como antioxidantes, anti-umectantes e conservantes, de forma a preservar suas propriedades originais e evitar a proliferação de microorganismos.
3 – Alimentos processados
Neste terceiro grupo estão os alimentos obtidos pela adição de substâncias do grupo 2 aos alimentos do grupo 1. Os processos aqui incluem diversos métodos de cozimento, embalagem, preservação e fermentação, com a finalidade de modificar as qualidades sensoriais dos alimentos e aumentar sua durabilidade.
No grupo 3 estão nozes e sementes salgadas ou açucaradas; queijos e pães frescos não embalados industrialmente; frutas em calda e geleias; carnes salgadas, curadas ou defumadas; peixes enlatados; legumes enlatados ou engarrafados. Entre as bebidas, inclui aquelas produzidas pela fermentação de alimentos do grupo 1, como vinho, cerveja e cidra.
4 – Alimentos ultraprocessados
E no quarto grupo estão produtos preparados a partir de vários ingredientes, muitos deles de uso exclusivamente industrial, sendo que poucos ou mesmo nenhum de seus componentes são alimentos do grupo 1. Alguns ingredientes são extraídos diretamente de alimentos, como lactose, soro de leite, glúten e caseína. Outros são obtidos a partir de um processamento posterior de constituintes de alimentos: óleos hidrogenados, xarope de milho rico em frutose, proteínas hidrolisadas, proteína isolada de soja, maltodextrina, açúcar invertido.
Produtos deste grupo usam aditivos que buscam imitar as qualidades sensoriais (sabor, cheiro, cor, etc.) de alimentos do grupo 1 ou têm a finalidade de disfarçar certas qualidades sensoriais indesejáveis dessas formulações, resultando em algo que as pessoas consigam consumir. Exemplos de aditivos encontrados apenas em ultraprocessados: pigmentos e corantes, estabilizadores de cor, aromatizantes, realçadores de sabor, adoçantes químicos, emulsificantes, sequestrantes, umectantes, espessantes, antiaglomerantes, agentes antiespuma. A fabricação dos produtos do grupo 4 envolve diversas técnicas de processamento, algumas delas sem equivalentes caseiros e possíveis apenas com equipamentos industriais.
Ultraprocessados estão disponíveis trivialmente nos mercados. A lista é grande: pães industrializados; bolachas ou salgadinhos “de pacote”; cereais matinais; chocolates e sorvetes; barras e bebidas energéticas; margarinas e pastas para passar no pão; salsichas, hambúrgueres e outros produtos de carne reconstituída; nuggets de aves e peixes; extratos de carne e frango; sopas e massas instantâneas; refeições prontas para aquecer; produtos “para emagrecimento”, como certos preparados em pó oferecidos como substitutos de refeições; leites de transição, fórmulas infantis e outros produtos para bebês; bebidas carbonatadas; bebidas ou iogurtes com sabor de fruta; achocolatados e bebidas lácteas ou a base de soja; misturas para bolo.
Estes alimentos apresentam algumas características marcantes: têm sabor acentuado, de forma a aumentar o prazer da degustação; suas embalagens são elaboradas para chamar a atenção do consumidor e favorecer a compra por impulso, sobretudo quando está com fome; são apoiados por campanhas publicitárias agressivas, que influenciam as decisões de compra atuando por fora do campo racional. Além de tudo isso, é preciso também lembrar que muitos desses fabricantes pertencem a corporações transnacionais, que obtêm lucros enormes com sua produção e comercialização.
Por suas características, os produtos desta categoria induzem hábitos de alimentação bem pouco saudáveis, como ficar beliscando entre as refeições ou mesmo substituí-las inteiramente. Nas condições da vida urbana de nosso tempo, esses comestíveis acabam parecendo opções interessantes, pois as pessoas podem consumi-los enquanto trabalham, se locomovem ou assistem alguma coisa, seja em telas grandes ou pequenas. Comer passa a ser um gesto mecânico, meramente funcional, muitas vezes em resposta automática a estímulos externos, como um anúncio ou alguém comendo perto. Com isso, além de serem pouco nutritivos e fazerem mal, esses produtos criam ou reforçam o hábito de comer solitariamente. O caráter de sociabilidade do momento das refeições, componente importante da saúde mental das pessoas, acaba completamente abandonado.
A partir das definições propostas pela classificação NOVA, o grau de processamento dos alimentos passa a ser uma importante referência na escolha das formas de se nutrir. O Guia Alimentar para a População Brasileira orienta que se dê preferência a alimentos in natura, insistindo para que as pessoas evitem ou, se possível, eliminem os produtos ultraprocessados de suas dietas.
Essa classificação permite também observar padrões de alimentação em populações, usando critérios qualitativos. Exemplo disso é o Atlas das situações alimentares no Brasil, que mostra, ao longo dos últimos anos, uma preocupante diminuição dos alimentos in natura e o aumento dos ultraprocessados no consumo das famílias.
A classificação NOVA tem servido como base para diversos estudos científicos no Brasil e em países como Chile, Canadá, EUA, Reino Unido, Nova Zelândia e Suécia, correlacionando o consumo de ultraprocessados ao aumento de diversas doenças não transmissíveis. O mesmo grupo de cientistas que propôs a NOVA lançou recentemente no Brasil um estudo que compila grande quantidade de pesquisas acadêmicas demonstrando os males que os ultraprocessados causam à saúde humana e ao meio ambiente.
Quando avaliamos os alimentos conforme seu grau de processamento, fica mais fácil distinguir entre comida de verdade e esses comestíveis que a indústria nos oferece, produtos que muitas vezes nem merecem ser chamados de alimentos. Comer esse tipo de produto, seja de forma esporádica ou, muito pior, diariamente, é um hábito artificial, que foi naturalizado por meio de propaganda constante.
Com a percepção voltada ao paladar e ao tipo de sensação corporal que os alimentos trazem, podemos recuperar nossa preferência natural pela comida de verdade. Só ela pode trazer a energia vital que nutre e fortalece nossos corpos. Alimentar-se é, sim, um ato político e, antes disso, é uma prática diária de saúde.