plano safra

O Plano Safra da Agricultura Familiar 2025/2026, lançado há pouco mais de uma semana, prevê R$ 89 bilhões a serem investidos nesse segmento do setor produtivo brasileiro. No dia seguinte, foi anunciado também o Plano Safra geral, que contempla o agronegócio, com um montante de R$ 516,2 bilhões para financiar o setor da agricultura e pecuária empresarial.

O contraste entre os valores, ainda mais considerando que o agronegócio é um setor altamente capitalizado que não necessita de dinheiro público para prosperar, mostra que o uso da agricultura para a produção de mercadorias para os mercados interno e externo ainda é uma prioridade sobre a produção de alimentos no país.

O Plano Safra foi criado em 2002 (denominado inicialmente Plano Agrícola e Pecuário) com o objetivo de fortalecer e estimular a expansão e a modernização da agricultura e da pecuária brasileira. No ano seguinte, sindicatos rurais e movimentos sociais ligados ao campo foram envolvidos na elaboração do Plano, de forma que agricultores familiares e assentados da reforma agrária pudessem melhor contribuir para atender à demanda por alimentos no contexto do programa Fome Zero, existente naquela época. Isso dá origem ao Plano Safra da Agricultura Familiar, editado pela primeira vez em 2003.

Os recursos do Plano Safra da Agricultura Familiar estão divididos em segmentos com finalidades específicas. O maior deles, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) foi contemplado com R$ 78,2 bilhões, o maior valor na série histórica.

Por meio do Pronaf, os pequenos produtores podem financiar tanto as despesas com insumos e mão de obra (custeio) como a aquisição de máquinas e sistemas que aumentem a capacidade produtiva (investimento). O programa oferece crédito para a produção de alimentos da cesta básica a uma taxa de juros de 3% ao ano. Essa taxa cai para 2% se o crédito for destinado ao custeio de produtos orgânicos, agroecológicos ou da sociobiodiversidade.

Há também o Pronaf Mais Alimentos, uma linha de crédito mais ampla que financia o investimento em tratores, colheitadeiras, caminhonetes, motocicletas, equipamentos adaptados a pessoas com deficiência, sistemas de armazenagem, ordenhadeiras, tanques e também a construção ou reforma de moradias rurais.

Parte da verba do Pronaf é voltada especificamente para incentivar a agroecologia. Nesta edição, as famílias com renda anual de até R$ 50 mil podem financiar a implantação de sistemas de base agroecológica ou em transição para sistemas de base agroecológica a uma taxa de juros de 0,5% ao ano.

Os quintais produtivos também são contemplados com suas especificidades. Mulheres rurais com renda de até R$ 50 mil podem custear a produção diversificada de alimentos no espaço ao redor da casa, podendo conciliar a atividade produtiva com a lida familiar.

Além do Pronaf, o Plano Safra da Agricultura Familiar inclui outras formas de incentivo. Por meio das compras públicas, o governo não apenas assegura o abastecimento de certos produtos (sendo também um instrumento no combate à inflação de alimentos) como também garante um preço digno a ser pago aos produtores. Há nesta edição do Plano R$ 3,7 bilhões destinados às compras públicas.

Algumas culturas estão sujeitas a perdas de safra em consequência de condições climáticas. Para proteger esses agricultores, existe a Garantia-Safra, que neste ano conta com R$ 1,1 bilhão.

Entre outros segmentos, há também R$ 240 milhões destinados a Assistência Técnica e Extensão Rural para agricultores familiares e R$ 42,7 milhões para garantir um pagamento fixo para alguns produtos da sociobiodiversidade brasileira.

A forma que o Plano Safra da Agricultura Familiar tem hoje é, em parte, resultado da incidência de movimentos sociais. Exemplo disso é o reconhecimento de quintais como unidades produtivas qualificadas para receber financiamento público, uma conquista da Marcha das Margaridas de 2023.

Somente a pressão da sociedade civil organizada pode fazer com que o incentivo público à agricultura familiar siga crescendo e a distância entre os apoios ao pequeno produtor e ao agronegócio possa diminuir ou mesmo, legítima utopia, ser superada.

decrescimento

Dizem que a economia precisa sempre crescer. Esse mantra, repetido constantemente em quase todos os meios de comunicação, criou um consenso tão forte que raramente alguém questiona a afirmação ou pede que se apresentem justificativas para a necessidade de crescimento. Há, porém, um movimento de pessoas tecnicamente muito bem fundamentadas que defende o contrário: as grandes economias de hoje deveriam buscar não o crescimento, mas o decrescimento.

O argumento central é simples: não há crescimento infinito possível em um planeta finito. Portanto, considerando que certos países já cresceram demais e consomem mais de 80% dos recursos naturais do planeta, é preciso abandonar o paradigma tecnocrático, segundo o qual a atividade econômica deve sempre crescer e crescer, e buscar a redução da produção e do consumo, diminuindo o uso de energia e a dilapidação dos recursos naturais do planeta. Dentro dessa proposta, bem-estar social e ecológico passa a ser a prioridade, deixando para trás um sistema que causa exploração humana e destruição ambiental.

Os defensores do decrescimento propõem uma sociedade marcada por autonomia, trabalho partilhado, auto-organização e convivialidade. Nela, o Produto Interno Bruto (PIB) perde o sentido como parâmetro de prosperidade. Indicadores ligados a saúde, vitalidade comunitária, longevidade e felicidade são mais importantes aqui.

A diminuição da atividade econômica e dos conglomerados altamente capitalizados tende a devolver espaço para os negócios de menor tamanho. A economia se reorganiza e passa a operar em uma escala mais humana, na qual as pessoas deixam de ser engrenagens do sistema e podem ter seu trabalho devidamente valorizado. A velocidade da vida volta a ser saudável, os laços comunitários se regeneram, os índices de felicidade aumentam.

Podemos acrescentar que, nessas condições, a saúde geral da população melhora e a venda de remédios cai. Tal efeito, que dentro do pensamento econômico hoje dominante seria considerado um problema – afinal, os remédios e toda a indústria da doença correspondem a parte importante do PIB – não seria motivo de preocupação em um mundo onde o PIB deixou de ser o fetiche dos tecnocratas e governantes.

Foto: Anton Atanasov / Pexels

No sistema alimentar, a atuação de grandes corporações na distribuição de alimentos prejudica os pequenos produtores e também os consumidores, controlando os preços em ambas as pontas. E quanto à produção, os alimentos parecem estar longe do interesse dos latifúndios, que preferem produzir commodities para os mercados interno e externo. Temos aqui um bom exemplo de como o crescimento sem limites chega ao ponto de desviar completamente a finalidade da terra, que no caso do agronegócio já não serve para produzir comida.

Ter na bicicleta um referencial para a estruturação de sistemas alimentares autônomos é uma proposta radical que tem ressonância, em termos teóricos e práticos, com a doutrina do decrescimento. Além de se basear em uma fonte de energia altamente renovável, o alimento, e ser pouquíssimo poluente (zero emissão em seu uso e pouco nociva na produção e no descarte), a bicicleta coloca limites na carga transportada por viagem e na distância viável num sistema produtivo.

A bicicleta oferece autonomia com baixo consumo de energia, em uma escala pequena de operação, podendo dar conta de boa parte da logística de alimentos em uma área geográfica restrita. Dito de outra forma, cria-se uma comunidade de consumidores de alimentos produzidos localmente, um arranjo que contribui para o fortalecimento comunitário.

Trata-se de uma economia localizada e conectada, conforme os princípios do localismo, outra referência importante dentro da teoria do decrescimento. Como proposta de economia política, o localismo coloca-se como resposta aos problemas criados pela globalização, defendendo que cada comunidade deve ser livre para encaminhar seu destino conforme os desejos de seus habitantes. Isso passa pela organização de economias baseadas na autossuficiência local, de forma a minimizar os impactos originados externamente, pelas decisões tecnocráticas de grandes corporações nacionais ou internacionais.

Um aspecto frequentemente destacado pelos defensores do decrescimento é sua oposição a propostas chamadas de “crescimento sustentável” ou qualquer expressão equivalente. Eles nos lembram da importância de estarmos atentos a essas supostas críticas ao crescimento – geralmente criadas e propagadas pelos próprios atores que se beneficiam do crescimento destrutivo sem limites – que, na prática, não almejam reais mudanças.

Na opinião de Serge Latouche, economista francês e um dos mais destacados pensadores da teoria do decrescimento, apenas acrescentar a ideia de “sustentável” ao crescimento faz crer que não há alternativas, nos mantém dentro do pensamento único. A palavra decrescimento, pelo estranhamento que causa, faz parar para pensar, funciona como um slogan provocador, deixando patente a necessidade de sairmos da demagogia produtivista, desenvolvimentista, de superarmos o paradigma do crescimento, que nada mais é que outra forma de dizer “acumulação de capital”.

Costuma ser atribuída ao economista brasileiro Delfim Netto a afirmação “É preciso primeiro fazer crescer o bolo para depois dividi-lo”. A frase é eficaz como recurso de doutrinação, pois remete a uma realidade concreta, que qualquer um consegue enxergar: um bolo maior de fato resulta em pedaços maiores quando dividido. Há nela, porém, uma afirmação implícita: “o bolo ainda não é suficiente grande”. Quando alguém aceita a parte explícita e doce dessa ideia, engole junto a parte implícita, passando a acreditar que o bolo não é grande o suficiente.

Porém, o bolo é bem grande, sim! Se ele for dividido hoje, de forma equânime e justa, as partes serão suficientes para todos. Defender o crescimento é mais uma forma de garantir a concentração de riquezas que existe em praticamente qualquer país, seja ele considerado desenvolvido ou não.

Propor decrescimento em uma cultura obcecada pelo crescimento sem limites soa como heresia. É um ato radical de resistência. Enquanto a ideologia dominante tenta nos convencer que é natural passar nossas vidas trabalhando como escravos, decrescimento é uma provocação para nos lembrar que cada ser está aqui com um propósito maior do que simplesmente trabalhar e produzir sempre mais.

Para além da teoria, o decrescimento é um princípio que pode nortear cada decisão do cotidiano. Precisamos reduzir essa loucura coletiva e reorganizar um projeto de sociedade que sustente as bases naturais da vida.

cadeia de alimentos no Brasil

Dados bastante abrangentes sobre o sistema alimentar no Brasil podem ser encontrados no Estudo sobre a Cadeia de Alimentos, organizado por Walter Belik, professor titular aposentado do Instituto de Economia da UNICAMP, publicado em 2020, com apoio do Instituto Ibirapitanga e do Instituto Clima e Sociedade.

O documento traz informações sobre hábitos de consumo e compra, a composição da dieta nacional, os gastos com alimentação por faixas socioeconômicas, tendências evolutivas que impactam o cardápio nacional, entre outras. A principal fonte de dados do são as estatísticas agregadas à Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), organizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, disponíveis no momento da publicação.

Destacamos aqui alguns aspectos particularmente interessantes e mais diretamente ligados à investigação sobre sistemas alimentares pelo ponto de vista do Bicicarreto.

Os dados sobre consumo revelam que habitação é a maior despesa em todas as faixas socioeconômicas, representando 42,4% do orçamento das famílias que ganham até 2 salários mínimos e 34% dos gastos das famílias com renda mensal de 25 salários mínimos ou mais. Alimentação vem logo atrás no caso das famílias mais pobres, representando 23,8% das despesas, mas aparece somente em terceiro lugar no caso das famílias mais abastadas, correspondendo a 11,4% do orçamento familiar. No caso deste grupo socioeconômico, é educação que vem em segundo lugar, representando 23% do orçamento.

O gasto mensal médio com alimentação é de R$ 328,74 no caso das famílias de até 2 salários mínimos e de R$ 2.061,34 entre as famílias de 25 ou mais salários mínimos. Portanto, o gasto com alimentação das famílias mais ricas é mais de seis vezes maior que o das famílias mais pobres.

Imagem: divulgação

O Estudo mostra a participação de cada grupo de alimentos, segundo a classificação NOVA, no total de calorias na dieta da população brasileira, comparando os dados ao longo de três edições da POF (2002-3, 2008-9 e 2017-18). Isso mostra como evolui o consumo desses tipos de alimentos ao longo desse período.

O consumo de alimentos in natura ou minimamente processados caiu 7%, passando de 53,3% do total de calorias em 2002-3 para 49,5% em 2017-18. Ao mesmo tempo, observa-se um substancial aumento de 46% na participação dos ultraprocessados na dieta brasileira: esse tipo de produto comestível, que correspondia a 12,6% das calorias em 2002-3 passou a 18,4% em 2017-18. Os alimentos processados subiram de 8,3% em 2002-3 para 9,8% em 2017-18 (aumento de 18%) e os ingredientes culinários processados passaram de 25,8% em 2002-3 para 22,3% em 2017-18 (diminuição de 14%).

Quanto à distribuição de alimentos, o Estudo faz algumas observações gerais sobre um processo de reorganização que esse componente do sistema alimentar vem sofrendo nos últimos anos. O que mais chama a atenção é o avanço do setor de supermercados, que passam a comprar diretamente da indústria de alimentos e dos produtores agropecuários, contribuindo assim para a eliminação da figura do atacadista. Ao mesmo tempo, surge um novo tipo de estabelecimento, o “atacarejo”, que, segundo a pesquisa, se desenvolve de forma coordenada pelos supermercados.

Trata-se daquelas lojas de grande porte, com o leiaute tosco dos antigos atacadistas, porém sem qualquer restrição quanto ao tipo de comprador ou ao tamanho das aquisições. Oferecem duas possibilidades de preço: um é o chamado valor unitário e o outro, denominado “atacado”, só vale a partir de um certo número de unidades, geralmente não muito grande. Conforme nossa observação, essa diferença de preços costuma ser surpreendentemente baixa.

Esse tipo de estabelecimento vem ganhando espaço no fornecimento de alimentos frescos e produtos industrializados, tanto para restaurantes, cozinhas industriais e pequenos varejistas como para consumidores finais.

Observa-se também na população uma tendência de mudança de hábitos quanto à escolha dos locais de compra. Os dados das POFs mostram que as aquisições em supermercados representavam 32,6% das idas a estabelecimentos comerciais em 2002-3 e passaram a representar 41,1% em 2008-9 (dados se referem ao número de compras e não ao montante gasto; não há esses dados para POF 2017-18). Enquanto isso, as idas a todos os outros tipos de estabelecimentos diminuíram. As compras em mercearias e armazéns caíram de 17,4% em 2002-3 para 17,0% em 2008-9; as compras em feiras livres caíram de 4,8% em 2002-3 para 4,5% em 2008-9. Há portanto uma tendência de as pessoas substituírem compras em feiras e pequenos estabelecimentos por compras em supermercados.

O setor atacadista de produtos frescos é composto pelas Ceasas (centrais estaduais de abastecimento). São 74 Ceasas em todo o Brasil, sendo 22 em capitais. Segundo o documento, o entreposto da capital paulista concentra 25% de todo o movimento de produtos frescos no país.

A proporção da produção que passa pelas Ceasas, entretanto, varia bastante conforme o produto. Por exemplo, 62% da produção de alho passa por alguma dessas centrais em algum momento de sua distribuição. O mesmo acontece com 42,4% da produção de maçã, 70,9% do mamão, 71,1% da cenoura e 76,6% do tomate de mesa. Por outro lado, apenas 13,2% da produção de alface, 12,4% da banana e 1% do coentro passam por Ceasas. É possível que isso se deva ao fato de estes produtos serem mais frágeis e perecíveis, e assim sua comercialização acabe encontrando esquemas alternativos.

Junto com o Estudo, foi publicado também um documento síntese, onde se encontram suas principais conclusões e também algumas reflexões e informações que não fazem parte do documento principal.

Mesmo passados já alguns anos desde sua publicação, as informações apresentadas no Estudo sobre a Cadeia de Alimentos continuam válidas por mostrarem características marcantes do sistema alimentar brasileiro e algumas tendências de modificação – muitas das quais, infelizmente, são aspectos negativos se aprofundando.

novas projeções do agronegócio

Já falamos neste blogue sobre o relatório Projeções do Agronegócio, publicado anualmente pelo Ministério da Agricultura e Pecuária. Trata-se de um entre muitos estudos que olham para a agricultura quase que exclusivamente sob a perspectiva dos negócios e do mercado. Em certos trechos do documento, a produção de alimentos parece ser abordada como um mero subproduto desejável da atividade agrícola.

Voltamos agora a esse documento com uma perspectiva comparativa entre o último relatório publicado até a presente data (Projeções do Agronegócio 2022/23 a 2032/33) e o relatório anteriormente analisado aqui (Projeções do Agronegócio 2020/21 a 2030/31). A partir daqui, vamos nos referir ao documento de 2020/2021 como ‘relatório anterior’, ainda que ele não seja o imediatamente anterior (houve também relatório em 2021/2022).

Daqui a dez anos, o arroz terá menos da metade da área de cultivo que tem hoje: passa dos 1.469 mil hectares no ano safra 2022/2023 para 489 mil hectares em 2032/2033, uma perda de 66,7%. No caso do feijão, a perda estimada é menor mas, ainda assim, é de mais de um terço: dos 2.742 mil hectares dedicados a essa cultura em 2022/2023, passará a ter 1.749 mil hectares em 2032/2033, portanto perdendo 36,2% da área que tem hoje.

No relatório anterior, as perdas de áreas de cultivo de arroz e feijão projetadas para os dez anos seguintes eram, respectivamente, de 62% e 36,9%. Assim, no caso do arroz, o relatório 2022/2023 aponta para um aumento de velocidade na perda de território. No caso do feijão, a velocidade da perda de território projetada agora é ligeiramente menor do que aquela projetada no relatório de dois anos atrás.

Enquanto isso, os produtos agrícolas para o mercado devem seguir crescendo. Dos 21.975 mil hectares de cultivo que tem hoje, o milho deve expandir sua área em 17,1%, atingindo uma área de 25.732 mil hectares em 2032/2033. E a soja passará em dez anos de 43.834 mil hectares hoje para 55.881 mil hectares, um crescimento de 27,5% ou, em valor absoluto, de 12 milhões de hectares, a lavoura que mais deve expandir sua área nesse período.

O relatório 2020/2021 projetava ganhos menores: 10,6% e 26,9% para as áreas de cultivo de milho e soja, respectivamente. Portanto, os dados levados em consideração nos cálculos mais recentes apontam para esse aumento de velocidade na expansão desses dois cultivos. O aumento é proporcionalmente maior no caso do milho.

Área Plantada com 5 principais grãos – Brasil (mil hectares). Fonte: Projeções do Agronegócio 2022/2023 a 2032/2033. CLIQUE PARA AMPLIAR

A desigualdade entre as áreas de cultivo de alimentos e de commodities projetadas para 2032/2033 é também assustadora. Daqui dez anos, a soma das áreas dedicadas apenas às duas commodities aqui analisadas será de 81.613 mil hectares, um valor 36 vezes maior que a soma das áreas de cultivo dos dois principais alimentos dos brasileiros, que será de 2.238 mil hectares.

A visão dos dois relatórios também permite comparar as projeções de área cultivada apresentadas há dois anos para o ano safra 2022/2023 com aquilo que efetivamente se concretizou.

O arroz tinha, no relatório anterior, uma projeção de 1.419 mil hectares para o ano safra 2022/2023, sendo que tivemos de fato 1.469 mil hectares, uma área 3,5% maior do que a projetada. Para o feijão, estavam projetados 2.640 mil hectares em 2022/2023, sendo que a área neste ano safra foi de 2.742 mil hectares, portanto 3,9% maior do que a projetada. No caso do milho, tivemos em 2022/2023 uma área de 21.975 mil hectares, 8,5% maior que a projeção de 20.262 mil hectares do relatório anterior. E a soja teve uma área de 43.834 mil hectares contra os 40.789 mil hectares projetados: área realizada 7,5% maior do que a área estimada na projeção.

Essas comparações mostram dois fatos evidentes. Primeiro, as projeções do documento de 2020/2021 estavam subestimadas para os quatro cultivos analisados. E segundo, a diferença para mais do realizado em relação às projeções foi maior no caso das commodities do que no caso dos alimentos. Se esta tendência se manifestar também nos dez anos contados a partir de agora, podemos esperar que a desigualdade entre as áreas dedicadas aos cultivos de commodities e de alimentos será, lá na frente, ainda maior do que os números agora projetados para 2032/2033 antecipam.

O relatório Projeções do Agronegócio traz também dados, projeções e análises referentes a produção, consumo e exportação dos principais produtos agrícolas brasileiros. Nesta matéria, focamos na área plantada pois este é o indicador mais diretamente conectado à luta pela terra em nosso país. Sigamos firmes.

projeções do agronegócio

Para que serve a terra no Brasil? Para produzir alimentos ou para ganhar muito dinheiro?

Um documento produzido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento traz informações desanimadoras para quem acredita que a terra deveria servir para saciar a fome das pessoas. Resumindo: alimentos como arroz, feijão, batata, mandioca, banana e café estão perdendo áreas de cultivo, enquanto commodities como milho, soja, algodão, fumo e cana de açúcar estão ganhando ainda mais território.

Reeditado a cada ano, o relatório Projeções do Agronegócio traz estimativas sobre como ficará a atividade agrícola nos dez anos seguintes à sua publicação. O último relatório disponível neste momento é de 2021, e suas projeções vão até o ano safra 2030/2031.

Os dados mais assustadores se referem à perda da área plantada de alguns alimentos. O arroz deve perder 62% de seu espaço: dos 1.687 mil hectares dedicados ao seu plantio em 2020/2021, devem restar apenas 641 mil hectares em 2030/2031. O feijão, que no ano safra 2020/2021 dispõe de 2.898 mil hectares para seu cultivo, ficará com apenas 1.830 mil hectares em 2030/2031, uma perda de 36,8%.

Enquanto isso, produtos agrícolas que servem principalmente como matérias primas industriais, e não como alimentos saudáveis, estão em expansão. A área plantada de milho deve crescer de 19.841 mil hectares em 2020/2021 para 21.948 mil hectares em 2030/2031, um aumento de 10,6%. O crescimento da soja é ainda maior: de 38.502 mil hectares em 2020/2021, deve subir para 48.851 mil hectares em 2030/2031, aumento de 26,8%.

O relatório fala das possibilidades à disposição do agronegócio para aumentar a área plantada dessas culturas. Um exemplo: “A expansão de área de soja e cana-de-açúcar deverá ocorrer pela incorporação de áreas novas, áreas de pastagens naturais e também pela substituição de outras lavouras que deverão ceder área” (p. 87). Note o uso das expressões ‘incorporação de áreas novas’, que pode servir de eufemismo para ‘desmatamento’, e ‘substituição de outras lavouras que deverão ceder área’, uma referência a cultivos que estão perdendo área plantada, onde se incluem o arroz e o feijão.

Os dados que o relatório apresenta sobre anos anteriores mostram que a redução das áreas plantadas de arroz e de feijão já é um processo em curso há pelo menos dez anos. Entre os anos safra 2009/2010 e 2019/2020, esses cultivos perderam, respectivamente, 39,7% e 18,9% de seus territórios. No mesmo período, houve enorme expansão das commodities: 42,6% no caso do milho e 57,4% no caso da soja.

Área Plantada com 5 principais grãos – Brasil (mil hectares). Fonte: Projeções do Agronegócio 2020/2021 a 2030/2031. CLIQUE PARA AMPLIAR

No momento atual, a diferença entre as áreas plantadas de alimentos e de commodities é gritante. A título de exemplo, em 2020/2021 temos 4.585 mil hectares na soma das áreas de arroz e feijão, contra 58.343 mil hectares no total para milho e soja. A área dedicada a estas duas commodities é 12,7 vezes maior que a área de cultivo de dois dos principais alimentos dos brasileiros.

O estudo avalia que “algumas lavouras, como mandioca, café, arroz, laranja e feijão, devem perder área, mas a redução será compensada por ganhos de produtividade” (p. 86). As estimativas para 2030/2031 são de que, nessas condições, a produção de arroz cresça 3,4% e a produção de feijão caia 1,2%.

Ganhos de produtividade são incertos e, sobretudo para as pequenas propriedades, responsáveis pela maior parte dos cultivos de arroz e feijão, dependem de programas de fomento à produção e de assistência técnica e extensão rural. Por outro lado, os grandes estabelecimentos produtivos do agronegócio, altamente capitalizados, conseguem sem dificuldade comprar ou arrendar propriedades menores que hoje produzem alimentos. Assim, o cenário apontado no relatório é extremamente delicado. Políticas públicas específicas para a produção de alimentos são essenciais para evitar redução nas colheitas, fazendo os preços subirem ainda mais.

Se há mesmo perspectivas de aumento de produtividade nos cultivos de arroz e feijão, melhor seria se isso fosse usado para trazer um sensível crescimento de sua produção, provocando queda nos preços e facilitando o acesso da população a esses alimentos. Infelizmente, no olhar do agronegócio, o esperado ganho de produtividade de arroz e feijão é apenas mais um fator para contribuir na expansão das commodities, mesmo havendo 33,1 milhões de brasileiros passando fome.

Para argumentar que a perda de áreas de cultivo de alimentos não levará a problemas de abastecimento, o relatório apresenta ainda um prognóstico de queda no consumo de arroz e feijão. Os cálculos dizem que, até 2030/2031, o consumo de arroz no Brasil deve cair 2,2% e o de feijão deve cair 0,7%.

Se mesmo com as expectativas de que a população brasileira cresça até 2030 esses prognósticos estiverem corretos, o relatório está anunciando um futuro tenebroso. A queda no consumo desses dois itens básicos na cultura alimentar brasileira só pode significar duas coisas: ou as pessoas vão mesmo comer menos (ou seja, mais fome!) ou passarão a comer outras coisas (provavelmente menos saudáveis). Provavelmente, ambos.

De fato, o Atlas das situações alimentares no Brasil já aponta, com base em dados de 2002 a 2018, uma queda no consumo de alimentos in natura ou minimamente processados, acompanhada de um aumento no consumo dos alimentos processados e ultraprocessados. Estamos diante de um cenário de aumento da fome e queda na qualidade da alimentação.

O relatório Projeções do Agronegócio é escrito na perspectiva daqueles para quem a agricultura é uma atividade para se ganhar muito dinheiro. Ao falar da alta nos preços agrícolas em 2021, apresenta isso como uma boa notícia: “os preços de carnes, bovina e suína, e também de milho e soja sobressaem-se em relação aos demais. São produtos que têm-se beneficiado do comércio internacional favorável, e da taxa de câmbio vigente neste ano” (p. 9, grifos nossos).

Com o dólar em alta, quem exporta ganha mais dinheiro, e isso puxa os preços internos para cima. Numa perspectiva de combate à fome, que definitivamente não é a do agronegócio, boa notícia seria uma queda de preços, pois isso significaria alimentos mais baratos para a população brasileira.

Cabe aqui citar um trecho de um livro do professor José Graziano da Silva, em que ele descreve o latifúndio escravista, principal atividade econômica do Brasil colônia, mais de quatrocentos anos no passado.

“A produção de alimentos do latifúndio variava muito em função do preço do seu produto principal destinado à exportação. Por exemplo, quando o preço do açúcar (e mais tarde do café) subia no mercado mundial, todas as terras e os escravos eram utilizados para expandir a sua produção, diminuindo assim a produção de alimentos. Nesses períodos havia fome na colônia e as autoridades estimulavam os pequenos agricultores a expandirem sua produção, para abastecer não só as vilas e cidades, como às vezes os próprios latifúndios” (O que é Questão Agrária, p. 27).

Perceba como vivemos exatamente no mesmo país que ele descreve.

Apenas dois comentários sobre essa rápida viagem no tempo. A fome, que segue firme aqui na colônia, tem basicamente as mesmas causas estruturais. E quem de fato alimenta este país são e sempre foram os pequenos agricultores.

revolução verde

Duas palavras bonitas, associadas a ideologias de esquerda e posições progressistas: revolução, música para os ouvidos de quem sonha em derrubar esse sistema que promove a expropriação sem limites; verde, referência a visões de mundo em que o respeito à natureza prevalece sobre o desejo insaciável de ganhar dinheiro.

Cuidado com o que você ouve. Juntas, essas palavras formam uma expressão que aponta para um lado oposto a isso tudo. Diz respeito a uma importante mudança na forma de produzir alimentos que concentrou ainda mais a riqueza, tirou o camponês da terra e envenenou a comida que hoje comemos.

Revolução verde se refere às inovações que surgiram sobretudo na década de 1960 com a finalidade de aumentar a produção agrícola. Trata-se de um conjunto de tecnologias como mecanização, fertilizantes químicos, irrigação controlada e o uso de variedades de cereais de alto rendimento.

O termo foi usado pela primeira vez em 1968, em referência ao desenvolvimento de novas variedades de trigo e milho. Tanto na pesquisa quanto na implementação, a revolução verde contou com o apoio de grandes fundações estadunidenses, e teve no México um imenso campo de pesquisa e testes.

O processo se baseou em transferência de tecnologia, que vinha na forma de um conjunto de práticas que, por meio das promessas de grandes lucros aos produtores e de erradicação da fome no mundo, começou a ser praticamente imposto no campo.

Para a agricultura, o pacote tecnológico incluía fertilizantes, agrotóxicos, máquinas e variedades de sementes. Para a criação de animais, havia rações, fármacos, instalações projetadas para máxima produtividade e naturalmente o uso de matrizes e reprodutores selecionados. Como resultado, a atividade no campo tomou a forma de produção industrial, com monoculturas e a criação de animais em confinamento.

A finalidade era o aumento da produção, mas isso não quer dizer que essa produção seria usada para saciar a fome das pessoas. O objetivo era, e ainda é, a produção de commodities para exportação.

Na análise de Ceres Hadich e Gilmar Andrade, autores do verbete sobre o assunto no Dicionário de Agroecologia e Educação, entre os muitos efeitos da revolução verde podemos destacar: aumento da concentração fundiária e empobrecimento dos pequenos agricultores; êxodo rural massivo; esgotamento do solo, avanço do desmatamento e redução da biodiversidade; apropriação de recursos naturais brasileiros por parte de multinacionais; transformação da semente em propriedade privada; padronização da produção e consumo de alimentos, comprometendo a soberania alimentar.

A fome no mundo, como se sabe, não acabou. Ao contrario, nestes últimos anos temos assistido um agravamento da pobreza, e isso se deve, entre outros fatores, aos efeitos da revolução verde: concentração de riqueza, expropriação das terras e, devido à maior integração e fortalecimento dos agentes do sistema agroindustrial, o aumento de seu poder para defender os seus interesses econômicos, que vêm se mostrando contrários aos interesses dos povos, da natureza e da vida.

aquisição de alimentos

Uma forma de se caracterizar as situações alimentares existentes no país é através dos dados sobre a aquisição de alimentos. Aqui temos em vista a alimentação que as pessoas fazem em seus domicílios, desconsiderando aquilo que elas comem fora de casa. Por outro lado, neste tipo de pesquisa o IBGE computa as informações tanto daquilo que as famílias compram (aquisições monetárias) quanto dos alimentos obtidos de outras formas (aquisições não monetárias), como através de produção própria, coleta em hortas, pomares e canteiros, pesca, caça e doações recebidas.

O Atlas das situações alimentares no Brasil: a disponibilidade domiciliar de alimentos e a fome no Brasil contemporâneo, publicado em 2021, traz informações interessantes referentes à aquisição de alimentos pelos brasileiros. O estudo utilizou dados de diversas edições da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), elaboradas pelo IBGE. O Atlas apresenta os dados de maneira um tanto restrita, omitindo informações que poderiam ser do interesse de alguns leitores, mas ainda assim permite observações interessantes.

Foram computados os dados de aquisição de alimentos per capita em quilogramas, organizando em grupos alimentares os itens adquiridos pelas famílias. Porém apenas alguns dados relativos são apresentados. A aquisição alimentar da classe de maior rendimento (mais de 15 salários-mínimos) é, como se poderia supor, acima da média geral em vários grupos alimentares. A aquisição de frutas dessa classe, por exemplo, é 124,9% superior à média geral. Essa classe também se destaca em outros grupos alimentares: hortaliças folhosas e florais (114,3% acima da média), hortaliças frutosas, tuberosas e outras (83,6% acima da média) e laticínios (74,5% acima da média geral).

Diferença na aquisição alimentar per capita anual em relação à média nacional (2017-2018). Dados: IBGE. Adaptado de Atlas das situações alimentares no Brasil. CLIQUE PARA AMPLIAR

Porém o grupo alimentar em que há o maior destaque dessa classe econômica são os alimentos preparados e misturas industriais, no qual o consumo dessa classe é 187% acima da média geral. Nesse grupo encontram-se produtos como alimentos congelados, refeições prontas, frango empanado, batata frita, salgadinhos e misturas para bolo. São produtos de maior valor agregado (ainda que alguns deles sejam de baixíssimo valor nutricional), o que pode explicar o fato de aparecerem com destaque nessa classe econômica.

A classe de menor rendimento (até 2 salários-mínimos) se destaca da média geral na aquisição de alguns grupos alimentares: farinhas e féculas (17,4% acima da média), feijão (12,1% acima da média) e arroz (11,9% acima da média).

In natura e ultraprocessados

O estudo também apresenta uma avaliação da disponibilidade domiciliar de alimentos com base em uma classificação diferente proposta pelo IBGE, a qual agrupa os produtos alimentares com base na extensão de seu processamento industrial. Essa classificação resulta em quatro grupos alimentares: alimentos in natura (ou minimamente processados), ingredientes culinários (processados), alimentos processados e alimentos ultraprocessados.

As regiões sul e sudeste são aquelas onde a aquisição de ultraprocessados é maior entre as famílias (22% e 21,4%, respectivamente). É nessas duas regiões também que se observam os menores percentuais na aquisição de alimentos in natura: 47,3% na região sul e 44,9% na região sudeste. A região norte é a que apresenta, ao mesmo tempo, a menor participação de alimentos ultraprocessados (11,4%) e a maior participação de alimentos in natura (58,2%) na aquisição de alimentos pelas famílias.

Participação dos grupos de alimentos no total de calorias a partir da aquisição domiciliar (2017-2018). Dados: IBGE. Adaptado de Atlas das situações alimentares no Brasil. CLIQUE PARA AMPLIAR

A situação do domicílio (urbano ou rural) também influencia na participação dos ultraprocessados. Nos domicílios urbanos, a aquisição de ultraprocessados representa 19,8% da aquisição das famílias, contra apenas 11,3% nos domicílios rurais. Inversamente, os alimentos in natura representam 47,7% da aquisição alimentar dos domicílios urbanos, número que sobe para 57,9% nos domicílios rurais.

A aquisição de alimentos in natura e ultraprocessados varia de maneira bem marcada conforme a renda. Entre os 20% mais pobres, os alimentos in natura representam 55,6% da aquisição dos domicílios e os ultraprocessados representam 12,5%. Ao longo dos outros grupos de renda, os alimentos in natura vão diminuindo e os ultraprocessados vão aumentando com regularidade, até chegarmos aos 20% mais ricos, onde a participação dos alimentos in natura cai para 44,2% e a dos alimentos ultraprocessados sobe para 24,7%, praticamente um quarto da aquisição de produtos alimentícios nesses domicílios.

Percebe-se como existe aqui uma questão de cultura alimentar. Os 20% mais ricos, que teriam condições de fazer melhores escolhas, inclusive com alimentos orgânicos, tidos como caros, optam mais por produtos comestíveis de baixíssimo valor nutricional.

Um olhar ao longo dos anos também mostra a diminuição gradual dos alimentos in natura e o aumento dos ultraprocessados na aquisição das famílias. Os alimentos in natura caem de 53,3% em 2002/2003 para 49,5% em 2017/2018. Ao mesmo tempo, os ultraprocessados crescem de 12,6% em 2002/2003 para 18,4% em 2017/2018.

Vemos, assim, dados que associam o avanço da chamada vida urbana moderna a hábitos alimentares de menor qualidade.

soberania alimentar

Como pode uma comunidade de pessoas fazer suas próprias escolhas sobre as formas de se alimentar se o controle da produção e distribuição de alimentos está nas mãos de corporações, sejam elas nacionais ou transnacionais? Esta é a questão fundamental para se pensar a noção de soberania aplicada a este aspecto essencial da vida que é a alimentação.

Soberania diz respeito à condição, de uma pessoa ou de um povo, de ser independente e livre para tomar decisões referentes aos seus próprios assuntos, estando imune aos interesses alheios e externos.

Portanto, quando falamos de soberania alimentar, estamos nos referindo à possibilidade de uma comunidade ou uma nação de fazer suas próprias escolhas quanto ao seu sistema alimentar: o que cultivar, com que técnicas, onde comercializar os alimentos, como transportá-los, como gerir os recursos da natureza essenciais à sua produção.

Um sistema alimentar pode ser pensado para gerar renda para um grande número de pequenos produtores, proporcionando-lhes uma vida digna, fortalecendo comunidades e produzindo alimentos saudáveis, ou pode ser estruturado de forma a produzir ganhos milionários para umas poucas empresas agropecuárias altamente capitalizadas, em enormes fazendas que empregam pouca mão de obra e esvaziam o campo, utilizando grande quantidade de veneno para minimizar prejuízos.

A produção de alimentos em escala industrial utiliza monoculturas e processos uniformizados, que levam à perda da diversidade. Fazendas de menor porte, quando convertidas a esses processos produtivos, também acabam presas, através dos contratos, às decisões corporativas, fazendo com que agricultores deixem de produzir as variedades que sempre cultivaram. Os produtos do agronegócio acabam dominando os sistemas de distribuição e comercio. Assim, da produção até o varejo, o sistema impõe produtos alimentícios a comunidades que antes cultivavam e consumiam variedades tradicionais e/ou locais, que acabam desaparecendo. Neste tipo de arranjo, a produtividade do capital é mais importante que a liberdade de escolha do consumidor.

Assim, a soberania alimentar diz respeito também à possibilidade de as pessoas obterem aquilo que comem de forma independente do enorme complexo de distribuição de alimentos, composto por transportadoras de longa distância, atacadistas, grandes entrepostos e redes de varejo, que têm o poder de decidir aquilo que o consumidor vai comer e aquilo que ele jamais encontrará nas prateleiras.

Naturalmente, o acesso dos pequenos produtores à terra é crucial quando se pensa em soberania alimentar. E terra não basta, é preciso que seja uma terra onde exista água, sem a qual o cultivo não é possível. Água potável ou com condições mínimas para uso em irrigação das plantações, livre de contaminação por agrotóxicos, esgotos, detritos industriais e substâncias tóxicas resultantes de mineração, garimpo e outras atividades legais ou ilegais.

Foto: Dionizio Bueno

Existe ainda um outro fator essencial que é o acesso a sementes. É importante que sejam sementes livres, como sempre foram na história da humanidade, e não sementes proprietárias, pertencentes a alguma corporação, e que prendem o agricultor em uma teia de obrigações e armadilhas contratuais. Sementes que têm um dono e não se reproduzem representam talvez a condição mais oposta à soberania alimentar. São dependência e submissão em um de seus mais altos graus.

A questão dos recursos naturais é essencial para se pensar em soberania alimentar. Terra, água e sementes são condições para a vida, deveriam ser bens públicos por definição, jamais serem privatizados. O sistema produtivo do agronegócio vem há décadas deteriorando o solo, contaminando rios e lençóis freáticos com veneno, destruindo ecossistemas. Assim, a discussão sobre soberania alimentar está naturalmente articulada a outras agendas mais amplas, de interesse de toda a sociedade.

A Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, criada pela UNESCO em 2001, afirma, em seu primeiro artigo: “Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza.” As culturas alimentares fazem parte do patrimônio de um povo. O respeito à diversidade está ligado à continuidade dessas formas de se alimentar, de cultivar o solo, de se relacionar com o lugar onde se habita. Novas tecnologias podem existir como opções para os agricultores, mas a decisão entre adotá-las ou manter as tradições agrícolas locais deve ser exclusivamente dessas comunidades, e não imposta a partir de fora por organizações alienígenas, seja com armas contratuais, seja pela sedução do dinheiro.

Falamos aqui de direito à alimentação, a um meio ambiente saudável e livre de veneno, à diversidade de formas de viver, plantar e se alimentar. Soberania alimentar é, portanto, uma questão de direitos humanos. Quando os direitos humanos são de fato prioritários sobre os direitos econômicos, o sistema agrícola é organizado para produzir alimentos, e não commodities. Alimentos servem para saciar a fome de seres que têm direito à vida; commodities servem para corporações ganharem dinheiro.

O termo soberania alimentar foi cunhado pela Via Campesina durante a Cúpula Mundial da Alimentação, um evento realizado em Roma pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), em 1996.

É preciso notar a diferença entre esse conceito e a ideia de segurança alimentar. Esta surgiu na década de 1970, num contexto em que as tecnologias produtivas como transgenia, monoculturas e alta mecanização estavam trazendo um aumento significativo da quantidade de alimentos produzida. Segurança alimentar diz respeito muito mais à disponibilidade de alimentos do que à sua qualidade ou às características do sistema alimentar e suas implicações econômicas, sociais e ambientais.

Ainda que o monitoramento das condições de segurança alimentar de uma população gere indicadores de extrema importância, discutir o problema da fome simplesmente nos termos da segurança alimentar pode estimular um regime alimentar corporativo, com produção em larga escala e todas as consequências apontadas aqui. A ideia de segurança alimentar deixa de contemplar diversas questões presentes no conceito de soberania alimentar e, em certos aspectos, até se opõe a ele. A proposta de simplesmente colocar alimentos na mesa, não importando quais sejam eles ou como são produzidos, pode levar a soluções que a indústria da alimentação, por sua capacidade de trabalhar em grande escala, tem mais condições de oferecer. No contexto em que vivemos, defesa da soberania alimentar traz de volta à discussão aspectos como a qualidade nutricional dos alimentos e todas as consequências do sistema que os produz.

O Dia Internacional de Luta pela Soberania Alimentar é celebrado todos os anos em 16 de outubro. Neste ano, a Conferência contra Fome aconteceu de forma remota e reuniu representantes de mais de 20 movimentos e organizações populares, rurais e urbanas. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) divulgou o documento Alimentação é Direito de Todo Ser Humano, no qual se posiciona diante do problema da fome no Brasil.

Discutir amplamente a soberania alimentar é um convite para que a sociedade deixe de pensar nos alimentos como mercadorias e volte a considerá-los um direito humano, essencial à reprodução da vida.

agricultura familiar

Desde os primórdios da agricultura, o cultivo da terra normalmente acontece em um grupo de pessoas com vínculos de parentesco, seja uma família nos moldes ocidentais, seja uma parentela extensa ou grupo local nas sociedades diferentes da nossa.

Com o surgimento do sistema de produção capitalista, a atividade no campo ganhou traços industriais. Áreas de cultivo muito maiores, produção em larga escala, trabalho regido por princípios de eficiência. Passa a ser necessário contratar trabalhadores, sejam eles permanentes, para cuidar de tarefas diárias da fazenda, ou temporários, para os picos de demanda de trabalho como as épocas de plantio e colheita.

Sobretudo a partir dos anos 1960, houve um intenso fluxo migratório em direção às áreas urbanas. A mecanização agrícola diminuiu a demanda por trabalhadores no campo, enquanto o desenvolvimento da indústria e as imagens de modernidade passaram a atrair pessoas para as cidades. O processo ficou conhecido como êxodo rural: milhares de famílias migraram para as cidades atrás das promessas de bons salários e melhores condições de vida.

Nesse movimento, muitas famílias trocaram a condição de pequenos proprietários rurais por uma situação de grande vulnerabilidade econômica e social, vivendo nas periferias de áreas urbanas. Passaram a fazer parte do grande exército de reserva de mão de obra, que o capital usa para manter os salários em níveis baixos.

Além disso, essas pessoas deixaram para trás não apenas seus pequenos sítios, que lhes garantiam a sobrevivência e a dignidade. Perderam também vínculos familiares, costumes cotidianos e a possibilidade de uma vida pouco custosa no campo.

Felizmente parece haver também uma força oposta nesse processo, com a recente valorização da agricultura familiar. Esse modelo produtivo vem conquistando reconhecimento institucional nos últimos 25 anos, resultante da criação de políticas públicas, programas governamentais, espaços de participação e naturalmente da promulgação de leis. A mais significativa delas é a Lei da Agricultura Familiar (lei federal nº 11.326/2006) que reconhece oficialmente a atividade como profissão e estabelece diretrizes de uma política nacional.

Foto: Rose dos Santos e Guilherme Martins / MST Paraná

Um produtor é considerado agricultor familiar quando utiliza predominantemente mão de obra de pessoas ligadas a ele por vínculos familiares e não por vínculos patronais.

Segundo informações do Censo Agropecuário 2017, 77% dos estabelecimentos produtores do Brasil são de agricultura familiar. Entretanto, a área ocupada por eles corresponde a apenas 23% de toda área produtiva do país. Tal diferença naturalmente se explica pelo pequeno tamanho dessas propriedades, especialmente se comparadas às enormes fazendas do agronegócio. Além disso, é na agricultura familiar que estão 67% dos trabalhadores do setor agropecuário.

Percentual de estabelecimentos caracterizados como agricultura familiar em relação ao total de estabelecimentos (2006). Fonte: IBGE, Censo Agropecuário 2006. CLIQUE PARA AMPLIAR

Os dados detalhados de produção disponíveis no Censo Agropecuário 2006 mostram mais claramente a participação da agricultura familiar na produção dos itens que compõem a alimentação básica das pessoas. É da agricultura familiar que vem 70% do feijão, 34% do arroz, 87% da mandioca e 58% do leite de vaca. Já o modelo não familiar de agricultura, tipicamente usado no agronegócio, destaca-se na produção de commodities, que são exportados ou vendidos internamente depois de processados: produz 84% da soja, 79% do trigo e 62% do café.

Podemos constatar, portanto, que a agricultura familiar é fonte de parte significativa daquilo que de fato alimenta as pessoas, enquanto que o agronegócio não esconde sua vocação de simplesmente produzir para ganhar dinheiro.

Foto: Gisele David / MST-PR

Programas e projetos que valorizam a agricultura familiar representam um estímulo para o desenvolvimento do pequeno produtor. Um modelo de produção e distribuição de alimentos orientado para a autonomia só é possível se a produção estiver espalhada pelo território, cada um produzindo um pouco em cada lugar. Isso também contribui para que o trabalho esteja espacialmente distribuído, garantindo renda e segurança alimentar para milhões de famílias em todo o território.

Quase tão importante quanto o trabalho é a possibilidade de uma vida que preserve vínculos comunitários, tradições, referências culturais. Sem esses aspectos nutridores da condição humana, as pessoas se transformam em consumidores passivos, reféns das mídias e facilmente manipuláveis, inclusive em seus hábitos alimentares.

hipermobilidade e dependência

A rapidez com que o vírus se espalhou pelo mundo, gerando uma pandemia, só é possível graças à mobilidade dos humanos, que atuaram como vetores da doença. Mobilidade é definida como um atributo do indivíduo que expressa sua capacidade de se deslocar pelo território. Essa capacidade naturalmente varia em função de sua condição social, já que todo meio de transporte tem um custo proporcional a seu alcance e sua velocidade. Dá até para pensar numa hipermobilidade, como a condição que alguns têm de se locomover praticamente sem limites entre localidades de todo o planeta. No Brasil, e provavelmente em outros países, o vírus penetrou e se difundiu a partir de meios sociais abastados, justamente onde existe hipermobilidade.

Graças ao desenvolvimento dos sistemas de transportes, é possível conceber arranjos produtivos distribuídos por localidades muito distantes umas das outras. Isso se dá em escala global, com componentes e produtos acabados cruzando o mundo em busca de seus mercados, e também em escala nacional, com mercadorias viajando mais de mil quilômetros entre o local de produção e a residência em que serão utilizadas ou consumidas.

A razão que leva a esses arranjos produtivos é, como quase sempre, econômica. Na escala global, uma mercadoria produzida em um país distante pode ser mais barata que outra produzida localmente graças à grande escala de produção e transporte, muitas vezes aliada a altos níveis de precarização do trabalho, que reduz muito o valor da mão de obra. Com os empresários sempre passando por cima de tudo em busca do maior lucro possível, e os consumidores geralmente escolhendo o menor preço que encontram, tais arranjos produtivos acabam se estabelecendo e eliminando as alternativas.

Dentro do país, especialmente quando se trata de um território imenso como o brasileiro, consumimos uma fruta ou legume que viajou dias de caminhão quando poderíamos ter na mesa a mesma fruta ou legume produzido dentro de um raio de cem quilômetros em torno da localidade onde estamos. As grandes redes de distribuição e comercialização de alimentos têm um papel determinante nisso quando optam por oferecer apenas produtos que vêm de longe, que elas compram a um custo muito baixo. São produzidos por meio de agricultura intensiva, altamente mecanizada e com grande uso de produtos químicos, e chegam até nós por meio de sistemas de distribuição bastante poluentes.

A disponibilidade do transporte é de fato uma condição para que tudo isso seja possível. Mas existe uma série de escolhas que resultam nesses esquemas. Uma vez que eles são implementados, nos tornamos dependentes deles. Uma sociedade que avalia tudo pelo critério econômico não é capaz de enxergar o quanto de absurdo há nisso. Nesse sistema de valores, tudo bem fechar uma fábrica em nosso país só porque alguém produz a mesma coisa do outro lado do mundo e entrega aqui pela metade do preço; tudo bem comer uma fruta que passou dias chacoalhando dentro de um caminhão sendo que tem gente produzindo a mesma fruta a uma distância que pode ser coberta de bicicleta.

Eis que um vírus, com sua altíssima capacidade de deslocar-se pelo espaço graças à hipermobilidade disponível para alguns, provoca uma situação de emergência mundial, tornando necessário restringir a mobilidade dos humanos, enclausurando-os em suas casas.

Nesse prolongado período de prisão domiciliar, neste momento ainda sem previsão de término, talvez as pessoas tenham tempo para pensar no quanto se encontram dependentes de sistemas econômicos absurdos, e percebam que existe terra fértil e produção exuberante bem mais perto do que imaginam.

desertos alimentares

Se boa parte da humanidade escolheu viver em cidades, é porque elas prometem, entre outras coisas, acesso mais fácil aos produtos e serviços essenciais à vida. Abrimos mão de plantar o próprio alimento pois, vivendo em aglomerações, nós poderíamos adquiri-lo facilmente enquanto nos dedicamos a outras atividades. Acontece que em muitas localidades essa oferta é negada.

Os lugares onde não existe acesso fácil a alimentos saudáveis são chamados desertos alimentares. São bairros onde não há mercearias, quitandas ou supermercados que vendam frutas, verduras e legumes frescos. Os estabelecimentos que existem nesses lugares oferecem apenas produtos comestíveis ultraprocessados, cheios de gorduras, açúcares, saborizantes e conservantes químicos. Produtos que, segundo alguns profissionais, sequer podem ser considerados alimentos.

Bastante utilizado nos EUA em anos recentes, o conceito tem uma definição básica bem simples, dada pelo ministério da agricultura de lá: desertos alimentares são áreas onde o acesso a alimentos saudáveis e a preço acessível é limitado. Há também definições mais elaboradas, que podem restringir a áreas com população de baixa renda, especificar uma distância máxima (geralmente 1 milha) entre domicílio e estabelecimento comercial, ou ainda considerar a posse de automóvel pela família.

Dois enormes atacadistas (canto inferior esquerdo) podem quebrar comércios locais. Imagem: DigitalGlobe.

Para além das especificidades das definições, bastante ligadas à realidade social e urbana de cada país, o que mais interessa para nós é a própria ideia de deserto alimentar. Ela nos leva a refletir sobre como organização urbana, mobilidade e forças econômicas são fatores que determinam de maneira direta o acesso a uma alimentação decente.

Ao abrir uma loja em determinado bairro, uma grande rede de comércio pode provocar o fechamento de mercearias e quitandas locais. Se isso acontece, as pessoas passam a ter duas opções: ou acabam tendo sua alimentação restrita aos produtos que estiverem disponíveis nesse supermercado, pagando o preço que seus gestores quiserem, ou precisam se deslocar até outro bairro em busca de opções. Terão que gastar combustível, caso disponham de um automóvel, ou pagar condução e ter que segurar sacolas cheias e pesadas dentro do transporte coletivo e no ponto de ônibus. Pessoas com mais idade e menos condições físicas são as que mais sofrem com isso. Caso tenham problemas crônicos de saúde, a importância de uma alimentação saudável é ainda maior, e portanto a dificuldade de acesso aos alimentos torna-se ainda mais determinante em suas condições de vida.

Há bairros planejados para que praticamente qualquer movimento dependa de um automóvel. Tudo é longe, as pessoas precisam de um carro até para ir à padaria. Eventualmente, há aí supermercados que até oferecem uma linha de alimentos saudáveis, afinal são frequentados por “gente feliz”, e esse tipo de consumidor costuma ter interesse em bons produtos. Mas os preços praticados nesses lugares são bastante seletivos. Até mesmo os chamados sacolões tendem a se tornar quitandas de luxo quando estão perto de bairros ricos. Considerando que a definição fala de alimentos a preços acessíveis, podemos considerar esses bairros como desertos alimentares também.

Tente sair caminhando para procurar um mercado ou quitanda. Imagem: DigitalGlobe.

De qualquer forma, definições oficiais acabam sendo o menos importante. Você é quem tem mais legitimidade para falar sobre a situação em que vive. Como você avalia a disponibilidade de alimentos saudáveis no lugar onde você mora? Sente dificuldade para obtê-los? Isso afeta de alguma forma a qualidade da sua alimentação e da sua vida?

Tendo em vista tudo isso, você considera o seu bairro um deserto alimentar?

Ao aceitarmos que o alimento seja tratado como mercadoria, sujeita a leis de mercado, podemos esperar a proliferação desses locais em que as pessoas são privadas de boa alimentação a menos que estejam em condições econômicas muito privilegiadas. Para que não fiquemos reféns da indústria de produtos comestíveis e das redes de supermercados, é preciso incentivar os pequenos comerciantes e, especialmente, os mercados de produtores. E aqui, incentivos não dizem respeito às leis ou benefícios tributários que partem do poder público, mas às escolhas feitas por cada um no momento de adquirir seus alimentos.