gosto

Pessoas com paladar acostumado a produtos ultraprocessados podem não se satisfazer com o sabor de uma comida caseira, temperada naturalmente e sem exagero. Temperos ultraprocessados são uma mistura de saborizantes diversos e quase sempre usam um agente realçador de sabor, como o glutamato monossódico – e quando esse ingrediente não é mencionado no rótulo, costuma ser difícil de acreditar.

Da primeira vez que vi colocarem aquele tempero em cubinhos no arroz – eu era criança – fiquei impressionado (positivamente, naquela época) com o sabor chegando da cozinha até meu quarto. Fui ver o que era, o arroz estava verde (o que também achei divertido). E então, quando senti o paladar daquilo, vi brilharem aqueles fogos de artifício que reluzem em círculos sobre as torres do castelo do mundo encantado de Disney. Senti que queria mais.

O arroz branco, com tempero da casa e sem exagero de sal, perdeu a graça por algum tempo. Passado aquele período, felizmente curto e apenas experimental em que minha mãe e minha avó usaram esse tipo de produto para fazer arroz, tudo voltou ao normal.

Faz sentido usar tempero artificial para fazer um arroz? Fico pensando como se forma o gosto de uma pessoa que, sem a mesma sorte que eu tive, nunca mais consegue largar o prazer do sabor artificial. Se a pessoa não vê gosto em alimentos menos temperados, não se contentará com menos, terá dificuldade de trocar um doritos por um preparado caseiro equivalente, feito de flocão de milho.

Assim como o prazer do sabor artificial influencia as escolhas alimentícias, as preferências estéticas sobre produtos cinematográficos também se formam a partir daquilo que a pessoa costuma ingerir quando vai ao cinema ou se recolhe a um netflix.

Observe como são os roteiros e o estilo cênico dessas séries documentais de produção recente. Para contar qualquer história, seja a vida na savana, a tomada de Constantinopla, a última inovação da medicina ou um episódio envolvendo gente famosa – além, obviamente, de qualquer produto de ficção –, as produções desse conhecido serviço de streaming invariavelmente recorrem a altos níveis de tensão narrativa para atender os desejos de consumidores que querem mais e mais em suas maratonas televisivas. Afinal, a última coisa que pode acontecer é os espectadores ficarem entediados e trocarem de programa.

Assim, quando resolvemos conhecer um pouco mais sobre, por exemplo, a tomada de Constantinopla, somos obrigados a ver guerreiros tendo o peito varado pela espada e o sangue espirrando no teto, precisamos ouvir uma narração em que tanto o texto como a prosódia geram uma descarga de adenalina que nos coloca em estado fisiológico de lutar ou fugir. Como tudo é emoção, temos até que engolir uma história de amor absolutamente irrelevante para o conhecimento dos fatos supostamente históricos que estão sendo apresentados.

São esses os produtos audiovisuais ultraprocessados. Feitos para consumidores que já são incapazes de sentir gosto se não houver todo esse exagero e não verão graça em qualquer coisa aquém isso.

A escolha das produtoras dessas séries ultraprocessadas, assim como a da indústria que fabrica produtos comestíveis ultraprocessados, é compreensível, considerando que elas têm como principal objetivo ganhar dinheiro – e sempre querem sempre mais. Mas as escolhas dos consumidores poderiam ser diferentes.

O paralelo poderia ser estendido também aos jogos digitais. Ao contrário de jogos antigos, em que o sujeito jogador era uma navinha protegendo o planeta da invasão de extraterrestres ou um homenzinho tosco atravessando a selva e correndo risco de cair na boca de um jacaré, hoje temos jogos cada vez mais realistas graficamente, contextualizados em situações da vida e muitas vezes envolvendo violência. Verdadeiros simuladores de relações interpessoais, oferecem ao jogador uma infinidade de opções e recursos para ajudá-lo a alcançar seu objetivo. Adultos e crianças hoje passam horas imersos nessas realidades ultraprocessadas. Poderão essas pessoas um dia perder o gosto pela vida cotidiana e natural que acontece aqui fora no mundo físico?

O termo ultraprocessado pode ser entendido em muitas esferas, para além dos produtos comestíveis. A indústria sabe bem como criar desejos insaciáveis para em seguida oferecer sua satisfação temporária. Do outro lado, aqui na ponta do consumo tanto de produtos alimentícios quanto de produtos audiovisuais e eletrônicos, ainda temos, em boa parte das situações, a possibilidade de escolher o que consumir. E essa escolha cabe somente a nós, pois quem produz esse tipo de coisa jamais fará diferente.

Se o estabelecimento – físico ou digital – onde vamos para nutrir nossos corpos e mentes não oferece opções que não sejam ultraprocessadas, é preciso pensar em mudar de estabelecimento.

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Quando resolveu invadir a Índia com suas sementes geneticamente modificadas, a indústria do pesticida fez campanhas agressivas nos pequenos vilarejos, exibindo filmes que mostravam seus produtos junto a deidades do hinduísmo, como forma de quebrar a resistência e ganhar a simpatia dos agricultores. Eles gostaram da proposta, aceitaram converter suas plantações para a transgenia e compraram sacas de sementes patenteadas. A estratégia funcionou. Até aqui, apenas uma velha e manjada ferramenta da publicidade.

Acontece que os agricultores naturalmente tinham o hábito de estocar as sementes de suas culturas, pois eram elas que reiniciavam o ciclo de cultivo no ano seguinte. Essas sementes nativas ameaçavam o interesse da indústria: se não gostassem da nova experiência, os agricultores poderiam voltar a plantar suas próprias sementes e a indústria perderia aquele mercado. Era preciso garantir a dependência perpétua. Era preciso eliminar qualquer outra alternativa dos agricultores, destruir as chances de sobrevivência das formas tradicionais de cultivo. Como aquele tiro que o assassino dá na cabeça do morto caído no chão, para garantir que ele está mesmo bem morto.

Foi simples fazer isso. Os agentes da indústria ofereceram uma quantia em dinheiro em troca de quaisquer sementes antigas que os agricultores pudessem ter guardadas nas fazendas. Parecia um bom negócio, afinal eles agora tinham as novas sementes, cheias de promessas, e nenhum motivo para supor que poderiam precisar das antigas. Alguns trocados a mais fariam diferença no orçamento daquelas famílias simples. Entregaram tudo. Quando começaram a se dar conta da armadilha em que haviam caído, houve uma onda de suicídios de agricultores. Um deles se matou bebendo o próprio pesticida.

O filme Semente: a história nunca contada (Seed: The Untold Story) apresenta apenas um ou outro caso sinistro como esse. É importante conhecer o adversário, saber com quem estamos lidando para jamais duvidar da sua absoluta falta de escrúpulos. Porém, o que vale o filme são as belas histórias de resistência, iniciativas de ativistas de diversos lugares do mundo que estão contribuindo para preservar a diversidade. Ao longo do século XX, 94% das variedades de sementes desapareceram.

Um banco de sementes em Iowa, EUA.

Você conhecerá colecionadores de sementes, bibliotecas de sementes, bancos comunitários de sementes, caçadores de sementes raras que só restaram em poucos lugares do mundo. Verá soluções que os agricultores e agricultoras estão encontrando para ajudarem uns aos outros e resistirem contra as investidas dessa indústria de destruição da vida. Como as feiras de trocas de sementes nativas, por exemplo.

Foi durante a I Feira de Trocas de Sementes e Mudas da Reforma Agrária, realizada na Comuna da Terra Irmã Alberta em setembro de 2017, que saiu da terra o primeiro broto de ideia do BiciCarreto.

Belo tributo a esses pedaços de matéria que carregam a vida inteira dentro deles, Semente: a história nunca contada é perfeito como primeira sugestão de filme publicada neste blogue.