ultraprocessados

Certos itens vendidos nos mercados deveriam usar a expressão “produto comestível” em suas embalagens, em vez da palavra “alimento”. Esses materiais podem ser mastigados e engolidos, têm aroma e sabor que tentam imitar comida, mas não são exatamente alimentos. Estamos falando dos ultraprocessados.

Muita gente já evita o consumo desses produtos, por saber o quanto eles fazem mal. Mas a grande maioria das pessoas ainda consome isso normalmente, sem fazer ideia do que estão comendo.

No início do século XX, as doenças infecciosas eram a maior causa de morte na população mundial. Atualmente, são as doenças crônicas não transmissíveis que mais matam gente. Esse tipo de doença muitas vezes está relacionado ao modo de vida. Enquanto a melhoria das condições sanitárias e o desenvolvimento das tecnologias de imunização afastaram a ameaça das doenças infecciosas, hoje são nossas escolhas como sociedade que estão nos matando.

Para ajudar a nortear essas escolhas, o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde – NUPENS e a Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis, ambos ligados à Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, produziram o Diálogo sobre Ultraprocessados: soluções para sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis. O documento reúne uma enorme quantidade de evidências científicas que demonstram os males que os ultraprocessados causam à saúde.

As evidências apresentadas são estudos realizados por cientistas de diversos países. O documento traz uma longa seção de referencias, com as pesquisas que demonstraram os danos causados pelos ultraprocessados, para que o público leitor possa conhecê-las diretamente, se quiser. Bom lembrar que a seleção desses artigos foi feita por pesquisadores de uma faculdade de saúde pública, que sabem distinguir pesquisas bem fundamentadas daquelas menos válidas devido a problemas metodológicos.

Imagem: divulgação

Alguns dos males causados pelos ultraprocessados são velhos conhecidos: ganho de peso, obesidade, síndrome metabólica, diabetes, hipertensão e outras doenças cardiovasculares. O documento alerta também para uma série de doenças cuja relação com o consumo de ultraprocessados é bem menos trivial: depressão, câncer de mama, cânceres em geral, asma em crianças, dislipidemias, disfunções renais e mortes prematuras.

Mas por que os ultraprocessados fazem tão mal?

É preciso entender que os problemas dos ultraprocessados vão muito além do excesso de açúcar, sódio ou gorduras saturadas. Além desses excessos e da presença de outras substâncias nocivas, como certos conservantes, existe o fato de haver muito pouco ou nada de nutritivo ali. É aqui que aparece o sentido do termo ‘ultraprocessado’. As técnicas usadas em sua produção desconfiguram completamente as matérias-primas, destruindo sua matriz alimentar. Ou seja, mesmo que um refresco de caixinha alegue que tem certa porcentagem de suco natural de laranja, nada resta ali dos nutrientes da fruta.

É muito comum também que esses comestíveis não tenham absolutamente nada daquilo que dizem ser. Por exemplo, em um doce sabor chocolate (note a sutileza no uso da palavra ‘sabor’, de forma a não comprometer a empresa com as leis de proteção do consumidor), é bem provável que não haja ali nenhuma molécula que já fez parte de um pé de cacau.

Os aditivos alimentares usados para compor o aroma, o sabor, a textura e a aparência desses produtos prejudicam a biota intestinal, desregulando o sistema digestório e afetando a absorção de nutrientes e a saúde dos tecidos. Os ultraprocessados têm também compostos químicos que desregulam o sistema endócrino, provocando mudanças metabólicas no organismo.

As altas quantidades de açúcar, saborizantes e gorduras saturadas fazem com que esses produtos tenham sabor muito acentuado, estimulando seu consumo excessivo. O desenho das embalagens, a publicidade (ainda mais grave no caso daquela voltada para crianças) e as técnicas promocionais de ponto de venda atuam no nível emocional, de forma muitas vezes inconsciente, estimulando o consumo desses produtos e fazendo o consumidor esquecer daquilo que realmente alimenta.

E é sempre bom lembrar: as alegações nutricionais presentes nas embalagens costumam ser completamente enganosas, iludindo o consumidor, fazendo-o pensar que está se alimentando quando, na verdade, está apenas enchendo a barriga.

As conclusões podem ser resumidas numa frase que aparece com destaque no documento: “Não há uma quantidade segura para a ingestão de produtos alimentícios ultraprocessados”. Ou seja, aquela ideia de que ‘só um pouquinho não vai fazer mal’ não se aplica a esses produtos. Exatamente igual ao cigarro.

Como se isso tudo não bastasse, os ultraprocessados também fazem mal ao meio ambiente. Para além das consequências estritamente individuais do consumo desse tipo de produto, entramos em um campo que diz respeito aos impactos coletivos de um sistema alimentar no qual esses comestíveis têm grande presença. O documento aponta três impactos principais: mudanças na forma de uso da terra e diminuição da biodiversidade; aumento no uso de embalagens e geração de resíduos sólidos; aumento nas emissões de gases do efeito estufa.

No sistema produtivo dos ultraprocessados, a função da terra não é gerar alimentos, mas matérias-primas para a produção de comestíveis. Glucose, maltose, maltodextrina, frutose e dextrose são alguns exemplos de derivados do milho amplamente utilizados nessa indústria. A produção em larga escala do milho e de outras commodities agrícolas prioriza variedades de alta produtividade, geralmente com modificações genéticas. Isso leva ao abandono de outras variedades, que podem até mesmo acabar extintas. A monocultura intensiva é peça essencial de um sistema alimentar em que os ultraprocessados são amplamente consumidos.

O aumento do uso de embalagens associado ao consumo desses produtos dispensa maiores explicações. Pense, por exemplo, naquelas bolachas que vêm agrupadas em pacotinhos de plástico que, por sua vez, vêm dentro de outras embalagens de plástico. Ou naquele lanche que sai da chapa e é colocado dentro de uma embalagem elaborada que, poucos segundos depois, será aberta, amassada e jogada no lixo. É preciso também lembrar dos resíduos químicos gerados pela indústria durante a produção dos materiais dessas embalagens.

O documento aponta estudos de diversos países que associam partes consideráveis das emissões de gases do efeito estufa à produção, armazenamento e transporte dos ultraprocessados. No Brasil, vem sendo observado um preocupante incremento na pegada de carbono relacionada a esses produtos, cuja participação na dieta dos brasileiros aumentou em 340% nos últimos 30 anos.

Para lidar com essa tendência mórbida, o documento propõe diversas soluções, entre as quais: ampla utilização de guias alimentares (área na qual o Brasil é pioneiro), regulação da rotulagem e publicidade desses produtos, restrição da oferta em ambientes escolares, aumento da tributação (para aumentar o preço e diminuir o consumo) aliado ao incentivo à escolha de produtos saudáveis (in natura ou minimamente processados).

A produção e o consumo de ultraprocessados estão totalmente integrados a um sistema alimentar baseado em concentração de capital, agricultura de larga escala, uso intensivo de pesticidas e fertilizantes químicos, grandes distâncias entre produção e consumo, domínio de grandes redes de distribuição, desatenção com o ato de se alimentar. As corporações que monopolizam a distribuição e o varejo conseguem controlar a disponibilidade e o preço desse tipo de produto, fazendo-os estarem em todos os lugares e muitas vezes a um preço aparentemente baixo se comparados a alternativas mais saudáveis.

A demanda por ultraprocessados é mantida artificialmente por efeito da publicidade e da convivência com pessoas que os consomem, dando a impressão de que é normal consumi-los. Em uma época já passada, esses comestíveis foram muito associados a praticidade e modernidade. Hoje, vai ficando cada vez mais evidente a sua relação com as doenças que mais matam pessoas. Felizmente temos alternativas. Ao fazermos melhores escolhas, estamos nutrindo nosso corpo e fortalecendo sistemas alimentares mais saudáveis, justos e humanos.


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4 comentários sobre “ultraprocessados

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