obesidade supera subnutrição

Quando se fala em crianças desnutridas, a imagem que vem à mente é de uma criança magra, esquálida, só pele e osso. Com o avanço das estratégias mercadológicas da indústria de ultraprocessados, essa imagem precisa ser atualizada. Agora, a imagem da desnutrição é uma criança obesa.

De acordo com o relatório Feeding Profit – how food environments are failing children (Alimentando o Lucro – como os ambientes alimentares estão falhando com as crianças), publicado pela UNICEF em setembro, o número de crianças obesas no mundo já supera o de crianças subnutridas. O documento trabalha com os dados consolidados mais recentes disponíveis, que são de 2024 para uma das faixas etárias e de 2022 para as outras.

O relatório mostra que a prevalência global de obesidade entre crianças e adolescentes dos 5 aos 19 anos em 2022 foi de 9,4% e apresenta padrão de aumento. O índice supera o de prevalência de subpeso nessa mesma faixa etária, que vem caindo nos últimos anos e em 2022 foi de 9,2%.

Outro dado preocupante é que, entre os casos de sobrepeso, a obesidade vem ganhando participação. No ano 2000, 30% das crianças e adolescentes entre 5 e 19 anos com sobrepeso eram obesas. Em 2022, esse índice já estava em 42%, ou seja, 163 milhões de crianças e adolescentes obesos no mundo. Além de ser mais difícil de reverter, a obesidade, que é a forma severa do sobrepeso, representa um risco maior de problemas graves de saúde.

De acordo com o relatório, muitas crianças vivem inseridas em ambientes alimentares insalubres, onde ficam expostas às práticas mercadológicas agressivas da indústria de ultraprocessados. Esses produtos comestíveis se proliferam nas lojas de varejo e conseguem se infiltrar em escolas. As crianças vivem cercadas.

Imagem: divulgação

Em alguns países observou-se que a presença de produtos açucarados em locais frequentados por crianças é maior nos bairros economicamente desfavorecidos do que em áreas mais ricas, e o Brasil é mencionado como exemplo de país onde isso acontece. Dados de outros estudos citados mostram a agressividade da indústria de ultraprocessados em suas práticas mercadológicas, com destaque para a propaganda em meios digitais. Crianças e adolescentes relatam sentimentos de tentação, pressão e impotência diante da onipresença desses produtos e de sua publicidade.

O relatório chama a atenção para as práticas antiéticas dessas corporações, que se aproveitam de desastres humanitários e situações emergenciais de saúde pública, como a recente pandemia, para expandir seu alcance e pressionar pelo enfraquecimento das políticas de proteção dos consumidores.

Diante da gravidade dos fatos, o relatório apresenta propostas para conter o avanço desse quadro e garantir o direito das crianças à nutrição adequada. Entre as sugestões: um código internacional para disciplinar a comercialização de substitutos do leite materno e promover a amamentação natural; políticas abrangentes para aumentar a disponibilidade de alimentos saudáveis produzidos localmente; regras de cumprimento obrigatório para transformar os ambientes alimentares de crianças e adolescentes, incluindo restrições nas escolas; medidas robustas capazes de proteger as políticas públicas contra a interferência da indústria de ultraprocessados; sistemas de vigilância padronizados, nacionais e globais, para monitorar os ambientes alimentares, as dietas e os dados referentes à saúde alimentar de crianças e adolescentes.

O documento aponta o papel dos diversos atores da sociedade no combate a isso que podemos considerar uma pandemia fabricada de desnutrição. Destaca-se aqui o nosso papel, como membros da sociedade civil, em promover o amplo debate sobre os danos causados pelos produtos ultraprocessados, construindo uma demanda pública por políticas que melhorem os ambientes alimentares, para todos nós.

comer mal, comer caro

“Comer bem custa mais caro do que comer mal”.

O que dá sentido a essa afirmação é o fato de vivermos em uma sociedade de consumo, que tem como um de seus dogmas a ideia de que maior qualidade implica maior preço. Em muitos casos essa afirmação é, de fato, verdadeira.

Um levantamento apresentado no Atlas de los Sistemas Alimentarios del Cono Sur (lançado em 2022 pela Fundación Rosa Luxemburgo de Buenos Aires e prestes a ter uma edição brasileira) traz dados sobre valor da alimentação nos cinco países do Cone Sul.

Comparação dos valores de refeições precárias e saudáveis nos países do Cone Sul; percentuais das populações sem acesso a dietas saudáveis nesses países. Imagem: Atlas de los Sistemas Alimentarios del Cono Sur. CLIQUE PARA AMPLIAR

De acordo com essas informações, uma dieta saudável no Brasil é 3,9 vezes mais cara do que uma dieta precária. Interessante observar que, dos cinco países, o Brasil é aquele com a menor relação entre a dieta saudável e a dieta precária. Essa relação é de 5,3 vezes na Argentina, 5 vezes no Chile e 4,3 vezes tanto no Paraguai como no Uruguai.

O estudo nos deixa curiosos para saber o que se entende, nessa comparação, por “dieta de mínimas calorías” e por “dieta saludable”, pois infelizmente não traz detalhes sobre os tipos de refeição cujos custos estão sendo comparados. Diz no subtítulo do infográfico que a dieta mais barata na comparação é baseada em ultraprocessados. Sabe-se que esse tipo de produto não costuma ser baixo em calorias, e isso levanta a dúvida sobre o que está sendo considerado na dieta menos saudável.

Algo que chama atenção é o fato de os valores das dietas nos cinco países, apresentados em dólares, serem próximos. Isso mostra como, apesar de esses cinco povos viverem realidades sociais e políticas bastante específicas, estão todos sujeitos às condições de um mesmo sistema alimentar. É ele que determina os valores de troca dos alimentos e a exploração que acontece em ambas as pontas, produtores e consumidores.

Podemos também observar nos infográficos a proporção de pessoas, em cada país, que não têm acesso a dietas saudáveis. O país onde essa proporção é maior, o Paraguai, é também aquele onde as dietas, tanto a precária como a saudável, são as mais caras entre os cinco comparados, e isso provavelmente não é um acaso.

Os dados são um importante alerta sobre as condições impostas às populações por esse sistema alimentar predatório e insalubre. Escassez e fome são consequências naturais de um sistema no qual comida é mercadoria.

Porém, é preciso observar que o dogma maior qualidade implica maior preço nem sempre se comprova, pelo menos quando os ultraprocessados estão envolvidos na comparação. Além de serem a opção de pior qualidade, os ultraprocessados podem também ser mais caros. Isso se confirma não apenas em exemplos extremos e aberrantes, como no caso nada raro em que um quilo de salgadinho industrializado, com valor nutritivo praticamente nulo, custa mais caro que um quilo de contrafilé.

Pense em uma refeição pronta encontrada em supermercados, uma sobremesa industrializada, ou mesmo um simples lanche embalado de fábrica. Esses produtos não são mais baratos que as versões preparadas em casa com ingredientes in natura ou minimamente processados. Seu grande apelo é o fato de estarem já prontos ou quase prontos para o consumo.

É importante o consumidor perceber isto: ao oferecerem praticidade e recorrerem agressivamente a táticas que atuam de forma irracional na decisão de compra, como propaganda e embalagens altamente atrativas, eles não precisam ser mais baratos para que sejam escolhidos. Um produto que necessitou de várias etapas de processamento, transporte e estocagem, aditivos e condições especiais de conservação, além dos custos de embalagem e publicidade, não tem como ser mais barato do que os ingredientes necessários mais a energia e o gás usados para preparar um equivalente caseiro.

Há outro fato interessante sobre valor dos ultraprocessados. Pelo menos no Brasil, os dados mostram que os ultraprocessados estão mais presentes entre as famílias mais abastadas. Segundo o Atlas das situações alimentares no Brasil, publicado em 2021, o consumo de ultraprocessados é maior entre os mais ricos, enquanto as famílias de menor poder aquisitivo têm proporcionalmente mais alimentos in natura em sua alimentação.

O consumo de ultraprocessados existe, sim, nos grupos economicamente menos favorecidos, mas, em muitos casos, essa opção parece ser muito mais uma questão cultural ou de falta de tempo – o qual é sugado até a última gota por este sistema produtivo que transforma pessoas em máquinas – do que uma escolha racional, baseada em fatores objetivos, como o preço.

A ideia de que produtos orgânicos sempre custam mais caro também é problemática. Uma coisa é comparar o preço de verduras orgânicas e convencionais em supermercados, especialmente aqueles caros, frequentados por gente feliz. Independentemente dos custos, os orgânicos nesses lugares serão sempre precificados de forma a serem mais caros que os convencionais, aplicando o dogma acima, de forma a serem percebidos pelos consumidores como melhores. Outra coisa é considerar os preços de orgânicos em redes de consumo alternativas, onde é possível encontrá-los a preços equivalentes aos de convencionais.

Tecnologias como os sistemas agroflorestais, a biodinâmica e a agricultura sintrópica criam ambientes produtivos tão equilibrados e fortalecidos que dispensam defensivos agrícolas e fertilizantes químicos, eliminando importantes custos de produção.

Ao olhar para as relações entre qualidade e preço na alimentação, é preciso ir além de simplesmente constatar que um pacote de miojo é, de fato, mais barato que uma refeição feita em casa ou um PF no restaurante.

Se aceitamos como natural e repetimos passivamente a ideia de que maior qualidade implica maior preço, trabalhamos para reforçar um dos dogmas centrais desse sistema que atribui aos alimentos um valor de troca desvinculado da realidade objetiva. Pior que isso, deixamos de enxergar alternativas de alimentação que estão ao nosso alcance e podem ser ampliadas para que beneficiem cada vez mais pessoas.

classificação NOVA

Quando se buscam critérios racionais para escolher alimentos, é comum que consumidores consultem as informações nutricionais. Por muitos anos, a população tem sido orientada a fazer isso, tanto na educação formal quanto em veículos de comunicação que falam do assunto. O modelo da pirâmide alimentar, por exemplo, ensina a priorizar certos tipos de nutrientes e evitar outros.

Acontece que na época em que essas orientações começaram a ser difundidas, no início do século XX, era comum preparar as refeições com alimentos naturais. A partir dos anos 1980, com o rápido desenvolvimento da indústria de alimentos, uma enorme variedade de produtos alimentícios embalados começou a ser oferecida às pessoas, com o apoio de propaganda que apresenta esses produtos como práticos, saborosos e divertidos. Muitos desses produtos são ultraprocessados. O resultado é que hoje vivemos uma pandemia de doenças não transmissíveis relacionadas aos padrões alimentares adotados em muitas sociedades industrializadas.

Segundo o critério das informações nutricionais, os produtos ultraprocessados podem muitas vezes parecer interessantes. Por meio de aditivos químicos colocados nas composições, a indústria define as quantidades de nutrientes que vão aparecer nas embalagens, levando o consumidor a achar que está diante de um produto saudável.

Há pouco mais de dez anos, um grupo de pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo tem chamado a atenção para um outro fator que precisa ser levado em conta na hora de escolher os alimentos: o nível de processamento. Surge assim a classificação NOVA.

Essa classificação permite distinguir entre um alimento natural, preparado com ingredientes frescos e técnicas simples, e um produto comestível criado a partir de matérias primas industriais e aditivos químicos, ainda que este alegue ser saudável e apresente uma tabela nutricional que parece adequada do ponto de vista quantitativo.

Foto: Tânia Rêgo – EBC / Fotos Públicas

A proposta foi publicada pela primeira vez em 2009, em um artigo na revista científica Public Health Nutrition. Esse modelo inicial recebeu aperfeiçoamentos e ficou consolidado com quatro categorias, sendo amplamente adotado hoje como referência em publicações e orientações relacionadas à alimentação saudável. Apresentamos a seguir as descrições e exemplos dos quatro grupos de alimentos da classificação NOVA.

1 – Alimentos in natura ou minimamente processados

No primeiro grupo da NOVA estão as partes comestíveis de plantas, animais, fungos, algas e também a água. Como o nome diz, esta categoria tolera técnicas simples de processamento, como fervura, pasteurização, secagem, congelamento, torrefação, trituração, moagem, embalagem a vácuo, fermentação não alcoólica. Estes processos não adicionam sal, açúcar e gorduras aos alimentos, tendo a simples finalidade de facilitar ou diversificar o preparo, melhorar a estocagem ou estender a durabilidade dos produtos.

Exemplos de produtos do grupo 1: frutas, verduras, legumes, raízes frescas, ervas e especiarias; grãos como arroz, feijão, lentilha e milho; cogumelos, carnes, aves, peixes e frutos do mar; ovos e leite; farinha, sêmola ou flocos de trigo, milho, aveia ou mandioca; sementes oleaginosas (sem adição de sal ou açúcar); iogurte natural (sem adição de açúcar ou adoçantes); chá e café.

Esta categoria tolera também alguns aditivos, usados para preservar as propriedades originais dos alimentos (antioxidantes em legumes embalados a vácuo) ou repor nutrientes perdidos durante o processamento mínimo (ácido fólico em farinhas).

2 – Ingredientes culinários processados

Em um segundo grupo da classificação NOVA ficam produtos obtidos da natureza ou extraídos diretamente de alimentos in natura por processos como refino, prensagem, trituração, moagem e secagem por pulverização. São produtos usados nas preparações culinárias e raramente são consumidos sozinhos.

Alguns exemplos: sal, açúcar, mel, melaço, amidos, óleos vegetais, azeite, vinagre, manteiga, banha. Estes produtos podem conter aditivos como antioxidantes, anti-umectantes e conservantes, de forma a preservar suas propriedades originais e evitar a proliferação de microorganismos.

3 – Alimentos processados

Neste terceiro grupo estão os alimentos obtidos pela adição de substâncias do grupo 2 aos alimentos do grupo 1. Os processos aqui incluem diversos métodos de cozimento, embalagem, preservação e fermentação, com a finalidade de modificar as qualidades sensoriais dos alimentos e aumentar sua durabilidade.

No grupo 3 estão nozes e sementes salgadas ou açucaradas; queijos e pães frescos não embalados industrialmente; frutas em calda e geleias; carnes salgadas, curadas ou defumadas; peixes enlatados; legumes enlatados ou engarrafados. Entre as bebidas, inclui aquelas produzidas pela fermentação de alimentos do grupo 1, como vinho, cerveja e cidra.

4 – Alimentos ultraprocessados

E no quarto grupo estão produtos preparados a partir de vários ingredientes, muitos deles de uso exclusivamente industrial, sendo que poucos ou mesmo nenhum de seus componentes são alimentos do grupo 1. Alguns ingredientes são extraídos diretamente de alimentos, como lactose, soro de leite, glúten e caseína. Outros são obtidos a partir de um processamento posterior de constituintes de alimentos: óleos hidrogenados, xarope de milho rico em frutose, proteínas hidrolisadas, proteína isolada de soja, maltodextrina, açúcar invertido.

Produtos deste grupo usam aditivos que buscam imitar as qualidades sensoriais (sabor, cheiro, cor, etc.) de alimentos do grupo 1 ou têm a finalidade de disfarçar certas qualidades sensoriais indesejáveis dessas formulações, resultando em algo que as pessoas consigam consumir. Exemplos de aditivos encontrados apenas em ultraprocessados: pigmentos e corantes, estabilizadores de cor, aromatizantes, realçadores de sabor, adoçantes químicos, emulsificantes, sequestrantes, umectantes, espessantes, antiaglomerantes, agentes antiespuma. A fabricação dos produtos do grupo 4 envolve diversas técnicas de processamento, algumas delas sem equivalentes caseiros e possíveis apenas com equipamentos industriais.

Ultraprocessados estão disponíveis trivialmente nos mercados. A lista é grande: pães industrializados; bolachas ou salgadinhos “de pacote”; cereais matinais; chocolates e sorvetes; barras e bebidas energéticas; margarinas e pastas para passar no pão; salsichas, hambúrgueres e outros produtos de carne reconstituída; nuggets de aves e peixes; extratos de carne e frango; sopas e massas instantâneas; refeições prontas para aquecer; produtos “para emagrecimento”, como certos preparados em pó oferecidos como substitutos de refeições; leites de transição, fórmulas infantis e outros produtos para bebês; bebidas carbonatadas; bebidas ou iogurtes com sabor de fruta; achocolatados e bebidas lácteas ou a base de soja; misturas para bolo.

Estes alimentos apresentam algumas características marcantes: têm sabor acentuado, de forma a aumentar o prazer da degustação; suas embalagens são elaboradas para chamar a atenção do consumidor e favorecer a compra por impulso, sobretudo quando está com fome; são apoiados por campanhas publicitárias agressivas, que influenciam as decisões de compra atuando por fora do campo racional. Além de tudo isso, é preciso também lembrar que muitos desses fabricantes pertencem a corporações transnacionais, que obtêm lucros enormes com sua produção e comercialização.

Por suas características, os produtos desta categoria induzem hábitos de alimentação bem pouco saudáveis, como ficar beliscando entre as refeições ou mesmo substituí-las inteiramente. Nas condições da vida urbana de nosso tempo, esses comestíveis acabam parecendo opções interessantes, pois as pessoas podem consumi-los enquanto trabalham, se locomovem ou assistem alguma coisa, seja em telas grandes ou pequenas. Comer passa a ser um gesto mecânico, meramente funcional, muitas vezes em resposta automática a estímulos externos, como um anúncio ou alguém comendo perto. Com isso, além de serem pouco nutritivos e fazerem mal, esses produtos criam ou reforçam o hábito de comer solitariamente. O caráter de sociabilidade do momento das refeições, componente importante da saúde mental das pessoas, acaba completamente abandonado.

A partir das definições propostas pela classificação NOVA, o grau de processamento dos alimentos passa a ser uma importante referência na escolha das formas de se nutrir. O Guia Alimentar para a População Brasileira orienta que se dê preferência a alimentos in natura, insistindo para que as pessoas evitem ou, se possível, eliminem os produtos ultraprocessados de suas dietas.

Essa classificação permite também observar padrões de alimentação em populações, usando critérios qualitativos. Exemplo disso é o Atlas das situações alimentares no Brasil, que mostra, ao longo dos últimos anos, uma preocupante diminuição dos alimentos in natura e o aumento dos ultraprocessados no consumo das famílias.

A classificação NOVA tem servido como base para diversos estudos científicos no Brasil e em países como Chile, Canadá, EUA, Reino Unido, Nova Zelândia e Suécia, correlacionando o consumo de ultraprocessados ao aumento de diversas doenças não transmissíveis. O mesmo grupo de cientistas que propôs a NOVA lançou recentemente no Brasil um estudo que compila grande quantidade de pesquisas acadêmicas demonstrando os males que os ultraprocessados causam à saúde humana e ao meio ambiente.

Quando avaliamos os alimentos conforme seu grau de processamento, fica mais fácil distinguir entre comida de verdade e esses comestíveis que a indústria nos oferece, produtos que muitas vezes nem merecem ser chamados de alimentos. Comer esse tipo de produto, seja de forma esporádica ou, muito pior, diariamente, é um hábito artificial, que foi naturalizado por meio de propaganda constante.

Com a percepção voltada ao paladar e ao tipo de sensação corporal que os alimentos trazem, podemos recuperar nossa preferência natural pela comida de verdade. Só ela pode trazer a energia vital que nutre e fortalece nossos corpos. Alimentar-se é, sim, um ato político e, antes disso, é uma prática diária de saúde.

pnae

Construído ao longo de décadas através de sucessivas melhorias, como resultado de muita mobilização social, o Programa Nacional de Alimentação Escolar é considerado um dos maiores programas no mundo com essa finalidade e, segundo sua página oficial, é o único com atendimento universalizado.

Começou a ser estruturado na década de 1950, na forma de uma campanha de merenda escolar. Inicialmente dependeu de convênios com organismos internacionais, tendo ainda o enfoque do atendimento a populações carentes. A Constituição de 1988 assegurou o direito à alimentação escolar a todos os alunos do ensino fundamental. Em 1994 sua operação (planejamento de cardápios, aquisição dos gêneros, distribuição) foi descentralizada, por meio do envolvimento das secretarias estaduais de educação e de convênios com os municípios.

Em 2001 a legislação introduziu o respeito aos hábitos alimentares regionais e à vocação agrícola de cada município. Além disso, passou a exigir que 70% dos recursos sejam aplicados em produtos básicos. Dois importantes passos em direção à qualidade nutricional e ao respeito às culturas alimentares locais. Em 2009, foi estendido para toda a rede pública de educação básica e, em 2013, para os alunos de EJA (educação de jovens e adultos), AEE (atendimento educacional especializado) e escolas de tempo integral.

A legislação de 2009 é considerada um marco importante na história do PNAE por tornar obrigatório que no mínimo 30% dos recursos repassados sejam utilizados na “aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas” (Lei nº 11.947/2009, Art. 14º). Nesses casos, fica dispensado o processo licitatório, e a aquisição passa a ser encaminhada por meio de chamadas públicas.

Os efeitos desse envolvimento da agricultura familiar podem ser sentidos de diversas formas. Nos refeitórios das escolas, houve sensível melhoria no cardápio das refeições. O feijão enlatado que era servido em muitas escolas, proveniente de locais indefinidos de qualquer canto do planeta e cheio de conservantes químicos, foi substituído por feijão fresco, produzido em pequenas propriedades na própria região. As crianças passaram a receber frutas locais no lugar de biscoitos industrializados. Um simples artigo da lei pode provocar a substituição de produtos ultraprocessados por alimentos in natura na alimentação de milhões de crianças.

Foto: divulgação

Fora da escola as mudanças também são significativas. As compras municipais garantem renda para agricultores e agricultoras locais, que passam a viver em melhores condições e a consumir mais no comércio da cidade, fazendo girar a economia, gerando distribuição de riqueza e aumentando a arrecadação de impostos do município. A justiça social se propaga por toda a cadeia econômica na forma de prosperidade para todos.

A oportunidade dada aos pequenos agricultores pelo programa também estimula o associativismo, a formação de cooperativas e a organização da classe produtora sendo, portanto, um fator de fortalecimento político da agricultura familiar. Quando as escolas foram fechadas em função da pandemia, o programa manteve as compras municipais desses pequenos produtores, garantindo o escoamento da produção. As famílias dos alunos podiam retirar os alimentos nas escolas e, em alguns casos de maior vulnerabilidade, podiam recebê-los em casa.

A concretização desse potencial, no entanto, depende em grande medida das entidades municipais e estaduais que fazem a gestão dos recursos. São elas que decidem sobre quais produtos adquirir, e de quem. Talvez pela própria formulação do texto da lei, ela infelizmente não consegue “garantir”, como muito se diz em matérias sobre o assunto, o percentual mínimo de 30% em compras da agricultura familiar.

O próprio artigo 14 da referida lei já prevê as condições nas quais esse percentual pode ser flexibilizado, oferecendo possibilidades de justificativas que são difíceis de serem verificadas pelos mecanismos de controle social. A página de perguntas frequentes sobre o PNAE informa que, no caso do não cumprimento dos 30%, basta às entidades executoras justificarem posteriormente as razões para isso. De tempos em tempos circulam notícias sobre o descumprimento da exigência por parte das entidades municipais e estaduais (exemplos aqui, aqui e aqui).

Dados sobre as compras da agricultura familiar disponíveis na própria página do governo federal apontam para um quadro pouco animador no que se refere ao cumprimento dos 30% estabelecidos pela lei. As informações mais recentes disponíveis nessa página se referem a 2017 e, ainda que já um pouco antigas, dão uma ideia da situação.

Dos 640 municípios paulistas listados na base de dados disponível, apenas 226 (35,3%) empregaram 30% ou mais da verba do PNAE na compra de produtos da agricultura familiar. No caso de 280 prefeituras (43,8%), o percentual de compras da agricultura familiar fica abaixo do exigido por lei. Há 123 municípios em que o dado referente a compras da agricultura familiar está marcado com um traço, sem esclarecer se isso corresponde a um zero ou a simples ausência de informações. Portanto, o percentual de prefeituras que não atingiram os 30% é provavelmente ainda maior, podendo chegar a 63% caso esse traço seja mesmo um zero em todos os casos.

No município de São Paulo, no ano de 2017, o percentual da verba do PNAE investido em compras da agricultura familiar foi, segundo essa base de dados, de apenas 7,8%, muito distante do mínimo exigido pela legislação.

Ao comprarem produtos em varejistas ou mesmo em grandes distribuidoras, as prefeituras pagam mais caro, pois estão optando por alimentar uma cadeia de distribuição cheia de intermediários. Além disso, estão quase sempre jogando recursos para fora do município. Ao escolherem a agricultura familiar, a verba vai diretamente para os pequenos produtores, promovendo justiça econômica e social. O que está em jogo nesta decisão do gestor público é a escolha entre fortalecer trabalhadores e trabalhadoras da região ou fortalecer ainda mais o grande capital.

Um agricultor familiar que deseje vender sua produção para o PNAE deve, em primeiro lugar, emitir a sua DAP (Declaração de Aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), que é o documento que habilita a unidade produtiva para participar do programa. Precisa então ficar atento, junto à prefeitura de seu município, para as chamadas públicas para aquisição de alimentos. Deverá entregar um projeto de venda de gêneros alimentícios para alimentação escolar e demais documentos exigidos por aquela chamada. Uma vez aprovado o projeto, será elaborado um contrato de aquisição entre a prefeitura e a unidade produtiva.

Ao incluir a agricultura familiar diretamente nas compras públicas, o PNAE cria a oportunidade de reconfigurar os sistemas alimentares a partir das relações locais, com impactos imediatos na saúde da população estudante, nas condições de vida dos pequenos produtores e na economia local. Sendo a prefeitura municipal o único intermediário entre produtor e consumidor, forma-se um circuito curto que leva os alimentos da horta ao refeitório escolar sem dispersão de recursos e com grande qualidade nutricional.

Sua efetividade, porém, depende de constante vigilância e pressão por parte da sociedade civil, que pode fazer isso por meio dos Conselhos de Alimentação Escolar ou através de incidência direta junto a prefeituras, secretarias de educação e câmaras de vereadores. Milhares de municípios brasileiros respeitam a lei, investindo 30% ou mais (em alguns casos, bem mais) em compras diretas da agricultura familiar. Mas há milhares de municípios que ainda estão abaixo ou bem abaixo dessa exigência legal. Existe aqui um imenso campo de oportunidades para o fortalecimento da agricultura familiar.

aquisição de alimentos

Uma forma de se caracterizar as situações alimentares existentes no país é através dos dados sobre a aquisição de alimentos. Aqui temos em vista a alimentação que as pessoas fazem em seus domicílios, desconsiderando aquilo que elas comem fora de casa. Por outro lado, neste tipo de pesquisa o IBGE computa as informações tanto daquilo que as famílias compram (aquisições monetárias) quanto dos alimentos obtidos de outras formas (aquisições não monetárias), como através de produção própria, coleta em hortas, pomares e canteiros, pesca, caça e doações recebidas.

O Atlas das situações alimentares no Brasil: a disponibilidade domiciliar de alimentos e a fome no Brasil contemporâneo, publicado em 2021, traz informações interessantes referentes à aquisição de alimentos pelos brasileiros. O estudo utilizou dados de diversas edições da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), elaboradas pelo IBGE. O Atlas apresenta os dados de maneira um tanto restrita, omitindo informações que poderiam ser do interesse de alguns leitores, mas ainda assim permite observações interessantes.

Foram computados os dados de aquisição de alimentos per capita em quilogramas, organizando em grupos alimentares os itens adquiridos pelas famílias. Porém apenas alguns dados relativos são apresentados. A aquisição alimentar da classe de maior rendimento (mais de 15 salários-mínimos) é, como se poderia supor, acima da média geral em vários grupos alimentares. A aquisição de frutas dessa classe, por exemplo, é 124,9% superior à média geral. Essa classe também se destaca em outros grupos alimentares: hortaliças folhosas e florais (114,3% acima da média), hortaliças frutosas, tuberosas e outras (83,6% acima da média) e laticínios (74,5% acima da média geral).

Diferença na aquisição alimentar per capita anual em relação à média nacional (2017-2018). Dados: IBGE. Adaptado de Atlas das situações alimentares no Brasil. CLIQUE PARA AMPLIAR

Porém o grupo alimentar em que há o maior destaque dessa classe econômica são os alimentos preparados e misturas industriais, no qual o consumo dessa classe é 187% acima da média geral. Nesse grupo encontram-se produtos como alimentos congelados, refeições prontas, frango empanado, batata frita, salgadinhos e misturas para bolo. São produtos de maior valor agregado (ainda que alguns deles sejam de baixíssimo valor nutricional), o que pode explicar o fato de aparecerem com destaque nessa classe econômica.

A classe de menor rendimento (até 2 salários-mínimos) se destaca da média geral na aquisição de alguns grupos alimentares: farinhas e féculas (17,4% acima da média), feijão (12,1% acima da média) e arroz (11,9% acima da média).

In natura e ultraprocessados

O estudo também apresenta uma avaliação da disponibilidade domiciliar de alimentos com base em uma classificação diferente proposta pelo IBGE, a qual agrupa os produtos alimentares com base na extensão de seu processamento industrial. Essa classificação resulta em quatro grupos alimentares: alimentos in natura (ou minimamente processados), ingredientes culinários (processados), alimentos processados e alimentos ultraprocessados.

As regiões sul e sudeste são aquelas onde a aquisição de ultraprocessados é maior entre as famílias (22% e 21,4%, respectivamente). É nessas duas regiões também que se observam os menores percentuais na aquisição de alimentos in natura: 47,3% na região sul e 44,9% na região sudeste. A região norte é a que apresenta, ao mesmo tempo, a menor participação de alimentos ultraprocessados (11,4%) e a maior participação de alimentos in natura (58,2%) na aquisição de alimentos pelas famílias.

Participação dos grupos de alimentos no total de calorias a partir da aquisição domiciliar (2017-2018). Dados: IBGE. Adaptado de Atlas das situações alimentares no Brasil. CLIQUE PARA AMPLIAR

A situação do domicílio (urbano ou rural) também influencia na participação dos ultraprocessados. Nos domicílios urbanos, a aquisição de ultraprocessados representa 19,8% da aquisição das famílias, contra apenas 11,3% nos domicílios rurais. Inversamente, os alimentos in natura representam 47,7% da aquisição alimentar dos domicílios urbanos, número que sobe para 57,9% nos domicílios rurais.

A aquisição de alimentos in natura e ultraprocessados varia de maneira bem marcada conforme a renda. Entre os 20% mais pobres, os alimentos in natura representam 55,6% da aquisição dos domicílios e os ultraprocessados representam 12,5%. Ao longo dos outros grupos de renda, os alimentos in natura vão diminuindo e os ultraprocessados vão aumentando com regularidade, até chegarmos aos 20% mais ricos, onde a participação dos alimentos in natura cai para 44,2% e a dos alimentos ultraprocessados sobe para 24,7%, praticamente um quarto da aquisição de produtos alimentícios nesses domicílios.

Percebe-se como existe aqui uma questão de cultura alimentar. Os 20% mais ricos, que teriam condições de fazer melhores escolhas, inclusive com alimentos orgânicos, tidos como caros, optam mais por produtos comestíveis de baixíssimo valor nutricional.

Um olhar ao longo dos anos também mostra a diminuição gradual dos alimentos in natura e o aumento dos ultraprocessados na aquisição das famílias. Os alimentos in natura caem de 53,3% em 2002/2003 para 49,5% em 2017/2018. Ao mesmo tempo, os ultraprocessados crescem de 12,6% em 2002/2003 para 18,4% em 2017/2018.

Vemos, assim, dados que associam o avanço da chamada vida urbana moderna a hábitos alimentares de menor qualidade.

mapa da fome

Em 2014, o Brasil foi um dos destaques do Relatório de Insegurança Alimentar no Mundo, elaborado anualmente pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). A publicação, que traz dados gerais sobre a insegurança alimentar, dedicou ao país uma seção especial de três páginas e meia, onde sintetizou as lições que a comunidade internacional poderia aprender a partir das políticas públicas do então governo brasileiro. Foi um importante reconhecimento, por um órgão internacional, de um amplo e continuado conjunto de medidas que tirou milhões de brasileiros da fome e da miséria.

A publicação dessa edição do relatório tornou-se referência por marcar o momento em que o Brasil sai do mapa da fome da ONU. Esse mapa tem como base o indicador PoU – Prevalência de Subalimentação (Prevalence of Undernourishment, no original em inglês), usado na época para monitorar o progresso dos países no cumprimento dos então vigentes Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Sair do mapa da fome, naquele contexto, significava passar a apresentar um valor abaixo de 5% no indicador PoU.

Esse indicador mede a probabilidade de uma pessoa escolhida aleatoriamente apresentar um consumo de calorias abaixo dos requisitos mínimos para uma vida ativa e saudável. O índice é calculado com base em informações de grande escala dos países, por exemplo, dados macro sobre oferta de alimentos nos territórios. Trata-se, portanto, de uma estratégia bastante indireta e abstrata de se medir a chamada insegurança alimentar. Além disso, ao definir a fome com base em quantidade de calorias, o indicador opta por uma caracterização da fome de um ponto de vista clínico, deixando de lado os aspectos sociais e subjetivos dessa questão tão delicada.

A fome é uma experiência individual, uma condição sentida e vivenciada por seres conscientes. Uma abordagem mais próxima dos sujeitos parece mais adequada para investigá-la. Em vez de medir (ou, pior ainda, estimar) a quantidade de calorias ingeridas, acreditamos que a forma mais razoável e cientificamente honesta de saber se uma pessoa está com fome é perguntar a ela.

A Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) é um estudo aplicado pelo IBGE em suas pesquisas junto aos domicílios brasileiros. Os participantes respondem perguntas relacionadas a experiências concretas de suas famílias: sentir preocupação com a falta de condições para obter alimentos, ficar impossibilitado de comer certos tipos de alimentos, ter que comer menos do que sentia ser necessário, ter que deixar de fazer certas refeições, passar um dia inteiro sem comer. Pesquisas baseadas nessa escala são capazes de captar experiências de fome nas diferentes formas e intensidades que isso pode tomar nas vidas das pessoas.

Lançado no mês passado, o Atlas das situações alimentares no Brasil: a disponibilidade domiciliar de alimentos e a fome no Brasil contemporâneo se baseia em dados sobre a fome levantados pela EBIA. O trabalho traz um breve histórico dos indicadores de fome, propondo uma importante reflexão sobre a terminologia usada para se tratar desse tema. Mostra inclusive o contexto no qual o termo fome, a pedido do Departamento de Agricultura dos EUA, foi suprimido do indicador adotado na época naquele país, permanecendo apenas ‘insegurança alimentar’. De forma a eliminar eufemismos, o Atlas adota explicitamente o termo fome para situações usualmente tratadas como ‘insegurança alimentar moderada ou grave’ e risco de fome para os casos chamados de ‘insegurança alimentar leve’.

O Atlas traz dados dos anos de 2004, 2009, 2013 (nos quais ela foi aplicada dentro da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e de 2017/2018 (em que a EBIA foi aplicada com a Pesquisa de Orçamentos Familiares).

É possível observar uma clara diminuição da fome e do risco de fome entre 2004 e 2013. Nesse ano temos as menores proporções de domicílios com fome (7,8%) e com risco de fome (14,8%) no país. Há então uma reversão nessa tendência. A fome e o risco de fome voltam a aumentar e, na pesquisa de 2017/2018 atingem, respectivamente, 12,7% e 24% dos domicílios.

Evolução da fome e do risco de fome (2004-2018). Dados: IBGE. Adaptado de Atlas das situações alimentares no Brasil. CLIQUE PARA AMPLIAR

Os dados segmentados por situação do domicílio revelam um quadro duplamente intrigante. Em termos absolutos, o numero de domicílios com fome ou risco de fome nas áreas urbanas é muito maior. São 6,9 milhões de domicílios em condição de fome e 14 milhões de domicílios em risco de fome, segundo os dados de 2017/2018. Trata-se de um triste retrato do cenário de miséria a que são submetidas as pessoas que escolhem a vida urbana em busca das oportunidades que ela lhes promete. O dado aponta para a questão do acesso à alimentação, um dos componentes desse fenômeno multifatorial que é a segurança alimentar. Além da situação de pobreza ou miséria que atinge muitas pessoas, há ainda, em muitas áreas, a dificuldade ou impossibilidade de se conseguir alimentos saudáveis a preços acessíveis, os chamados desertos alimentares.

Ao mesmo tempo, em termos proporcionais, as áreas rurais são mais afetadas. Nos dados de 2017/2018, a fome aparece em 19,3% dos domicílios rurais (contra 11,6% dos domicílios urbanos) e o risco de fome em 27,1% deles (contra 23,5% dos urbanos). É assustador perceber que os territórios que teoricamente deveriam servir para produzir alimentos estão negando essa possibilidade às pessoas, pois estão dominados pelo sistema do agronegócio, que destrói a produção de subsistência. Nele, a terra serve para ganhar dinheiro e não para saciar a fome das pessoas.

Entre 2004 e 2009, a redução da fome e do risco de fome foi maior no campo do que na cidade. Já entre 2009 e 2013 a melhora mais expressiva se deu nas áreas urbanas.

Os dados por unidades da federação mostram que São Paulo, Bahia e Minas Gerais concentram os maiores números absolutos de domicílios em situação de fome; quanto ao risco de fome, os maiores números estão em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Em termos relativos, os maiores percentuais de fome estão nos estados de Amazonas, Maranhão e Amapá; as maiores proporções de risco de fome estão em Maranhão, Alagoas e Pará.

O fato concreto é que os dados mais recentes apresentados pelo Atlas mostram um quadro em que há fome em 8,7 milhões de domicílios brasileiros e risco de fome em outros 16,5 milhões de domicílios. Em um cálculo aproximado, assumindo uma média de 3 pessoas por domicílio, podemos estimar que havia 26,1 milhões de pessoas com fome e 49,5 pessoas em risco de fome no Brasil em 2018. Tudo isso ainda antes da pandemia e do desmonte, aprofundado nestes últimos anos, das políticas de combate à fome e à miséria que fizeram o Brasil ser destaque no relatório da FAO de 2014.

Papel mundialmente infame para um país que se destaca como grande exportador de commodities agrícolas. Fica claro como manter mais de um terço da população em situação de fome ou risco de fome é resultado de uma escolha política.

preços e valores

Talvez as pessoas refletissem mais antes de comprar certos produtos comestíveis se conhecessem seus verdadeiros preços, sem disfarces. Mesmo entre aqueles que comem produtos hiperprocessados, muitos já sabem, no fundo, que aquilo tem valor nutricional baixíssimo. Porém, ao saber que, além disso, esses produtos comestíveis custam mais caro do que muitos alimentos bem mais saudáveis, é possível que as escolhas fossem diferentes.

Em primeiro lugar, lembremos que a melhor maneira de comparar preços é comparar quantidades iguais de produto. Facilita ainda mais se usarmos unidades inteiras, como um quilo, um litro, um metro. É difícil, por exemplo, comparar o preço do pão em duas padarias que vendem pães de tamanhos diferentes e preços também diferentes, mas é simples constatar que o pão vendido a R$ 15,90 o quilo é mais caro que o pão vendido a R$ 13,90 o quilo. Se a qualidade do pão mais caro compensa a compra, é outra história, sujeita a escolha pessoal, mas sabendo o preço por quilo nas duas padarias eu posso saber não só qual pão é mais caro, como também a diferença de preço (cerca de 14%, neste exemplo).

Vejamos então um salgadinho vendido em pacotes de 110g por R$ 8,49. Quanto custa esse salgadinho? Nada menos que R$ 77,18 o quilo. No pacote de 60g, vendido por R$ 5,49, o comestível sai ainda mais caro: R$ 91,50 o quilo!

Mais caro que filé mignon: nesta embalagem, o produto sai por nada menos que R$ 91,50 o quilo!

Apenas como referência, vejamos o preço de alguns alimentos no mesmo mercado e na mesma data. Arroz: R$ 6,99 o quilo; feijão: R$ 6,79 o quilo; abobrinha: R$ 1,69 o quilo; batata: R$ 3,99 o quilo; mussarela: R$ 37,90 o quilo; alcatra: R$ 50,98 o quilo; contra-filé: R$ 52,98 o quilo.

Claro que o arroz-feijão, a carne e os legumes têm que ser preparados antes do consumo, enquanto o salgadinho pode ser consumido na hora. Vejamos então um produto equivalente, consumido nas mesmas condições. O amendoim frito, vendido em pacotes de 150g por R$ 6,99 no mesmo mercado sai por R$ 46,60 o quilo, sendo bem mais nutritivo que o tal salgadinho. E se a questão é o preparo da refeição, lembremos que a maioria dos restaurantes por quilo estão, atualmente, na faixa de cinquenta e poucos reais o quilo, não sendo difícil encontrar preços abaixo de cinquenta.

É chocante saber que milho transgênico extrudado e depois banhado em uma infinidade de produtos químicos e aromatizantes artificiais é vendido (e comprado!) por R$ 91,50 o quilo. Ainda que o preço de um pacote pareça baixo, pois a quantidade é pequena, é importante saber o preço real que está sendo pago pelo produto. Um simples pão com queijo comprado no mesmo mercado já custa bem menos do que isso e, ainda que não seja exatamente uma refeição, é bem mais nutritivo que um salgadinho industrializado.

Praticamente qualquer telefone móvel funciona também como calculadora, portanto a maioria das pessoas certamente tem sempre uma no bolso, onde quer que esteja. A conta é simples. Basta pegar o preço da gôndola e dividir pela quantidade em quilos existente naquela embalagem. No salgadinho do exemplo, o preço do pacote é 5,49 e a quantidade é 0,06 quilos. Divida 5,49 por 0,06 e o resultado será 91,50.

Adote o hábito de saber o preço por quilo (ou por litro, ou por metro, etc.) de tudo que você consome ou pensa em consumir. Você terá uma visão diferente do valor de muitas coisas.