Neste mês de novembro completam-se dez anos desde o lançamento do Guia Alimentar para a População Brasileira. A edição de guias alimentares é uma prática recomendada e apoiada pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, do inglês Food and Agriculture Organization). Atualmente, mais de 100 países têm seus guias alimentares, com recomendações de acordo com as culturas alimentares locais, a disponibilidade de alimentos e a situação nutricional de sua população.
Conforme anunciado à época do lançamento pelo então ministro da saúde, Arthur Chioro, um dos principais objetivos do Guia é “combater a obesidade e o avanço das doenças crônicas no país”. A principal referência conceitual do Guia é a classificação NOVA, que organiza os alimentos em quatro categorias e define o que são os ultraprocessados. Estes produtos comestíveis, com qualidades nutricionais bastante questionáveis, estão altamente associados às doenças crônicas não transmissíveis, que representam uma importante questão de saúde pública para o país.
Acontece que, enquanto os ultraprocessados são uma ameaça para as pessoas e as populações, guias alimentares são uma ameaça para as corporações que fabricam esses ultraprocessados. O caso mais emblemático disso talvez seja o do relatório SRA Top Policy Issues (Principais questões de políticas referentes a assuntos científicos e regulatórios), produzido pela consultoria Sancroft para a Coca-Cola. Aproveitamos aqui a efeméride dos dez anos do Guia para falar um pouco desse relatório, que vê nosso Guia Alimentar como ameaça para os negócios da Coca-Cola.
Trata-se de um documento que apresenta um panorama das pressões regulatórias e políticas globais relacionadas a seis tópicos que podem afetar a produção e as vendas da empresa no mundo todo. Os tópicos são: uso de Bisfenol A (BPA) em embalagens, defensivos agrícolas, rotulagem, organismos geneticamente modificados, restrições a ingredientes específicos (cafeína, caramelo, corantes, aromatizantes, conservantes) e adoçantes (açúcar, produtos não calóricos e teor de doçura).

Imagem: reprodução
Cada capítulo traz um mapa de calor que classifica os países conforme as pressões que apresentam à empresa no tópico tratado. Em seguida vem uma análise das situações e tendências globais e locais referentes à regulação naquela área. O relatório também inclui informações sobre o cenário competitivo no qual a empresa atua e sobre outros atores que podem afetar o mercado da empresa. É interessante observar a forma como os danos à saúde humana causados por ultraprocessados são abordados pelo ponto de vista da corporação que os produz.
O Guia Alimentar para a População Brasileira é mencionado diretamente no capítulo sobre açúcar, adoçantes e teor de doçura. Em seu resumo executivo, esse capítulo começa reconhecendo o aumento nas taxas de obesidade, sobrepeso e doenças não transmissíveis e como isso trouxe a atenção do público ao conteúdo calórico dos alimentos e bebidas. Em seguida, observa que “há uma crescente aversão a ingredientes considerados artificiais ou sintéticos, bem como a alimentos processados em geral” (grifo nosso). É curioso o uso da palavra ‘considerados’, como se o fato de um ingrediente ser natural ou artificial/sintético fosse uma questão de opinião. De qualquer forma, essas constatações iniciais se referem, ao menos do ponto de vista de quem atua em defesa da saúde, a um avanço na consciência do público em relação às características nocivas de certos produtos.
Porém, a perspectiva fica clara quando os interesses corporativos passam ao primeiro plano. Ao mencionar as medidas adotadas por governos, o relatório observa que “Muitas das políticas e regulações propostas são discriminatórias ou punitivas” (grifos nossos) e acrescenta que “Muitas [dessas medidas] afetam negativamente o portifólio da Coca-Cola”. Afetar negativamente, nesse caso, significa diminuir as vendas e a reputação dos produtos da empresa.
Mais adiante, observa que “tem havido uma proliferação de estudos focados no açúcar e seu papel não apenas na obesidade, mas também em sua contribuição para doenças não transmissíveis” (grifo nosso) e afirma, ainda que indiretamente, que isso seria uma forma de demonização desse ingrediente dentro do debate sobre obesidade.
Então vem o mapa de calor, no qual os países do mundo são classificados conforme as ameaças que apresentam à empresa em questões relacionadas a açúcar, adoçantes e teor de doçura. A legenda deste mapa define duas categorias de ameaças: “em vigor” (enacted) e “potenciais” (potential).
O Brasil aparece como um país em que a ameaça está em vigor. O destaque no mapa especifica brevemente a situação aqui: “National negative dietary guidelines. Mixture of LNCS and sugar allowed”. A tradução literal seria: “Diretrizes alimentares nacionais negativas. Mistura de adoçantes e açúcar permitida”. ‘Dietary guidelines’ é equivalente em inglês a ‘guia alimentar’, e está no nome da versão em inglês do nosso Guia (Dietary Guidelines for the Brazilian Population). Na língua inglesa ocorre essa construção ‘diretrizes negativas’, fazendo referência ao fato de o Guia recomendar que se evite o consumo dos produtos da empresa.
Na seção que apresenta as situações regionais, o relatório da Sancroft se refere ao nosso Guia Alimentar afirmando que o Brasil publicou diretrizes alimentares “que são punitivas com relação ao açúcar às nossas bebidas, classificando-as como alimentos ‘ultraprocessados’” (grifo nosso). A frase passa a impressão de que os editores do Guia resolveram punir os refrigerantes, e para isso decidiram atribuir-lhes a avaliação de ultraprocessados, da mesma forma que um aluno mal avaliado alega que a professora lhe deu nota baixa porque assim quis, e não porque seguiu um critério de avaliação.
A definição de alimento ultraprocessado é clara, objetiva e de conhecimento público. Basta aplicar o critério para perceber que um refrigerante industrializado se encaixa, de maneira inequívoca e com bastante folga, dentro dessa categoria. Pelo menos neste caso, a professora não está sendo injusta com o aluno desleixado, a avaliação foi bem merecida.
Parece bastante honroso para o nosso Guia Alimentar ter sido nominalmente citado como ameaça por uma empresa que oferece produtos tão nocivos. Torcemos bastante para que a ameaça se concretize e cada vez mais gente diminua ou abandone o consumo dessas bebidas e demais ultraprocessados, que o mercado entrega às pessoas para que elas encham suas barrigas.
Outra ameaça brasileira mencionada no relatório é o Pacto Nacional para Alimentação Saudável, instituído em 2015, que visa estimular o consumo de alimentos in natura e minimamente processados e regular a propaganda de bebidas e alimentos ultraprocessados em escolas.
Em qualquer luta, é importante conhecer bem os adversários: como atuam, como expressam seus interesses, que recursos têm à sua disposição. Em seus esforços para ganhar dinheiro e dominar mercados, é isso que a Coca-Cola faz ao encomendar à Sancroft uma análise do contexto regulatório nos países em que atua. Em nossos esforços para promover a alimentação saudável, é isso que fazemos ao olhar com atenção para esse tipo de relatório.
O Guia Alimentar para a População Brasileira foi identificado por nosso adversário como uma ameaça, e isso é mais um ótimo indício de sua qualidade e relevância. Parabéns ao Guia pelos seus dez anos!
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