novas projeções do agronegócio

Já falamos neste blogue sobre o relatório Projeções do Agronegócio, publicado anualmente pelo Ministério da Agricultura e Pecuária. Trata-se de um entre muitos estudos que olham para a agricultura quase que exclusivamente sob a perspectiva dos negócios e do mercado. Em certos trechos do documento, a produção de alimentos parece ser abordada como um mero subproduto desejável da atividade agrícola.

Voltamos agora a esse documento com uma perspectiva comparativa entre o último relatório publicado até a presente data (Projeções do Agronegócio 2022/23 a 2032/33) e o relatório anteriormente analisado aqui (Projeções do Agronegócio 2020/21 a 2030/31). A partir daqui, vamos nos referir ao documento de 2020/2021 como ‘relatório anterior’, ainda que ele não seja o imediatamente anterior (houve também relatório em 2021/2022).

Daqui a dez anos, o arroz terá menos da metade da área de cultivo que tem hoje: passa dos 1.469 mil hectares no ano safra 2022/2023 para 489 mil hectares em 2032/2033, uma perda de 66,7%. No caso do feijão, a perda estimada é menor mas, ainda assim, é de mais de um terço: dos 2.742 mil hectares dedicados a essa cultura em 2022/2023, passará a ter 1.749 mil hectares em 2032/2033, portanto perdendo 36,2% da área que tem hoje.

No relatório anterior, as perdas de áreas de cultivo de arroz e feijão projetadas para os dez anos seguintes eram, respectivamente, de 62% e 36,9%. Assim, no caso do arroz, o relatório 2022/2023 aponta para um aumento de velocidade na perda de território. No caso do feijão, a velocidade da perda de território projetada agora é ligeiramente menor do que aquela projetada no relatório de dois anos atrás.

Enquanto isso, os produtos agrícolas para o mercado devem seguir crescendo. Dos 21.975 mil hectares de cultivo que tem hoje, o milho deve expandir sua área em 17,1%, atingindo uma área de 25.732 mil hectares em 2032/2033. E a soja passará em dez anos de 43.834 mil hectares hoje para 55.881 mil hectares, um crescimento de 27,5% ou, em valor absoluto, de 12 milhões de hectares, a lavoura que mais deve expandir sua área nesse período.

O relatório 2020/2021 projetava ganhos menores: 10,6% e 26,9% para as áreas de cultivo de milho e soja, respectivamente. Portanto, os dados levados em consideração nos cálculos mais recentes apontam para esse aumento de velocidade na expansão desses dois cultivos. O aumento é proporcionalmente maior no caso do milho.

Área Plantada com 5 principais grãos – Brasil (mil hectares). Fonte: Projeções do Agronegócio 2022/2023 a 2032/2033. CLIQUE PARA AMPLIAR

A desigualdade entre as áreas de cultivo de alimentos e de commodities projetadas para 2032/2033 é também assustadora. Daqui dez anos, a soma das áreas dedicadas apenas às duas commodities aqui analisadas será de 81.613 mil hectares, um valor 36 vezes maior que a soma das áreas de cultivo dos dois principais alimentos dos brasileiros, que será de 2.238 mil hectares.

A visão dos dois relatórios também permite comparar as projeções de área cultivada apresentadas há dois anos para o ano safra 2022/2023 com aquilo que efetivamente se concretizou.

O arroz tinha, no relatório anterior, uma projeção de 1.419 mil hectares para o ano safra 2022/2023, sendo que tivemos de fato 1.469 mil hectares, uma área 3,5% maior do que a projetada. Para o feijão, estavam projetados 2.640 mil hectares em 2022/2023, sendo que a área neste ano safra foi de 2.742 mil hectares, portanto 3,9% maior do que a projetada. No caso do milho, tivemos em 2022/2023 uma área de 21.975 mil hectares, 8,5% maior que a projeção de 20.262 mil hectares do relatório anterior. E a soja teve uma área de 43.834 mil hectares contra os 40.789 mil hectares projetados: área realizada 7,5% maior do que a área estimada na projeção.

Essas comparações mostram dois fatos evidentes. Primeiro, as projeções do documento de 2020/2021 estavam subestimadas para os quatro cultivos analisados. E segundo, a diferença para mais do realizado em relação às projeções foi maior no caso das commodities do que no caso dos alimentos. Se esta tendência se manifestar também nos dez anos contados a partir de agora, podemos esperar que a desigualdade entre as áreas dedicadas aos cultivos de commodities e de alimentos será, lá na frente, ainda maior do que os números agora projetados para 2032/2033 antecipam.

O relatório Projeções do Agronegócio traz também dados, projeções e análises referentes a produção, consumo e exportação dos principais produtos agrícolas brasileiros. Nesta matéria, focamos na área plantada pois este é o indicador mais diretamente conectado à luta pela terra em nosso país. Sigamos firmes.

projeções do agronegócio

Para que serve a terra no Brasil? Para produzir alimentos ou para ganhar muito dinheiro?

Um documento produzido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento traz informações desanimadoras para quem acredita que a terra deveria servir para saciar a fome das pessoas. Resumindo: alimentos como arroz, feijão, batata, mandioca, banana e café estão perdendo áreas de cultivo, enquanto commodities como milho, soja, algodão, fumo e cana de açúcar estão ganhando ainda mais território.

Reeditado a cada ano, o relatório Projeções do Agronegócio traz estimativas sobre como ficará a atividade agrícola nos dez anos seguintes à sua publicação. O último relatório disponível neste momento é de 2021, e suas projeções vão até o ano safra 2030/2031.

Os dados mais assustadores se referem à perda da área plantada de alguns alimentos. O arroz deve perder 62% de seu espaço: dos 1.687 mil hectares dedicados ao seu plantio em 2020/2021, devem restar apenas 641 mil hectares em 2030/2031. O feijão, que no ano safra 2020/2021 dispõe de 2.898 mil hectares para seu cultivo, ficará com apenas 1.830 mil hectares em 2030/2031, uma perda de 36,8%.

Enquanto isso, produtos agrícolas que servem principalmente como matérias primas industriais, e não como alimentos saudáveis, estão em expansão. A área plantada de milho deve crescer de 19.841 mil hectares em 2020/2021 para 21.948 mil hectares em 2030/2031, um aumento de 10,6%. O crescimento da soja é ainda maior: de 38.502 mil hectares em 2020/2021, deve subir para 48.851 mil hectares em 2030/2031, aumento de 26,8%.

O relatório fala das possibilidades à disposição do agronegócio para aumentar a área plantada dessas culturas. Um exemplo: “A expansão de área de soja e cana-de-açúcar deverá ocorrer pela incorporação de áreas novas, áreas de pastagens naturais e também pela substituição de outras lavouras que deverão ceder área” (p. 87). Note o uso das expressões ‘incorporação de áreas novas’, que pode servir de eufemismo para ‘desmatamento’, e ‘substituição de outras lavouras que deverão ceder área’, uma referência a cultivos que estão perdendo área plantada, onde se incluem o arroz e o feijão.

Os dados que o relatório apresenta sobre anos anteriores mostram que a redução das áreas plantadas de arroz e de feijão já é um processo em curso há pelo menos dez anos. Entre os anos safra 2009/2010 e 2019/2020, esses cultivos perderam, respectivamente, 39,7% e 18,9% de seus territórios. No mesmo período, houve enorme expansão das commodities: 42,6% no caso do milho e 57,4% no caso da soja.

Área Plantada com 5 principais grãos – Brasil (mil hectares). Fonte: Projeções do Agronegócio 2020/2021 a 2030/2031. CLIQUE PARA AMPLIAR

No momento atual, a diferença entre as áreas plantadas de alimentos e de commodities é gritante. A título de exemplo, em 2020/2021 temos 4.585 mil hectares na soma das áreas de arroz e feijão, contra 58.343 mil hectares no total para milho e soja. A área dedicada a estas duas commodities é 12,7 vezes maior que a área de cultivo de dois dos principais alimentos dos brasileiros.

O estudo avalia que “algumas lavouras, como mandioca, café, arroz, laranja e feijão, devem perder área, mas a redução será compensada por ganhos de produtividade” (p. 86). As estimativas para 2030/2031 são de que, nessas condições, a produção de arroz cresça 3,4% e a produção de feijão caia 1,2%.

Ganhos de produtividade são incertos e, sobretudo para as pequenas propriedades, responsáveis pela maior parte dos cultivos de arroz e feijão, dependem de programas de fomento à produção e de assistência técnica e extensão rural. Por outro lado, os grandes estabelecimentos produtivos do agronegócio, altamente capitalizados, conseguem sem dificuldade comprar ou arrendar propriedades menores que hoje produzem alimentos. Assim, o cenário apontado no relatório é extremamente delicado. Políticas públicas específicas para a produção de alimentos são essenciais para evitar redução nas colheitas, fazendo os preços subirem ainda mais.

Se há mesmo perspectivas de aumento de produtividade nos cultivos de arroz e feijão, melhor seria se isso fosse usado para trazer um sensível crescimento de sua produção, provocando queda nos preços e facilitando o acesso da população a esses alimentos. Infelizmente, no olhar do agronegócio, o esperado ganho de produtividade de arroz e feijão é apenas mais um fator para contribuir na expansão das commodities, mesmo havendo 33,1 milhões de brasileiros passando fome.

Para argumentar que a perda de áreas de cultivo de alimentos não levará a problemas de abastecimento, o relatório apresenta ainda um prognóstico de queda no consumo de arroz e feijão. Os cálculos dizem que, até 2030/2031, o consumo de arroz no Brasil deve cair 2,2% e o de feijão deve cair 0,7%.

Se mesmo com as expectativas de que a população brasileira cresça até 2030 esses prognósticos estiverem corretos, o relatório está anunciando um futuro tenebroso. A queda no consumo desses dois itens básicos na cultura alimentar brasileira só pode significar duas coisas: ou as pessoas vão mesmo comer menos (ou seja, mais fome!) ou passarão a comer outras coisas (provavelmente menos saudáveis). Provavelmente, ambos.

De fato, o Atlas das situações alimentares no Brasil já aponta, com base em dados de 2002 a 2018, uma queda no consumo de alimentos in natura ou minimamente processados, acompanhada de um aumento no consumo dos alimentos processados e ultraprocessados. Estamos diante de um cenário de aumento da fome e queda na qualidade da alimentação.

O relatório Projeções do Agronegócio é escrito na perspectiva daqueles para quem a agricultura é uma atividade para se ganhar muito dinheiro. Ao falar da alta nos preços agrícolas em 2021, apresenta isso como uma boa notícia: “os preços de carnes, bovina e suína, e também de milho e soja sobressaem-se em relação aos demais. São produtos que têm-se beneficiado do comércio internacional favorável, e da taxa de câmbio vigente neste ano” (p. 9, grifos nossos).

Com o dólar em alta, quem exporta ganha mais dinheiro, e isso puxa os preços internos para cima. Numa perspectiva de combate à fome, que definitivamente não é a do agronegócio, boa notícia seria uma queda de preços, pois isso significaria alimentos mais baratos para a população brasileira.

Cabe aqui citar um trecho de um livro do professor José Graziano da Silva, em que ele descreve o latifúndio escravista, principal atividade econômica do Brasil colônia, mais de quatrocentos anos no passado.

“A produção de alimentos do latifúndio variava muito em função do preço do seu produto principal destinado à exportação. Por exemplo, quando o preço do açúcar (e mais tarde do café) subia no mercado mundial, todas as terras e os escravos eram utilizados para expandir a sua produção, diminuindo assim a produção de alimentos. Nesses períodos havia fome na colônia e as autoridades estimulavam os pequenos agricultores a expandirem sua produção, para abastecer não só as vilas e cidades, como às vezes os próprios latifúndios” (O que é Questão Agrária, p. 27).

Perceba como vivemos exatamente no mesmo país que ele descreve.

Apenas dois comentários sobre essa rápida viagem no tempo. A fome, que segue firme aqui na colônia, tem basicamente as mesmas causas estruturais. E quem de fato alimenta este país são e sempre foram os pequenos agricultores.

revolução verde

Duas palavras bonitas, associadas a ideologias de esquerda e posições progressistas: revolução, música para os ouvidos de quem sonha em derrubar esse sistema que promove a expropriação sem limites; verde, referência a visões de mundo em que o respeito à natureza prevalece sobre o desejo insaciável de ganhar dinheiro.

Cuidado com o que você ouve. Juntas, essas palavras formam uma expressão que aponta para um lado oposto a isso tudo. Diz respeito a uma importante mudança na forma de produzir alimentos que concentrou ainda mais a riqueza, tirou o camponês da terra e envenenou a comida que hoje comemos.

Revolução verde se refere às inovações que surgiram sobretudo na década de 1960 com a finalidade de aumentar a produção agrícola. Trata-se de um conjunto de tecnologias como mecanização, fertilizantes químicos, irrigação controlada e o uso de variedades de cereais de alto rendimento.

O termo foi usado pela primeira vez em 1968, em referência ao desenvolvimento de novas variedades de trigo e milho. Tanto na pesquisa quanto na implementação, a revolução verde contou com o apoio de grandes fundações estadunidenses, e teve no México um imenso campo de pesquisa e testes.

O processo se baseou em transferência de tecnologia, que vinha na forma de um conjunto de práticas que, por meio das promessas de grandes lucros aos produtores e de erradicação da fome no mundo, começou a ser praticamente imposto no campo.

Para a agricultura, o pacote tecnológico incluía fertilizantes, agrotóxicos, máquinas e variedades de sementes. Para a criação de animais, havia rações, fármacos, instalações projetadas para máxima produtividade e naturalmente o uso de matrizes e reprodutores selecionados. Como resultado, a atividade no campo tomou a forma de produção industrial, com monoculturas e a criação de animais em confinamento.

A finalidade era o aumento da produção, mas isso não quer dizer que essa produção seria usada para saciar a fome das pessoas. O objetivo era, e ainda é, a produção de commodities para exportação.

Na análise de Ceres Hadich e Gilmar Andrade, autores do verbete sobre o assunto no Dicionário de Agroecologia e Educação, entre os muitos efeitos da revolução verde podemos destacar: aumento da concentração fundiária e empobrecimento dos pequenos agricultores; êxodo rural massivo; esgotamento do solo, avanço do desmatamento e redução da biodiversidade; apropriação de recursos naturais brasileiros por parte de multinacionais; transformação da semente em propriedade privada; padronização da produção e consumo de alimentos, comprometendo a soberania alimentar.

A fome no mundo, como se sabe, não acabou. Ao contrario, nestes últimos anos temos assistido um agravamento da pobreza, e isso se deve, entre outros fatores, aos efeitos da revolução verde: concentração de riqueza, expropriação das terras e, devido à maior integração e fortalecimento dos agentes do sistema agroindustrial, o aumento de seu poder para defender os seus interesses econômicos, que vêm se mostrando contrários aos interesses dos povos, da natureza e da vida.

mapa da fome

Em 2014, o Brasil foi um dos destaques do Relatório de Insegurança Alimentar no Mundo, elaborado anualmente pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). A publicação, que traz dados gerais sobre a insegurança alimentar, dedicou ao país uma seção especial de três páginas e meia, onde sintetizou as lições que a comunidade internacional poderia aprender a partir das políticas públicas do então governo brasileiro. Foi um importante reconhecimento, por um órgão internacional, de um amplo e continuado conjunto de medidas que tirou milhões de brasileiros da fome e da miséria.

A publicação dessa edição do relatório tornou-se referência por marcar o momento em que o Brasil sai do mapa da fome da ONU. Esse mapa tem como base o indicador PoU – Prevalência de Subalimentação (Prevalence of Undernourishment, no original em inglês), usado na época para monitorar o progresso dos países no cumprimento dos então vigentes Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Sair do mapa da fome, naquele contexto, significava passar a apresentar um valor abaixo de 5% no indicador PoU.

Esse indicador mede a probabilidade de uma pessoa escolhida aleatoriamente apresentar um consumo de calorias abaixo dos requisitos mínimos para uma vida ativa e saudável. O índice é calculado com base em informações de grande escala dos países, por exemplo, dados macro sobre oferta de alimentos nos territórios. Trata-se, portanto, de uma estratégia bastante indireta e abstrata de se medir a chamada insegurança alimentar. Além disso, ao definir a fome com base em quantidade de calorias, o indicador opta por uma caracterização da fome de um ponto de vista clínico, deixando de lado os aspectos sociais e subjetivos dessa questão tão delicada.

A fome é uma experiência individual, uma condição sentida e vivenciada por seres conscientes. Uma abordagem mais próxima dos sujeitos parece mais adequada para investigá-la. Em vez de medir (ou, pior ainda, estimar) a quantidade de calorias ingeridas, acreditamos que a forma mais razoável e cientificamente honesta de saber se uma pessoa está com fome é perguntar a ela.

A Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) é um estudo aplicado pelo IBGE em suas pesquisas junto aos domicílios brasileiros. Os participantes respondem perguntas relacionadas a experiências concretas de suas famílias: sentir preocupação com a falta de condições para obter alimentos, ficar impossibilitado de comer certos tipos de alimentos, ter que comer menos do que sentia ser necessário, ter que deixar de fazer certas refeições, passar um dia inteiro sem comer. Pesquisas baseadas nessa escala são capazes de captar experiências de fome nas diferentes formas e intensidades que isso pode tomar nas vidas das pessoas.

Lançado no mês passado, o Atlas das situações alimentares no Brasil: a disponibilidade domiciliar de alimentos e a fome no Brasil contemporâneo se baseia em dados sobre a fome levantados pela EBIA. O trabalho traz um breve histórico dos indicadores de fome, propondo uma importante reflexão sobre a terminologia usada para se tratar desse tema. Mostra inclusive o contexto no qual o termo fome, a pedido do Departamento de Agricultura dos EUA, foi suprimido do indicador adotado na época naquele país, permanecendo apenas ‘insegurança alimentar’. De forma a eliminar eufemismos, o Atlas adota explicitamente o termo fome para situações usualmente tratadas como ‘insegurança alimentar moderada ou grave’ e risco de fome para os casos chamados de ‘insegurança alimentar leve’.

O Atlas traz dados dos anos de 2004, 2009, 2013 (nos quais ela foi aplicada dentro da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e de 2017/2018 (em que a EBIA foi aplicada com a Pesquisa de Orçamentos Familiares).

É possível observar uma clara diminuição da fome e do risco de fome entre 2004 e 2013. Nesse ano temos as menores proporções de domicílios com fome (7,8%) e com risco de fome (14,8%) no país. Há então uma reversão nessa tendência. A fome e o risco de fome voltam a aumentar e, na pesquisa de 2017/2018 atingem, respectivamente, 12,7% e 24% dos domicílios.

Evolução da fome e do risco de fome (2004-2018). Dados: IBGE. Adaptado de Atlas das situações alimentares no Brasil. CLIQUE PARA AMPLIAR

Os dados segmentados por situação do domicílio revelam um quadro duplamente intrigante. Em termos absolutos, o numero de domicílios com fome ou risco de fome nas áreas urbanas é muito maior. São 6,9 milhões de domicílios em condição de fome e 14 milhões de domicílios em risco de fome, segundo os dados de 2017/2018. Trata-se de um triste retrato do cenário de miséria a que são submetidas as pessoas que escolhem a vida urbana em busca das oportunidades que ela lhes promete. O dado aponta para a questão do acesso à alimentação, um dos componentes desse fenômeno multifatorial que é a segurança alimentar. Além da situação de pobreza ou miséria que atinge muitas pessoas, há ainda, em muitas áreas, a dificuldade ou impossibilidade de se conseguir alimentos saudáveis a preços acessíveis, os chamados desertos alimentares.

Ao mesmo tempo, em termos proporcionais, as áreas rurais são mais afetadas. Nos dados de 2017/2018, a fome aparece em 19,3% dos domicílios rurais (contra 11,6% dos domicílios urbanos) e o risco de fome em 27,1% deles (contra 23,5% dos urbanos). É assustador perceber que os territórios que teoricamente deveriam servir para produzir alimentos estão negando essa possibilidade às pessoas, pois estão dominados pelo sistema do agronegócio, que destrói a produção de subsistência. Nele, a terra serve para ganhar dinheiro e não para saciar a fome das pessoas.

Entre 2004 e 2009, a redução da fome e do risco de fome foi maior no campo do que na cidade. Já entre 2009 e 2013 a melhora mais expressiva se deu nas áreas urbanas.

Os dados por unidades da federação mostram que São Paulo, Bahia e Minas Gerais concentram os maiores números absolutos de domicílios em situação de fome; quanto ao risco de fome, os maiores números estão em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Em termos relativos, os maiores percentuais de fome estão nos estados de Amazonas, Maranhão e Amapá; as maiores proporções de risco de fome estão em Maranhão, Alagoas e Pará.

O fato concreto é que os dados mais recentes apresentados pelo Atlas mostram um quadro em que há fome em 8,7 milhões de domicílios brasileiros e risco de fome em outros 16,5 milhões de domicílios. Em um cálculo aproximado, assumindo uma média de 3 pessoas por domicílio, podemos estimar que havia 26,1 milhões de pessoas com fome e 49,5 pessoas em risco de fome no Brasil em 2018. Tudo isso ainda antes da pandemia e do desmonte, aprofundado nestes últimos anos, das políticas de combate à fome e à miséria que fizeram o Brasil ser destaque no relatório da FAO de 2014.

Papel mundialmente infame para um país que se destaca como grande exportador de commodities agrícolas. Fica claro como manter mais de um terço da população em situação de fome ou risco de fome é resultado de uma escolha política.