decrescimento

Dizem que a economia precisa sempre crescer. Esse mantra, repetido constantemente em quase todos os meios de comunicação, criou um consenso tão forte que raramente alguém questiona a afirmação ou pede que se apresentem justificativas para a necessidade de crescimento. Há, porém, um movimento de pessoas tecnicamente muito bem fundamentadas que defende o contrário: as grandes economias de hoje deveriam buscar não o crescimento, mas o decrescimento.

O argumento central é simples: não há crescimento infinito possível em um planeta finito. Portanto, considerando que certos países já cresceram demais e consomem mais de 80% dos recursos naturais do planeta, é preciso abandonar o paradigma tecnocrático, segundo o qual a atividade econômica deve sempre crescer e crescer, e buscar a redução da produção e do consumo, diminuindo o uso de energia e a dilapidação dos recursos naturais do planeta. Dentro dessa proposta, bem-estar social e ecológico passa a ser a prioridade, deixando para trás um sistema que causa exploração humana e destruição ambiental.

Os defensores do decrescimento propõem uma sociedade marcada por autonomia, trabalho partilhado, auto-organização e convivialidade. Nela, o Produto Interno Bruto (PIB) perde o sentido como parâmetro de prosperidade. Indicadores ligados a saúde, vitalidade comunitária, longevidade e felicidade são mais importantes aqui.

A diminuição da atividade econômica e dos conglomerados altamente capitalizados tende a devolver espaço para os negócios de menor tamanho. A economia se reorganiza e passa a operar em uma escala mais humana, na qual as pessoas deixam de ser engrenagens do sistema e podem ter seu trabalho devidamente valorizado. A velocidade da vida volta a ser saudável, os laços comunitários se regeneram, os índices de felicidade aumentam.

Podemos acrescentar que, nessas condições, a saúde geral da população melhora e a venda de remédios cai. Tal efeito, que dentro do pensamento econômico hoje dominante seria considerado um problema – afinal, os remédios e toda a indústria da doença correspondem a parte importante do PIB – não seria motivo de preocupação em um mundo onde o PIB deixou de ser o fetiche dos tecnocratas e governantes.

Foto: Anton Atanasov / Pexels

No sistema alimentar, a atuação de grandes corporações na distribuição de alimentos prejudica os pequenos produtores e também os consumidores, controlando os preços em ambas as pontas. E quanto à produção, os alimentos parecem estar longe do interesse dos latifúndios, que preferem produzir commodities para os mercados interno e externo. Temos aqui um bom exemplo de como o crescimento sem limites chega ao ponto de desviar completamente a finalidade da terra, que no caso do agronegócio já não serve para produzir comida.

Ter na bicicleta um referencial para a estruturação de sistemas alimentares autônomos é uma proposta radical que tem ressonância, em termos teóricos e práticos, com a doutrina do decrescimento. Além de se basear em uma fonte de energia altamente renovável, o alimento, e ser pouquíssimo poluente (zero emissão em seu uso e pouco nociva na produção e no descarte), a bicicleta coloca limites na carga transportada por viagem e na distância viável num sistema produtivo.

A bicicleta oferece autonomia com baixo consumo de energia, em uma escala pequena de operação, podendo dar conta de boa parte da logística de alimentos em uma área geográfica restrita. Dito de outra forma, cria-se uma comunidade de consumidores de alimentos produzidos localmente, um arranjo que contribui para o fortalecimento comunitário.

Trata-se de uma economia localizada e conectada, conforme os princípios do localismo, outra referência importante dentro da teoria do decrescimento. Como proposta de economia política, o localismo coloca-se como resposta aos problemas criados pela globalização, defendendo que cada comunidade deve ser livre para encaminhar seu destino conforme os desejos de seus habitantes. Isso passa pela organização de economias baseadas na autossuficiência local, de forma a minimizar os impactos originados externamente, pelas decisões tecnocráticas de grandes corporações nacionais ou internacionais.

Um aspecto frequentemente destacado pelos defensores do decrescimento é sua oposição a propostas chamadas de “crescimento sustentável” ou qualquer expressão equivalente. Eles nos lembram da importância de estarmos atentos a essas supostas críticas ao crescimento – geralmente criadas e propagadas pelos próprios atores que se beneficiam do crescimento destrutivo sem limites – que, na prática, não almejam reais mudanças.

Na opinião de Serge Latouche, economista francês e um dos mais destacados pensadores da teoria do decrescimento, apenas acrescentar a ideia de “sustentável” ao crescimento faz crer que não há alternativas, nos mantém dentro do pensamento único. A palavra decrescimento, pelo estranhamento que causa, faz parar para pensar, funciona como um slogan provocador, deixando patente a necessidade de sairmos da demagogia produtivista, desenvolvimentista, de superarmos o paradigma do crescimento, que nada mais é que outra forma de dizer “acumulação de capital”.

Costuma ser atribuída ao economista brasileiro Delfim Netto a afirmação “É preciso primeiro fazer crescer o bolo para depois dividi-lo”. A frase é eficaz como recurso de doutrinação, pois remete a uma realidade concreta, que qualquer um consegue enxergar: um bolo maior de fato resulta em pedaços maiores quando dividido. Há nela, porém, uma afirmação implícita: “o bolo ainda não é suficiente grande”. Quando alguém aceita a parte explícita e doce dessa ideia, engole junto a parte implícita, passando a acreditar que o bolo não é grande o suficiente.

Porém, o bolo é bem grande, sim! Se ele for dividido hoje, de forma equânime e justa, as partes serão suficientes para todos. Defender o crescimento é mais uma forma de garantir a concentração de riquezas que existe em praticamente qualquer país, seja ele considerado desenvolvido ou não.

Propor decrescimento em uma cultura obcecada pelo crescimento sem limites soa como heresia. É um ato radical de resistência. Enquanto a ideologia dominante tenta nos convencer que é natural passar nossas vidas trabalhando como escravos, decrescimento é uma provocação para nos lembrar que cada ser está aqui com um propósito maior do que simplesmente trabalhar e produzir sempre mais.

Para além da teoria, o decrescimento é um princípio que pode nortear cada decisão do cotidiano. Precisamos reduzir essa loucura coletiva e reorganizar um projeto de sociedade que sustente as bases naturais da vida.

alimento no prato

Foi lançado no último dia 16, data em que se celebra o Dia Internacional de Luta pela Soberania Alimentar, o Plano Nacional de Abastecimento Alimentar 2025-2028, também chamado de Plano Alimento no Prato. O documento apresenta 29 iniciativas e 92 ações estratégicas, que se encontram estruturadas em seis eixos de atuação.

O Plano Nacional de Abastecimento Alimentar foi concebido pelo Decreto nº 11.820, assinado pelo presidente Lula em dezembro de 2023, que instituiu a Política Nacional de Abastecimento Alimentar (PNAAB). O Plano é o principal instrumento de planejamento e execução da PNAAB, trazendo propostas de políticas públicas com o objetivo de “estabelecer um sistema de abastecimento alimentar sustentável, inclusivo e justo, que assegure o acesso a alimentos saudáveis e amplie a disponibilidade dos itens que compõem a Cesta Básica”.

Entre os seis eixos de atuação que estruturam as iniciativas e ações do Plano, destacamos o Eixo 1: Distribuição e Comercialização de Alimentos Saudáveis. Seu objetivo é estabelecer um sistema de abastecimento alimentar que viabilize o acesso a alimentos saudáveis de maneira sustentável, inclusiva e justa.

Imagem: divulgação

Para que um sistema de abastecimento seja genuinamente inovador e autônomo, é importante garantir que as decisões sobre o que plantar e o que consumir sejam tomadas pelos seus atores mais importantes, ou seja, aqueles que plantam e aqueles que se alimentam. Se a distribuição for dependente de estruturas altamente capitalizadas, capazes de cobrir grandes distâncias transportando quantidades enormes para baratear custos, interesses alheios à cultura alimentar local atuarão sobre o sistema, e tanto produtores quanto consumidores acabam ficando sujeitos à lógica do capital.

Com a aproximação entre produtores e consumidores, torna-se possível a troca de informações entre eles. E aqui é importante entender aproximação não apenas no sentido geográfico, de estar fisicamente perto, mas também no de proximidade dentro da rede de distribuição, com o menor número possível de intermediários entre quem produz e quem consome. Que alimentos os consumidores gostariam de ter em suas mesas, mas não encontram nos mercados convencionais? Quais alimentos sazonais podem ser produzidos pelos agricultores nesta época, podendo ser oferecidos com alto valor nutritivo e a baixo custo, devido à alta produtividade da estação?

Em um sistema alimentar com essas características, torna-se tendência natural o acesso aos alimentos acontecer “de maneira sustentável, inclusiva e justa”, conforme apontado na descrição desse Eixo. Coerentemente a isso, o Plano propõe a criação de centros de abastecimento e comercialização de alimentos produzidos pela agricultura familiar, comunidades tradicionais e estabelecimentos produtivos pautados pelos princípios da economia solidária.

O Plano Alimento no Prato foi construído com a participação do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), de outros órgãos federais ligados ao desenvolvimento rural sustentável e de organizações da sociedade civil envolvidas com a defesa da segurança e da soberania alimentar no país. As ações e iniciativas foram definidas com base em escuta social e em um diagnóstico abrangente, levando em conta experiências consolidadas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

Agora o desafio é garantir sua implementação de fato. É importante que as organizações e movimentos sociais que formam a teia de produção e distribuição de alimentos saudáveis tomem conhecimento do Plano, compreendam em profundidade o potencial das iniciativas e ações propostas e organizem-se para ter acesso às oportunidades concretas que devem surgir a partir desse importante documento.

desperdício de comida

Todos os dias, no mundo inteiro, alimentos são jogados no lixo. A gente já sabe disso mas, mesmo assim, ver números pode ser perturbador.

Um relatório divulgado no fim de março pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) estimou que, em 2022, a quantidade de comida desperdiçada nos domicílios, comércio varejista e estabelecimentos de alimentação totalizou 1,05 bilhão de toneladas.

Os domicílios respondem, nesses cálculos, por 631 milhões de toneladas, o varejo por 131 milhões e os estabelecimentos de alimentação por 290 milhões de toneladas de comida jogada fora. No cálculo médio per capita, seriam 79 kg de alimentos desperdiçados por pessoa no ano.

Por mais que esses números sejam estimativas, são dados assustadores, sobretudo se considerarmos os 783 milhões de pessoas que passam fome atualmente no mundo.

A edição 2024 do Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos trabalhou com dados de 93 países na categoria desperdício domiciliar, um aumento significativo em relação aos 52 países cobertos pela primeira edição do Relatório, publicada em 2021.

É preciso entender bem o que o documento define como desperdício de comida: todos os alimentos, incluindo as partes não comestíveis associadas, que chegam até o varejo ou o consumidor final mas que, em vez de servirem para alimentação, acabam em outros destinos, como lixo, compostagem, esgoto, apodrecimento, aterro, incineração. Um conceito próximo mas diferente é o de perda de comida: tudo aquilo que, na cadeia de produção e distribuição de alimentos, em qualquer uma das etapas antes do varejo (excluindo este), é descartado não retorna de nenhuma outra forma à cadeia de suprimento, e portanto não serve a nenhuma outra utilização. Estimativas da perda de comida no mundo são objeto de outro estudo, também ligado às Nações Unidas. O relatório apresentado aqui diz respeito somente ao desperdício nos domicílios, estabelecimentos comerciais e restaurantes.

E por que as partes não comestíveis são também incluídas na conta? O relatório observa que a definição do que é ou não comestível muitas vezes é cultural. Pés de galinha e miúdos de animais são aproveitados na culinária de algumas residências ou regiões, mas são desprezados como não comestíveis em outras. Em algumas culturas, somente as flores dos brócolis são utilizadas, enquanto em outras as folhas e caules também fazem parte da refeição. Cascas de laranja são usualmente retiradas e jogadas fora, mas em muitas famílias elas são transformadas em deliciosos doces ou geleias.

O estudo encontrou uma pequena correlação entre a temperatura média do país e a quantidade de comida desperdiçada nos domicílios: em países mais quentes o desperdício estimado tende a ser maior. Algumas hipóteses são levantadas como possíveis explicações dessa relação: maior uso de alimentos in natura (portanto maior proporção de partes não comestíveis, que contam como desperdício), maior quantidade de alimentos com casca grossa (resultando em maior peso das partes não utilizadas) e a própria ação do calor (fazendo os alimentos estragarem em menor tempo).

Apontam também a possibilidade de eventos de calor extremo, secas e a falta de refrigeração adequada na cadeia de distribuição nesses países (impactando o estado em que os alimentos chegam aos consumidores finais) terem relação com essa tendência. De qualquer forma, o próprio relatório faz ressalvas quanto a isso, observando que não há relação entre o desperdício e o nível de desenvolvimento econômico do país e que, de um modo geral, há um considerável grau de incerteza em parte dos dados, portanto é preciso cuidado na interpretação dessas conclusões.

Imagem: Food Waste Index Report 2024

Outra correlação encontrada, mas que também deve ser interpretada com cuidado, é entre o local de residência, urbano ou rural, e o desperdício: foi observado que em áreas rurais o desperdício tende a ser menor.

Segundo o próprio relatório, isso pode estar relacionado ao aproveitamento de cascas e outras partes usualmente descartadas dos vegetais para a alimentação tanto dos animais de criação quanto dos domésticos. Além disso, a falta de coleta de resíduos sólidos em muitas dessas áreas faz com que partes rejeitadas dos alimentos sejam habitualmente jogadas nos canteiros, e isso não foi considerado nos dados como desperdício.

O Brasil está entre os países cujos dados foram utilizados nesta edição do Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos. As informações se referem à cidade do Rio de Janeiro, por meio de um estudo feito em 2023, envolvendo 102 domicílios. Essa cidade produz 4.800 toneladas de resíduos alimentares residenciais por dia. Isso corresponde a 77 quilos por pessoa por ano (bem próximo à média mundial, acima), ou 212 gramas por pessoa por dia.

Cada um dos domicílios que participaram do estudo separou seus resíduos sólidos em três categorias: resíduos alimentares, materiais secos de embalagem e demais resíduos. Os resíduos alimentares constituem 62% do total descartado. Esse material é composto de frutas, verduras e legumes (62% dos resíduos alimentares), carne (11%), padaria (16%) e laticínios (11%). Um dado curioso é que o estudo afirma não haver correlação entre a faixa de renda da família e o desperdício de comida gerado por ela.

Ainda que o Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos considere apenas o que é jogado fora nas etapas finais da cadeia de distribuição, é importante compreendermos a relação disso com o sistema alimentar em que estamos inseridos, especialmente as grandes distâncias percorridas entre produtores e consumidores e a quantidade de intermediários entre eles.

Será que as longas horas que frutas e hortaliças passam chacoalhando dentro de um caminhão na estrada não afetariam o estado em que esses alimentos chegam nas gôndolas do varejo e nas residências dos consumidores? E além do tempo e das distâncias, é preciso também levar em conta o efeito do repetido manuseio que os produtos sofrem, nas diversas operações de carga e descarga feitas pelos coletores regionais de produção, transportadoras intermunicipais e interestaduais, centrais de abastecimento nas cidades de destino, distribuidoras locais e outros possíveis intermediários, ainda que, na melhor das hipóteses, haja sistemas frigoríficos adequados tanto nos transportes quanto nos estoques.

Dessa forma, no momento em que chegam ao consumidor final, parte do tempo de vida útil desses alimentos já foi consumido ou reduzido. Eles poderão estragar mais rapidamente nas geladeiras dos domicílios.

Basta observar a durabilidade na geladeira dos alimentos adquiridos por meio de esquemas alternativos de distribuição, como feiras de produtores, compras coletivas e grupos de consumo de produtores regionais ou locais: além de mais saudáveis, esses produtos resistem mais tempo antes de começarem a estragar. Está aí mais uma evidência da relação entre o atual sistema alimentar e o desperdício.

Um caminho para diminuir o desperdício são os bancos de alimentos. Estabelecimentos de varejo podem encaminhar a eles os produtos que já estão fora dos padrões para comercialização mas ainda em condições de consumo, de forma que eles sirvam para alimentar pessoas em vez de acabar em aterros.

O Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos é publicado por uma entidade das Nações Unidas como forma de monitoramento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, especificamente o objetivo 12.3: “Até 2030, reduzir pela metade o desperdício de alimentos per capita mundial, nos níveis de varejo e do consumidor, e reduzir as perdas de alimentos ao longo das cadeias de produção e abastecimento, incluindo as perdas pós-colheita”.

De qualquer forma, para quem tem fome, não é possível esperar até 2030. Repensar aspectos do nosso sistema alimentar é tarefa urgente, e a mudança pode se dar em todos os níveis, inclusive o mais corriqueiro, a cada vez que escolhemos, adquirimos e consumimos os alimentos.

entrevista: Lucca Pérez

A Cooperativa Terra e Liberdade faz uma importante conexão entre produtores de alimentos do MST da Grande São Paulo e consumidores finais, formando um circuito curto de distribuição. Tivemos a oportunidade de acompanhar uma manhã de trabalho da cooperativa, ajudando na montagem das cestas e percorrendo uma das rotas de distribuição junto com o militante Lucca Pérez, que depois nos concedeu esta entrevista.

Lucca nasceu em São Paulo, é engenheiro ambiental e, durante a graduação, trabalhou com o MST implantando sistemas de irrigação e saneamento ecológico. Atuou também com economia solidária e fez mestrado em engenharia de produção, com foco em organização do trabalho. Atualmente, em seu doutorado, estuda as relações entre saúde mental e trabalho, sobretudo no ambiente do cooperativismo.

Nesta conversa, Lucca fala dos desafios ligados à distribuição dos alimentos produzidos pela reforma agrária e sobretudo daqueles enfrentados pelos produtores e produtoras nos assentamentos. Fala também da construção de relações de consumo menos mercantilizadas, ainda que não deixem de ser relações econômicas, e que sejam focadas “no valor de uso, na política e no afeto, e não na mercadoria”.

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Quando e como começou o trabalho da Cooperativa Terra e Liberdade? O que motivou essa iniciativa a começar a funcionar?

Todo começo é herdeiro de outras experiências, né? O Cícero já tinha trabalhado com comercialização de uva na década de 2000, levava para igrejas, portas de fábricas, já tinha algum trabalho com logística. Mas a venda de hortifruti em geral era muito focada no mercado institucional, notadamente o PAA [Programa de Aquisição de Alimentos]. Esses alimentos iam para escolas, prisões, quartéis, tinha soldado que comia alface agroecológica do MST.

Tem também o PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar], que é um mercado importantíssimo, uma política pública de fortalecimento da agricultura familiar que garante o escoamento da produção mas, ao mesmo tempo, como tudo tem uma dialética, quem vende só para esses mercados fica acostumado com isso. São contratos de, tipo, cinco mil pés de alface por família, por DAP [Declaração de Aptidão ao Pronaf, documento que habilita uma unidade produtiva para participar do programa].

Aí veio o corte de 2016 com o Temer. O orçamento do PAA saiu de bilhão para coisa de 200 milhões entre 2016 e 2018. Então os agricultores da regional ficaram sem ter para onde vender. Perderam mercado de uma hora para outra. Paralelamente a isso, eu já vinha trabalhando na Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP e era um aliado do MST. Já havia um debate sobre comércio solidário, redes, cadeias, consumo consciente etc.

Então a gente tentou fazer algumas pontes com a cooperativa do [assentamento] Dom Pedro e com a juventude do Dom Pedro, buscando fortalecer hortas da juventude. A ideia era muito mais fortalecer laços dentro desse campo da economia solidária do que dar uma resposta material da produção. Mas com o fim do PAA a gente decidiu ir para o mercado do consumidor final, sair do mercado institucional. Só que a gente não tinha recursos, não tinha experiência nisso.

Outro processo paralelo foi a Feira Nacional da Reforma Agrária. Nós participamos desde a primeira ajudando a organizar. Na segunda e na terceira nós já tocamos o processo.

O ‘nós’ aí nesse caso é quem?

É a [direção] regional Grande São Paulo [do MST]. Então as feiras também foram abrindo um diálogo de mercado com o consumidor final. Nesse processo, um pouco mais tarde, abre o Armazém do Campo. A gente já estava elaborando uma estratégia para acessar o mercado de consumidor final, é importante ter um diálogo com a população da cidade, a gente visibiliza o trabalho. No PAA, não se dá visibilidade ao que está sendo produzido, ele é muito importante para dar vazão à produção, mas não avança nos outros elementos, como construir alianças, redes de cooperação e tudo mais.

Então batemos aqui na porta do SINTUSP, foi o primeiro grupo de consumo, começou ali por 2017. A gente entregava cestas quinzenalmente. Então fornecia para o Armazém do Campo, para o SINTUSP, tentava fornecer uma coisa ou outra para o Instituto Chão.

Aí a gente começou um grupo de consumo lá no ABC, depois a feira no SESC Santana. No fim de 2018 a gente já começa a chamar de cooperativa e começa a pensar no nome. Talvez já tivesse a ideia de ‘Terra e Liberdade’.

Ali pelo fim de 2018 e começo de 2019 já tinha o primeiro site, que era mais simples, e a gente entregava em pontos de retirada, ainda não tinha porta a porta. A gente começou a fazer porta a porta só com a pandemia.

Nesse momento que você relata agora, a origem da produção que vocês distribuíam já era dos três assentamentos, Dom Pedro, Dom Tomás e Irmã Alberta?

Sim. Hoje a gente complementa com o Instituto Terra Viva, de Sorocaba, que comercializa a produção dos assentamentos da região de Sorocaba mas não só, são pequenos produtores em geral. Eles são aliados, um deles era do setor de produção do MST de lá.

A gente também entregou para a CUT de Osasco, para um pessoal da TVT, no ABC, mas não estava dando muito certo. O custo de transação era muito grande, um monte de informação no grupo de Zap. Mesmo depois, com o Google Forms, não era fácil fazer o pedido. Eram muitas horas para processos que hoje são quase automatizados.

Mas o mais determinante, eu acho que é a transição da companheirada, que vendia para o programa. Imagina, cinco mil pés de alface no ano para o PAA. Quarenta agricultores. Essa transição deles para o mercado direto envolve mexer melhor no celular. Eles não tinham Zap ainda, gente ligava para os produtores. Às vezes alguém esquecia algum item que tinha que mandar, aí a gente precisava ligar para cobrar.

Hoje a gente consegue mapear e pedir com uma certa frequência, é um processo consolidado, a companheirada entrega, a qualidade melhorou muito. Antes a qualidade era muito variável.

Atualmente, quantas pessoas estão envolvidas com a Cooperativa Terra e Liberdade?

Hoje a gente tem um núcleo duro de quatro pessoas, incluindo eu, tocando a cooperativa. Tem também mais uma companheira que já esteve mais envolvida e hoje segue apenas cuidando do site. E tem mais uns seis ou sete aliados e aliadas que ajudam na montagem e nas entregas.

Lucca Pérez, de vermelho, durante reunião em assentamento do MST. Foto: arquivo pessoal.

Como se formou a área geográfica de atuação da cooperativa? Seguiu algum critério prévio, foi uma questão de custo operacional, ou de disponibilidade de companheiros?

Na zona norte começou com a feira do SESC Santana. Então começaram a articular um grupo de consumo, que hoje chega na periferia, bem no extremo norte. Eles pegam também a produção das mulheres de lá, que fazem pão, sabonete, tem toda uma rede de economia solidária que foi se criando a partir da feira no SESC, com pessoas engajadas. Então começou a ter rota para a zona norte.

Para a Vila Mariana, foram duas pessoas com história familiar de militância que queriam fortalecer o movimento. Quando começou na Vila Mariana, a gente já tava mais maduro, então a gente construiu de uma forma melhor. Na zona leste tinha um pessoal do teatro, antes de a gente começar a fazer entregas no centro a gente já chegava na zona leste por meio desse pessoal. Tem também uma cooperada em Ermelino Matarazzo que foi se organizando e criou um grupo de consumo. No ABC tem uma galera do PSOL ecossocialista que conhecia o MST, porque lá tem o núcleo urbano do MST Carlos Marighella.

Tem mais dois grupos nascendo. Um no Ipiranga, onde entregamos junto com o de Vila Mariana. E o outro é do SINDEMA, o sindicado dos servidores de Diadema, que tem uns quatro meses. Então são sete agora. Talvez Diadema e Ipiranga ainda não sejam grupos de consumo consolidados. Alguns grupos começaram assim, com uma pessoa puxando e depois constituindo um coletivo.

O preço pago aos produtores é definido por eles mesmos? É muito influenciado pelos preços de mercado? Como vocês pensam esse aspecto?

É influenciado por preços de mercado sim, mas não tão diretamente. A gente não quer cobrar um preço tão caro dos consumidores. Mas a gente tem os custos de gasolina, manutenção de carro, algumas ajudas de custo.

Tem mecanismos de mercado, porque a gente vive numa sociedade da produção do valor, não estamos fora dela. Mas não é um preço de mercado de atravessador, por exemplo. A gente começou pagando um preço negociado e depois foi subindo de forma negociada.

A gente tem uma lista de preços, a gente tenta padronizar. Óbvio que se é um produto muito lindo, a gente abre exceções, mas depois isso dá um trabalho enorme na planilha, porque sai do que a gente conseguiu avançar em termos de automatização da planilha, e ainda pode dar problema.

Mas dá para chegar no consumidor por um preço justo. Tem um monte de gastos no meio, como gasolina, pedágio, manutenção, servidor do site, sacolinha, perdas, etc. Além disso a gente também serve nosso caixa de microcrédito. Muitas vezes emprestamos para a companheirada que precisa, para compra de mudas, por exemplo.

Atualmente, se não existisse esse trabalho feito pela cooperativa, os produtores teriam alguma alternativa de escoamento da sua produção? Nesse meio de tempo mudou alguma coisa nas condições que eles encontram no mercado?

Voltou a ter política pública de compra institucional, então mudou sim. E alguns se profissionalizaram mais e conseguem hoje tocar uma feira direta, se precisar, e a gente tem incentivado muitos a fazerem isso. A gente tem um grupo [de Whatsapp] de feiras com vários produtores, vários assentados e acampados que hoje dividem tarefas nas feiras. Tem mais gente dos territórios nesse grupo, para pensar junto as feiras, dividir tarefas e por vezes fazer a logística.

Por exemplo, tem um casal do [assentamento] Dom Pedro, eles melhoraram muito a qualidade do processo. Fazem beneficiados de mandioca, mandioqueijo, nhoque, carne de jaca. Tem também uma companheira do [assentamento] Dom Tomás que faz pão, carne de jaca. Teve inovação, tem produtos que não havia antes, muito puxados por ter esse mercado. Hoje essa companheira é uma das maiores produtoras, e sem a cooperativa ela não teria esse mercado.

E de que forma a cooperativa ajudou nesse processo de profissionalização desses produtores e produtoras?

O trabalho com a cooperativa ajudou muito, porque a gente vai dando os retornos e falando: “precisa ter rótulo”, “precisa data de validade”, “essa embalagem rasga muito fácil”. E ao mesmo tempo a gente nunca fala “nunca mais vou pegar de você”. Isso não. A gente chega e fala “companheira, a gente quer que isso vá para frente, e para ir para frente precisa melhorar nisso e nisso”. É chato às vezes o trabalho de discutir qualidade, mas a gente faz isso com o carinho e amor que a gente consegue. Nesse mercado dos grupos de consumo tem gente que topa experimentar, que se encontrar um problema em um produto, não vai sair xingando.

Sim, um outro tipo de relação.

Acho que é uma relação que tem margem. Nem todo mundo vai entrar nisso, porque a correria é bruta, mas existe margem para os laços afetivos. Todos os grupos de consumo, tirando esses dois mais recentes, em algum momento já visitaram os territórios. Olharam no olho das pessoas e conheceram, “ah, essa é a Sheila que faz o nhoque!”. É uma relação muito menos mercantilizada e muito mais focada numa troca econômica com sentido de valores de uso, e não de valor por valor. Estou comendo um alimento sem veneno, produzido por pessoas que estão na luta.

Vamos às reuniões dos grupos de consumo e construímos as visitas deles aos espaços, pelo menos uma vez por semestre. É um trabalho de formação, de construção desses laços, desse vínculo menos mercantilizado. Focado no valor de uso, na política e no afeto, e não na mercadoria. É um alimento sem veneno, produzido por uma pessoa. Quando a gente manda a lista no grupo de consumo, está escrito lá, “nhoque da Sheila, do Dom Pedro”, “licor da Rosângela, do Irmã Alberta”, “mel do Severino, do Dom Tomás”. Aí a pessoa um dia vai lá e conhece a Sheila. É uma relação muito diferente.

Também tem um ponto, e é isso que eu tenho tentado estudar um pouco. Para a transição agroecológica, você tem uma margem de manobra muito maior do produtor sobre sua produção, óbvio que dialogando com o consumidor. Não é cliente-rei do mercado tradicional, mas também não é produtor-rei, tipo “você vai pegar o meu almeirão sim, porque eu produzi bem, está bonito e você vai comer almeirão”. Não pode ser assim.

Como é um modelo de cesta fechada e muita gente que compra por ser do movimento, é muito diferente de um contrato, seja de mercado institucional ou de mercado privado. Imagine, “quero trezentos quilos de banana, neste e naquele parâmetro”. A política pública tem critério de qualidade também, tem parâmetros de tamanho. Então neste tipo de relação você também amplia a margem de manobra do produtor sobre o seu trabalho. São graus de desmercantilização.

Porque ele pode produzir para venda, sim, mas é uma venda que não tem que seguir parâmetros a priori, que vão subsumindo o trabalho. A agricultura familiar fornece frango para a Sadia. Mas aí você vai ver o contrato da Sadia, ele pauta ritmo e intensidade de trabalho, insumos, critérios de qualidade, é como se fosse um terceirizado, ou mesmo um contratado. Você está controlando o trabalho daquele produtor familiar. Já no grupo de consumo, é um estágio em que ele controla o próprio trabalho num nível muito alto, frente às possibilidades de uma produção para venda. Isso aparece no desenho do canteiro, na escolha do que vai ser plantado ou não.

Essa ideia de “graus de desmercantilização” é muito interessante!

É uma outra relação com o trabalho. Ele escolhe plantar a acelga dele e sabe que os consumidores dele vão testar. Talvez ninguém goste de acelga e ele tenha que mudar. Mas ele não vai ter que mudar para seguir um contrato só de alface e pagar uma multa. Certo, não pode acelga, mas eu posso plantar trezentas outras coisas, entende? Isso abre possibilidades para um outro tipo de relação com o trabalho, que é o trabalho agroecológico, uma relação do sujeito com o seu fazer e na mediação com a natureza. Um trabalho com possibilidades emancipatórias e muito menos determinações alienantes.

Estou indo para uma discussão abstrata, que é a discussão da minha pesquisa, mas é uma outra relação com o seu fazer e com a árvore que vai dar o fruto para o tucano, com o canteiro e com a formiga que come o canteiro. Esse tipo de consumo abre muito mais margem para avançar na agroecologia.

Existe interesse da cooperativa em aumentar sua operação, seja em volume num mesmo território, seja ampliando sua área de abrangência? Quais seriam as limitações a serem enfrentadas? E até onde vocês avaliam que seria adequado chegar, em termos desse crescimento de abrangência ou de volume?

Existe, sim, o desejo de crescer em escala. Pode envolver o aumento de abrangência, mas não necessariamente. A gente precisa crescer em escala, antes de mais nada. Por que?

Poucos agricultores vivem só da entrega para a cooperativa, talvez no máximo uns vinte, dos sessenta com quem a gente dialoga. Eles vivem de outras coisas também. Muitas vezes, é autoconsumo e aposentadoria. É uma base envelhecida. Às vezes a gente é a única pessoa que comercializa a produção deles. Não é isso que mantém a reprodução da vida deles. Isso também ajuda em graus de desmercantilização dos canteiros.

Mas a gente também quer ser uma alternativa para o pessoal em idade ativa, mais jovem. E aí, quanto mais relevante você se torna para essas pessoas, mais sentido faz. Se a gente for pegar dez alfaces de cada um, a galera vai plantar dez alfaces. Mas se a gente garante, “pode plantar trezentas, que a gente vai pegar trezentas”, muitas pessoas vão plantar trezentas. E algumas famílias mais jovens, que estão em outra condição, outro momento de vida, precisam disso. E a gente não consegue propiciar isso porque nossa escala não é tão grande ainda. A gente quer que todas as famílias possam viver bem nesse tipo de produção.

Então é crescendo que a gente pode crescer. É meio que um círculo virtuoso. A relevância da escala torna factível a gente poder pedir para a galera plantar mais. Porque se a gente é só um complemento de renda, o que eles vão fazer se pedirmos para plantarem mais? Por isso também demorou tanto tempo para a gente chegar onde está. E isso é uma potência e um obstáculo ao mesmo tempo, porque é uma escadinha. Você sobe um degrau na comercialização, você consegue puxar na produção, mas se você não puxa, ele te puxa para baixo de novo. Você tem que subir um degrau aqui e outro ali. E se não sobe rápido o outro, aquele que você não subiu te puxa para baixo.

Então a gente tem esse trabalho de estar nos territórios, ajudar a planejar a produção, se mostrar presente, afetivamente presente. Isso não é fácil, porque é muita coisa. E todos nós temos outros trabalhos além deste. A gente precisaria liberar umas três pessoas, numa estrutura que possa só fazer isso. Senão perde muita qualidade, não dá para ter processos claros, fazer um trabalho de base melhor. Então precisa crescer para poder profissionalizar, para poder crescer mais.

Mas aí tem um limite, não é entrar num jogo de crescer por crescer. Acho que o limite é a produção que companheirada consegue entregar vivendo bem. Passou desse limite, não precisa.

Tem que chegar num ponto em que a gente tenha um capital de giro, tenha salário para pelo menos três pessoas, para que elas tenham quarenta horas por semana para fazer só isso se quiserem e não precisem correr atrás de outras coisas. E para fazer com qualidade, com afeto com a companheirada, sem pressa. Avançamos bastante nisso, mas ainda tem muitos problemas.

Com essa verba, daria para levar a mais lugares a bandeira desse trabalho de base urbano, a ponte campo-cidade. Daria para mostrar a produção do MST, mostrar na maior cidade do Brasil que o MST dá certo. Consolidar mais alianças com os movimentos da cidade também. Precisa crescer para chegar nisso. Crescer para que jovens que estão nos assentamentos possam produzir sua agrofloresta tendo saída certa. Então não é crescer por crescer.

Esses produtores e produtoras têm uma margem de crescimento da produção?

Têm! Eu não falei tanto de obstáculos, mas tem um obstáculo muito complicado, que é a infraestrutura. Água, por exemplo. No Dom Tomás falta muita água. O poço queima, a prefeitura não conserta, aí a gente empresta dinheiro para consertar a bomba do poço. No Dom Pedro falta água também. Menos, porque lá tem o lago, ajuda bem, mas tem lugares em que não chega. No Irmã Alberta nem se fala. No Irmã Alberta falta tudo: água, luz. Então infraestrutura é um obstáculo complicado.

E força de trabalho?

Não é o principal obstáculo agora. Se botar mais força humana sem aumentar a infraestrutura, vai dar mais problema do que resolver. Quando tiver muita água no Dom Tomás e no Irmã Alberta, talvez aí a força de trabalho vire um problema. Mas aí já vai ter vários outros problemas resolvidos. Água é o principal problema.

Outra coisa são os recursos que reduzem a penosidade do trabalho rural, como tratorito, principalmente para o pessoal acima de sessenta, setenta anos. E ter não só água, mas também sistema de irrigação: é bomba, mangueira, cano.

Outro obstáculo é a falta de ATER [assistência técnica e extensão rural]. Já tivemos, por poucos períodos, uma ótima ATER, antes da pandemia. ATER é pensar o todo: o pulgão, a fruta, o comércio. No Irmã Alberta, agora está tendo ATER, a gente tem uns aliados que fazem o processo, mas precisava ter um esquema mais estruturado, um programa estatal. No Dom Tomás o ITESP faz uma coisa ou outra, principalmente para turismo rural, mas nada para produção. No Dom Pedro não tem ATER há muitos anos. No Irmã Alberta começou a ter por um programa do Sampa+Rural há uns três meses.

O movimento tem uma frente ou um setor de captação de recursos, por exemplo para obter recursos governamentais? Para comprar tratorito, por exemplo.

Sim. A gente comprou um tratorito para o Irmã Alberta, coletivo. Foi muito usado. Mas precisaria ter dez, o tratorito é pequeno. O cobertor é sempre curto, e aí a mobilização no estado de São Paulo fica na mão da direção estadual. A gente não acessa verba de emenda para nós, por exemplo. A gente faz baião de dois no Al Janiah para conseguir dinheiro! Trabalham quinze pessoas, por três dias, para conseguir mil reais para a regional. A nossa regional é pobre, sem grana. Base pequena, três comunas da terra minúsculas. A cooperativa dá uma vida para a regional que ela não teria sem a cooperativa.

Esta cooperativa é a única na regional?

Sim.

E no estado, tem mais?

Tem cooperativas fortes no estado. A Coopavi, em Itapeva, tem feijão, soja orgânica, carne de porco, pão. A Cooplantas, das mulheres, com ervas medicinais. A Coapar, em Andradina, produz leite, queijo, manteiga, tem agroindústria. É outro rolê. A regional Grande São Paulo vem de um esquema de pessoas em situação de rua, não camponesa ou ex-camponesa, ou situação urbana favelada. É muito específica a realidade aqui.

nosso sonho

Durante quatro dias, a IV Feira Nacional da Reforma Agrária, organizada pelo MST, concretizou o sonho de muitos dos que lutam pela soberania alimentar no Brasil. Nesse sonho, além do acesso a uma grande abundância de alimentos produzidos sem veneno, está a possibilidade de comprá-los diretamente de seus produtores.

Na compra direta, a quantia paga pelos consumidores servirá integralmente para remunerar de forma digna esse trabalho tão essencial que é produzir alimentos, além de pagar os custos de produção e transporte. Esses valores têm ainda a função de apoiar a importante missão do movimento como um todo, que é ocupar terras improdutivas e lutar pelo direito de plantar para alimentar pessoas.

A abundância material e humana que havia ali traz sensação de acolhimento e segurança. Poder estar perto das pessoas que produzem os alimentos que consumimos é uma experiência enriquecedora, pelas trocas que possibilita. Para os produtores, suponho que o contato direto com aqueles que se beneficiam do resultado de seu trabalho gere semelhante sensação de segurança. Garantir o escoamento da produção é essencial para a sobrevivência de qualquer unidade produtiva, mais ainda quando ela é pouco capitalizada, como é o caso daquelas pequenas propriedades.

Porém, nos dias em que estive na Feira, ao mesmo tempo em que eu olhava todos aqueles alimentos sobre as bancas dos produtores, ficava me perguntando: e quando a feira acabar? Como é possível reproduzir pelo resto do ano toda essa proximidade, que garante aos agricultores o escoamento de sua produção? A resposta também emergiu em meio a toda aquela abundância. Parece se tratar simplesmente de conexões.

Foto: Dionizio Bueno

Redes de distribuição de alimentos são nada mais do que isso: conexões entre produtores, consumidores e, quando não há alternativas, intermediários. O poder das conexões é tão grande que a possibilidade de controlá-las dá a certos agentes altamente capitalizados a possibilidade de determinar o preço de compra do lado da produção e o preço de venda do lado do consumo.

Portanto, construir alternativas a esses esquemas estabelecidos, criando a possibilidade de acesso direto ou quase direto entre produtores e consumidores, é o caminho para a autonomia. Há muitos formatos para se criar essas conexões, e diversas experiências já existem, funcionando muito bem.

cooperativas de militantes | São grupos organizados que coletam a produção de diversos assentamentos regionais e os distribuem aos consumidores na cidade. Realizam a venda através de páginas na internet ou por meio de grupos de consumo e entregam os produtos em domicílio ou em pontos de retirada espalhados em pontos estratégicos, para que os consumidores possam economizar o custo do frete.

lojas do próprio movimento | Com lojas em diversas cidades do país, redes como o Armazém do Campo oferecem produtos da reforma agrária de diversas regionais, utilizando também a estrutura dos esquemas de distribuição mantidos pela própria militância.

pequenos entrepostos | Essas iniciativas, individuais ou de pequenos coletivos, vendem alimentos tanto da reforma agrária como de hortas urbanas e pequenos produtores na cidade e em volta dela. Verdadeiras zonas autônomas, tais espaços possibilitam o acesso a alimentos saudáveis em suas vizinhanças, algumas vezes em situação de fragilidade institucional, necessitando portanto do apoio comunitário em luta de resistência.

cooperativas de consumo | Com um formato bastante inovador no Brasil, uma cooperativa está sendo formada para gerir um mercado no qual os cooperados realizam grande parte das tarefas práticas e administrativas da loja, diminuindo sensivelmente seu custo operacional e, como consequência, o preço final para os consumidores.

grupos de compras coletivas | Há certamente centenas, senão milhares deles. Basta que uma pessoa colete os pedidos de várias famílias e realize o pedido diretamente à unidade produtora, recebendo a encomenda em sua casa, onde as pessoas do grupo poderão retirar suas compras.

Nos próximos meses e anos, veremos iniciativas como estas crescendo e se proliferando. Mas para consolidar o sonho do amplo acesso aos alimentos saudáveis produzidos pela reforma agrária, é preciso que iniciativas como essas entrem nas vidas de cada vez mais pessoas, e isso pode exigir algumas adaptações, nas duas pontas do sistema.

Foto: Dionizio Bueno

Do lado do consumidor, é preciso planejar o abastecimento da casa. No caso das compras coletivas, por exemplo, os pedidos são abertos somente em certas datas. Concentrando aí as quantidades para um período mais longo (o que naturalmente só é possível no caso de produtos menos perecíveis), todos ajudam a compor um pedido de maior volume, facilitando a negociação de preço com o produtor e ajudando a diluir os custos de frete.

Esse planejamento vale também para produtos mais perecíveis, de compra mais frequente. Por enquanto, as lojas que oferecem produtos orgânicos da reforma agrária existem apenas em certos locais da cidade. As compras de produtos in natura podem ser feitas semanalmente ou até quinzenalmente, evitando demandas de última hora que acabam sendo feitas em qualquer mercado mais próximo.

É muito importante também entender que um padrão de alimentação mais saudável estará sempre sujeito a sazonalidades. É natural que certos produtos não estejam disponíveis em todos os lugares durante o ano todo.

Por meio de seus regimes industriais de produção de alimentos, o sistema alimentar baseado em grandes redes de distribuição e varejo cria artificialmente a possibilidade de ter quase tudo durante todo o ano. Os alimentos são produzidos de forma intensiva em fazendas que podem estar a milhares de quilômetros da sua casa, em regiões com outro padrão climático. Crescem por meio de estimulação artificial, utilizando fertilizantes químicos, e são colhidos enquanto estão verdes, conforme seus cronogramas de linha de produção e a quantidade de pedidos recebidos pelo departamento comercial dessas indústrias agrícolas. Por fim, têm o seu amadurecimento forçado através da exposição a gás etileno obtido do petróleo.

É perfeitamente possível ter uma alimentação baseada em produtos da época, tornando desnecessários esses recursos artificiais criados para viabilizar a produção de alimentos em enormes escalas, gerando grandes lucros para uns poucos, além de mimar um consumidor que quer ter de tudo agora.

Imagem: divulgação

Do lado dos produtores, um pequeno esforço de organização pode contribuir muito para o florescimento dessas redes de distribuição. Só eles podem ter a visão de todos os pedidos que estão recebendo, com suas respectivas datas, destinos e quantidades. Uma boa organização das rotas pode fazer o custo do frete ser dividido entre vários pedidos, diminuindo para todos os custos de transporte e fazendo com que os produtos cheguem a um preço mais baixo para os consumidores, beneficiando as vendas.

E com relação às entidades e grupos que organizam essas iniciativas, cabe ter a inteligência coletiva de entender que o espalhamento e a capilarização desse novo sistema alimentar são benéficos para toda a rede. Seria totalmente fora de propósito enxergar novas iniciativas semelhantes como concorrência. Claro que é preciso cuidado para que a atuação de iniciativas mais capitalizadas ou profissionalizadas não resulte na eliminação de outras que já se encontravam em funcionamento. Por isso é essencial manter o contato e o diálogo entre essas organizações, formando uma teia de cooperação.

Se lutamos para construir esse outro mundo com o qual sempre sonhamos, mas não formos capazes de nos libertar do paradigma da competição, em que o ganho de um implica a perda de outro, me parece que não aprendemos nada.

Produtores e consumidores têm muito a ganhar juntos com essas novas conexões. Em seu conjunto elas estão formando uma rede de produção e distribuição de alimentos que passa ao largo dos conglomerados de logística e varejo geridos pelo grande capital, que atualmente dominam o mercado de alimentos no Brasil. Vivemos a era da retomada dos circuitos curtos. Por muito tempo cultivamos nossos sonhos, hoje eles finalmente começam a florescer.

feiras de produtores

Feiras são encontros de pessoas para fazerem trocas. Existem desde a antiguidade e, na baixa Idade Média, marcaram a fase histórica de reabertura do comércio. Nelas, os produtores podem vender seus produtos diretamente às pessoas que vão consumi-los. Temos aí o menor circuito de distribuição possível, apenas produtor e consumidor.

Neste contato direto o produtor recebe o valor que considera justo por seus produtos enquanto o consumidor obtém, teoricamente, o melhor preço possível, já que não há intermediários. Porém os benefícios que esse encontro direto trazem ao sistema alimentar vão muito além do fator econômico.

O contato direto promove uma interlocução entre aqueles que produzem os alimentos e aqueles que se nutrem com eles. O produtor pode aprender a partir das informações de seus fregueses, obtém um retorno em relação aos hábitos alimentares, às variedades preferidas, às mudanças de qualidade conforme as técnicas de cultivo que vai experimentando. Os consumidores têm a oportunidade de um contato mais próximo com o fazer produtivo, as sazonalidades, as influências do clima e outros fatores naturais em sua alimentação. Nada pode ser mais humano que um sistema alimentar marcado pela compreensão mútua.

Sobretudo para os consumidores, existe nisso um grande aprendizado. Nossa sociedade busca nos acostumar com a ideia de que é possível ter tudo a qualquer momento. O supermercado se passa por um lugar encantado, sempre pronto a saciar qualquer desejo. Na sociedade de consumo, o alimento sai das fábricas, e o leite é um líquido que nasce dentro de caixinhas.

O contato mais próximo com a produção ajuda a tirar os alimentos desse lugar de meras mercadorias, sujeitas aos caprichos dos consumidores e às artimanhas dos mercadólogos. Nossos alimentos são criações da natureza.

Foto: Barbara Zem / MST

Para os produtores, a venda direta dá sentido e viabilidade às pequenas escalas de produção, liberando-os da ideia de que a única via de sobrevivência é aumentar a escala para ter acesso aos mercados por meio dos sistemas de distribuição. A produção pode se manter em escala compatível com a capacidade da unidade produtiva, qualquer que seja seu tamanho.

Ao viabilizarem as trocas, que podem ser monetárias ou não, as feiras tornam possível um certo grau de especialização da produção, sem entrar no regime industrial, no qual os produtores tendem a abandonar cultivos de subsistência. Alguns sítios concentram esforços em frutas, outros em ovos, outros produzem grãos, outros legumes, hortaliças. Em uma feira de produtores diversificada, aqueles que não produzem (os consumidores) podem ter tudo ou quase tudo que necessitam para a alimentação diária. Na pequena escala, os sítios suprem a demanda de suas regiões. Em cada região, um esquema semelhante, há demanda para todos. Assim, o sistema alimentar tende naturalmente à alimentação local. Tudo tão perto que pode ser transportado até de bicicleta!

Através da ideia de que só grandes escalas são economicamente viáveis, o sistema alimentar da sociedade de consumo cria a dependência dos grandes esquemas de transporte, necessariamente motorizados, abrindo espaço e gerando demanda para mais e mais elos na cadeia de distribuição. Os intermediários passam a ditar as condições e preços tanto na ponta do consumo como na da produção. O sistema cria as mazelas e ainda gera a ilusão de que nada fora dele é possível.

Ao mesmo tempo em que são uma prática muito antiga, as feiras de produtores são revolucionárias. Venda direta, proximidade e pequena escala desfazem os pressupostos desse sistema que aprisiona produtores e consumidores. Por meio do encontro direto entre os dois agentes mais importantes do sistema produtivo, as feiras criam uma insurreição. Seus efeitos são econômicos, relacionais e estruturais.

Feiras de produtores são uma ameaça ao sistema do capital. É preciso que resistam, que floresçam e se multipliquem.