rede local de Bicicarreto

Manhã fria de agosto, o sol estava nascendo quando chegamos à Nossa Horta Parque Continental, localizada no distrito do Jaguaré, em São Paulo, bem perto da divisa com o município de Osasco. Nossa missão era transportar uma pequena encomenda de verduras produzidas nessa horta até o Ponto de Economia Solidária do Butantã, para serem vendidas na feira de orgânicos que funciona nesse local.

A ação concretiza um esforço de articulação iniciado há vários meses, no qual buscamos conectar produtores e entrepostos da região, construindo uma rede de distribuição de alimentos em bicicletas a partir do produtor.

Foto: Dionizio Bueno

A Nossa Horta tem um grande espaço dividido em lotes. Cada um desses lotes é cuidado por uma família da vizinhança. A lista de produtos foi enviada na véspera a uma das pessoas da Nossa Horta.

Essa produtora fez a comunicação interna entre as várias famílias produtoras de forma a encontrar quem tinha os produtos da lista no ponto de colheita. Os alimentos foram colhidos poucas horas antes de serem embarcados nas bicicletas.

Foto: Dionizio Bueno

No trajeto, de cerca de 8 quilômetros, o trânsito de automóveis estava bem difícil, como ocorre todas as manhãs. Nesses trechos, as bicicletas puderam fluir livremente, e o tempo total de trajeto em bicicleta certamente foi bem próximo do que seria em veículo motorizado, talvez até menor. E só na bicicleta as verduras podem tomar a brisa fresca da manhã enquanto são transportadas!

No destino final, os produtos foram identificados com a etiqueta do Bicicarreto. Um cartaz ao lado dá uma informação importante sobre eles: “Os produtos com esta etiqueta foram plantados em uma horta urbana aqui pertinho e foram transportados até esta loja de bicicleta. Até aqui, nenhuma gota de combustível foi consumida no seu transporte!”.

Foto: Dionizio Bueno

Além de divulgar o conceito, essas etiquetas trazem uma narrativa que funciona indiretamente como “certificação”, chamando atenção para a ideia de alimentação local. Os produtos foram organizados em uma cesta com destaque e ficaram expostos junto aos outros alimentos orgânicos vendidos no Ponto de Economia Solidária.

Os esforços de pesquisa e articulação do Bicicarreto estão atualmente voltados para demonstrar a viabilidade de uma rede de produção, distribuição e comércio de alimentos baseada no transporte em bicicleta, de forma que o modelo possa ser reproduzido em diversos bairros.

Tudo que vem da natureza e nos alimenta é criado a partir da terra, começa no chão de um produtor. É assim também o nosso trabalho.

decrescimento

Dizem que a economia precisa sempre crescer. Esse mantra, repetido constantemente em quase todos os meios de comunicação, criou um consenso tão forte que raramente alguém questiona a afirmação ou pede que se apresentem justificativas para a necessidade de crescimento. Há, porém, um movimento de pessoas tecnicamente muito bem fundamentadas que defende o contrário: as grandes economias de hoje deveriam buscar não o crescimento, mas o decrescimento.

O argumento central é simples: não há crescimento infinito possível em um planeta finito. Portanto, considerando que certos países já cresceram demais e consomem mais de 80% dos recursos naturais do planeta, é preciso abandonar o paradigma tecnocrático, segundo o qual a atividade econômica deve sempre crescer e crescer, e buscar a redução da produção e do consumo, diminuindo o uso de energia e a dilapidação dos recursos naturais do planeta. Dentro dessa proposta, bem-estar social e ecológico passa a ser a prioridade, deixando para trás um sistema que causa exploração humana e destruição ambiental.

Os defensores do decrescimento propõem uma sociedade marcada por autonomia, trabalho partilhado, auto-organização e convivialidade. Nela, o Produto Interno Bruto (PIB) perde o sentido como parâmetro de prosperidade. Indicadores ligados a saúde, vitalidade comunitária, longevidade e felicidade são mais importantes aqui.

A diminuição da atividade econômica e dos conglomerados altamente capitalizados tende a devolver espaço para os negócios de menor tamanho. A economia se reorganiza e passa a operar em uma escala mais humana, na qual as pessoas deixam de ser engrenagens do sistema e podem ter seu trabalho devidamente valorizado. A velocidade da vida volta a ser saudável, os laços comunitários se regeneram, os índices de felicidade aumentam.

Podemos acrescentar que, nessas condições, a saúde geral da população melhora e a venda de remédios cai. Tal efeito, que dentro do pensamento econômico hoje dominante seria considerado um problema – afinal, os remédios e toda a indústria da doença correspondem a parte importante do PIB – não seria motivo de preocupação em um mundo onde o PIB deixou de ser o fetiche dos tecnocratas e governantes.

Foto: Anton Atanasov / Pexels

No sistema alimentar, a atuação de grandes corporações na distribuição de alimentos prejudica os pequenos produtores e também os consumidores, controlando os preços em ambas as pontas. E quanto à produção, os alimentos parecem estar longe do interesse dos latifúndios, que preferem produzir commodities para os mercados interno e externo. Temos aqui um bom exemplo de como o crescimento sem limites chega ao ponto de desviar completamente a finalidade da terra, que no caso do agronegócio já não serve para produzir comida.

Ter na bicicleta um referencial para a estruturação de sistemas alimentares autônomos é uma proposta radical que tem ressonância, em termos teóricos e práticos, com a doutrina do decrescimento. Além de se basear em uma fonte de energia altamente renovável, o alimento, e ser pouquíssimo poluente (zero emissão em seu uso e pouco nociva na produção e no descarte), a bicicleta coloca limites na carga transportada por viagem e na distância viável num sistema produtivo.

A bicicleta oferece autonomia com baixo consumo de energia, em uma escala pequena de operação, podendo dar conta de boa parte da logística de alimentos em uma área geográfica restrita. Dito de outra forma, cria-se uma comunidade de consumidores de alimentos produzidos localmente, um arranjo que contribui para o fortalecimento comunitário.

Trata-se de uma economia localizada e conectada, conforme os princípios do localismo, outra referência importante dentro da teoria do decrescimento. Como proposta de economia política, o localismo coloca-se como resposta aos problemas criados pela globalização, defendendo que cada comunidade deve ser livre para encaminhar seu destino conforme os desejos de seus habitantes. Isso passa pela organização de economias baseadas na autossuficiência local, de forma a minimizar os impactos originados externamente, pelas decisões tecnocráticas de grandes corporações nacionais ou internacionais.

Um aspecto frequentemente destacado pelos defensores do decrescimento é sua oposição a propostas chamadas de “crescimento sustentável” ou qualquer expressão equivalente. Eles nos lembram da importância de estarmos atentos a essas supostas críticas ao crescimento – geralmente criadas e propagadas pelos próprios atores que se beneficiam do crescimento destrutivo sem limites – que, na prática, não almejam reais mudanças.

Na opinião de Serge Latouche, economista francês e um dos mais destacados pensadores da teoria do decrescimento, apenas acrescentar a ideia de “sustentável” ao crescimento faz crer que não há alternativas, nos mantém dentro do pensamento único. A palavra decrescimento, pelo estranhamento que causa, faz parar para pensar, funciona como um slogan provocador, deixando patente a necessidade de sairmos da demagogia produtivista, desenvolvimentista, de superarmos o paradigma do crescimento, que nada mais é que outra forma de dizer “acumulação de capital”.

Costuma ser atribuída ao economista brasileiro Delfim Netto a afirmação “É preciso primeiro fazer crescer o bolo para depois dividi-lo”. A frase é eficaz como recurso de doutrinação, pois remete a uma realidade concreta, que qualquer um consegue enxergar: um bolo maior de fato resulta em pedaços maiores quando dividido. Há nela, porém, uma afirmação implícita: “o bolo ainda não é suficiente grande”. Quando alguém aceita a parte explícita e doce dessa ideia, engole junto a parte implícita, passando a acreditar que o bolo não é grande o suficiente.

Porém, o bolo é bem grande, sim! Se ele for dividido hoje, de forma equânime e justa, as partes serão suficientes para todos. Defender o crescimento é mais uma forma de garantir a concentração de riquezas que existe em praticamente qualquer país, seja ele considerado desenvolvido ou não.

Propor decrescimento em uma cultura obcecada pelo crescimento sem limites soa como heresia. É um ato radical de resistência. Enquanto a ideologia dominante tenta nos convencer que é natural passar nossas vidas trabalhando como escravos, decrescimento é uma provocação para nos lembrar que cada ser está aqui com um propósito maior do que simplesmente trabalhar e produzir sempre mais.

Para além da teoria, o decrescimento é um princípio que pode nortear cada decisão do cotidiano. Precisamos reduzir essa loucura coletiva e reorganizar um projeto de sociedade que sustente as bases naturais da vida.

desperdício de comida

Todos os dias, no mundo inteiro, alimentos são jogados no lixo. A gente já sabe disso mas, mesmo assim, ver números pode ser perturbador.

Um relatório divulgado no fim de março pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) estimou que, em 2022, a quantidade de comida desperdiçada nos domicílios, comércio varejista e estabelecimentos de alimentação totalizou 1,05 bilhão de toneladas.

Os domicílios respondem, nesses cálculos, por 631 milhões de toneladas, o varejo por 131 milhões e os estabelecimentos de alimentação por 290 milhões de toneladas de comida jogada fora. No cálculo médio per capita, seriam 79 kg de alimentos desperdiçados por pessoa no ano.

Por mais que esses números sejam estimativas, são dados assustadores, sobretudo se considerarmos os 783 milhões de pessoas que passam fome atualmente no mundo.

A edição 2024 do Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos trabalhou com dados de 93 países na categoria desperdício domiciliar, um aumento significativo em relação aos 52 países cobertos pela primeira edição do Relatório, publicada em 2021.

É preciso entender bem o que o documento define como desperdício de comida: todos os alimentos, incluindo as partes não comestíveis associadas, que chegam até o varejo ou o consumidor final mas que, em vez de servirem para alimentação, acabam em outros destinos, como lixo, compostagem, esgoto, apodrecimento, aterro, incineração. Um conceito próximo mas diferente é o de perda de comida: tudo aquilo que, na cadeia de produção e distribuição de alimentos, em qualquer uma das etapas antes do varejo (excluindo este), é descartado não retorna de nenhuma outra forma à cadeia de suprimento, e portanto não serve a nenhuma outra utilização. Estimativas da perda de comida no mundo são objeto de outro estudo, também ligado às Nações Unidas. O relatório apresentado aqui diz respeito somente ao desperdício nos domicílios, estabelecimentos comerciais e restaurantes.

E por que as partes não comestíveis são também incluídas na conta? O relatório observa que a definição do que é ou não comestível muitas vezes é cultural. Pés de galinha e miúdos de animais são aproveitados na culinária de algumas residências ou regiões, mas são desprezados como não comestíveis em outras. Em algumas culturas, somente as flores dos brócolis são utilizadas, enquanto em outras as folhas e caules também fazem parte da refeição. Cascas de laranja são usualmente retiradas e jogadas fora, mas em muitas famílias elas são transformadas em deliciosos doces ou geleias.

O estudo encontrou uma pequena correlação entre a temperatura média do país e a quantidade de comida desperdiçada nos domicílios: em países mais quentes o desperdício estimado tende a ser maior. Algumas hipóteses são levantadas como possíveis explicações dessa relação: maior uso de alimentos in natura (portanto maior proporção de partes não comestíveis, que contam como desperdício), maior quantidade de alimentos com casca grossa (resultando em maior peso das partes não utilizadas) e a própria ação do calor (fazendo os alimentos estragarem em menor tempo).

Apontam também a possibilidade de eventos de calor extremo, secas e a falta de refrigeração adequada na cadeia de distribuição nesses países (impactando o estado em que os alimentos chegam aos consumidores finais) terem relação com essa tendência. De qualquer forma, o próprio relatório faz ressalvas quanto a isso, observando que não há relação entre o desperdício e o nível de desenvolvimento econômico do país e que, de um modo geral, há um considerável grau de incerteza em parte dos dados, portanto é preciso cuidado na interpretação dessas conclusões.

Imagem: Food Waste Index Report 2024

Outra correlação encontrada, mas que também deve ser interpretada com cuidado, é entre o local de residência, urbano ou rural, e o desperdício: foi observado que em áreas rurais o desperdício tende a ser menor.

Segundo o próprio relatório, isso pode estar relacionado ao aproveitamento de cascas e outras partes usualmente descartadas dos vegetais para a alimentação tanto dos animais de criação quanto dos domésticos. Além disso, a falta de coleta de resíduos sólidos em muitas dessas áreas faz com que partes rejeitadas dos alimentos sejam habitualmente jogadas nos canteiros, e isso não foi considerado nos dados como desperdício.

O Brasil está entre os países cujos dados foram utilizados nesta edição do Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos. As informações se referem à cidade do Rio de Janeiro, por meio de um estudo feito em 2023, envolvendo 102 domicílios. Essa cidade produz 4.800 toneladas de resíduos alimentares residenciais por dia. Isso corresponde a 77 quilos por pessoa por ano (bem próximo à média mundial, acima), ou 212 gramas por pessoa por dia.

Cada um dos domicílios que participaram do estudo separou seus resíduos sólidos em três categorias: resíduos alimentares, materiais secos de embalagem e demais resíduos. Os resíduos alimentares constituem 62% do total descartado. Esse material é composto de frutas, verduras e legumes (62% dos resíduos alimentares), carne (11%), padaria (16%) e laticínios (11%). Um dado curioso é que o estudo afirma não haver correlação entre a faixa de renda da família e o desperdício de comida gerado por ela.

Ainda que o Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos considere apenas o que é jogado fora nas etapas finais da cadeia de distribuição, é importante compreendermos a relação disso com o sistema alimentar em que estamos inseridos, especialmente as grandes distâncias percorridas entre produtores e consumidores e a quantidade de intermediários entre eles.

Será que as longas horas que frutas e hortaliças passam chacoalhando dentro de um caminhão na estrada não afetariam o estado em que esses alimentos chegam nas gôndolas do varejo e nas residências dos consumidores? E além do tempo e das distâncias, é preciso também levar em conta o efeito do repetido manuseio que os produtos sofrem, nas diversas operações de carga e descarga feitas pelos coletores regionais de produção, transportadoras intermunicipais e interestaduais, centrais de abastecimento nas cidades de destino, distribuidoras locais e outros possíveis intermediários, ainda que, na melhor das hipóteses, haja sistemas frigoríficos adequados tanto nos transportes quanto nos estoques.

Dessa forma, no momento em que chegam ao consumidor final, parte do tempo de vida útil desses alimentos já foi consumido ou reduzido. Eles poderão estragar mais rapidamente nas geladeiras dos domicílios.

Basta observar a durabilidade na geladeira dos alimentos adquiridos por meio de esquemas alternativos de distribuição, como feiras de produtores, compras coletivas e grupos de consumo de produtores regionais ou locais: além de mais saudáveis, esses produtos resistem mais tempo antes de começarem a estragar. Está aí mais uma evidência da relação entre o atual sistema alimentar e o desperdício.

Um caminho para diminuir o desperdício são os bancos de alimentos. Estabelecimentos de varejo podem encaminhar a eles os produtos que já estão fora dos padrões para comercialização mas ainda em condições de consumo, de forma que eles sirvam para alimentar pessoas em vez de acabar em aterros.

O Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos é publicado por uma entidade das Nações Unidas como forma de monitoramento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, especificamente o objetivo 12.3: “Até 2030, reduzir pela metade o desperdício de alimentos per capita mundial, nos níveis de varejo e do consumidor, e reduzir as perdas de alimentos ao longo das cadeias de produção e abastecimento, incluindo as perdas pós-colheita”.

De qualquer forma, para quem tem fome, não é possível esperar até 2030. Repensar aspectos do nosso sistema alimentar é tarefa urgente, e a mudança pode se dar em todos os níveis, inclusive o mais corriqueiro, a cada vez que escolhemos, adquirimos e consumimos os alimentos.

feiras de produtores

Feiras são encontros de pessoas para fazerem trocas. Existem desde a antiguidade e, na baixa Idade Média, marcaram a fase histórica de reabertura do comércio. Nelas, os produtores podem vender seus produtos diretamente às pessoas que vão consumi-los. Temos aí o menor circuito de distribuição possível, apenas produtor e consumidor.

Neste contato direto o produtor recebe o valor que considera justo por seus produtos enquanto o consumidor obtém, teoricamente, o melhor preço possível, já que não há intermediários. Porém os benefícios que esse encontro direto trazem ao sistema alimentar vão muito além do fator econômico.

O contato direto promove uma interlocução entre aqueles que produzem os alimentos e aqueles que se nutrem com eles. O produtor pode aprender a partir das informações de seus fregueses, obtém um retorno em relação aos hábitos alimentares, às variedades preferidas, às mudanças de qualidade conforme as técnicas de cultivo que vai experimentando. Os consumidores têm a oportunidade de um contato mais próximo com o fazer produtivo, as sazonalidades, as influências do clima e outros fatores naturais em sua alimentação. Nada pode ser mais humano que um sistema alimentar marcado pela compreensão mútua.

Sobretudo para os consumidores, existe nisso um grande aprendizado. Nossa sociedade busca nos acostumar com a ideia de que é possível ter tudo a qualquer momento. O supermercado se passa por um lugar encantado, sempre pronto a saciar qualquer desejo. Na sociedade de consumo, o alimento sai das fábricas, e o leite é um líquido que nasce dentro de caixinhas.

O contato mais próximo com a produção ajuda a tirar os alimentos desse lugar de meras mercadorias, sujeitas aos caprichos dos consumidores e às artimanhas dos mercadólogos. Nossos alimentos são criações da natureza.

Foto: Barbara Zem / MST

Para os produtores, a venda direta dá sentido e viabilidade às pequenas escalas de produção, liberando-os da ideia de que a única via de sobrevivência é aumentar a escala para ter acesso aos mercados por meio dos sistemas de distribuição. A produção pode se manter em escala compatível com a capacidade da unidade produtiva, qualquer que seja seu tamanho.

Ao viabilizarem as trocas, que podem ser monetárias ou não, as feiras tornam possível um certo grau de especialização da produção, sem entrar no regime industrial, no qual os produtores tendem a abandonar cultivos de subsistência. Alguns sítios concentram esforços em frutas, outros em ovos, outros produzem grãos, outros legumes, hortaliças. Em uma feira de produtores diversificada, aqueles que não produzem (os consumidores) podem ter tudo ou quase tudo que necessitam para a alimentação diária. Na pequena escala, os sítios suprem a demanda de suas regiões. Em cada região, um esquema semelhante, há demanda para todos. Assim, o sistema alimentar tende naturalmente à alimentação local. Tudo tão perto que pode ser transportado até de bicicleta!

Através da ideia de que só grandes escalas são economicamente viáveis, o sistema alimentar da sociedade de consumo cria a dependência dos grandes esquemas de transporte, necessariamente motorizados, abrindo espaço e gerando demanda para mais e mais elos na cadeia de distribuição. Os intermediários passam a ditar as condições e preços tanto na ponta do consumo como na da produção. O sistema cria as mazelas e ainda gera a ilusão de que nada fora dele é possível.

Ao mesmo tempo em que são uma prática muito antiga, as feiras de produtores são revolucionárias. Venda direta, proximidade e pequena escala desfazem os pressupostos desse sistema que aprisiona produtores e consumidores. Por meio do encontro direto entre os dois agentes mais importantes do sistema produtivo, as feiras criam uma insurreição. Seus efeitos são econômicos, relacionais e estruturais.

Feiras de produtores são uma ameaça ao sistema do capital. É preciso que resistam, que floresçam e se multipliquem.

transição para o sonho

A transição de um sistema produtivo dependente do transporte motorizado para um mundo dos sonhos, em que bicicletas transportem alimentos para todos, só pode ser feita de maneira gradativa. Conforme os vários elos dessa rede são substituídos, a rede inteira vai sendo repensada para se compor de distâncias pedaláveis. Em algum momento, passa a ser possível transportar a maioria dos alimentos desde o produtor até o consumidor final sem usar combustíveis fósseis.

Uma mudança como essa vem acontecendo por meio da parceria entre o Bicicarreto e a Ecoz. Parte de sua rede local de produtores na cidade de Osasco é formada pelos Quintais Solidários: amigos e parceiros que têm algum alimento crescendo de sobra em seus quintais e doam à Ecoz para que sejam oferecidos de presente nas cestas.

Maços de ora pro nobis ou ramos de louro, mesmo em quantidade suficiente para mais de sessenta cestas, podem ser transportados em apenas uma viagem, feita por uma única bicicleta.

Mais de sessenta famílias receberam maços de louro daquele pé. Foto: Zeck

A ideia do Quintal Solidário é tão inspiradora que faz até pensar numa rede de vizinhos em que cada um tenha uma fruta ou verdura crescendo em abundância no quintal e, por meio de trocas não monetizadas, distribuam esses produtos entre si, ou seja, todos tenham de tudo! Tão pertinho que talvez nem precise de bicicletas.

A cultura da sociedade de consumo, com toda sua pressa, distâncias desnecessárias e narrativas para produzir desconfiança entre as pessoas, insiste em nos fazer acreditar que isso é apenas sonho.

Sim, é esse o nosso sonho, e sem o apenas. Criando conexões pedaláveis e implementando aos poucos o conceito de Bicicarreto seguimos, em pequenos passos, na direção dessa utopia.

hipermobilidade e dependência

A rapidez com que o vírus se espalhou pelo mundo, gerando uma pandemia, só é possível graças à mobilidade dos humanos, que atuaram como vetores da doença. Mobilidade é definida como um atributo do indivíduo que expressa sua capacidade de se deslocar pelo território. Essa capacidade naturalmente varia em função de sua condição social, já que todo meio de transporte tem um custo proporcional a seu alcance e sua velocidade. Dá até para pensar numa hipermobilidade, como a condição que alguns têm de se locomover praticamente sem limites entre localidades de todo o planeta. No Brasil, e provavelmente em outros países, o vírus penetrou e se difundiu a partir de meios sociais abastados, justamente onde existe hipermobilidade.

Graças ao desenvolvimento dos sistemas de transportes, é possível conceber arranjos produtivos distribuídos por localidades muito distantes umas das outras. Isso se dá em escala global, com componentes e produtos acabados cruzando o mundo em busca de seus mercados, e também em escala nacional, com mercadorias viajando mais de mil quilômetros entre o local de produção e a residência em que serão utilizadas ou consumidas.

A razão que leva a esses arranjos produtivos é, como quase sempre, econômica. Na escala global, uma mercadoria produzida em um país distante pode ser mais barata que outra produzida localmente graças à grande escala de produção e transporte, muitas vezes aliada a altos níveis de precarização do trabalho, que reduz muito o valor da mão de obra. Com os empresários sempre passando por cima de tudo em busca do maior lucro possível, e os consumidores geralmente escolhendo o menor preço que encontram, tais arranjos produtivos acabam se estabelecendo e eliminando as alternativas.

Dentro do país, especialmente quando se trata de um território imenso como o brasileiro, consumimos uma fruta ou legume que viajou dias de caminhão quando poderíamos ter na mesa a mesma fruta ou legume produzido dentro de um raio de cem quilômetros em torno da localidade onde estamos. As grandes redes de distribuição e comercialização de alimentos têm um papel determinante nisso quando optam por oferecer apenas produtos que vêm de longe, que elas compram a um custo muito baixo. São produzidos por meio de agricultura intensiva, altamente mecanizada e com grande uso de produtos químicos, e chegam até nós por meio de sistemas de distribuição bastante poluentes.

A disponibilidade do transporte é de fato uma condição para que tudo isso seja possível. Mas existe uma série de escolhas que resultam nesses esquemas. Uma vez que eles são implementados, nos tornamos dependentes deles. Uma sociedade que avalia tudo pelo critério econômico não é capaz de enxergar o quanto de absurdo há nisso. Nesse sistema de valores, tudo bem fechar uma fábrica em nosso país só porque alguém produz a mesma coisa do outro lado do mundo e entrega aqui pela metade do preço; tudo bem comer uma fruta que passou dias chacoalhando dentro de um caminhão sendo que tem gente produzindo a mesma fruta a uma distância que pode ser coberta de bicicleta.

Eis que um vírus, com sua altíssima capacidade de deslocar-se pelo espaço graças à hipermobilidade disponível para alguns, provoca uma situação de emergência mundial, tornando necessário restringir a mobilidade dos humanos, enclausurando-os em suas casas.

Nesse prolongado período de prisão domiciliar, neste momento ainda sem previsão de término, talvez as pessoas tenham tempo para pensar no quanto se encontram dependentes de sistemas econômicos absurdos, e percebam que existe terra fértil e produção exuberante bem mais perto do que imaginam.

circuitos curtos

Quando um produtor vende seus produtos diretamente a quem vai fazer uso deles, temos um caso de venda direta ao consumidor. Essa é a menor cadeia de distribuição possível, com apenas dois agentes: o produtor e o consumidor. Em algumas situações, existe um terceiro agente, como por exemplo um comerciante que compra diretamente do produtor e revende para os consumidores.

Nesses dois esquemas, temos aquilo que se denomina circuito curto. Nesse termo da economia, a palavra ‘curto’ diz respeito à quantidade de agentes econômicos. Assim, o circuito curto é definido como um circuito de distribuição no qual existe, no máximo, um intermediário entre produtor e consumidor.

Um conceito relacionado, porém claramente distinto, é o de alimentação local, que faz referência às curtas distâncias percorridas por um produto desde sua origem até o consumidor. Nos circuitos curtos, os produtos tendem a percorrer distâncias menores, mas não é isso que os define.

O circuito curto é a forma mais básica e tradicional de escoamento da produção. Feiras existem desde a antiguidade, e eram eventos na vida comunitária, podendo estar associadas a festividades religiosas. As feiras medievais são consideradas um marco do ressurgimento do comércio na Europa, após o isolamento que marcou o período do feudalismo. Nas feiras, mercadores ou os próprios produtores compareciam com produtos que poderiam vir de longe. Os consumidores, por sua vez, se organizavam para ir até esses eventos, que representavam a possibilidade de adquirir produtos que só poderiam ser encontrados ali. A ida de alguém a uma feira distante é um acontecimento, o qual é retratado nos versos destas músicas, duas brasileiras e uma inglesa: Feira de Santana (Tom Zé), O Pedido (Elomar) e Scarborough Fair (Simon & Garfunkel).

No que se refere à produção de alimentos, há várias possibilidades de circuitos curtos. Entre os casos de venda direta, podemos mencionar: sítios de portas abertas, que vendem sua produção no próprio local a quem quiser comprar; produtores que organizam e entregam (eles mesmos) suas cestas de produtos, seja sob demanda, seja com regularidade pré-estabelecida; feiras de produtores, nas quais os próprios agricultores comparecem com sua produção para vendê-la aos consumidores.

Foto: Zen Chung / Pexels

E há os esquemas com um único intermediário entre produtores e consumidores: um comerciante que compra de diversos produtores e vende esses alimentos em sua loja; um restaurante que adquire produtos in natura diretamente dos sítios e os serve preparados a seus clientes; um serviço de entrega que leva os alimentos do local de produção até os consumidores.

Um esquema convencional de distribuição pode ter muito mais agentes: um transportador de longa distância e cargas grandes, um distribuidor ou atacadista, um segundo transportador que leva os produtos até os pontos comerciais na cidade, o comércio varejista, um serviço de entregas domiciliares. No caso de comércio exterior, existe ainda o importador, que eventualmente desempenha a função de distribuidor, e também o transportador internacional.

O aumento do número de intermediários, sobretudo no século XX, se deve a diversos fatores. As cidades cresceram e os produtores foram se afastando dos centros consumidores. Ao mesmo tempo, o agronegócio produz em escala cada vez maior, em fazendas distantes das grandes áreas urbanas. O transporte em grandes quantidades passa a ser uma forma de diluir o custo decorrente das grandes distâncias, além de existir o interesse dos produtores intensivos em venderem em lotes cada vez maiores. Torna-se necessário um agente bastante capitalizado para receber essas cargas imensas e retalhá-las em quantidades menores, que estejam dentro da capacidade do pequeno e médio comércio varejista. Há também o surgimento das grandes corporações de varejo, que compram em grandes quantidades para abastecer suas redes de lojas padronizadas, espalhadas em muitas cidades. As feiras livres de hoje infelizmente não são exemplos de circuitos curtos, pois os feirantes geralmente se abastecem, com produtos que vêm de longe, nos enormes entrepostos de produtos agrícolas existentes em algumas cidades.

Se, por um lado, produção e transporte em larga escala contribuem para diminuir custos (lembrando que o capitalista pode simplesmente se apropriar dessa diminuição de custos, sem repassá-la ao consumidor), por outro, o aumento do número de intermediários eleva o preço final dos produtos. Além disso, esquemas convencionais de distribuição geram dependência e têm efeitos econômica e socialmente nocivos.

Em um sistema que funciona em larga escala, torna-se inviável a um pequeno comerciante comprar em quantidades menores, seja pelo custo do frete, seja porque grandes produtores simplesmente não vendem em pequenas quantidades. O comércio se torna dependente da intermediação de distribuidores e atacadistas, bem como das transportadoras que operam com cargas enormes. A proliferação das grandes redes varejistas acaba provocando o fechamento de estabelecimentos menores e locais. Esses pequenos comércios têm muitas vezes também um papel comunitário, para além de sua função econômica. São lugares em que as pessoas se conhecem, chegam a pé e podem conversar sobre assuntos do bairro e também sobre os produtos que estão comprando. O que fica no lugar são estabelecimentos enormes e impessoais, onde os clientes chegam de longe e de carro, entram e saem sem reconhecer ninguém.

Os circuitos curtos representam um resgate de arranjos mais simples e tradicionais, trazendo diversas vantagens para produtor e consumidor, os dois agentes essenciais de um sistema produtivo. Tendo no máximo um intermediário, os circuitos curtos tornam possível que os produtos cheguem aos consumidores a preços mais acessíveis, ao mesmo tempo em que os produtores podem receber um valor melhor por aquilo que produzem e em pagamentos imediatos, evitando a cadeia de faturas e prazos existente nos esquemas econômicos convencionais.

E as vantagens vão muito além da redução de custos. Possibilitando uma relação mais próxima entre produtor e consumidor, os circuitos curtos contribuem para formar e fortalecer vínculos sociais entre aqueles que cultivam os alimentos e aqueles que se nutrem com eles. Alimentação é um componente essencial da vida, é importante que a aquisição dos alimentos possa ser pautada por relações de confiança. Ainda que exista um intermediário, o circuito curto permite maior transparência quanto à procedência do alimento, tornando dispensável o uso de certificações e de embalagens bonitinhas feitas por designers profissionais para conquistar a confiança do consumidor.

Vínculos significativos também representam um aumento da segurança para os produtores. Estando mais próximos de seus clientes finais, produtores ficam mais resguardados contra flutuações inesperadas de demanda, muitas vezes causadas por decisões comerciais dos intermediários, resultantes de fatores macroeconômicos. Pessoas físicas sempre precisarão comer.

Esquemas convencionais de distribuição necessitam de mais embalagens, tanto para a proteção dos produtos no transporte e manuseio por diversos intermediários quanto para a criação de identidade mercadológica. Sendo assim, os circuitos curtos também representam menor produção de resíduos sólidos e menos agressão ao meio ambiente.

A organização da produção e distribuição de alimentos em circuitos curtos, tendo em conta também os princípios da alimentação local na escolha das distâncias percorridas poderia, por exemplo, levar à criação de conexões diretas entre os sítios produtivos das áreas periurbanas e os consumidores das regiões periféricas das aglomerações urbanas. Infelizmente, apesar de haver tanta demanda por alimentos saudáveis em áreas tão próximas à produção, os produtos orgânicos hoje acabam sendo direcionados a áreas mais abastadas da cidade, onde podem ser vendidos como produtos diferenciados a um valor de troca mais alto.

Sistemas produtivos convencionais são pensados visando apenas benefícios econômicos. Quando se trata de nutrição das pessoas e reprodução da vida, é importante lembrar que um sistema produtivo pode também ser estruturado para criar relações e vínculos significativos. Muito mais do que um princípio dogmático de organização, a proximidade física e social é um fator de fortalecimento comunitário, e cada vez mais precisamos disso.

alimentação local

Qual o sentido de escolher um alimento que viajou centenas ou milhares de quilômetros quando é possível ter o mesmo alimento produzido localmente ou numa cidade vizinha?

Ao olhar para um tomate que foi plantado a milhares de quilômetros, você tem pelo menos duas certezas. Uma é que o custo dessa viagem absurdamente longa está embutido nesse preço, e se nem assim ele está especialmente caro é porque alguém, provavelmente o produtor, está sendo muito explorado, tendo seu trabalho pago bem abaixo do que deveria. A outra certeza é que esse tomate passou muito mais horas chacoalhando dentro de um caminhão, em condições precárias de higiene, do que um tomate plantado perto de você.

O princípio da alimentação local é muito simples: dar preferência a alimentos produzidos em locais próximos. Essa escolha tem impactos diversos. Fortalece as redes econômicas locais. Incentiva produtores próximos, cujas hortas você pode eventualmente vir a conhecer pessoalmente. Apoia produtores de pequeno porte em detrimento de esquemas econômicos baseados na produção e no transporte em larga escala, que se sustentam na exploração do trabalho humano. Desincentiva o transporte de longa distância, que consome grande quantidade de energia e emite muitos poluentes.

A alimentação local é tema de reflexão em muitos lugares do mundo e, havendo um número significativo de pessoas com esse tipo de preocupação em suas escolhas, é eventualmente chamada de movimento. Há quem fale em critérios para se considerar um alimento como local. No caso de critérios baseados em distância, há na Europa limites que variam entre 100 e 250 quilômetros, enquanto que a legislação estadunidense fala em 400 milhas (640 quilômetros) de distância entre produção e consumo. Segundo essa mesma legislação, o estado pode também ser um critério, o que naturalmente fica confuso quando se trata de produção ou consumo próximo às divisas de estado (regiões em outros estados acabam sendo mais próximas que algumas regiões do mesmo estado). Há também critérios pensados em termos de unidade ecológica, definida de acordo com clima, bioma, bacia hidrográfica, solo etc., levando às noções de ecorregião ou de bacia alimentar.

No contexto do BiciCarreto, podemos propor um critério mais radical para se pensar a localidade. Alimentação local é aquela em que a produção fica a uma distância viável para ser coberta por meio de bicicletas. Numa economia dominada pelo agronegócio e pelos dogmas da globalização, a ideia de alimentação local nos serve como inspiração para um mundo que certamente é possível e estará tão mais próximo de nós conforme nossas pequenas decisões cotidianas apontarem nessa direção.

É importante sempre questionar sobre a origem daquilo que estamos comendo. Para os produtores da maioria dos alimentos que você ingere, aquilo é nada mais que um commodity, um bem que existe por seu valor de troca e que pode muito bem ser produzido na Bahia, trazido de caminhão até o CEAGESP em São Paulo para ser então negociado e despachado para o Amazonas, sem que haja nada de estranho nisso.

Para você, porém, aquilo é o seu alimento, é a substância que forma os tecidos do seu corpo e nutre sua vida. Ao escolher de onde vem aquilo que come, você também escolhe que esquema econômico vai ajudar a alimentar. Além dos critérios nutricionais, a compra de um alimento envolve sempre uma decisão política.

desertos alimentares

Se boa parte da humanidade escolheu viver em cidades, é porque elas prometem, entre outras coisas, acesso mais fácil aos produtos e serviços essenciais à vida. Abrimos mão de plantar o próprio alimento pois, vivendo em aglomerações, nós poderíamos adquiri-lo facilmente enquanto nos dedicamos a outras atividades. Acontece que em muitas localidades essa oferta é negada.

Os lugares onde não existe acesso fácil a alimentos saudáveis são chamados desertos alimentares. São bairros onde não há mercearias, quitandas ou supermercados que vendam frutas, verduras e legumes frescos. Os estabelecimentos que existem nesses lugares oferecem apenas produtos comestíveis ultraprocessados, cheios de gorduras, açúcares, saborizantes e conservantes químicos. Produtos que, segundo alguns profissionais, sequer podem ser considerados alimentos.

Bastante utilizado nos EUA em anos recentes, o conceito tem uma definição básica bem simples, dada pelo ministério da agricultura de lá: desertos alimentares são áreas onde o acesso a alimentos saudáveis e a preço acessível é limitado. Há também definições mais elaboradas, que podem restringir a áreas com população de baixa renda, especificar uma distância máxima (geralmente 1 milha) entre domicílio e estabelecimento comercial, ou ainda considerar a posse de automóvel pela família.

Dois enormes atacadistas (canto inferior esquerdo) podem quebrar comércios locais. Imagem: DigitalGlobe.

Para além das especificidades das definições, bastante ligadas à realidade social e urbana de cada país, o que mais interessa para nós é a própria ideia de deserto alimentar. Ela nos leva a refletir sobre como organização urbana, mobilidade e forças econômicas são fatores que determinam de maneira direta o acesso a uma alimentação decente.

Ao abrir uma loja em determinado bairro, uma grande rede de comércio pode provocar o fechamento de mercearias e quitandas locais. Se isso acontece, as pessoas passam a ter duas opções: ou acabam tendo sua alimentação restrita aos produtos que estiverem disponíveis nesse supermercado, pagando o preço que seus gestores quiserem, ou precisam se deslocar até outro bairro em busca de opções. Terão que gastar combustível, caso disponham de um automóvel, ou pagar condução e ter que segurar sacolas cheias e pesadas dentro do transporte coletivo e no ponto de ônibus. Pessoas com mais idade e menos condições físicas são as que mais sofrem com isso. Caso tenham problemas crônicos de saúde, a importância de uma alimentação saudável é ainda maior, e portanto a dificuldade de acesso aos alimentos torna-se ainda mais determinante em suas condições de vida.

Há bairros planejados para que praticamente qualquer movimento dependa de um automóvel. Tudo é longe, as pessoas precisam de um carro até para ir à padaria. Eventualmente, há aí supermercados que até oferecem uma linha de alimentos saudáveis, afinal são frequentados por “gente feliz”, e esse tipo de consumidor costuma ter interesse em bons produtos. Mas os preços praticados nesses lugares são bastante seletivos. Até mesmo os chamados sacolões tendem a se tornar quitandas de luxo quando estão perto de bairros ricos. Considerando que a definição fala de alimentos a preços acessíveis, podemos considerar esses bairros como desertos alimentares também.

Tente sair caminhando para procurar um mercado ou quitanda. Imagem: DigitalGlobe.

De qualquer forma, definições oficiais acabam sendo o menos importante. Você é quem tem mais legitimidade para falar sobre a situação em que vive. Como você avalia a disponibilidade de alimentos saudáveis no lugar onde você mora? Sente dificuldade para obtê-los? Isso afeta de alguma forma a qualidade da sua alimentação e da sua vida?

Tendo em vista tudo isso, você considera o seu bairro um deserto alimentar?

Ao aceitarmos que o alimento seja tratado como mercadoria, sujeita a leis de mercado, podemos esperar a proliferação desses locais em que as pessoas são privadas de boa alimentação a menos que estejam em condições econômicas muito privilegiadas. Para que não fiquemos reféns da indústria de produtos comestíveis e das redes de supermercados, é preciso incentivar os pequenos comerciantes e, especialmente, os mercados de produtores. E aqui, incentivos não dizem respeito às leis ou benefícios tributários que partem do poder público, mas às escolhas feitas por cada um no momento de adquirir seus alimentos.