Todos os dias, no mundo inteiro, alimentos são jogados no lixo. A gente já sabe disso mas, mesmo assim, ver números pode ser perturbador.
Um relatório divulgado no fim de março pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) estimou que, em 2022, a quantidade de comida desperdiçada nos domicílios, comércio varejista e estabelecimentos de alimentação totalizou 1,05 bilhão de toneladas.
Os domicílios respondem, nesses cálculos, por 631 milhões de toneladas, o varejo por 131 milhões e os estabelecimentos de alimentação por 290 milhões de toneladas de comida jogada fora. No cálculo médio per capita, seriam 79 kg de alimentos desperdiçados por pessoa no ano.
Por mais que esses números sejam estimativas, são dados assustadores, sobretudo se considerarmos os 783 milhões de pessoas que passam fome atualmente no mundo.
A edição 2024 do Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos trabalhou com dados de 93 países na categoria desperdício domiciliar, um aumento significativo em relação aos 52 países cobertos pela primeira edição do Relatório, publicada em 2021.
É preciso entender bem o que o documento define como desperdício de comida: todos os alimentos, incluindo as partes não comestíveis associadas, que chegam até o varejo ou o consumidor final mas que, em vez de servirem para alimentação, acabam em outros destinos, como lixo, compostagem, esgoto, apodrecimento, aterro, incineração. Um conceito próximo mas diferente é o de perda de comida: tudo aquilo que, na cadeia de produção e distribuição de alimentos, em qualquer uma das etapas antes do varejo (excluindo este), é descartado não retorna de nenhuma outra forma à cadeia de suprimento, e portanto não serve a nenhuma outra utilização. Estimativas da perda de comida no mundo são objeto de outro estudo, também ligado às Nações Unidas. O relatório apresentado aqui diz respeito somente ao desperdício nos domicílios, estabelecimentos comerciais e restaurantes.
E por que as partes não comestíveis são também incluídas na conta? O relatório observa que a definição do que é ou não comestível muitas vezes é cultural. Pés de galinha e miúdos de animais são aproveitados na culinária de algumas residências ou regiões, mas são desprezados como não comestíveis em outras. Em algumas culturas, somente as flores dos brócolis são utilizadas, enquanto em outras as folhas e caules também fazem parte da refeição. Cascas de laranja são usualmente retiradas e jogadas fora, mas em muitas famílias elas são transformadas em deliciosos doces ou geleias.
O estudo encontrou uma pequena correlação entre a temperatura média do país e a quantidade de comida desperdiçada nos domicílios: em países mais quentes o desperdício estimado tende a ser maior. Algumas hipóteses são levantadas como possíveis explicações dessa relação: maior uso de alimentos in natura (portanto maior proporção de partes não comestíveis, que contam como desperdício), maior quantidade de alimentos com casca grossa (resultando em maior peso das partes não utilizadas) e a própria ação do calor (fazendo os alimentos estragarem em menor tempo).
Apontam também a possibilidade de eventos de calor extremo, secas e a falta de refrigeração adequada na cadeia de distribuição nesses países (impactando o estado em que os alimentos chegam aos consumidores finais) terem relação com essa tendência. De qualquer forma, o próprio relatório faz ressalvas quanto a isso, observando que não há relação entre o desperdício e o nível de desenvolvimento econômico do país e que, de um modo geral, há um considerável grau de incerteza em parte dos dados, portanto é preciso cuidado na interpretação dessas conclusões.

Imagem: Food Waste Index Report 2024
Outra correlação encontrada, mas que também deve ser interpretada com cuidado, é entre o local de residência, urbano ou rural, e o desperdício: foi observado que em áreas rurais o desperdício tende a ser menor.
Segundo o próprio relatório, isso pode estar relacionado ao aproveitamento de cascas e outras partes usualmente descartadas dos vegetais para a alimentação tanto dos animais de criação quanto dos domésticos. Além disso, a falta de coleta de resíduos sólidos em muitas dessas áreas faz com que partes rejeitadas dos alimentos sejam habitualmente jogadas nos canteiros, e isso não foi considerado nos dados como desperdício.
O Brasil está entre os países cujos dados foram utilizados nesta edição do Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos. As informações se referem à cidade do Rio de Janeiro, por meio de um estudo feito em 2023, envolvendo 102 domicílios. Essa cidade produz 4.800 toneladas de resíduos alimentares residenciais por dia. Isso corresponde a 77 quilos por pessoa por ano (bem próximo à média mundial, acima), ou 212 gramas por pessoa por dia.
Cada um dos domicílios que participaram do estudo separou seus resíduos sólidos em três categorias: resíduos alimentares, materiais secos de embalagem e demais resíduos. Os resíduos alimentares constituem 62% do total descartado. Esse material é composto de frutas, verduras e legumes (62% dos resíduos alimentares), carne (11%), padaria (16%) e laticínios (11%). Um dado curioso é que o estudo afirma não haver correlação entre a faixa de renda da família e o desperdício de comida gerado por ela.
Ainda que o Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos considere apenas o que é jogado fora nas etapas finais da cadeia de distribuição, é importante compreendermos a relação disso com o sistema alimentar em que estamos inseridos, especialmente as grandes distâncias percorridas entre produtores e consumidores e a quantidade de intermediários entre eles.
Será que as longas horas que frutas e hortaliças passam chacoalhando dentro de um caminhão na estrada não afetariam o estado em que esses alimentos chegam nas gôndolas do varejo e nas residências dos consumidores? E além do tempo e das distâncias, é preciso também levar em conta o efeito do repetido manuseio que os produtos sofrem, nas diversas operações de carga e descarga feitas pelos coletores regionais de produção, transportadoras intermunicipais e interestaduais, centrais de abastecimento nas cidades de destino, distribuidoras locais e outros possíveis intermediários, ainda que, na melhor das hipóteses, haja sistemas frigoríficos adequados tanto nos transportes quanto nos estoques.
Dessa forma, no momento em que chegam ao consumidor final, parte do tempo de vida útil desses alimentos já foi consumido ou reduzido. Eles poderão estragar mais rapidamente nas geladeiras dos domicílios.
Basta observar a durabilidade na geladeira dos alimentos adquiridos por meio de esquemas alternativos de distribuição, como feiras de produtores, compras coletivas e grupos de consumo de produtores regionais ou locais: além de mais saudáveis, esses produtos resistem mais tempo antes de começarem a estragar. Está aí mais uma evidência da relação entre o atual sistema alimentar e o desperdício.
Um caminho para diminuir o desperdício são os bancos de alimentos. Estabelecimentos de varejo podem encaminhar a eles os produtos que já estão fora dos padrões para comercialização mas ainda em condições de consumo, de forma que eles sirvam para alimentar pessoas em vez de acabar em aterros.
O Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos é publicado por uma entidade das Nações Unidas como forma de monitoramento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, especificamente o objetivo 12.3: “Até 2030, reduzir pela metade o desperdício de alimentos per capita mundial, nos níveis de varejo e do consumidor, e reduzir as perdas de alimentos ao longo das cadeias de produção e abastecimento, incluindo as perdas pós-colheita”.
De qualquer forma, para quem tem fome, não é possível esperar até 2030. Repensar aspectos do nosso sistema alimentar é tarefa urgente, e a mudança pode se dar em todos os níveis, inclusive o mais corriqueiro, a cada vez que escolhemos, adquirimos e consumimos os alimentos.
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