direitos dos camponeses

Declarações universais da Organização das Nações Unidas (ONU) têm o propósito de estabelecer direitos fundamentais, orientar países na formulação de suas leis e servir de inspiração e referência em lutas e debates, em todo o planeta, sobre os temas de que tratam.

Em dezembro de 2018, sua Assembleia Geral aprovou, por meio de uma resolução, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses (abreviada como UNDROP, seguindo o nome em inglês). O documento tem 28 artigos que tratam de assuntos essenciais como direito à terra, às sementes, à biodiversidade, à soberania alimentar, à justiça e à água, entre outros.

Infelizmente, as resoluções da Assembleia Geral não são vinculativas, isto é, não têm força imperativa para os Estados membros. Se tudo que está lá afirmado fosse de cumprimento obrigatório pelos países, certamente os camponeses de todo o mundo viveriam uma realidade bem diferente.

Em 2002, durante uma conferência regional, a organização camponesa internacional Via Campesina formulou sua Declaração dos Direitos das Camponesas e Camponeses, a qual foi lançada e adotada oficialmente em 2009. Esse documento mais tarde serviria de inspiração para a UNDROP.

Dentro da ONU, a elaboração iniciou no Conselho de Direitos Humanos, por incidência da Bolívia. Uma primeira versão do documento foi aprovada pelo Conselho em 28 de setembro de 2018, contando com 33 votos a favor, 3 votos contra (Austrália, Hungria e Reino Unido) e 11 abstenções (o Brasil entre elas).

Em seguida, o texto passou pelo Terceiro Comitê da Assembleia Geral, o qual lida com questões sociais e humanitárias. Foi aí aprovado em 19 de novembro do mesmo ano, com 119 votos a favor, 7 votos contra (Austrália, Estados Unidos, Hungria, Israel, Nova Zelândia, Reino Unido e Suécia) e 49 abstenções (o Brasil novamente entre elas).

Finalmente, o texto da Declaração seguiu para a Assembleia Geral, onde foi aprovado, em 17 de dezembro, com 121 votos a favor, 8 votos contra (todos que se opuseram no Terceiro Comitê mais a Guatemala) e 54 abstenções (o Brasil, mais uma vez, neste grupo). Desconhecemos a justificativa do Brasil para as abstenções nas três etapas, mas sabe-se que em contextos como esse a abstenção é uma forma de negar apoio à causa sem que isso represente um grande comprometimento perante a opinião pública. É importante ter em mente o momento político no qual o país se encontrava nessa época.

Esse estilo de declaração começa por elencar os princípios e noções gerais que norteiam sua elaboração. Assim, em seu preâmbulo, a UNDROP reconhece a especial relação dos camponeses com a terra, a água e a natureza, elementos dos quais dependem para sua subsistência. Reconhece também sua contribuição para a conservação da biodiversidade, que constitui a base da produção alimentar e agrícola em todo o mundo, assim como seu papel essencial na garantia dos direitos à alimentação adequada e à segurança alimentar.

Entre os documentos que lhe serviram de embasamento, faz referência à Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979) e à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007), entre muitos outros.

Em seu primeiro artigo, apresenta uma interessante definição de camponês: “qualquer pessoa que se dedique ou pretenda dedicar-se, individualmente, em associação ou como comunidade, à produção agrícola em pequena escala para subsistência ou comércio, que para este efeito dependa em grande parte, embora não necessariamente de forma exclusiva, do trabalho de membros da sua família ou agregado familiar, ou de outras formas não monetárias de organização do trabalho, e que tenha um vínculo especial de dependência ou ligação com a terra” (Artigo 1.1.). Assim, são excluídos da definição os empreendimentos agrícolas baseados exclusivamente em relações de trabalho capitalistas. O termo camponês seria então equivalente ao que chamamos de agricultor familiar.

Imagem: Reprodução de Déclaration des Nations Unies sur les Droits des paysan·ne·s et Autres Personnes Travaillant dans les Zones Rurales – livret d’illustrations. La Via Campesina, 2020.

A partir dessa definição, desenha-se para os camponeses um cenário que, se fosse concretizado, seria um verdadeiro mundo dos sonhos. Seguem alguns destaques e comentários sobre as perspectivas oferecidas pela Declaração. Como não há uma versão em português desse documento no repositório oficial da ONU, os trechos citados aqui são traduções nossas a partir das versões em espanhol e em inglês.

O parágrafo sobre produtos tóxicos, se efetivo, garantiria a camponeses e camponesas não apenas a opção de não utilizarem veneno como também a possibilidade de não estarem sujeitos às suas consequências. “Os camponeses e outras pessoas que trabalham em zonas rurais têm o direito de não utilizar nem de estar expostos a substâncias perigosas ou produtos químicos tóxicos, tais como agrotóxicos ou poluentes agrícolas ou industriais” (Artigo 14.2.).

As correntes de vento transportam substâncias jogadas na atmosfera, podendo trazer o veneno utilizado em fazendas vizinhas para a roça de alguém que optou por não utilizar esses produtos e contaminando sua produção, sua terra e seus trabalhadores. Os agrotóxicos têm também o efeito de dizimar populações de abelhas, comprometendo o sistema natural de polinização das plantas, o que caracteriza séria agressão ao meio ambiente e à biodiversidade, cuja proteção é abordada em outros pontos da Declaração.

Devido ao alcance dos impactos maléficos dessas substâncias, decisões individuais dos produtores não lhes garantem a possibilidade de estarem protegidos delas. Portanto, a menos que o uso de veneno seja proibido em caráter nacional ou ao menos regional, esse direito dificilmente será garantido.

A Declaração entende que o direito à soberania alimentar passa pela possibilidade de se participar das decisões sobre as políticas que afetam a forma como os alimentos são produzidos e distribuídos. “Os camponeses e outros trabalhadores rurais têm o direito de determinar seus próprios sistemas agroalimentares, o que é reconhecido por muitos Estados e regiões como o direito à soberania alimentar. Isso inclui o direito de participar dos processos de tomada de decisão relativos às políticas agroalimentares e o direito a alimentos saudáveis ​​e adequados, produzidos através de métodos ecológicos e sustentáveis que respeitem suas culturas” (Artigo 15.4.).

Para a construção de um sistema alimentar justo e saudável, é essencial a presença da sociedade civil nas instâncias participativas existentes. Ao mesmo tempo, é importante fortalecer iniciativas que representem alternativas concretas ao sistema alimentar vigente, controlado por interesses corporativos.

Há na Declaração um único parágrafo que, sozinho, evitaria conflitos atualmente em curso em diversas partes do mundo, caso fosse efetivo. “Os camponeses e outras pessoas que trabalham em zonas rurais têm o direito de serem protegidos contra qualquer deslocamento arbitrário e ilegal que os remova das suas terras, do seu local de residência habitual ou de outros recursos naturais que utilizam nas suas atividades e de que necessitam para usufruir de condições de vida adequadas. (…) Os Estados devem proibir os despejos arbitrários e ilegais, a destruição de zonas agrícolas e o confisco ou a expropriação de terras e outros recursos naturais, em particular quando usados como medida punitiva ou como meio ou método de guerra” (Artigo 17.4.). Uma rápida olhada para a profusão de conflitos em andamento hoje no mundo mostra como isto está longe de se concretizar.

O parágrafo que trata da reforma agrária é, curiosamente, o único em que a sentença inicia de modo condicional. “Quando apropriado, os Estados devem tomar as medidas adequadas para implementar reformas agrárias a fim de facilitar o acesso amplo e equitativo à terra e a outros recursos naturais necessários para garantir que os camponeses e demais trabalhadores rurais desfrutem de condições de vida adequadas e para limitar a concentração e o controle excessivos da terra, levando em consideração sua função social. Os camponeses sem-terra, os jovens, os pescadores artesanais e outros trabalhadores rurais devem ter prioridade na distribuição de terras públicas, áreas de pesca e florestas” (Artigo 17.6., grifo nosso).

É interessante observar como a Declaração dos Direitos das Camponesas e Camponeses, da Via Campesina, adota uma posição bem mais assertiva sobre o tema. “Grandes propriedades rurais não devem ser permitidas. A terra deve cumprir sua função social. Limites de posse de terra devem ser aplicados quando necessário para garantir o acesso equitativo à terra” (Artigo IV.11., grifo nosso). Por mais que a ONU tenha um papel importante no reconhecimento internacional dos direitos de grupos vulneráveis em todo o mundo, este caso exemplifica como ela é também capaz de barrar afirmações que os grupos dominantes de seus países membros considerem excessivas.

De qualquer forma, o conjunto de direitos apresentado pela Declaração representa um grande avanço em relação às condições objetivas enfrentadas por camponesas e camponeses em todo o mundo. A partir daí, existe o caminho para a efetivação desses direitos, por meio dos processos internos de cada país.

No Brasil, muitos dos direitos afirmados na Declaração já aparecem, de alguma forma, em marcos legais. Porém, a realidade das camponesas e camponeses daqui está muito longe do sonho desenhado pelo documento. Uma das demonstrações mais emblemáticas dessa precariedade é o fato de muitas áreas rurais apresentarem índices de insegurança alimentar maiores que áreas urbanas, mesmo estando seus habitantes diretamente em contato com a terra que produz – ou deveria produzir – alimentos.

A Declaração atribui aos Estados nacionais o papel de implementar e garantir os direitos nela estabelecidos. “Os Estados devem respeitar, proteger e cumprir os direitos dos camponeses e de outras pessoas que trabalham em zonas rurais. Devem prontamente tomar medidas legislativas, administrativas e outras cabíveis para alcançar progressivamente a plena realização dos direitos enunciados na presente Declaração que não possam ser imediatamente garantidos” (Artigo 2.1.). De fato, é ingenuidade esperar que tais iniciativas venham de poderes privados, como latifundiários e corporações, justamente aqueles que vêm historicamente se beneficiando da inexistência, na prática e muitas vezes também na teoria, desses direitos.

Portanto, declarações como esta servem como lembretes da importância de Estados fortes e com amplo apoio popular, capazes de resistir à infiltração dos interesses privados no aparelho estatal, de forma que possam concretizar direitos já reconhecidos como universais.

sociobiodiversidade

O termo biodiversidade se refere à diversidade das formas de vida. Diz respeito à diversidade de espécies na natureza e também à variabilidade genética que existe entre os indivíduos de uma mesma espécie. Graças a esta diversidade genética dentro da espécie, por exemplo, alguns indivíduos de uma espécie de planta podem ser resistentes a uma determinada praga que a ataca, e assim acabam evitando a extinção da espécie inteira. Essa situação ilustra a enorme importância que a diversidade tem para a natureza e para a vida.

A padronização de sementes promovida pela associação entre indústria química e agronegócio é uma força de destruição de biodiversidade, colocando produtores de alimentos em condição de dependência dos insumos fornecidos por grandes corporações e comprometendo a soberania alimentar.

A diversidade também existe na cultura. A profusão de diferentes modos de viver observados em todo o mundo é manifestação daquilo que chamamos de diversidade cultural. Há pessoas que gostam de viver em cidades, cercados de máquinas, informação e tecnologia, realizando uma infinidade de atividades em um único dia. Há pessoas que preferem viver em retiro, dedicando-se a estudos, a práticas corporais e espirituais, ao serviço comunitário. Há aqueles que vivem em sítios rurais, cuidando da terra e produzindo alimentos.

Certos povos vivem em regiões muito frias, encontram seu alimento em rios e mares que têm a superfície congelada e são capazes, pela observação dos diferentes tons de banco, de obter indícios sobre o clima, de encontrar locais favoráveis para a pesca, de reconhecer lugares onde é perigoso pisar. Outros povos vivem em florestas onde raramente faz frio, chove bastante e é possível caçar, pescar, cultivar a terra ou simplesmente coletar o alimento na mata.

Além de reconhecer a importância da multiplicidade das culturas, a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural estabelece um interessante paralelo entre essas duas formas de diversidade. Logo em seu primeiro artigo, afirma que “A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em beneficio das gerações presentes e futuras.” (UNESCO 2001, grifo nosso).

Existe também uma interessante conexão objetiva entre essas duas formas de diversidade. Devido às características de seus modos de vida, algumas comunidades de agricultores familiares, pescadores, povos indígenas e outros grupos tradicionais cultivam, de forma cooperativa com o ambiente, espécies que representam a biodiversidade regional.

Surge então o conceito de sociobiodiversidade. A forma de viver de certos grupos humanos contribui para fortalecer as espécies de seu meio, atuando como força de conservação da biodiversidade. Seu modo de vida beneficia não apenas o próprio grupo, mas a sociedade como um todo.

Foto: Sérgio Vale / Secom Acre

Há hoje políticas públicas que reconhecem o serviço de conservação da biodiversidade prestado por esses grupos, e assim fomentam tais cadeias produtivas. Como exemplo disso, dentro do Plano Safra deste ano há uma linha de crédito a juros baixos para o custeio da produção espécies da sociobiodiversidade.

A lista dos produtos incluídos nessa política forma um belo repertório de nomes. Alguns exemplos: abiu, araticum, araçá, aroeira-pimenteira, ariá, arumbeva, bacupari, bacuri, baru, biribá, buriti, butiá, cagaita, cajá, carnaúba, castanha-do-brasil, castanha-de-cutia, chichá, chicória-de-caboclo, copaíba, croá, cubiu, cupuaçu, fisalis, goiaba-serrana, jaborandi, jaracatiá, licuri, macaúba, mapati, murici, patauá, pajurá, peperômia, pitanga, pupunha, puxuri, sapota, sete-capotes, taperebá, tucumã, umari, uvaia, uxi.

Enquanto nos grandes centros urbanos, especialmente sudestinos, esses nomes soam apenas como uma forma de poesia, em algumas regiões do país eles são parte da vida. As crianças dali cresceram comendo essas frutas no pé, as geleias e refeições com essas espécies sempre estiveram no cotidiano dessas famílias. Elas são as guardiãs naturais e honorárias dessas plantas.

Ainda que a produção tenha como finalidade a geração de renda, e não apenas a subsistência, é possível fazer uso da natureza de maneira adequada. Isso obviamente só acontece se esses arranjos puderem garantir o respeito aos saberes tradicionais, a certos princípios e a limites na escala produtiva.

É estranho pensar que esse tipo de relação não predatória com a natureza seja hoje apenas excepcional dentro de nossa realidade econômica. O capitalismo desarticula esquemas que sempre funcionaram bem para impor seus meios técnicos de sugar riqueza. A desagregação de comunidades cria uma fonte inesgotável de problemas, e isso é ótimo para o sistema, que pode então vender suas soluções.

Ao fortalecer sistemas produtivos que valorizam práticas tradicionais, as políticas de apoio à sociobiodiversidade ao mesmo tempo protegem a biodiversidade e fortalecem identidades culturais. Ainda que representem uma parcela ínfima da economia nacional, elas servem para nos lembrar que é possível resistir à tendência de destruição das diversidades promovida pela economia capitalista.

plano safra

O Plano Safra da Agricultura Familiar 2025/2026, lançado há pouco mais de uma semana, prevê R$ 89 bilhões a serem investidos nesse segmento do setor produtivo brasileiro. No dia seguinte, foi anunciado também o Plano Safra geral, que contempla o agronegócio, com um montante de R$ 516,2 bilhões para financiar o setor da agricultura e pecuária empresarial.

O contraste entre os valores, ainda mais considerando que o agronegócio é um setor altamente capitalizado que não necessita de dinheiro público para prosperar, mostra que o uso da agricultura para a produção de mercadorias para os mercados interno e externo ainda é uma prioridade sobre a produção de alimentos no país.

O Plano Safra foi criado em 2002 (denominado inicialmente Plano Agrícola e Pecuário) com o objetivo de fortalecer e estimular a expansão e a modernização da agricultura e da pecuária brasileira. No ano seguinte, sindicatos rurais e movimentos sociais ligados ao campo foram envolvidos na elaboração do Plano, de forma que agricultores familiares e assentados da reforma agrária pudessem melhor contribuir para atender à demanda por alimentos no contexto do programa Fome Zero, existente naquela época. Isso dá origem ao Plano Safra da Agricultura Familiar, editado pela primeira vez em 2003.

Os recursos do Plano Safra da Agricultura Familiar estão divididos em segmentos com finalidades específicas. O maior deles, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) foi contemplado com R$ 78,2 bilhões, o maior valor na série histórica.

Por meio do Pronaf, os pequenos produtores podem financiar tanto as despesas com insumos e mão de obra (custeio) como a aquisição de máquinas e sistemas que aumentem a capacidade produtiva (investimento). O programa oferece crédito para a produção de alimentos da cesta básica a uma taxa de juros de 3% ao ano. Essa taxa cai para 2% se o crédito for destinado ao custeio de produtos orgânicos, agroecológicos ou da sociobiodiversidade.

Há também o Pronaf Mais Alimentos, uma linha de crédito mais ampla que financia o investimento em tratores, colheitadeiras, caminhonetes, motocicletas, equipamentos adaptados a pessoas com deficiência, sistemas de armazenagem, ordenhadeiras, tanques e também a construção ou reforma de moradias rurais.

Parte da verba do Pronaf é voltada especificamente para incentivar a agroecologia. Nesta edição, as famílias com renda anual de até R$ 50 mil podem financiar a implantação de sistemas de base agroecológica ou em transição para sistemas de base agroecológica a uma taxa de juros de 0,5% ao ano.

Os quintais produtivos também são contemplados com suas especificidades. Mulheres rurais com renda de até R$ 50 mil podem custear a produção diversificada de alimentos no espaço ao redor da casa, podendo conciliar a atividade produtiva com a lida familiar.

Além do Pronaf, o Plano Safra da Agricultura Familiar inclui outras formas de incentivo. Por meio das compras públicas, o governo não apenas assegura o abastecimento de certos produtos (sendo também um instrumento no combate à inflação de alimentos) como também garante um preço digno a ser pago aos produtores. Há nesta edição do Plano R$ 3,7 bilhões destinados às compras públicas.

Algumas culturas estão sujeitas a perdas de safra em consequência de condições climáticas. Para proteger esses agricultores, existe a Garantia-Safra, que neste ano conta com R$ 1,1 bilhão.

Entre outros segmentos, há também R$ 240 milhões destinados a Assistência Técnica e Extensão Rural para agricultores familiares e R$ 42,7 milhões para garantir um pagamento fixo para alguns produtos da sociobiodiversidade brasileira.

A forma que o Plano Safra da Agricultura Familiar tem hoje é, em parte, resultado da incidência de movimentos sociais. Exemplo disso é o reconhecimento de quintais como unidades produtivas qualificadas para receber financiamento público, uma conquista da Marcha das Margaridas de 2023.

Somente a pressão da sociedade civil organizada pode fazer com que o incentivo público à agricultura familiar siga crescendo e a distância entre os apoios ao pequeno produtor e ao agronegócio possa diminuir ou mesmo, legítima utopia, ser superada.

polinizadores

Ao carregar em suas patas o pólen de uma planta para outra, as abelhas executam uma tarefa essencial na reprodução sexuada. Ao contrário dos seres que geram sozinhos seus descendentes, como aqueles que se autoduplicam, as espécies que dependem de outro indivíduo para se reproduzirem trocam genes entre si. Do encontro entre dois indivíduos resultam seres que herdam as inovações de ambas as linhagens. Isso leva a maior diversidade, dando à espécie como um todo maiores possibilidades de se adaptar a ambientes e situações hostis, contribuindo para sua sobrevivência.

O intercâmbio de ideias funciona de forma semelhante. Eu poderia passar a vida isolado, desenvolvendo somente aquelas que surgiram na minha cabeça – que, assim como a sua, tem uma capacidade infinita de criar ideias novas. Porém, se pudermos nos encontrar e trocar ideias, algo mágico pode surgir. Um pequeno detalhe de algo que pensei, e que em princípio não fazia muito sentido para mim, ao chegar na sua cabeça poderá unir-se a outras informações, ou simplesmente produzir um sentido diferente, já que a sua vivência e sua visão das coisas é diferente da minha. Então aquela microideia que se transformou ao chegar em você pode ser concretizada por você ou mesmo ser devolvida a mim com um sentido aperfeiçoado, e então algo que saiu da minha cabeça sem muita possibilidade de se concretizar volta para mim como algo viável de ser posto em prática. Você me ajudou a desenvolver uma ideia que poderia não dar em nada se eu estivesse sozinho. Juntos, co-criamos. Esse processo se chama polinização de ideias.

Como abelha com as patas cheias de pólen, eu posso também ser apenas o portador de uma ideia. Escuto numa conversa algo inovador que está acontecendo num determinado contexto. Aquilo não serve exatamente para mim, mas de alguma forma me fascina. Então eu levo aquele pedacinho de ideia a um outro ambiente e lanço na cabeça de pessoas que vivem num contexto no qual aquela ideia faz todo sentido e pode florescer de uma outra maneira, solucionando outras situações. É como a semente que achou o solo perfeito para se desenvolver com todo seu potencial. Esse tipo de troca concretiza da melhor forma o potencial da diversidade humana, a forma mais poderosa de comunidade.

Alguns espaços, por sua dinâmica de encontros, são ambientes propícios à polinização de ideias. Certas metodologias, como por exemplo o Open Space, ajudam a polinização a acontecer ao orientar a possibilidade de esse papel ser assumido conscientemente pelos participantes.

Assim, tendo ou não consciência disso, muitas vezes fazemos o papel de abelhas em nosso ecossistema de ideias regenerativas. Encontros de pessoas têm sempre o potencial de gerar bons projetos. Só que da mesma forma que as abelhas são sensíveis a inseticidas e outros agentes tóxicos, a polinização de ideias também necessita de condições favoráveis. A sabedoria está em saber manter esse ambiente, o que muitas vezes se dá a partir de aspectos bastante sutis.

abelhas em risco

No dia 20 de maio é celebrado o Dia Mundial das Abelhas, como forma de rememorar a importância desses insetos em nosso ecossistema. A data comemorativa foi estabelecida pela ONU durante sua Assembleia Geral em dezembro de 2017 e é celebrada desde maio de 2018.

Para muito além de produzir mel, própolis e geleia real, as abelhas têm a importante função de polinizar as plantas, o que na prática significa espalhar a vida. Ao pousarem nas flores para sugar o néctar, o pólen fica grudado em suas patas. Assim elas levam o pólen para outras flores, fazendo sua fecundação. Quando o pólen chega a uma flor de outra espécie, acontece a fecundação cruzada, um dos principais mecanismos da natureza para gerar diversidade.

Infelizmente, porém, há pouco o que comemorar, pelo menos aqui no Brasil. Nosso sistema alimentar está matando as abelhas. O avanço das áreas do agronegócio, movido por queimadas e/ou motosserras, destroi as matas onde esses seres vivem e se alimentam. As secas causadas pelas mudanças climáticas também ajudam a expulsá-las de seus ambientes naturais.

E como se isso não bastasse, elas ainda estão sendo envenenadas pelos agrotóxicos utilizados por esse sistema industrial e destrutivo de produção de commodities agrícolas. Se não matam, tais substâncias atacam o sistema nervoso das abelhas ao ponto de afetar seu sistema de orientação, e assim elas não conseguem voltar para suas colmeias e perdem-se para sempre.

Foto: Johann Piber / Pexels

Privadas de seus ambientes e totalmente desorientadas, algumas abelhas vão parar em áreas urbanas, onde encontrarão ainda menos verde e mais substâncias tóxicas. Você já reparou como hoje é comum encontrarmos abelhas pelo chão? Em certos bairros vemos, com alguma frequência, abelhas rastejando, muitas vezes em círculos, prestes a morrer, ou mesmo já mortas. Está aí, em tempo real e visível a olho nu, o efeito do nosso modo de vida nesses insetos polinizadores.

Quatro espécies de abelhas são hoje classificadas pelo Ministério do Meio Ambiente como ameaçadas de extinção: Partamona littoralis (comum na Mata Atlântica), Melipona capixaba (do Espírito Santo), Melipona scutellaris (frequente no Norte e Nordeste do país) e Melipona rufiventris (do Cerrado).

Pouco tem sido feito no Brasil para proteger as abelhas. O Fipronil é um veneno usado para matar formigas e outros insetos das lavouras. Mesmo em doses baixíssimas, ele é muito tóxico para as abelhas. Em janeiro deste ano, o Ibama restringiu o uso dessa substância, proibindo sua pulverização aérea. Um mês depois foi a vez do Tiametoxam, um agrotóxico amplamente utilizado em culturas como soja, algodão, milho e cevada. Seu uso já era restrito em muitos países. A partir de fevereiro, seu uso está proibido em certas plantações, mas segue autorizado em outras, desde que seja esguichado diretamente no solo ou aplicado no tratamento das sementes.

Ainda assim, as abelhas seguem em perigo. A extinção de qualquer espécie da natureza devido à ação humana já é, por si só, motivo de vergonha coletiva. No caso das abelhas, é ainda mais preocupante devido ao seu papel no ciclo de vida de muitas espécies vegetais. É assunto que precisa ser lembrado não apenas no mês de maio, mas no mínimo a cada vez que vemos uma abelha agonizante pelo chão.

tratado sobre recursos fitogenéticos

O Tratado Internacional sobre os Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura é um acordo que reconhece um conjunto de espécies vegetais alimentícias como patrimônio da humanidade. Trata-se de um importante mecanismo de proteção da biodiversidade agrícola.

Dos milhares de cultivos já desenvolvidos pelas sociedades ao longo de sua história, mais de três quartos foram perdidos nos últimos cem anos. Em nome do aumento da produtividade, a agricultura intensiva, mecanizada e baseada em pacotes tecnológicos prefere cultivos únicos e sementes modificadas em laboratórios. Como consequência, muitas variedades são abandonadas, rompendo a continuidade do processo reprodutivo da vida. Isso se chama extinção. Diante desse processo de desaparecimento de espécies comestíveis, proteger a diversidade torna-se um requisito para garantir a segurança da alimentação dos povos.

Construído no âmbito da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o documento foi assinado em 2001 e entrou em vigor em 2004. Atualmente, conta com 149 nações e organizações signatárias. Entre seus objetivos estão “a conservação e a utilização sustentável dos recursos fitogenéticos para a alimentação e a agricultura e a partilha justa e equitativa dos benefícios resultantes da sua utilização”.

Foto: Min An / Pexels

O texto do tratado destaca a importância dos agricultores para a diversidade de cultivares que alimentam as pessoas de todo o mundo. As comunidades locais de agricultores são as guardiãs da biodiversidade. Dispondo conhecimento acumulado através de muitas gerações, conhecem soluções testadas e aperfeiçoadas ao longo de séculos de prática das técnicas tradicionais. É por isso que o Tratado inclui, entre as diretrizes a serem seguidas pelos países signatários, o apoio aos agricultores e às comunidades locais para a manutenção desses cultivos.

Cada país contratante deve também inventariar os recursos fitogenéticos para a alimentação e a agricultura, promover a conservação in situ das espécies através do apoio às comunidades locais, proteger as variedades que se encontrem ameaçadas, entre outras ações. Para fomentar projetos de fortalecimento, o Tratado prevê um Fundo de Distribuição de Benefícios, que concede subvenções a projetos inovadores e escaláveis, especialmente nos chamados países em desenvolvimento. A mais recente chamada para projetos foi em maio de 2022.

Desde 2002, o Brasil é signatário do Tratado. Em 2008, o Decreto nº 6.476 promulga o Tratado no Brasil. A partir daí, diversos marcos legais foram surgindo e têm servido para, entre outras finalidades, apoiar sua implementação. Alguns exemplos são a Lei da Biodiversidade, a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica e o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica.