Bicicarreto #02

No último sábado, 3 de novembro, estivemos novamente na Comuna da Terra Irmã Alberta para transportar produtos da agricultura familiar de lá até São Paulo. Tivemos a alegria de acompanhar um pouco do curso de formação em agricultura agroecológica, que estava acontecendo ali desde a véspera.

Foto: Adriana Marmo

Foi possível também conversar um pouco com os participantes do curso, apresentando o Bicicarreto e mostrando as ideias gerais deste projeto, que vem amadurecendo bastante em seus princípios e objetivos.

Foto: Adriana Marmo

Trouxemos banana, cebolinha, alface, alface roxa, chuchu branco e jiló. Mesmo em um grupo reduzido, apenas quatro ciclistas, veio uma boa quantidade de cada um deles.

Foto: Dionizio Bueno

As verduras e temperos vieram em caixas agrícolas abertas para ficarem bem ventiladas. Os itens mais resistentes vieram dentro de mochilas e também em uma caixa de papelão. Durante o trajeto, é fundamental manter úmidas as verduras para preservar sua qualidade e evitar que murchem.

Foto: William Bezerra

Na volta, sem o forte vento contra que pegamos na ida e com o sol já baixando, a viagem foi bem suave tanto para os ciclistas quanto para os produtos. No início da noite, os produtos chegaram ao Armazém do Campo.

Foto: Dionizio Bueno

Nas caixas e prateleiras da loja, uma pequena etiqueta branca agora identifica quais são os alimentos que chegaram desde a roça até ali sem gastar uma única gota de combustível!

nova parceria: Bicicarreto e Urban Farm Ipiranga

O Bicicarreto começa a colher seus frutos!

Celebramos aqui a nossa primeira articulação para que um produtor passe a distribuir de bicicleta a sua produção. A partir desta data, a Urban Farm Ipiranga entrega suas cestas de produtos orgânicos por meio de bicicletas.

Foto: César Moreira

Desde nosso primeiro contato, o responsável pela Urban Farm Ipiranga, César Moreira, já demonstrou interesse em trabalhar dessa forma. Mais duas conversas foram suficientes para organizar todos os detalhes (logística, equipamentos) e está pronto o sistema de Bicicarreto. O ciclista William Bezerra, que está agora colaborando nos cuidados da horta, é também graduando em nutrição, e traz informações preciosas sobre os alimentos das cestas. Antes, as entregas eram feitas de carro, pelo próprio César.

Os clientes regulares da Urban Farm vão continuar recebendo em casa as suas cestas, semanalmente. Só que agora os produtos irão desde a horta, no bairro do Ipiranga, até suas casas sem consumir uma única gota de combustível!

um sítio no quintal

Casa antiga num bairro residencial, fachada com varanda e arcada, muitas plantas e flores no jardim. Quem olha rapidamente pode achar que está vendo mais uma daquelas casinhas de vó que ainda sobrevivem em alguns bairros da cidade. Mas se você olhar com mais atenção, vai perceber que pela lateral da casa se estendem fileiras e mais fileiras de verduras, plantadas em vasos, garrafas e tubos no chão e pelas paredes, até lá em baixo, no fundo do quintal.

Foto: Dionizio Bueno

Você está diante da Urban Farm Ipiranga, uma horta urbana onde se produzem frutas e verduras orgânicas bem no meio da capital. Funcionando desde novembro de 2017, essa horta produz hoje em torno de 25 cestas de produtos orgânicos por semana. Em outras palavras, graças a uma iniciativa como esta, 25 famílias da região podem comer alimentos sem nenhum veneno, cultivados localmente, comprando-os direto do produtor.

César Moreira, idealizador da Urban Farm Ipiranga, é quem faz praticamente toda a lida da horta, além de entregar em domicílio boa parte da produção. Aos sábados é possível comprar os alimentos no local, o que é também uma ótima oportunidade para conhecer o espaço.

Foto: César Moreira

É uma bela demonstração de como é possível aproveitar bem um quintal para produzir alimentos, mesmo tendo parte dele coberta por cimento. Projetos como este são alternativas concretas e viáveis para evitar a formação de desertos alimentares. Vale a pena conhecer, apoiar e, quem sabe, até mesmo iniciar um projeto semelhante na sua região.

Foto: César Moreira

Em breve, por meio de uma parceria com o BiciCarreto, os produtos da Urban Farm Ipiranga serão entregues também em bicicletas. Sem consumir uma única gota de gasolina nem emitir fumaça, chegarão diretamente do produtor até as casas das pessoas.

desertos alimentares

Se boa parte da humanidade escolheu viver em cidades, é porque elas prometem, entre outras coisas, acesso mais fácil aos produtos e serviços essenciais à vida. Abrimos mão de plantar o próprio alimento pois, vivendo em aglomerações, nós poderíamos adquiri-lo facilmente enquanto nos dedicamos a outras atividades. Acontece que em muitas localidades essa oferta é negada.

Os lugares onde não existe acesso fácil a alimentos saudáveis são chamados desertos alimentares. São bairros onde não há mercearias, quitandas ou supermercados que vendam frutas, verduras e legumes frescos. Os estabelecimentos que existem nesses lugares oferecem apenas produtos comestíveis ultraprocessados, cheios de gorduras, açúcares, saborizantes e conservantes químicos. Produtos que, segundo alguns profissionais, sequer podem ser considerados alimentos.

Bastante utilizado nos EUA em anos recentes, o conceito tem uma definição básica bem simples, dada pelo ministério da agricultura de lá: desertos alimentares são áreas onde o acesso a alimentos saudáveis e a preço acessível é limitado. Há também definições mais elaboradas, que podem restringir a áreas com população de baixa renda, especificar uma distância máxima (geralmente 1 milha) entre domicílio e estabelecimento comercial, ou ainda considerar a posse de automóvel pela família.

Dois enormes atacadistas (canto inferior esquerdo) podem quebrar comércios locais. Imagem: DigitalGlobe.

Para além das especificidades das definições, bastante ligadas à realidade social e urbana de cada país, o que mais interessa para nós é a própria ideia de deserto alimentar. Ela nos leva a refletir sobre como organização urbana, mobilidade e forças econômicas são fatores que determinam de maneira direta o acesso a uma alimentação decente.

Ao abrir uma loja em determinado bairro, uma grande rede de comércio pode provocar o fechamento de mercearias e quitandas locais. Se isso acontece, as pessoas passam a ter duas opções: ou acabam tendo sua alimentação restrita aos produtos que estiverem disponíveis nesse supermercado, pagando o preço que seus gestores quiserem, ou precisam se deslocar até outro bairro em busca de opções. Terão que gastar combustível, caso disponham de um automóvel, ou pagar condução e ter que segurar sacolas cheias e pesadas dentro do transporte coletivo e no ponto de ônibus. Pessoas com mais idade e menos condições físicas são as que mais sofrem com isso. Caso tenham problemas crônicos de saúde, a importância de uma alimentação saudável é ainda maior, e portanto a dificuldade de acesso aos alimentos torna-se ainda mais determinante em suas condições de vida.

Há bairros planejados para que praticamente qualquer movimento dependa de um automóvel. Tudo é longe, as pessoas precisam de um carro até para ir à padaria. Eventualmente, há aí supermercados que até oferecem uma linha de alimentos saudáveis, afinal são frequentados por “gente feliz”, e esse tipo de consumidor costuma ter interesse em bons produtos. Mas os preços praticados nesses lugares são bastante seletivos. Até mesmo os chamados sacolões tendem a se tornar quitandas de luxo quando estão perto de bairros ricos. Considerando que a definição fala de alimentos a preços acessíveis, podemos considerar esses bairros como desertos alimentares também.

Tente sair caminhando para procurar um mercado ou quitanda. Imagem: DigitalGlobe.

De qualquer forma, definições oficiais acabam sendo o menos importante. Você é quem tem mais legitimidade para falar sobre a situação em que vive. Como você avalia a disponibilidade de alimentos saudáveis no lugar onde você mora? Sente dificuldade para obtê-los? Isso afeta de alguma forma a qualidade da sua alimentação e da sua vida?

Tendo em vista tudo isso, você considera o seu bairro um deserto alimentar?

Ao aceitarmos que o alimento seja tratado como mercadoria, sujeita a leis de mercado, podemos esperar a proliferação desses locais em que as pessoas são privadas de boa alimentação a menos que estejam em condições econômicas muito privilegiadas. Para que não fiquemos reféns da indústria de produtos comestíveis e das redes de supermercados, é preciso incentivar os pequenos comerciantes e, especialmente, os mercados de produtores. E aqui, incentivos não dizem respeito às leis ou benefícios tributários que partem do poder público, mas às escolhas feitas por cada um no momento de adquirir seus alimentos.

segurança alimentar

A ideia de segurança alimentar diz respeito ao “direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente”, conforme o Artigo 3º da lei federal nº 11.346/2006, conhecida como Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional. Em seu Artigo 4º, a Lei define que a segurança alimentar abrange também “a ampliação das condições de acesso aos alimentos por meio da produção, em especial da agricultura tradicional e familiar, (…) do abastecimento e da distribuição dos alimentos”.

foto: Luiz Costa/SMCS

Entendendo a segurança alimentar como um elemento essencial na vida de qualquer comunidade, o BiciCarreto propõe uma organização do sistema de produção e distribuição de alimentos na qual todas as comunidades tenham condições de alcançar o máximo de autonomia. Aqui, como em outros contextos, autonomia deve ser compreendida como uma configuração em que existe o mínimo possível de dependência.

A bicicleta é uma forma de transporte que oferece possibilidade de autonomia praticamente ilimitada, além de ser um meio de alta eficiência energética, chegando a ser 25 vezes mais eficiente que um automóvel.

O uso da bicicleta para o transporte da produção, associado a uma organização adequada dos produtores, contribui fortemente para a segurança alimentar. As comunidades passam a ter acesso aos alimentos sem depender de combustíveis fósseis, da propriedade de um veículo motorizado (com todos os custos de manutenção e impostos que isso implica) ou da atuação de intermediários que façam a distribuição. Como consequência, ficam protegidas dos mercados de combustíveis, de veículos e de serviços. Ficam também imunes aos efeitos da variação da oferta desses serviços, como acontece nos casos, ainda que pouco frequentes, de alteração ou paralisação dos sistemas de transportes.

Por ser uma forma pessoal de transporte, sem a velocidade das máquinas, a bicicleta humaniza as relações comerciais, fortalecendo ainda mais as comunidades. Produtores, comerciantes e consumidores são atores essenciais em uma economia local. A segurança alimentar da comunidade é o resultado de suas escolhas.

Bicicarreto #01

Havia muita gente nos esperando quando chegamos com o primeiro Bicicarreto.

As frutas e verduras chegaram lindas e perfeitas, trazidas por nós de bicicleta, diretamente do produtor. Saíram da roça a 30 quilômetros daqui, pegaram a rodovia, cruzaram o perímetro urbano desta imensa cidade e agora estão nas prateleiras do mercado. Vieram até aqui trazidas pela força ativa de pessoas.

foto: Dionizio Bueno

Na manhã de ontem, 7 de julho, o Bicicarreto esteve na Comuna da Terra Irmã Alberta, um assentamento do MST localizado na divisa de São Paulo com Cajamar. Lá, fomos recebidos pela Sra. Nice, que nos ofereceu um café quentinho e contou um pouco da situação atual do assentamento, enquanto carregávamos as bicicletas.

foto: Aline Os

A produção a ser transportada já estava toda reunida, nos esperando. Trouxemos aproximadamente 70kg de alimentos: abacate, laranja, alface, rúcula, almeirão, coentro, salsa e cebolinha.

Este primeiro Bicicarreto foi feito em 10 ciclistas. Para o transporte das verduras, usamos caixas agrícolas de plástico e de papelão, presas nos bagageiros das bicicletas. De tempos em tempos, regávamos as verduras para evitar que murchassem por conta do sol e da baixa umidade do ar. Funcionou! Os abacates foram distribuídos em alforjes e mochilas. As laranjas vieram todas dentro da saca, que foi acomodada no compartimento de carga de uma das bicicletas.

foto: Eduardo Magrão

O dia estava ótimo e a viagem foi muito tranquila: céu azul, temperatura amena, sol não tão forte. Na volta, o vento estava ao nosso favor, deixando o pedal num nível de esforço confortável para todos.

foto: Aline Os

Mas a maior alegria foi o momento da chegada ao Armazém do Campo, na tarde do sábado. Estavam todos ansiosos para ver as bicicletas carregadas de alimentos que vieram da roça até a Barra Funda sem consumir uma única gota de gasolina ou diesel.

No lugar de combustíveis poluentes, movimentamos energia humana, gerando alegria e confraternização! Foi uma experiência muito rica para todos nós.

foto: Aline Os

Transportar alimentos em bicicletas é uma ação política que reúne e integra diversos aspectos importantes do nosso ativismo: autonomia por meio da bicicleta, segurança alimentar, apoio à pequena propriedade e à reforma agrária, reapropriação das vias públicas pelos modais ativos, fortalecimento das comunidades de produtores e de ciclistas, contato com a terra.

O Bicicarreto tá na estrada!

nasce o BiciCarreto

A ideia surgiu, naturalmente, durante um pedal.

Ao chegar de bicicleta na Comuna da Terra Irmã Alberta, na divisa de São Paulo com Cajamar, para participar de um evento, pensei: “Como é fácil vir até aqui! Seria um barato voltar com a bicicleta cheia de alimentos cultivados nestas roças.”

Resolvi articular uma ação para mostrar (para quem ainda não tenha percebido) as possibilidades do transporte em bicicleta, apoiar o movimento dos que lutam pela reforma agrária e gerar uma reflexão sobre mobilidade, autonomia, pequena propriedade, proximidade entre produtor e consumidor.

Era mais uma provocação do que qualquer outra coisa. Mas a ideia começou a amadurecer e brotar rapidamente.

Uma ação como essa é um gesto cheio de significados em diversas frentes de militância. É, em primeiro lugar, uma afirmação clara da autonomia gerada pela bicicleta, demonstrando que é possível trazer o alimento desde o sítio onde é produzido até uma cidade irracionalmente grande como São Paulo sem depender de nenhum veículo motorizado. Além disso, é um ato político e prático de apoio à reforma agrária, ajudando um assentamento do MST, localizado na borda da capital e ameaçado pelos mecanismos de expropriação urbana do mercado imobiliário, a escoar sua produção. Também sugere o tema da proximidade entre produtor e consumidor, propondo um questionamento desse modelo de agronegócio em que os alimentos são produzidos a centenas ou milhares de quilômetros de distância e dependem de muito combustível e grandes sistemas de logística para chegar às pessoas. Tudo isso além das velhas bandeiras normalmente associadas ao cicloativismo, como consumo desnecessário de energia, uso de combustíveis fósseis, geração de gases poluentes e material particulado, custos do combustível e manutenção dos veículos.

Comecei a fazer contatos para encontrar as duas pontas a serem conectadas pelo nosso transporte: alguém ligado aos produtores da Comuna Irmã Alberta e um local de comércio que pudesse receber o carregamento. Logo achei essas duas pessoas. Apresentei a ideia, que agradou muito e foi aceita rapidamente. Escolhemos a nossa data: 7 de julho.

A mobilização do grupo de ciclistas não foi diferente. Quase todos os amigos que convidei se comprometeram imediatamente a participar do BiciCarreto.

De todos os lados, a ideia faz muito sentido!

O evento está marcado. Na tarde do sábado que vem, quem estiver no Armazém do Campo vai poder presenciar a chegada do primeiro BiciCarreto. Um grupo de ciclistas virá da Comuna Irmã Alberta trazendo um carregamento de alimentos recém colhidos na roça, sem consumir uma só gota de combustível.

Com a aproximação do evento, a ideia vai se desdobrando em muitas dimensões, e um grande projeto de trabalho está surgindo. Agora acaba de ganhar um domínio. Este portal vai registrar os movimentos do BiciCarreto e ajudar a mostrar que este projeto é muito mais que um grupo de bicicletas com caixas e alforjes cheios de produtos orgânicos.