entrevista: Lucca Pérez

A Cooperativa Terra e Liberdade faz uma importante conexão entre produtores de alimentos do MST da Grande São Paulo e consumidores finais, formando um circuito curto de distribuição. Tivemos a oportunidade de acompanhar uma manhã de trabalho da cooperativa, ajudando na montagem das cestas e percorrendo uma das rotas de distribuição junto com o militante Lucca Pérez, que depois nos concedeu esta entrevista.

Lucca nasceu em São Paulo, é engenheiro ambiental e, durante a graduação, trabalhou com o MST implantando sistemas de irrigação e saneamento ecológico. Atuou também com economia solidária e fez mestrado em engenharia de produção, com foco em organização do trabalho. Atualmente, em seu doutorado, estuda as relações entre saúde mental e trabalho, sobretudo no ambiente do cooperativismo.

Nesta conversa, Lucca fala dos desafios ligados à distribuição dos alimentos produzidos pela reforma agrária e sobretudo daqueles enfrentados pelos produtores e produtoras nos assentamentos. Fala também da construção de relações de consumo menos mercantilizadas, ainda que não deixem de ser relações econômicas, e que sejam focadas “no valor de uso, na política e no afeto, e não na mercadoria”.

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Quando e como começou o trabalho da Cooperativa Terra e Liberdade? O que motivou essa iniciativa a começar a funcionar?

Todo começo é herdeiro de outras experiências, né? O Cícero já tinha trabalhado com comercialização de uva na década de 2000, levava para igrejas, portas de fábricas, já tinha algum trabalho com logística. Mas a venda de hortifruti em geral era muito focada no mercado institucional, notadamente o PAA [Programa de Aquisição de Alimentos]. Esses alimentos iam para escolas, prisões, quartéis, tinha soldado que comia alface agroecológica do MST.

Tem também o PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar], que é um mercado importantíssimo, uma política pública de fortalecimento da agricultura familiar que garante o escoamento da produção mas, ao mesmo tempo, como tudo tem uma dialética, quem vende só para esses mercados fica acostumado com isso. São contratos de, tipo, cinco mil pés de alface por família, por DAP [Declaração de Aptidão ao Pronaf, documento que habilita uma unidade produtiva para participar do programa].

Aí veio o corte de 2016 com o Temer. O orçamento do PAA saiu de bilhão para coisa de 200 milhões entre 2016 e 2018. Então os agricultores da regional ficaram sem ter para onde vender. Perderam mercado de uma hora para outra. Paralelamente a isso, eu já vinha trabalhando na Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP e era um aliado do MST. Já havia um debate sobre comércio solidário, redes, cadeias, consumo consciente etc.

Então a gente tentou fazer algumas pontes com a cooperativa do [assentamento] Dom Pedro e com a juventude do Dom Pedro, buscando fortalecer hortas da juventude. A ideia era muito mais fortalecer laços dentro desse campo da economia solidária do que dar uma resposta material da produção. Mas com o fim do PAA a gente decidiu ir para o mercado do consumidor final, sair do mercado institucional. Só que a gente não tinha recursos, não tinha experiência nisso.

Outro processo paralelo foi a Feira Nacional da Reforma Agrária. Nós participamos desde a primeira ajudando a organizar. Na segunda e na terceira nós já tocamos o processo.

O ‘nós’ aí nesse caso é quem?

É a [direção] regional Grande São Paulo [do MST]. Então as feiras também foram abrindo um diálogo de mercado com o consumidor final. Nesse processo, um pouco mais tarde, abre o Armazém do Campo. A gente já estava elaborando uma estratégia para acessar o mercado de consumidor final, é importante ter um diálogo com a população da cidade, a gente visibiliza o trabalho. No PAA, não se dá visibilidade ao que está sendo produzido, ele é muito importante para dar vazão à produção, mas não avança nos outros elementos, como construir alianças, redes de cooperação e tudo mais.

Então batemos aqui na porta do SINTUSP, foi o primeiro grupo de consumo, começou ali por 2017. A gente entregava cestas quinzenalmente. Então fornecia para o Armazém do Campo, para o SINTUSP, tentava fornecer uma coisa ou outra para o Instituto Chão.

Aí a gente começou um grupo de consumo lá no ABC, depois a feira no SESC Santana. No fim de 2018 a gente já começa a chamar de cooperativa e começa a pensar no nome. Talvez já tivesse a ideia de ‘Terra e Liberdade’.

Ali pelo fim de 2018 e começo de 2019 já tinha o primeiro site, que era mais simples, e a gente entregava em pontos de retirada, ainda não tinha porta a porta. A gente começou a fazer porta a porta só com a pandemia.

Nesse momento que você relata agora, a origem da produção que vocês distribuíam já era dos três assentamentos, Dom Pedro, Dom Tomás e Irmã Alberta?

Sim. Hoje a gente complementa com o Instituto Terra Viva, de Sorocaba, que comercializa a produção dos assentamentos da região de Sorocaba mas não só, são pequenos produtores em geral. Eles são aliados, um deles era do setor de produção do MST de lá.

A gente também entregou para a CUT de Osasco, para um pessoal da TVT, no ABC, mas não estava dando muito certo. O custo de transação era muito grande, um monte de informação no grupo de Zap. Mesmo depois, com o Google Forms, não era fácil fazer o pedido. Eram muitas horas para processos que hoje são quase automatizados.

Mas o mais determinante, eu acho que é a transição da companheirada, que vendia para o programa. Imagina, cinco mil pés de alface no ano para o PAA. Quarenta agricultores. Essa transição deles para o mercado direto envolve mexer melhor no celular. Eles não tinham Zap ainda, gente ligava para os produtores. Às vezes alguém esquecia algum item que tinha que mandar, aí a gente precisava ligar para cobrar.

Hoje a gente consegue mapear e pedir com uma certa frequência, é um processo consolidado, a companheirada entrega, a qualidade melhorou muito. Antes a qualidade era muito variável.

Atualmente, quantas pessoas estão envolvidas com a Cooperativa Terra e Liberdade?

Hoje a gente tem um núcleo duro de quatro pessoas, incluindo eu, tocando a cooperativa. Tem também mais uma companheira que já esteve mais envolvida e hoje segue apenas cuidando do site. E tem mais uns seis ou sete aliados e aliadas que ajudam na montagem e nas entregas.

Lucca Pérez, de vermelho, durante reunião em assentamento do MST. Foto: arquivo pessoal.

Como se formou a área geográfica de atuação da cooperativa? Seguiu algum critério prévio, foi uma questão de custo operacional, ou de disponibilidade de companheiros?

Na zona norte começou com a feira do SESC Santana. Então começaram a articular um grupo de consumo, que hoje chega na periferia, bem no extremo norte. Eles pegam também a produção das mulheres de lá, que fazem pão, sabonete, tem toda uma rede de economia solidária que foi se criando a partir da feira no SESC, com pessoas engajadas. Então começou a ter rota para a zona norte.

Para a Vila Mariana, foram duas pessoas com história familiar de militância que queriam fortalecer o movimento. Quando começou na Vila Mariana, a gente já tava mais maduro, então a gente construiu de uma forma melhor. Na zona leste tinha um pessoal do teatro, antes de a gente começar a fazer entregas no centro a gente já chegava na zona leste por meio desse pessoal. Tem também uma cooperada em Ermelino Matarazzo que foi se organizando e criou um grupo de consumo. No ABC tem uma galera do PSOL ecossocialista que conhecia o MST, porque lá tem o núcleo urbano do MST Carlos Marighella.

Tem mais dois grupos nascendo. Um no Ipiranga, onde entregamos junto com o de Vila Mariana. E o outro é do SINDEMA, o sindicado dos servidores de Diadema, que tem uns quatro meses. Então são sete agora. Talvez Diadema e Ipiranga ainda não sejam grupos de consumo consolidados. Alguns grupos começaram assim, com uma pessoa puxando e depois constituindo um coletivo.

O preço pago aos produtores é definido por eles mesmos? É muito influenciado pelos preços de mercado? Como vocês pensam esse aspecto?

É influenciado por preços de mercado sim, mas não tão diretamente. A gente não quer cobrar um preço tão caro dos consumidores. Mas a gente tem os custos de gasolina, manutenção de carro, algumas ajudas de custo.

Tem mecanismos de mercado, porque a gente vive numa sociedade da produção do valor, não estamos fora dela. Mas não é um preço de mercado de atravessador, por exemplo. A gente começou pagando um preço negociado e depois foi subindo de forma negociada.

A gente tem uma lista de preços, a gente tenta padronizar. Óbvio que se é um produto muito lindo, a gente abre exceções, mas depois isso dá um trabalho enorme na planilha, porque sai do que a gente conseguiu avançar em termos de automatização da planilha, e ainda pode dar problema.

Mas dá para chegar no consumidor por um preço justo. Tem um monte de gastos no meio, como gasolina, pedágio, manutenção, servidor do site, sacolinha, perdas, etc. Além disso a gente também serve nosso caixa de microcrédito. Muitas vezes emprestamos para a companheirada que precisa, para compra de mudas, por exemplo.

Atualmente, se não existisse esse trabalho feito pela cooperativa, os produtores teriam alguma alternativa de escoamento da sua produção? Nesse meio de tempo mudou alguma coisa nas condições que eles encontram no mercado?

Voltou a ter política pública de compra institucional, então mudou sim. E alguns se profissionalizaram mais e conseguem hoje tocar uma feira direta, se precisar, e a gente tem incentivado muitos a fazerem isso. A gente tem um grupo [de Whatsapp] de feiras com vários produtores, vários assentados e acampados que hoje dividem tarefas nas feiras. Tem mais gente dos territórios nesse grupo, para pensar junto as feiras, dividir tarefas e por vezes fazer a logística.

Por exemplo, tem um casal do [assentamento] Dom Pedro, eles melhoraram muito a qualidade do processo. Fazem beneficiados de mandioca, mandioqueijo, nhoque, carne de jaca. Tem também uma companheira do [assentamento] Dom Tomás que faz pão, carne de jaca. Teve inovação, tem produtos que não havia antes, muito puxados por ter esse mercado. Hoje essa companheira é uma das maiores produtoras, e sem a cooperativa ela não teria esse mercado.

E de que forma a cooperativa ajudou nesse processo de profissionalização desses produtores e produtoras?

O trabalho com a cooperativa ajudou muito, porque a gente vai dando os retornos e falando: “precisa ter rótulo”, “precisa data de validade”, “essa embalagem rasga muito fácil”. E ao mesmo tempo a gente nunca fala “nunca mais vou pegar de você”. Isso não. A gente chega e fala “companheira, a gente quer que isso vá para frente, e para ir para frente precisa melhorar nisso e nisso”. É chato às vezes o trabalho de discutir qualidade, mas a gente faz isso com o carinho e amor que a gente consegue. Nesse mercado dos grupos de consumo tem gente que topa experimentar, que se encontrar um problema em um produto, não vai sair xingando.

Sim, um outro tipo de relação.

Acho que é uma relação que tem margem. Nem todo mundo vai entrar nisso, porque a correria é bruta, mas existe margem para os laços afetivos. Todos os grupos de consumo, tirando esses dois mais recentes, em algum momento já visitaram os territórios. Olharam no olho das pessoas e conheceram, “ah, essa é a Sheila que faz o nhoque!”. É uma relação muito menos mercantilizada e muito mais focada numa troca econômica com sentido de valores de uso, e não de valor por valor. Estou comendo um alimento sem veneno, produzido por pessoas que estão na luta.

Vamos às reuniões dos grupos de consumo e construímos as visitas deles aos espaços, pelo menos uma vez por semestre. É um trabalho de formação, de construção desses laços, desse vínculo menos mercantilizado. Focado no valor de uso, na política e no afeto, e não na mercadoria. É um alimento sem veneno, produzido por uma pessoa. Quando a gente manda a lista no grupo de consumo, está escrito lá, “nhoque da Sheila, do Dom Pedro”, “licor da Rosângela, do Irmã Alberta”, “mel do Severino, do Dom Tomás”. Aí a pessoa um dia vai lá e conhece a Sheila. É uma relação muito diferente.

Também tem um ponto, e é isso que eu tenho tentado estudar um pouco. Para a transição agroecológica, você tem uma margem de manobra muito maior do produtor sobre sua produção, óbvio que dialogando com o consumidor. Não é cliente-rei do mercado tradicional, mas também não é produtor-rei, tipo “você vai pegar o meu almeirão sim, porque eu produzi bem, está bonito e você vai comer almeirão”. Não pode ser assim.

Como é um modelo de cesta fechada e muita gente que compra por ser do movimento, é muito diferente de um contrato, seja de mercado institucional ou de mercado privado. Imagine, “quero trezentos quilos de banana, neste e naquele parâmetro”. A política pública tem critério de qualidade também, tem parâmetros de tamanho. Então neste tipo de relação você também amplia a margem de manobra do produtor sobre o seu trabalho. São graus de desmercantilização.

Porque ele pode produzir para venda, sim, mas é uma venda que não tem que seguir parâmetros a priori, que vão subsumindo o trabalho. A agricultura familiar fornece frango para a Sadia. Mas aí você vai ver o contrato da Sadia, ele pauta ritmo e intensidade de trabalho, insumos, critérios de qualidade, é como se fosse um terceirizado, ou mesmo um contratado. Você está controlando o trabalho daquele produtor familiar. Já no grupo de consumo, é um estágio em que ele controla o próprio trabalho num nível muito alto, frente às possibilidades de uma produção para venda. Isso aparece no desenho do canteiro, na escolha do que vai ser plantado ou não.

Essa ideia de “graus de desmercantilização” é muito interessante!

É uma outra relação com o trabalho. Ele escolhe plantar a acelga dele e sabe que os consumidores dele vão testar. Talvez ninguém goste de acelga e ele tenha que mudar. Mas ele não vai ter que mudar para seguir um contrato só de alface e pagar uma multa. Certo, não pode acelga, mas eu posso plantar trezentas outras coisas, entende? Isso abre possibilidades para um outro tipo de relação com o trabalho, que é o trabalho agroecológico, uma relação do sujeito com o seu fazer e na mediação com a natureza. Um trabalho com possibilidades emancipatórias e muito menos determinações alienantes.

Estou indo para uma discussão abstrata, que é a discussão da minha pesquisa, mas é uma outra relação com o seu fazer e com a árvore que vai dar o fruto para o tucano, com o canteiro e com a formiga que come o canteiro. Esse tipo de consumo abre muito mais margem para avançar na agroecologia.

Existe interesse da cooperativa em aumentar sua operação, seja em volume num mesmo território, seja ampliando sua área de abrangência? Quais seriam as limitações a serem enfrentadas? E até onde vocês avaliam que seria adequado chegar, em termos desse crescimento de abrangência ou de volume?

Existe, sim, o desejo de crescer em escala. Pode envolver o aumento de abrangência, mas não necessariamente. A gente precisa crescer em escala, antes de mais nada. Por que?

Poucos agricultores vivem só da entrega para a cooperativa, talvez no máximo uns vinte, dos sessenta com quem a gente dialoga. Eles vivem de outras coisas também. Muitas vezes, é autoconsumo e aposentadoria. É uma base envelhecida. Às vezes a gente é a única pessoa que comercializa a produção deles. Não é isso que mantém a reprodução da vida deles. Isso também ajuda em graus de desmercantilização dos canteiros.

Mas a gente também quer ser uma alternativa para o pessoal em idade ativa, mais jovem. E aí, quanto mais relevante você se torna para essas pessoas, mais sentido faz. Se a gente for pegar dez alfaces de cada um, a galera vai plantar dez alfaces. Mas se a gente garante, “pode plantar trezentas, que a gente vai pegar trezentas”, muitas pessoas vão plantar trezentas. E algumas famílias mais jovens, que estão em outra condição, outro momento de vida, precisam disso. E a gente não consegue propiciar isso porque nossa escala não é tão grande ainda. A gente quer que todas as famílias possam viver bem nesse tipo de produção.

Então é crescendo que a gente pode crescer. É meio que um círculo virtuoso. A relevância da escala torna factível a gente poder pedir para a galera plantar mais. Porque se a gente é só um complemento de renda, o que eles vão fazer se pedirmos para plantarem mais? Por isso também demorou tanto tempo para a gente chegar onde está. E isso é uma potência e um obstáculo ao mesmo tempo, porque é uma escadinha. Você sobe um degrau na comercialização, você consegue puxar na produção, mas se você não puxa, ele te puxa para baixo de novo. Você tem que subir um degrau aqui e outro ali. E se não sobe rápido o outro, aquele que você não subiu te puxa para baixo.

Então a gente tem esse trabalho de estar nos territórios, ajudar a planejar a produção, se mostrar presente, afetivamente presente. Isso não é fácil, porque é muita coisa. E todos nós temos outros trabalhos além deste. A gente precisaria liberar umas três pessoas, numa estrutura que possa só fazer isso. Senão perde muita qualidade, não dá para ter processos claros, fazer um trabalho de base melhor. Então precisa crescer para poder profissionalizar, para poder crescer mais.

Mas aí tem um limite, não é entrar num jogo de crescer por crescer. Acho que o limite é a produção que companheirada consegue entregar vivendo bem. Passou desse limite, não precisa.

Tem que chegar num ponto em que a gente tenha um capital de giro, tenha salário para pelo menos três pessoas, para que elas tenham quarenta horas por semana para fazer só isso se quiserem e não precisem correr atrás de outras coisas. E para fazer com qualidade, com afeto com a companheirada, sem pressa. Avançamos bastante nisso, mas ainda tem muitos problemas.

Com essa verba, daria para levar a mais lugares a bandeira desse trabalho de base urbano, a ponte campo-cidade. Daria para mostrar a produção do MST, mostrar na maior cidade do Brasil que o MST dá certo. Consolidar mais alianças com os movimentos da cidade também. Precisa crescer para chegar nisso. Crescer para que jovens que estão nos assentamentos possam produzir sua agrofloresta tendo saída certa. Então não é crescer por crescer.

Esses produtores e produtoras têm uma margem de crescimento da produção?

Têm! Eu não falei tanto de obstáculos, mas tem um obstáculo muito complicado, que é a infraestrutura. Água, por exemplo. No Dom Tomás falta muita água. O poço queima, a prefeitura não conserta, aí a gente empresta dinheiro para consertar a bomba do poço. No Dom Pedro falta água também. Menos, porque lá tem o lago, ajuda bem, mas tem lugares em que não chega. No Irmã Alberta nem se fala. No Irmã Alberta falta tudo: água, luz. Então infraestrutura é um obstáculo complicado.

E força de trabalho?

Não é o principal obstáculo agora. Se botar mais força humana sem aumentar a infraestrutura, vai dar mais problema do que resolver. Quando tiver muita água no Dom Tomás e no Irmã Alberta, talvez aí a força de trabalho vire um problema. Mas aí já vai ter vários outros problemas resolvidos. Água é o principal problema.

Outra coisa são os recursos que reduzem a penosidade do trabalho rural, como tratorito, principalmente para o pessoal acima de sessenta, setenta anos. E ter não só água, mas também sistema de irrigação: é bomba, mangueira, cano.

Outro obstáculo é a falta de ATER [assistência técnica e extensão rural]. Já tivemos, por poucos períodos, uma ótima ATER, antes da pandemia. ATER é pensar o todo: o pulgão, a fruta, o comércio. No Irmã Alberta, agora está tendo ATER, a gente tem uns aliados que fazem o processo, mas precisava ter um esquema mais estruturado, um programa estatal. No Dom Tomás o ITESP faz uma coisa ou outra, principalmente para turismo rural, mas nada para produção. No Dom Pedro não tem ATER há muitos anos. No Irmã Alberta começou a ter por um programa do Sampa+Rural há uns três meses.

O movimento tem uma frente ou um setor de captação de recursos, por exemplo para obter recursos governamentais? Para comprar tratorito, por exemplo.

Sim. A gente comprou um tratorito para o Irmã Alberta, coletivo. Foi muito usado. Mas precisaria ter dez, o tratorito é pequeno. O cobertor é sempre curto, e aí a mobilização no estado de São Paulo fica na mão da direção estadual. A gente não acessa verba de emenda para nós, por exemplo. A gente faz baião de dois no Al Janiah para conseguir dinheiro! Trabalham quinze pessoas, por três dias, para conseguir mil reais para a regional. A nossa regional é pobre, sem grana. Base pequena, três comunas da terra minúsculas. A cooperativa dá uma vida para a regional que ela não teria sem a cooperativa.

Esta cooperativa é a única na regional?

Sim.

E no estado, tem mais?

Tem cooperativas fortes no estado. A Coopavi, em Itapeva, tem feijão, soja orgânica, carne de porco, pão. A Cooplantas, das mulheres, com ervas medicinais. A Coapar, em Andradina, produz leite, queijo, manteiga, tem agroindústria. É outro rolê. A regional Grande São Paulo vem de um esquema de pessoas em situação de rua, não camponesa ou ex-camponesa, ou situação urbana favelada. É muito específica a realidade aqui.

nosso sonho

Durante quatro dias, a IV Feira Nacional da Reforma Agrária, organizada pelo MST, concretizou o sonho de muitos dos que lutam pela soberania alimentar no Brasil. Nesse sonho, além do acesso a uma grande abundância de alimentos produzidos sem veneno, está a possibilidade de comprá-los diretamente de seus produtores.

Na compra direta, a quantia paga pelos consumidores servirá integralmente para remunerar de forma digna esse trabalho tão essencial que é produzir alimentos, além de pagar os custos de produção e transporte. Esses valores têm ainda a função de apoiar a importante missão do movimento como um todo, que é ocupar terras improdutivas e lutar pelo direito de plantar para alimentar pessoas.

A abundância material e humana que havia ali traz sensação de acolhimento e segurança. Poder estar perto das pessoas que produzem os alimentos que consumimos é uma experiência enriquecedora, pelas trocas que possibilita. Para os produtores, suponho que o contato direto com aqueles que se beneficiam do resultado de seu trabalho gere semelhante sensação de segurança. Garantir o escoamento da produção é essencial para a sobrevivência de qualquer unidade produtiva, mais ainda quando ela é pouco capitalizada, como é o caso daquelas pequenas propriedades.

Porém, nos dias em que estive na Feira, ao mesmo tempo em que eu olhava todos aqueles alimentos sobre as bancas dos produtores, ficava me perguntando: e quando a feira acabar? Como é possível reproduzir pelo resto do ano toda essa proximidade, que garante aos agricultores o escoamento de sua produção? A resposta também emergiu em meio a toda aquela abundância. Parece se tratar simplesmente de conexões.

Foto: Dionizio Bueno

Redes de distribuição de alimentos são nada mais do que isso: conexões entre produtores, consumidores e, quando não há alternativas, intermediários. O poder das conexões é tão grande que a possibilidade de controlá-las dá a certos agentes altamente capitalizados a possibilidade de determinar o preço de compra do lado da produção e o preço de venda do lado do consumo.

Portanto, construir alternativas a esses esquemas estabelecidos, criando a possibilidade de acesso direto ou quase direto entre produtores e consumidores, é o caminho para a autonomia. Há muitos formatos para se criar essas conexões, e diversas experiências já existem, funcionando muito bem.

cooperativas de militantes | São grupos organizados que coletam a produção de diversos assentamentos regionais e os distribuem aos consumidores na cidade. Realizam a venda através de páginas na internet ou por meio de grupos de consumo e entregam os produtos em domicílio ou em pontos de retirada espalhados em pontos estratégicos, para que os consumidores possam economizar o custo do frete.

lojas do próprio movimento | Com lojas em diversas cidades do país, redes como o Armazém do Campo oferecem produtos da reforma agrária de diversas regionais, utilizando também a estrutura dos esquemas de distribuição mantidos pela própria militância.

pequenos entrepostos | Essas iniciativas, individuais ou de pequenos coletivos, vendem alimentos tanto da reforma agrária como de hortas urbanas e pequenos produtores na cidade e em volta dela. Verdadeiras zonas autônomas, tais espaços possibilitam o acesso a alimentos saudáveis em suas vizinhanças, algumas vezes em situação de fragilidade institucional, necessitando portanto do apoio comunitário em luta de resistência.

cooperativas de consumo | Com um formato bastante inovador no Brasil, uma cooperativa está sendo formada para gerir um mercado no qual os cooperados realizam grande parte das tarefas práticas e administrativas da loja, diminuindo sensivelmente seu custo operacional e, como consequência, o preço final para os consumidores.

grupos de compras coletivas | Há certamente centenas, senão milhares deles. Basta que uma pessoa colete os pedidos de várias famílias e realize o pedido diretamente à unidade produtora, recebendo a encomenda em sua casa, onde as pessoas do grupo poderão retirar suas compras.

Nos próximos meses e anos, veremos iniciativas como estas crescendo e se proliferando. Mas para consolidar o sonho do amplo acesso aos alimentos saudáveis produzidos pela reforma agrária, é preciso que iniciativas como essas entrem nas vidas de cada vez mais pessoas, e isso pode exigir algumas adaptações, nas duas pontas do sistema.

Foto: Dionizio Bueno

Do lado do consumidor, é preciso planejar o abastecimento da casa. No caso das compras coletivas, por exemplo, os pedidos são abertos somente em certas datas. Concentrando aí as quantidades para um período mais longo (o que naturalmente só é possível no caso de produtos menos perecíveis), todos ajudam a compor um pedido de maior volume, facilitando a negociação de preço com o produtor e ajudando a diluir os custos de frete.

Esse planejamento vale também para produtos mais perecíveis, de compra mais frequente. Por enquanto, as lojas que oferecem produtos orgânicos da reforma agrária existem apenas em certos locais da cidade. As compras de produtos in natura podem ser feitas semanalmente ou até quinzenalmente, evitando demandas de última hora que acabam sendo feitas em qualquer mercado mais próximo.

É muito importante também entender que um padrão de alimentação mais saudável estará sempre sujeito a sazonalidades. É natural que certos produtos não estejam disponíveis em todos os lugares durante o ano todo.

Por meio de seus regimes industriais de produção de alimentos, o sistema alimentar baseado em grandes redes de distribuição e varejo cria artificialmente a possibilidade de ter quase tudo durante todo o ano. Os alimentos são produzidos de forma intensiva em fazendas que podem estar a milhares de quilômetros da sua casa, em regiões com outro padrão climático. Crescem por meio de estimulação artificial, utilizando fertilizantes químicos, e são colhidos enquanto estão verdes, conforme seus cronogramas de linha de produção e a quantidade de pedidos recebidos pelo departamento comercial dessas indústrias agrícolas. Por fim, têm o seu amadurecimento forçado através da exposição a gás etileno obtido do petróleo.

É perfeitamente possível ter uma alimentação baseada em produtos da época, tornando desnecessários esses recursos artificiais criados para viabilizar a produção de alimentos em enormes escalas, gerando grandes lucros para uns poucos, além de mimar um consumidor que quer ter de tudo agora.

Imagem: divulgação

Do lado dos produtores, um pequeno esforço de organização pode contribuir muito para o florescimento dessas redes de distribuição. Só eles podem ter a visão de todos os pedidos que estão recebendo, com suas respectivas datas, destinos e quantidades. Uma boa organização das rotas pode fazer o custo do frete ser dividido entre vários pedidos, diminuindo para todos os custos de transporte e fazendo com que os produtos cheguem a um preço mais baixo para os consumidores, beneficiando as vendas.

E com relação às entidades e grupos que organizam essas iniciativas, cabe ter a inteligência coletiva de entender que o espalhamento e a capilarização desse novo sistema alimentar são benéficos para toda a rede. Seria totalmente fora de propósito enxergar novas iniciativas semelhantes como concorrência. Claro que é preciso cuidado para que a atuação de iniciativas mais capitalizadas ou profissionalizadas não resulte na eliminação de outras que já se encontravam em funcionamento. Por isso é essencial manter o contato e o diálogo entre essas organizações, formando uma teia de cooperação.

Se lutamos para construir esse outro mundo com o qual sempre sonhamos, mas não formos capazes de nos libertar do paradigma da competição, em que o ganho de um implica a perda de outro, me parece que não aprendemos nada.

Produtores e consumidores têm muito a ganhar juntos com essas novas conexões. Em seu conjunto elas estão formando uma rede de produção e distribuição de alimentos que passa ao largo dos conglomerados de logística e varejo geridos pelo grande capital, que atualmente dominam o mercado de alimentos no Brasil. Vivemos a era da retomada dos circuitos curtos. Por muito tempo cultivamos nossos sonhos, hoje eles finalmente começam a florescer.

banco de alimentos

Todos os dias, centenas de quilos de produtos alimentícios saem do Banco de Alimentos da Prefeitura de São Paulo, tendo como destino diversas entidades assistenciais, espalhadas por toda a cidade. Essas entidades vão repassá-los a famílias em situação de insegurança alimentar. Nos últimos seis meses (de abril a setembro de 2022), o Banco de Alimentos distribuiu, em média, 30,8 toneladas de alimentos por mês.

Os gêneros que chegam ao Banco de Alimentos vêm de três origens: doados por empresas parceiras (distribuidores, redes de varejo, indústrias), adquiridos da agricultura familiar e arrecadados pelo Programa Municipal de Combate ao Desperdício e à Perda de Alimentos, que coleta, nas feiras livres e mercados municipais da cidade, alimentos já fora dos padrões de comercialização mas que se encontram em perfeitas condições de consumo. No caso das doações de empresas parceiras, trata-se de produtos com pequenas avarias nas embalagens ou próximos à data do vencimento.

“Existem manuais que orientam sobre quando se pode destinar alimentos com danos na embalagem. Nós treinamos nossos funcionários para fazerem essa triagem”, diz Luíza Araújo, nutricionista responsável pelo programa. “Quando recebemos produtos muito próximos ao vencimento, nós acionamos entidades que produzem um grande número de refeições e as entregam prontas às famílias, de forma a garantir que esses alimentos serão consumidos ainda dentro do vencimento. No caso das entidades que distribuem sacolas de produtos fechados para as famílias, encaminhamos produtos que estão menos perto do vencimento”. Após uma avaliação inicial e triagem, são feitas correções nas embalagens ou, caso estejam muito danificadas, os produtos são transferidos de embalagem. Estas recebem uma nova etiqueta, com as informações necessárias sobre o produto.

O Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional (Cresan) da Vila Maria, onde funciona o Banco de Alimentos da Prefeitura de São Paulo. Foto: Dionizio Bueno.

Atualmente, há 410 entidades cadastradas para receber os produtos. Existe um esquema rotativo que garante a cada entidade que, quando for sua vez de receber alimentos, haverá quantidade suficiente para atender todos os seus beneficiários. É importante também que haja um bom aproveitamento do transporte que a entidade envia ao Banco, localizado na Vila Maria, zona norte, para receber os produtos. De um modo geral, cada carga tem 300 quilos de alimentos ou mais.

De acordo com os balanços mensais do programa, que são publicados no Diário Oficial e ficam disponíveis no portal da Prefeitura, ultimamente o Banco tem atendido cerca de 70 entidades a cada mês, o que dá uma média de 440 quilos de alimentos por entidade. O Banco dispõe de câmara fria, sala de manipulação, diversas salas de estocagem e uma cozinha industrial, onde acontecem oficinas de capacitação para as entidades, formações para geração de renda com alimentação saudável e atividades de educação nutricional para escolas, unidades de saúde e população do entorno.

Servidora apresenta uma das salas de estocagem do Banco de Alimentos a profissionais das entidades beneficiadas, dando dicas sobre armazenamento e conservação dos produtos. Foto: Dionizio Bueno.

Os dados disponíveis sobre o Banco de Alimentos mostram que em 2020, primeiro ano da pandemia, houve um sensível aumento na quantidade de alimentos recebidos e distribuídos pelo Banco. Isso demonstra como é fundamental que um sistema de segurança alimentar esteja sempre em funcionamento, pronto para ampliar sua atividade em períodos de agravamento da fome, por meio de ações emergenciais.

Podemos também atribuir a um equipamento público como este uma importância que vai muito além da perspectiva de mitigação dos efeitos de um sistema alimentar excludente. Ele pode ser usado para a própria construção e consolidação de um sistema alimentar mais justo e acessível. A estrutura do Banco de Alimentos pode, por exemplo, ser utilizada com enfoque de fortalecimento da economia local, por meio de aquisições governamentais permanentes de produtos da agricultura familiar existente na região em que está instalado. Seria uma contribuição sistêmica para a erradicação da fome, profundamente alinhada aos princípios da segurança alimentar, um modelo que poderia ser replicado em outras regiões da cidade.

As dinâmicas do mercado e do capital tendem a excluir da cadeia produtiva o pequeno produtor. Para contrabalançar essa tendência, cabe ao poder público adotar um papel ativo no sentido de garantir a viabilidade econômica desses estabelecimentos. A quantidade de sítios produtores e hortas urbanas existentes no município demonstra como isso é possível inclusive dentro de uma metrópole como São Paulo. Além dos evidentes benefícios sociais, um sistema localizado de produção de alimentos afeta o preço final, ao diminuir os custos de transporte, e também a qualidade do alimento, que viajará menos e chegará mais fresco à mesa das pessoas.

Criado em 2002, o Banco de Alimentos da Prefeitura de São Paulo é um programa da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Trabalho (SMDET), por meio da Coordenadoria de Segurança Alimentar e Nutricional (Cosan).

entrevista: Ademar Suptitz

Na primeira ação do Bicicarreto, em 2018, contamos com a parceria e, principalmente, a confiança de Ademar Suptitz, coordenador da loja do Armazém do Campo de São Paulo. Recentemente, estivemos no Armazém para tomar um café e conversar sobre produção e distribuição de alimentos.

Ademar – ou Schusk, como costuma ser chamado pelos companheiros de militância – nasceu no Rio Grande do Sul, em uma família de camponeses. “A gente tinha lá um poço, e ao redor do poço tinha as árvores, mais em baixo tinha um açude com peixes, tinha um campinho pras vaquinhas, uma horta ao redor da casa e um pomar mais pra cima. Tinha a área de plantio e no canto tinha uma mata preservadinha, para se ter a lenha, a madeira. A gente guardava as sementes de um ano pro outro.”

Nesta entrevista, Schusk fala sobre associativismo e cooperativismo, sobre a distribuição dos produtos da reforma agrária e sobre algumas estratégias de atuação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Mostra como o agronegócio vai tomando o lugar da produção de alimentos e conta experiências bem-sucedidas na produção de alimentos orgânicos no Brasil. Esta é a primeira de uma série de entrevistas na qual mostraremos os diversos componentes de um sistema alimentar soberano, pelo olhar das pessoas envolvidas nessa luta.

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Fala-se muito das dificuldades que os pequenos produtores têm para escoar sua produção. Quais são os maiores desafios?

Esse é um dos grandes gargalos. Ao falar de comércio, tem que pensar também na logística. Se as famílias não se organizam, vem o atravessador e acaba comprando. Esse debate passa pela discussão da organicidade, em torno do associativismo. Para uma família de camponeses, individual, é muito difícil o trabalho. O cara acorda às seis da manhã, tira o leite, cuida dos animais, faz café manda os filhos pra escola. É o tempo todo na lida, plantio, colheita. E ainda tem que se preocupar com o mercado? A partir do momento que se associa com alguém, vai profissionalizando determinadas tarefas.

Quem faz feira, geralmente não é uma família sozinha, eles se juntam em três ou quatro. Porque como vai organizar tudo para levar para a feira? Planta a semana toda, na sexta tem que colher, amarrar o maço da cenoura, da rúcula, botar nas caixas. Muitos funcionam assim, a família se vira. E muitos usam bicicleta, principalmente quem está perto, até cinco ou dez quilômetros é bicicleta! Nos assentamentos do Brasil inteiro. De 2004 até 2012, qualquer família assentada conseguia financiamento para comprar uma caminhonete. Isso facilitou, mas por que não investir em tecnologia, uma bicicleta cargueira, um esquema híbrido movida a sol e pedalada para evitar o fóssil. Não tem isso no Brasil.

E costuma ter para quem vender a produção?

De um modo geral, tem para quem vender. O problema é a superexploração, o atravessador paga um preço muito baixo e não agrega valor.

Esse atravessador é regra geral nos assentamentos que você conhece?

Olha, pelo menos a metade é. De nossa base, pelo menos 80% não é coletivada. No acampamento sim, mas no assentamento o cara acaba optando pelo [caminho] individual. Onde tem liderança, onde a formação é boa, funciona, mas de um modo geral, não. O [acampamento] Irmã Alberta é extraordinário desse ponto de vista, porque ainda é acampamento. Nossas cooperativas, de um modo geral, acabam apadrinhando muitas famílias também: aqui está a estrutura, então bora. No caso do arroz, mesmo o cara individual está tranquilo, porque a cooperativa compra todo o arroz dele e paga um preço justo, paga a mesma coisa que pagou para o associado da cooperativa. A gente elimina a desigualdade, tem muita força nesse sentido. Mas não é regra geral.

No caso do arroz orgânico tem a indústria. A cooperativa é dona da indústria. Mesmo o individual, ele é sócio. A indústria paga um valor mais alto que o mercado convencional. Na pandemia o mercado pagava 80 reais o saco para o produtor, a cooperativa sempre pagou 130.

E como funciona?

Tem aqui um assentamento, digamos o assentamento Capela. Numa parte dele é cem por cento cooperado, ninguém sabe onde está seu lote, é tudo posto de trabalho. Eu trabalho na fábrica de arroz, você trabalha no abatedouro, outro no administrativo, outro no refeitório. No final do mês se distribui a hora trabalhada. Nesse assentamento tem um grupo de cinco irmãos, eles se organizam para ter a máquina associada. Aí tem um grupo de três, outro de dois, e tem muitos que é só ele e a família.

Tem assentamentos em que é cem por cento individual, tem onde é cem por cento coletivo e tem misto. É o lance de você formar lideranças. Quando tem liderança forte, ela acaba conseguindo manter a organização. Quando não tem, é meio que cada um por si. Claro que tem também a organicidade do MST, essa organicidade mais da política, digamos. A cada dez famílias é um núcleo, tem um coordenador e uma coordenadora no assentamento todo. Aí o cara não representa só a cooperativa, representa o assentamento todo. Ao longo desses quase 40 anos a gente foi experimentando de tudo um pouco, mas o grande desafio é ir formando consciência nessa galera pra eles irem se associando.

Ademar Suptitz (Schusk), no Armazém do Campo da Barra Funda, em São Paulo. Foto: Dionizio Bueno.

Parece que o arroz, pela necessidade de equipamentos para colheita mecanizada, beneficiamento, etc., fomentou o surgimento da cooperativa, e isso resultou numa proteção contra o atravessador. Mas isso não aconteceu na produção de outros gêneros que são vendidos mais in natura como hortifruti, leite…

Aí cooperação é menor. Deveria ser ao contrário, né? Antes da produção agroecológica do arroz, o brejo era arrendado para o grande latifúndio do arroz, porque é difícil produzir o arroz. Está no meio da água, é só máquina bruta que faz esse trabalho. Mas aí os caras se organizaram, três famílias começaram a produzir orgânico num projeto do estado. Se formaram em cooperativa, foram vender ensacado.

Isso há quanto tempo?

Começou em 2002. O arroz tem contribuído para esse diálogo das outras cadeias. Agora o setor de produção tem feito um diálogo em torno de aptidões regionais. Tem que plantar arroz em outros lugares do Brasil, mas em alguns não tem aptidão. Por exemplo, o sul da Bahia tem aptidão pra plantar arroz, então vamos lá organizar.

Mas tudo depende do que a família consegue produzir. Geralmente tem uma ou duas linhas de produção que é para o mercado convencional, pro tal do atravessador. A gauchada, por exemplo, é soja transgênica. A produção já está vendida para uma cooperativa. Os agricultores já receberam faz dois anos, digamos, as safras até 2025. Tem isso também. Duzentos reais o saco de soja! O cara não vai plantar outra coisa. Vai vender a produção e vai ter uma máquina. Mas para produzir soja orgânica, aí é difícil. O problema da soja é que em qualquer lugar o cara te financia. Pega qualquer fazendeirinho lá, se ele tem um silo que guarda a soja, tem um capital de giro, eles financiam.

Então é mais fácil conseguir financiamento só pelo fato de ser soja?

Sim, e aí já está tudo lá: o trator, a plantadeira, já tem tudo. Se for criar uma cadeia nova, não tem nada. Não tem o agrônomo, não tem o pacote tecnológico, não tem o insumo, tem que fazer tudo, tem que começar do zero. Esse pessoal do agronegócio tem trezentos bilhões [em financiamentos], nós não temos nada!

E quanto às feiras de produtores, como tem sido essa articulação?

Isso depende da relação do assentamento com a prefeitura, com a Emater ou com a igreja, depende muito da articulação. Mas de um modo geral, no interior, tem muitos lugares em que não tem uma feira na cidade. Porque aquele carinha da soja, só porque vendeu a soja e está usando máquina, ele não quer saber de plantar alimentos. Ele acaba comprando até o alface dele no mercado. A gente sempre discute isso com as famílias. “Olha, você pode ter uma ou duas linhas de produção para o mercado, e é bom ter mais de uma, porque se uma oscilar você não vai se prejudicar totalmente, mas tenha um mínimo para subsistência, uma horta, um pomar.” Mas essa galera da soja, nem horta tem, só quer plantar soja.

Você já foi pro Sul né? Na beira do asfalto não tem mato, tem soja. Porque dá muito dinheiro. Imagina, 50 dólares o saco. Por isso é que a desregulação do mercado brasileiro é tão perversa. O cara que plantava tomate diz: “O que, eu?” Ter que pagar mão de obra, veneno. Imagine, uma latinha de 500 gramas de semente de tomate é cinco mil reais. Isso na época em que eu estava em Minas, agora deve ser dez mil. Aí qualquer chuva de pedra acaba com o tomate. E a soja não. Então o que manda é sempre o produto mais fácil de produzir, que é a soja, o milho.

Você deve ter visto aquele trabalho que saiu recentemente, Agroecologia nos Municípios, que fala das iniciativas municipais que de alguma forma fomentam a agroecologia e a produção familiar. O campeão de iniciativas está lá na região Sul. O que você acha que acontece lá que de alguma forma ajuda essas iniciativas a surgirem?

É possível que seja uma questão cultural do Brasil. Tem estudos sobre isso, mas não dá para ter certeza. Ali tem a imigração europeia, que pelas necessidades era mais associativista. No nordeste, o cara saiu da escravidão do sistema escravista e acabou caindo na escravidão do grande latifúndio. Aí o associativismo acabou ficando de lado. Apesar que as ligas camponesas tiveram um trabalho muito legal lá. E hoje nós temos muitas cooperativas no Nordeste, Centro-Oeste, Amazônia. A gente tem conseguido discutir um pouco. Ainda não o cooperativismo, a gente discutiu o associativismo. O cooperativismo já é um pouquinho mais complexo.

O associativismo pode ser ali um grupo de mulheres que resolveram fazer pão. Isso já é associativismo. Ou alguns agricultores que resolvem fazer um roçado pra festa de Natal. É associativismo. No final dos anos 1970, no Brasil, era muito espontâneo o associativismo. Tinha até clube de mães discutindo contra a ditadura militar. Não precisa voltar nesse passado, mas teria que pensar um pouco nisso. Então acho que o sul do Brasil, de um modo geral, tem um pouco disso. Pega ali a Serra Gaúcha. A Serra Gaúcha casou a pequena agricultura com a indústria. Caxias, por exemplo, é uma região super industrializada, mas ali ao redor é só pequena propriedade, não tem grande latifúndio.

Indústrias do setor de alimentos?

Indústria de um modo geral. Tem a Scania, a Marcopolo, a Tramontina. Porque o capital vai ali onde tem matéria prima para a indústria, mas tem também a mão de obra do camponês. A reforma agrária clássica nos países europeus foi nesse sentido. O Brasil nunca fez essa reforma agrária clássica.

Como seria isso?

É a distribuição da terra casada com desenvolvimento da indústria. A reforma agrária produz matéria prima para a indústria e também produz a mão de obra, que é o filho, que está ali perto. Pega ali Bagé, não tem indústria nenhuma, ali é o grande latifúndio ainda. Atrasado, retrógrado. Regiões de fronteira, de um modo geral. Mato grosso é um descampadão, não tem indústria. Aí pega o Espírito Santo, tem bastante indústria e bastante agricultura familiar. Santa Catarina é quase só agricultura familiar. E tem bastante indústria: Sadia, Aurora. Até mesmo o capitalismo deu sinais do que era melhor e do que não era.

E que formas você vê de semear isso mais para cá, de fomentar o associativismo?

Nós temos cooperativas e associações em todo lugar do Brasil, desde 30 anos atrás. Eu acho que é preciso ter lideranças. E acho que a igreja contribuiu um pouco também, com a Teologia da Libertação. O MST também vem disso. Eu lembro que os padres faziam assim: mostra um gravetinho, “Assim você quebra bem fácil”; se forem vários gravetos, “Aqui já é bem mais difícil”. Discutir o campesinato é discutir toda essa relação entre homem e natureza. Nós somos produtores da natureza.

Eu suspeito que teria que ir pelo caminho dessas experiências de trabalho de base que já existem: mapear, mapear, mapear possíveis lideranças. Nós, no Armazém do Campo, fazemos muito isso. Conseguimos abrir várias lojas. A gente mapeia lá no estado alguém quem tem potencial de reproduzir o conhecimento. O cara vem pra cá, a gente treina ele durante quinze dias, ele volta lá e assume.

Produtos orgânicos da reforma agrária, no Armazém do Campo da Barra Funda, em São Paulo. Foto: Dionizio Bueno.

Agora um pouco sobre o Armazém do Campo. Considerando apenas produtos in natura, esta loja compra de quantos produtores, atualmente?

Na segunda-feira vem de uma área nossa em Jarinu, tem grupo de sete ou oito pessoas lá, bem pouco. Na segunda nós também pegamos dos quilombolas do Vale do Ribeira, os bananeiros. Vem a banana, tem bastante cebola, tomate, palmito.

Na terça nós pegamos com o pessoal da Terra Viva, lá da região de Sorocaba. Eles pegam de vários pequenos agricultores e de uns assentamentos nossos que tem ali. Depende do período, mas tem período que eles têm tudo: banana, laranja, manga, cebola, batata, tomate, as hortaliças e tal. Na terça vem também [de assentamentos e acampamentos] da Grande São Paulo, aí é aquele esquema que vocês fizeram.

Aí na quarta é a Cooperapas, que é daqui da zona sul. São pequenos agricultores dali que organizaram essa cooperativa. Eles têm bastante horti-fruti, folhas, e muito bonitas. Toda quarta e todo sábado. Na quinta vem de novo da região de Sorocaba, dos nossos assentamentos ali. Para você ter uma ideia, eles têm a chave daqui, chega de madrugada.

Então aqui na quinta-feira tem produtos que acabaram de ser colhidos?

Sim, na terça e na quinta. Na verdade, todos os dias. Produtos colhidos praticamente na noite anterior. Aí na sexta repete o dos quilombolas e no sábado é a Cooperapas de novo, zona sul. O número exato de produtores eu não sei, mas acho que dá mais de cem. Porque em cada um desses esquemas, eles pegam de vários produtores diferentes.

Esse pessoal do Vale do Ribeira, eles são uma cooperativa?

Isso, a Coopafasb. São famílias quilombolas, ali ao redor do rio. O forte deles é banana, eles abastecem mais de cinco mil escolas aqui em São Paulo, São Bernardo, Santo André, São Caetano.

Por meio do PNAE?

Isso, do PNAE. Banana é com eles. É essa que você está vendo ali. Tem todo um processo, é climatizada, vem padronizadinha. A banana de amanhã e de sábado é mais barata que a do sacolão. No sacolão deve estar oito, a nossa tá seis e cinquenta. Eles têm folhas também, mas folha a gente não costuma pegar deles. Porque é bem mais de duzentos quilômetros. Quando os outros não têm, a gente acaba pegando. Mas normalmente, não. Pra que uma alface tem que viajar tudo isso, se tem por aqui? Então a gente evita.

Para finalizar, o Armazém do Campo tem quantas lojas atualmente?

Nós estamos com quinze lojas físicas abertas. Temos em Porto Alegre, Londrina, Cascavel, Ortigueira, Maringá, São Paulo, Guarulhos, Belo Horizonte, Almenara, Teófilo Otoni, Uberlândia, Montes Claros… E tem outras que estão para abrir. As lojas pertencem ou à direção estadual ou à regional. A única [vinculada à direção] nacional é esta aqui. Eu sou vinculado à secretaria nacional. As outras, são todas vinculadas às direções estaduais ou regionais. Essa é mais ou menos a nossa estrutura.

Nós, os coordenadores, não somos donos. A gente recebe uma ajuda de custo, como qualquer um dos outros meninos que estão em outras funções. A minha política de ajuda [de custo] também é igual à dos outros dirigentes que estão em outros setores, que são dirigentes que nem eu. E a nossa política é de um para quatro: o que ganha menos ganha um, o que ganha mais ganha quatro. A sociedade mais igualitária do mundo que já existiu foi a vietnamita, que era socialista. Atualmente é a cubana, que é um para dez.

No Vietnam era quanto?

Era um para sete. Foi a mais igualitária que teve.

Um para dez já é fantástico, né?

Em Brasília é um para cento e oitenta!

Isso declarado…

Isso declarado, óbvio que tem muito mais. Mas em Cuba, o faxineiro é um e o médico é dez no máximo. No MST é um para quatro. Nós somos mais socialistas que Cuba!

quilombo quebrada

Pouco a pouco, novas conexões estratégicas vão se formando entre produtores e consumidores. Alimentos produzidos nos quilombos do Vale do Ribeira, região sul do estado de São Paulo, agora chegam diretamente ao bairro de São Miguel Paulista, na zona leste da capital, por meio da iniciativa Quilombo Quebrada.

A ação aconteceu pela primeira vez no dia 9 de julho, no Galpão ZL, que pertence à Fundação Tide Setúbal, e voltou a ocorrer no mês de agosto. Os alimentos foram trazidos pela Cooperquivale (Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira), que tem sede no município de Eldorado, através de uma articulação do Instituto Socioambiental (ISA). Além de serem agroecológicos, esses alimentos são produzidos por meio do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola, um conjunto de saberes reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio imaterial do Brasil.

O Quilombo Quebrada é uma feira de produtores que leva alimentos saudáveis até uma região onde as pessoas têm dificuldade para obter comida sem veneno. Sabemos como os alimentos orgânicos custam caro nas redes de supermercados, e são poucas as feiras livres que oferecem essas alternativas. Ao criar um circuito curto, a iniciativa possibilita o acesso aos alimentos saudáveis a um preço mais acessível.

Colheita de mandioca no Quilombo Cangume, em Itaóca – SP. Foto: © Manoela Meyer / ISA.

Há um importante antecedente nessa articulação com a cooperativa do Vale do Ribeira. Em 2021, durante uma das fases mais críticas da pandemia, aproximadamente 11 toneladas de alimentos produzidos nos quilombos foram entregues no Jardim São Remo, na zona oeste de São Paulo. Os moradores da comunidade, por sua vez, foram recebidos nos quilombos, e ali puderam ter contato direto com os produtores e produtoras da região. Essa riquíssima troca de olhares e experiências foi retratada no minidocumentário “Do Quilombo pra Favela – alimento para a resistência negra”, produzido pelo ISA.

A ideia é que o Quilombo Quebrada aconteça mensalmente no Galpão ZL. A próxima ação está marcada para o sábado 10 de setembro.

municípios agroecológicos

Como uma prefeitura municipal pode incentivar a agroecologia em seu território? O levantamento Municípios agroecológicos e políticas de futuro, realizado pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), mostra diversos caminhos que as prefeituras podem seguir para fortalecer a agricultura familiar e a produção agroecológica, beneficiando-se dos efeitos positivos disso para a economia municipal e, sobretudo, a saúde e qualidade de vida de seus cidadãos.

Foi feito um mapeamento preliminar, em todas as unidades da federação, das ações, políticas, programas e leis municipais que, de alguma forma, contribuem para fortalecer a agroecologia. Em seguida, houve um aprofundamento no estudo dessas ações, o que resultou num conjunto com 721 iniciativas das quais o poder público municipal seja executor e/ou financiador, incluindo aquelas que surgiram da sociedade civil mas em que as prefeituras tenham um papel chave. As iniciativas foram categorizadas, formando uma lista com 41 campos temáticos.

A lista abaixo está resumida, incentivamos fortemente a leitura do estudo. Temos aí possibilidades interessantes e concretas de atuação, que estão acontecendo ou já aconteceram em cidades brasileiras.

  • apoio à formação de circuitos curtos de comercialização (cessão de espaço público para realização da feira, construção de pontos fixos de comercialização, compra de barracas, apoio na logística de transportes);
  • promoção das compras institucionais (acesso a políticas como PAA e PNAE, criação de restaurantes populares);
  • fomento à infraestrutura de produção (estruturação de espaços de armazenamento e/ou beneficiamento de alimentos, construção de sistemas ecológicos de saneamento, implantação de sistemas de geração de energia solar);
  • apoio a bancos de sementes comunitários e viveiros de mudas nativas (melhoramento genético participativo);
  • melhoria no acesso à água (recuperação de nascentes e matas ciliares, cisternas, reuso de água);
  • incentivo à produção agrícola em áreas urbanas e periurbanas (hortas comunitárias, hortas escolares, centros municipais e públicos de produção de alimentos);
  • uso de plantas medicinais e práticas integrativas de saúde no âmbito do SUS (intercâmbio entre saberes tradicionais e conhecimentos científicos, indicação de fitoterápicos aos pacientes, implementação de laboratórios de manipulação de plantas medicinais);
  • apoio técnico e extensão rural (convênios com organizações da sociedade civil para incentivar a agroecologia);
  • disponibilização de equipamentos e insumos (uso coletivo de máquinas da prefeitura, programas de ensilagem, distribuição de insumos);
  • fiscalização e restrição de atividades que geram impactos negativos (leis municipais que proíbem a expansão do agronegócio, instituição de zonas livres de agrotóxicos, proibição de monoculturas como eucalipto e cana-de-açúcar, proibição do uso de árvores nativas para produção de carvão vegetal em escala industrial).

Nuvem de temas do levantamento. Fonte: Municípios agroecológicos e políticas de futuro. CLIQUE PARA AMPLIAR

A região Sul do país se destaca com 282 (39%) das iniciativas catalogadas, seguida pela região Nordeste, onde estão 223 (31%) delas. Porém, é a região Nordeste que tem o maior número de municípios com iniciativas (228, ou 43%), enquanto que na região Sul há apenas 170 municípios com iniciativas (32%). Ou seja, há no Nordeste mais municípios onde existe algum apoio à causa, enquanto no Sul as iniciativas estão concentradas em menos municípios. Seria interessante se o estudo indicasse também a porcentagem de municípios com iniciativas sobre o total de municípios (por região e por estado), permitindo medir o avanço dessas iniciativas ao longo do tempo.

Apoio a feiras e circuitos curtos é o tipo de iniciativa que mais aparece em todas as regiões exceto a Sul, onde o predominam iniciativas da categoria Fomento à produção, e é também o tema de maior incidência entre todas as iniciativas catalogadas.

Neste blogue, temos defendido a proximidade entre produtor e consumidor. O apoio às feiras de produtores e à formação de circuitos curtos de comercialização permite, com um investimento relativamente baixo, contribuir para o florescimento da atividade agrícola local, com benefícios para produtores e consumidores, além de permitir o fortalecimento dos vínculos entre eles. No caso da cessão de espaços públicos para a realização de feiras de produtores, por exemplo, o custo é próximo de zero.

Em cidades pequenas, as feiras de produtores têm um papel que vai além da simples função de abastecimento, são locais de encontro entre moradores das áreas rural e urbana. Nas cidades grandes, quando localizadas em regiões periféricas, colocam em contato direto os consumidores dessas regiões com os produtores das áreas periurbanas. Apesar da proximidade geográfica entre elas, é comum que a produção orgânica dos cinturões verdes das grandes cidades seja inteiramente deslocada para regiões centrais e bairros abastados, onde serão comercializadas como produtos diferenciados, mais caros. O desenvolvimento da agroecologia é uma boa oportunidade para superar contradições de nossa organização social.

Além do relatório, está também disponível na página da ANA uma base de dados com todas as 721 experiências que entraram no estudo, trazendo a descrição das iniciativas e outros dados. É uma fonte de informações sobre experiências concretas, que podem ajudar gestores públicos a compor suas visões estratégicas e inspirar a sociedade civil na organização de suas demandas.

O incentivo à agroecologia atinge imediatamente as vidas dos pequenos produtores, que se fortalecem economicamente, e dos consumidores, que passam a ter acesso a mais alimentos saudáveis e a preços menores. Isso tudo se reflete positivamente nos indicadores de saúde das localidades.

É no plano local que se constrói a mudança concreta, e daí vem a importância das prefeituras no desenvolvimento de um sistema alimentar genuinamente voltado para atender as necessidades da população.

agricultura urbana em Osasco

Há alimentos crescendo até nos menores cantinhos de terra, em quintais e terrenos da cidade. Há pessoas precisando comer, algumas vivendo precariamente. Falta alguém para unir as duas pontas. Em Osasco, faltava.

Um grupo de moradoras está ali montando cestas com alimentos produzidos sem veneno nas hortas urbanas da cidade. Uma parte delas é vendida, e isso viabiliza a doação da outra parte das cestas para mães solo em situação de vulnerabilidade.

Foto: Beatriz Ataidio

Foi com essa ideia simples e genial que a Ecoz começou a atuar em maio de 2020, ainda nos primeiros meses da pandemia. O esquema funciona em semanas alternadas: numa semana ocorre a venda das cestas; na semana seguinte, é a vez das doações, que atualmente beneficiam 40 famílias.

A Ecoz trabalha com o princípio da alimentação local, mantendo uma rede de produtores e consumidores que estão distribuídos em uma área geográfica restrita. Fora algumas poucas exceções, as hortas fornecedoras estão localizadas no próprio município de Osasco, a distâncias que podem ser facilmente cobertas por bicicletas!

Imagem: Google Maps

A maioria das hortas fazem parte do programa de Economia Solidária da Secretaria de Emprego, Trabalho e Renda, da Prefeitura de Osasco. É uma política pública de incentivo às hortas urbanas, que transforma terrenos vazios e áreas de passagem da rede elétrica em espaços para a produção de alimentos.

Para a parte logística, a Ecoz conta atualmente com o quintal de uma casa parceira, localizada em um bairro com nome bastante sugestivo e inspirador: Vila Campesina. Todos os produtores entregam ali os alimentos. Aos sábados, um grupo de voluntários se reúne para fazer a montagem das cestas. E dali elas partem, conforme a semana, para as casas dos clientes ou das famílias que recebem as doações.

Foto: Dionizio Bueno

Através de sua rede de parceiros e clientes, a Ecoz vem também incentivando as pessoas a plantarem alimentos em qualquer pequeno espaço de terra que tenham em suas casas ou apartamentos. E sabemos quanta coisa é possível produzir até mesmo em vasos.

Alimentos saudáveis e sem veneno, cultivados logo ali, colhidos há poucos dias e que viajaram menos de 20km da horta até a mesa. A agricultura urbana torna isso possível e pode nos levar a refletir sobre os usos e as funções da terra, mesmo dentro de uma metrópole enorme como esta.

semente

Quando resolveu invadir a Índia com suas sementes geneticamente modificadas, a indústria do pesticida fez campanhas agressivas nos pequenos vilarejos, exibindo filmes que mostravam seus produtos junto a deidades do hinduísmo, como forma de quebrar a resistência e ganhar a simpatia dos agricultores. Eles gostaram da proposta, aceitaram converter suas plantações para a transgenia e compraram sacas de sementes patenteadas. A estratégia funcionou. Até aqui, apenas uma velha e manjada ferramenta da publicidade.

Acontece que os agricultores naturalmente tinham o hábito de estocar as sementes de suas culturas, pois eram elas que reiniciavam o ciclo de cultivo no ano seguinte. Essas sementes nativas ameaçavam o interesse da indústria: se não gostassem da nova experiência, os agricultores poderiam voltar a plantar suas próprias sementes e a indústria perderia aquele mercado. Era preciso garantir a dependência perpétua. Era preciso eliminar qualquer outra alternativa dos agricultores, destruir as chances de sobrevivência das formas tradicionais de cultivo. Como aquele tiro que o assassino dá na cabeça do morto caído no chão, para garantir que ele está mesmo bem morto.

Foi simples fazer isso. Os agentes da indústria ofereceram uma quantia em dinheiro em troca de quaisquer sementes antigas que os agricultores pudessem ter guardadas nas fazendas. Parecia um bom negócio, afinal eles agora tinham as novas sementes, cheias de promessas, e nenhum motivo para supor que poderiam precisar das antigas. Alguns trocados a mais fariam diferença no orçamento daquelas famílias simples. Entregaram tudo. Quando começaram a se dar conta da armadilha em que haviam caído, houve uma onda de suicídios de agricultores. Um deles se matou bebendo o próprio pesticida.

O filme Semente: a história nunca contada (Seed: The Untold Story) apresenta apenas um ou outro caso sinistro como esse. É importante conhecer o adversário, saber com quem estamos lidando para jamais duvidar da sua absoluta falta de escrúpulos. Porém, o que vale o filme são as belas histórias de resistência, iniciativas de ativistas de diversos lugares do mundo que estão contribuindo para preservar a diversidade. Ao longo do século XX, 94% das variedades de sementes desapareceram.

Um banco de sementes em Iowa, EUA.

Você conhecerá colecionadores de sementes, bibliotecas de sementes, bancos comunitários de sementes, caçadores de sementes raras que só restaram em poucos lugares do mundo. Verá soluções que os agricultores e agricultoras estão encontrando para ajudarem uns aos outros e resistirem contra as investidas dessa indústria de destruição da vida. Como as feiras de trocas de sementes nativas, por exemplo.

Foi durante a I Feira de Trocas de Sementes e Mudas da Reforma Agrária, realizada na Comuna da Terra Irmã Alberta em setembro de 2017, que saiu da terra o primeiro broto de ideia do BiciCarreto.

Belo tributo a esses pedaços de matéria que carregam a vida inteira dentro deles, Semente: a história nunca contada é perfeito como primeira sugestão de filme publicada neste blogue.

um sítio no quintal

Casa antiga num bairro residencial, fachada com varanda e arcada, muitas plantas e flores no jardim. Quem olha rapidamente pode achar que está vendo mais uma daquelas casinhas de vó que ainda sobrevivem em alguns bairros da cidade. Mas se você olhar com mais atenção, vai perceber que pela lateral da casa se estendem fileiras e mais fileiras de verduras, plantadas em vasos, garrafas e tubos no chão e pelas paredes, até lá em baixo, no fundo do quintal.

Foto: Dionizio Bueno

Você está diante da Urban Farm Ipiranga, uma horta urbana onde se produzem frutas e verduras orgânicas bem no meio da capital. Funcionando desde novembro de 2017, essa horta produz hoje em torno de 25 cestas de produtos orgânicos por semana. Em outras palavras, graças a uma iniciativa como esta, 25 famílias da região podem comer alimentos sem nenhum veneno, cultivados localmente, comprando-os direto do produtor.

César Moreira, idealizador da Urban Farm Ipiranga, é quem faz praticamente toda a lida da horta, além de entregar em domicílio boa parte da produção. Aos sábados é possível comprar os alimentos no local, o que é também uma ótima oportunidade para conhecer o espaço.

Foto: César Moreira

É uma bela demonstração de como é possível aproveitar bem um quintal para produzir alimentos, mesmo tendo parte dele coberta por cimento. Projetos como este são alternativas concretas e viáveis para evitar a formação de desertos alimentares. Vale a pena conhecer, apoiar e, quem sabe, até mesmo iniciar um projeto semelhante na sua região.

Foto: César Moreira

Em breve, por meio de uma parceria com o BiciCarreto, os produtos da Urban Farm Ipiranga serão entregues também em bicicletas. Sem consumir uma única gota de gasolina nem emitir fumaça, chegarão diretamente do produtor até as casas das pessoas.