rede local de Bicicarreto

Manhã fria de agosto, o sol estava nascendo quando chegamos à Nossa Horta Parque Continental, localizada no distrito do Jaguaré, em São Paulo, bem perto da divisa com o município de Osasco. Nossa missão era transportar uma pequena encomenda de verduras produzidas nessa horta até o Ponto de Economia Solidária do Butantã, para serem vendidas na feira de orgânicos que funciona nesse local.

A ação concretiza um esforço de articulação iniciado há vários meses, no qual buscamos conectar produtores e entrepostos da região, construindo uma rede de distribuição de alimentos em bicicletas a partir do produtor.

Foto: Dionizio Bueno

A Nossa Horta tem um grande espaço dividido em lotes. Cada um desses lotes é cuidado por uma família da vizinhança. A lista de produtos foi enviada na véspera a uma das pessoas da Nossa Horta.

Essa produtora fez a comunicação interna entre as várias famílias produtoras de forma a encontrar quem tinha os produtos da lista no ponto de colheita. Os alimentos foram colhidos poucas horas antes de serem embarcados nas bicicletas.

Foto: Dionizio Bueno

No trajeto, de cerca de 8 quilômetros, o trânsito de automóveis estava bem difícil, como ocorre todas as manhãs. Nesses trechos, as bicicletas puderam fluir livremente, e o tempo total de trajeto em bicicleta certamente foi bem próximo do que seria em veículo motorizado, talvez até menor. E só na bicicleta as verduras podem tomar a brisa fresca da manhã enquanto são transportadas!

No destino final, os produtos foram identificados com a etiqueta do Bicicarreto. Um cartaz ao lado dá uma informação importante sobre eles: “Os produtos com esta etiqueta foram plantados em uma horta urbana aqui pertinho e foram transportados até esta loja de bicicleta. Até aqui, nenhuma gota de combustível foi consumida no seu transporte!”.

Foto: Dionizio Bueno

Além de divulgar o conceito, essas etiquetas trazem uma narrativa que funciona indiretamente como “certificação”, chamando atenção para a ideia de alimentação local. Os produtos foram organizados em uma cesta com destaque e ficaram expostos junto aos outros alimentos orgânicos vendidos no Ponto de Economia Solidária.

Os esforços de pesquisa e articulação do Bicicarreto estão atualmente voltados para demonstrar a viabilidade de uma rede de produção, distribuição e comércio de alimentos baseada no transporte em bicicleta, de forma que o modelo possa ser reproduzido em diversos bairros.

Tudo que vem da natureza e nos alimenta é criado a partir da terra, começa no chão de um produtor. É assim também o nosso trabalho.

Irmã Alberta

Durante um encontro na Comuna da Terra Irmã Alberta, no qual aproximadamente 40 ciclistas levaram seu apoio à resistência desse acampamento do MST contra uma ordem de despejo, a agricultora e líder comunitária Maria Alves deu este breve relato sobre a vida e a atuação de Irmã Alberta, freira italiana falecida em 2018 e homenageada de diversas formas ainda em vida. O relato foi complementado posteriormente pela própria agricultora.

Irmã Alberta veio da Itália, da cidade de Veneza, ela veio muito jovem para o Brasil. Assumiu essa luta com o povo da terra e já entrou na Comissão Pastoral da Terra para atuar na região do Araguaia. Lá já tinha o histórico antigo das lutas e dos crimes do latifúndio, assassinatos de Chico Mendes e de outros sindicalistas. Havia um pessoal naquele momento defendendo os seringais, defendendo o sindicato dos seringueiros, Irmã Alberta esteve com eles.

Mas aí um dos padres que estavam junto nessa equipe foi assassinado. Vocês sabem também do assassinato de Irmã Dorothy, tudo na mesma região. Vocês sabem da perseguição a Dom Pedro Casaldáliga, que teve uma atuação muito importante em defesa dos indígenas e também das famílias sem terra contra os jagunços de fazendeiros, contra os crimes do latifúndio. Então, como também estava ameaçada, a Irmã Alberta veio para São Paulo com a missão de ajudar um pouco o pessoal em situação de rua.

Ali na região do Brás, foi criada uma entidade, onde se juntavam os profissionais de saúde, alguns profissionais que iam fazer trabalho voluntário. Se juntavam também pessoas da igreja e o pessoal do Rede Rua, ali junto com o Alderon [Costa]. Eles faziam um trabalho de encaminhamento, triagem, questão de documento para aquelas pessoas, davam alimento. Eles foram ficando em torno dessa entidade, e esse trabalho foi crescendo. Algumas pessoas eram soropositivas, isso estava muito em alta na época, década de 1990, ali por aqueles anos.

Então a Irmã Alberta trabalhou nessas equipes, cuidando do pessoal. Aí quando viram que tinha um contingente bom de pessoas, com condições de trabalhar e gerar sua própria renda, de tirar o seu próprio sustento, eles decidiram chamar o Movimento dos Sem Terra, que veio para dar um auxílio no que se refere a organização, para escolher algumas áreas próximas à grande metrópole e fazer ocupação para essas pessoas trabalharem, gerarem renda e viverem dignamente. A gente encontra Irmã Alberta no final da década de 1990.

O primeiro espaço ocupado, a primeira fazenda foi lá em Franco da Rocha. Lá virou assentamento, é um assentamento do ITESP [(Dom Tomás Balduíno)]. Um ano depois foi feita a ocupação aqui, e a gente está até hoje nessa luta. E teve uma outra ocupação na Grande São Paulo, lá em Cajamar, que é o Dom Pedro Casaldáliga, um assentamento do INCRA. Este acampamento aqui recebeu o nome dela, Comuna da Terra Irmã Alberta. Foi feita essa homenagem a ela porque ela já estava atuando, caminhando junto com o MST em vários estados do Brasil.

Foto: Dionizio Bueno, julho/2023

Mas a Irmã Alberta ajudou não só as pessoas do Movimento dos Sem Terra, do movimento rural, dos movimentos sociais rurais. Ela também ajudou muita gente, ela foi da Pastoral Carcerária, ela foi dos Direitos Humanos, ela era uma freira militante. Andava de hábito, e tudo mais. Estava na igreja, mas quando alguém dizia assim, “Precisa da senhora, Irmã Alberta, para mediar um conflito, para ajudar as famílias, para ajudar num momento tenso de despejo, numa negociação na Secretaria de Justiça, no Gabinete”, ela ia. Esses parlamentares respeitavam muito ela. Ela fazia uma fala segura, era uma mulher que tinha conhecimento das coisas.

A Irmã Alberta foi homenageada porque a gente achou justo. Ela era da tua altura [aponta para uma moça de baixa estatura que escuta o relato]. Ela até dizia assim: “Mas eu não morrri ainda!” [pronuncia um ‘R’ forte, imitando sotaque italiano, provocando risos]. Foi homenageada em vida mesmo. Ela morreu com 97 anos. Deixou um legado e um exemplo que a gente não pode esquecer.

Então eu estou trazendo aqui só um pouquinho da história de Irmã Alberta. Ela era uma ameaça. Mesmo daquele tamanhozinho, ela ficava entre aqueles policiais enormes assim. Aí, quando as famílias precisavam de uma palavra, ela dizia, “Deixa eu conversar com o meu pessoal”. Porque a polícia fecha os portões e não deixa ninguém entrar. Mas ela, eles liberavam. Então a Irmã Alberta, ao mesmo tempo que ela era a delicadeza em pessoa, o amor em pessoa, ela era uma ameaça. Gente, as pessoas às vezes viram ameaça mesmo, né?

Ela caminhou muito junto do nosso lado, fazendo a sua tarefa, cumprindo a sua missão de freira que está numa pastoral como a Pastoral da Terra. Em todos os momentos que a Comuna da Terra Irmã Alberta precisou se mobilizar, se manifestar, Irmã Alberta estava junto conosco. Ela era de visitar as famílias, era de conversar com as famílias, era de estar sempre trazendo a mensagem. A gente precisa nunca esquecer dessa força, desse legado, desse exemplo de mulher religiosa, porém com posições políticas muito acertadas, nos momentos certos, naquilo que a gente precisava. A gente tem aqui uma satisfação imensa de ter tido ela caminhando com a gente.

No momento em que ela já estava bastante debilitada, com a saúde precária, ela teve todo o apoio, todo o conforto, toda a assistência que a gente podia dar, e que demos. Ela morreu com 97 anos, de uma vida inteira de muito trabalho, de muita resistência também. Viveu longe dos seus familiares, longe do seu país.

E eu sempre digo: vida merecida, de 97 anos. Ela viveu para servir! Ela esteve aqui para nos ajudar. E ela vai continuar influenciando sempre na nossa luta, abençoando sempre a nossa luta.

(Relato registrado em 16 de setembro de 2023, com informações complementares da própria autora.)

Bicicarreto #04

Toda reflexão sobre as possibilidades de desenvolvimento do Bicicarreto é construída a partir da prática, em movimento. De fato, o pedalar na estrada é propício para arejar o pensamento ao mesmo tempo em que nos empoderamos quanto aos caminhos para transformar ideias em ações concretas.

Foto: Adriana Marmo.

Para que as ações de ativismo sejam sustentáveis como uma prática periódica, precisamos reconhecer que toda ação tem um valor expressivo, além naturalmente de seu valor instrumental. Os efeitos recompensadores de uma ação vêm não apenas dos resultados práticos que ela produz mas também de sua própria execução. Sentindo-se bem durante o processo, a pessoa vai querer fazer de novo.

Foto: Arnaldo Machado.

Nesse aspecto, o Bicicarreto tem sido sempre uma experiência incrível para todos os participantes. Envolve bicicleta, estrada, terra produtiva, amigos, jardins, histórias, hortas, mato e sol. Que mais precisa?

Foto: Dionizio Bueno.

Levar as provocações do Bicicarreto ao ambiente escolar foi o propósito que deu origem a esta ação #04. Neste ano, a Mostra Cultural da escola municipal Théo Dutra, na Brasilândia, iria contar com uma pequena feira agroecológica, articulada pela professora Fernanda Rodrigues. O Bicicarreto entrou na parceria para fazer o transporte de parte desses alimentos.

Foto: Fernanda Rodrigues.

Ver um grupo de bicicletas chegando diretamente da roça, trazendo produtos orgânicos recém colhidos, é um ponto de partida bastante inspirador para muitas reflexões. A escola precisa assumir um papel protagonista na formação de cidadãos críticos e não de consumidores passivos.

Foto: Fernanda Rodrigues.

Temas como produção e distribuição de alimentos, segurança alimentar, reforma agrária, alimentação saudável e agricultura urbana precisam ser regularmente abordados em sala de aula, pois dizem respeito à saúde e à vida de todos nós.

Foto: Ana Fediczko.

Com a prática, vamos acumulando aprendizados sobre as possibilidades das ações de ativismo do Bicicarreto. Trata-se simplesmente de pegar a estrada, chegar cedo a um sítio produtivo na área rural, encontrar pessoas queridas, conversar sobre novas articulações que reforcem nossa luta. Pedalar é (quase) sempre um ato cheio de sentidos políticos.

cicloativismo rural

Com foco no espaço urbano, o cicloativismo costuma estar voltado para a conquista e legitimação do espaço urbano para a bicicleta e outros modais ativos. Isso implica a reorganização das cidades, que há quase um século vêm sendo construídas e reconstruídas conforme um projeto de vida baseado no transporte motorizado sobre pneus.

Aqui, a reflexão vai além dos limites da cidade. Saímos para a estrada, produzindo uma narrativa de cicloativismo em ambiente rural.

Trata-se igualmente do reconhecimento da bicicleta como um poderoso meio de transporte. Ao lidar com produção agrícola, porém, o ativismo aqui está voltado para uma ideia radical de autonomia. No campo, a bicicleta pode ser um fator de segurança alimentar para uma família ou uma comunidade de produtores. Eles passam a ter autonomia para escoar sua produção. Se isso é levado a sério, a tendência natural, isto é se forças fortes contrárias não atuarem, é de formação de cooperativas, mercados locais de produtores e circuitos curtos.

Escoamento da produção é um problema frequente nos assentamentos da reforma agrária. Ajudar no transporte dessa produção é um gesto naturalmente ativista. Melhor ainda no dia em que os ativistas forem desnecessários, e os próprios produtores estiverem levando muitas coisas, pelo menos as que o transporte em bicicletas for viável.

Queremos comida sem veneno. Produtos agrícolas são alimento. Mesmo tendo um apelo diferencial por serem orgânicos, são importantes demais para serem tratados como itens de luxo de butiques alimentícias ou redes de supermercados para gente feliz.

Em meio rural, o cicloativismo ganha muitos novos significados, conecta muitas lutas. Talvez melhor dizendo, mostra como a luta é uma só.