reaprendizagem

A torneira está pingando. Chama o encanador e manda trocar por uma torneira nova? Acordou enjoado ou com dores abdominais. Vai até a farmácia e se enche de comprimidos? Pneu da bicicleta furou. Leva na bicicletaria e manda trocar a câmera? A calça está arrastando no chão. Precisa do serviço de costura do shopping center para ajustar uma barra?

Alguns conhecimentos que eram amplamente difundidos há apenas uma ou duas gerações, hoje são bem mais raros entre as pessoas. Consertar ou até produzir roupas, usar ferramentas manuais para fazer reparos na casa, produzir conservas, fazer pão, aliviar pequenos males com chás ou remédios caseiros, utilizar áreas verdes para produzir alimentos, estas e outras habilidades eram triviais na geração dos nossos pais (ou dos avós dos mais jovens).

Em apenas algumas décadas, a cultura do consumo conseguiu varrer esses conhecimentos de boa parte da população, ao nos acostumar com soluções pensadas para gerar faturamento para grandes empresas e produzir em nós a dependência dos produtos e serviços oferecidos pelo mercado. No caso dos bens de consumo, a mensagem é “vá até o mercado e compre pronto”. Quanto aos chamados bens duráveis, “jogue esse fora e compre um novo”.

Um projeto voltado para a autonomia precisa se contrapor a esse tipo de mensagem, valorizando as soluções que estão ao alcance das pessoas. Por que eu preciso de um novo se eu posso fazer um pequeno reparo ou trocar uma peça daquele que eu já tenho? Além disso, é preciso criar um processo de reaprendizagem, no qual podemos compartilhar e difundir habilidades que permitem resolver pequenos problemas, sem ter que recorrer a serviços profissionais ou à compra de um novo bem.

Dentro do conceito de Cidades em Transição, que propõe um conjunto de ações que cidades ou grupos menores podem adotar para criar um modelo de desenvolvimento mais razoável e autossuficiente, isso recebe o nome de reskilling. O conceito surge no contexto da adaptação às mudanças climáticas e à escassez das fontes energéticas usadas atualmente, sobretudo o petróleo.

De fato, o fim da energia abundante e barata obriga a sociedade a repensar muitos aspectos da vida e da economia, como por exemplo os sistemas de distribuição baseados em redes de transporte de longa distância. A agricultura local ocupa um lugar de destaque como alternativa a esse modelo sem sentido. Se a estupidez da ideia de comer alimentos produzidos a milhares de quilômetros quando é possível produzir bem mais perto não foi suficiente para nos fazer repensar esse arranjo econômico, a escassez de energia finalmente virá para convencer a sociedade a priorizar a produção regional ou local.

Mas não precisamos pensar na reaprendizagem como uma tarefa que precisaremos encarar em vista de um cenário ameaçador de mudança climática e crise energética. Reaprender é interessante simplesmente porque é bom saber as coisas! O conhecimento é libertador e traz autonomia. Além de útil e importante, recuperar habilidades que nos foram tiradas pela cultura de consumo tem um forte sentido político.

O processo de reaprendizagem é uma oportunidade para que possamos compartilhar nossas habilidades, valorizando saberes e criando vínculos fortes e saudáveis entre as pessoas. É possível pensar, por exemplo, em pequenos encontros ou oficinas onde as pessoas troquem esses conhecimentos que permitem resolver pequenos problemas do dia a dia: técnicas de cultivo, costura, marcenaria, mecânica básica, uso de ervas medicinais, técnicas corporais voltadas para a saúde, tarefas simples domésticas como trocar um courinho de torneira ou um interruptor elétrico. Se isso puder acontecer de maneira comunitária, sem monetização dos saberes, será ainda mais incrível.

Essas oficinas têm ainda o efeito de valorizar o conhecimento dos mais velhos, neste mundo que, a bem do consumo, fica nos dizendo que tudo que é velho tem que ser jogado fora e substituído. A reaprendizagem deixa nas pessoas o sentimento de “eu consigo resolver, não dependo dos outros”. A construção da autonomia, inclusive nas pequenas tarefas da vida, é um prazer em si mesma, e fortalece pessoas e comunidades.

segurança alimentar

A ideia de segurança alimentar diz respeito ao “direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente”, conforme o Artigo 3º da lei federal nº 11.346/2006, conhecida como Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional. Em seu Artigo 4º, a Lei define que a segurança alimentar abrange também “a ampliação das condições de acesso aos alimentos por meio da produção, em especial da agricultura tradicional e familiar, (…) do abastecimento e da distribuição dos alimentos”.

foto: Luiz Costa/SMCS

Entendendo a segurança alimentar como um elemento essencial na vida de qualquer comunidade, o BiciCarreto propõe uma organização do sistema de produção e distribuição de alimentos na qual todas as comunidades tenham condições de alcançar o máximo de autonomia. Aqui, como em outros contextos, autonomia deve ser compreendida como uma configuração em que existe o mínimo possível de dependência.

A bicicleta é uma forma de transporte que oferece possibilidade de autonomia praticamente ilimitada, além de ser um meio de alta eficiência energética, chegando a ser 25 vezes mais eficiente que um automóvel.

O uso da bicicleta para o transporte da produção, associado a uma organização adequada dos produtores, contribui fortemente para a segurança alimentar. As comunidades passam a ter acesso aos alimentos sem depender de combustíveis fósseis, da propriedade de um veículo motorizado (com todos os custos de manutenção e impostos que isso implica) ou da atuação de intermediários que façam a distribuição. Como consequência, ficam protegidas dos mercados de combustíveis, de veículos e de serviços. Ficam também imunes aos efeitos da variação da oferta desses serviços, como acontece nos casos, ainda que pouco frequentes, de alteração ou paralisação dos sistemas de transportes.

Por ser uma forma pessoal de transporte, sem a velocidade das máquinas, a bicicleta humaniza as relações comerciais, fortalecendo ainda mais as comunidades. Produtores, comerciantes e consumidores são atores essenciais em uma economia local. A segurança alimentar da comunidade é o resultado de suas escolhas.